crĂtica | literatura | artes
jangada ISSN 2317-4722
JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES
n.1, jan-jun, 2013
Homocultura Queer Culture
Clock-t Edições e Artes Av. Fioravante Rossi, 3300 – Colatina – ES CEP 29.704-424 | Tel: (27) 9-9995-5853 contato@clock-t.com| www.clock-t.com Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Homocultura N.1, jan-jun, 2013 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com Editor Responsável Juan Filipe Stacul, PUC MG Editores Eduardo Ledesma, UIUC John Tofik Karam, UIUC Juan Filipe Stacul, PUC MG Raquel Castro Goebel, UIUC Conselho Editorial Andreia Donadon Leal, ALACIB Antonio Carlo Sotomayor, UIUC Cláudia Pereira, ALACIB Elisângela A. Lopes, IF Sul MG Fábio Figueiredo Camargo, UFU Gabriel Bicalho, ALACIB Gerson Luiz Roani, UFV Glen Goodman, UIUC Gracia Regina Gonçalves, UFV Joelma Santana Siqueira, UFV José Benedito Donadon Leal, UFOP José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP Karla Baptista, FCB Maria N. Soares Fonseca, PUC MG Michelle Gabrielli, UFPB Murilo Araújo, UFRJ Rubem B. Teixeira Ramos, UFG Terezinha Cogo Venturim, FCB Thiago Ianez Carbonel, UNICEP Victor Rocha Monsalve, UDP Revisão e Diagramação Clock-t Capa Portal da Fuga - Andreia Donadon Leal
sumário
crítica
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tradução
ensaios
artigos
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Editorial Thiago Ianez Carbonel Ethos homoafetivo e constructos retórico-discursivos no romance brasileiro contemporâneo: uma análise das obras “Trem fantasma”, de Carlos Hee, e “Cinema Orly, de Luis Capucho 3 Renato Gama de Lima | Gracia Regina Gonçalves A Fabricação do Gênero: o corpo transexual em A paixão da Nova Eva e A pele que habito 16 Murilo Silva de Araújo | Mônica Santos de Souza Melo “E o que eu pregava, eu estava vivendo”: Identidade social e identidade discursiva na narrativa de vida de um católico gay 27 Jairo Barduni Filho Homossexualidades à deriva nos alojamentos da Universidade Federal de Viçosa-MG: algumas reflexões iniciais 42 Andréa de Lima Costa do Carmo | Maria de Fátima Lopes Problematizando o direito homoafetivo à adoção
54
José Luiz Foureaux de Souza Júnior Dimensões Conceituais do Desvio: do Formalismo ao Homoerotismo
73
Víctor Rocha Monsalve El ropero torcido del extraño Augusto d‟Halmar: Escritura y homoerotismo en Chile a comienzos del siglo XX 85
Fernanda Ferreira Marcondes Nogueira Quem defende a criança queer? , Beatriz Preciado 96
editorial Caro leitor, cara leitora: Neste primeiro volume, a Revista Jangada tem a satisfação de apresentar aos seus leitores um dossiê temático totalmente voltado às discussões que englobam a teoria e a arte queer, assim como as principais problemáticas sociais e políticas que envolvem os sujeitos homossexuais e os direitos da população LGBT. O dossiê homocultura é fruto dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa, durante os encontros da atividade de extensão “Poéticas do (não) lugar: literatura, errância e espaços queer”, realizada em janeiro de 2013, no Departamento de Letras da UFV. Além do material desenvolvido por nossos alunos, tivemos o prazer e a honra de receber artigos, ensaios e traduções de importantes pesquisadores nacionais e internacionais, que lançam diversos pontos de vista sobre a temática em questão e nos apresentam um panorama rico de análises nas mais diversas áreas do saber. Primeiramente, o pesquisador Thiago Ianez Carbonel nos apresenta uma análise comparativa entre duas importantes obras da Literatura Brasileira Contemporênea, Trem fantasma, de Carlos Hee, e Cinema Orly, de Luis Capucho, evidenciando elementos discursivos e estilísticos que remontam à possibilidade de caracterização de uma literatura gay, além de questionar os limites que englobam a possibilidade de definição de obras produzidas por escritores homossexuais. Em sequência, Renato Gama de Lima e Gracia Regina Gonçalves apresentam as intersecções entre a obra de Angela Carter e a do cineasta Pedro Almodóvar, evidenciando as formas como cada um desses artistas se debruçam sobre o processo transsexualizador e desnudam as convenções sociais que permeiam a constituição dos papeis sociais de gênero. No campo dos estudos sobre o discurso religioso, Murilo Araújo e Mônica Santos de Souza Melo realizam uma análise bastante enriquecedora sobre a complexa relação, no contexto brasileiro contemporâneo, entre a vivência da religiosidade católica e a aceitação da próxima sexualidade – quando destoante de determinados padrões hegemônicos que regem as interpretações do cânone bíblico em muitas religiões cristãs. Partindo da crítica literária e da análise do discurso para a pesquisa etnográfica, apresentamos o artigo em que Jairo Barduni Filho, em um misto de análise descritiva e narrativa pessoal, coloca em xeque o processo de repressão e exclusão de homossexuais nos
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alojamentos masculinos da Universidade Federal de Viçosa, articulando-o com as seminais teorizações de Michel Foucault no campo das relações entre discurso, poder e abjeção. Nesse mesmo ínterim, as pesquisadoras Andréa de Lima Costa do Carmo e Maria de Fátima Lopes apresentam-nos de forma panorâmica os principais tabus que envolvem o processo de adoção por casais homossexuais, mostrando, inclusive, o desdobramento de diversas concepções reducionistas nas mais diversas esferas sociais, políticas e jurídicas. Já na nossa seção de ensaios, o professor e pesquisador José Luiz Foureaux de Souza Júnior brinda os leitores com uma articulação nada convencional entre o Formalismo e o Homoerotismo, apresentando como a questão do desvio e, por conseguinte, dos sujeitos desviantes, foi vista de diferentes formas no processo de transição do pensamento ocidental no século XX e início do século XXI. Encerrando a seção, Víctor Rocha Monsalve, em seu ensaio, analisa os diversos processos de segregação que colocaram os sujeitos homoeróticos no patamar da abjeção e, a partir de uma política higienista repressiva da primeira metade do século XX, desenvolveu mecanismos de regulação dos corpos ditos anormais; para tanto, lança mão de uma imagem paradigmática nos estudos sobre gênero e sexualidade: a do armário. Por último, e com especial destaque, na seção de traduções, a pesquisadora, tradutora e crítica literária Fernanda Nogueira nos brinda com uma tradução do texto “Qui défend l‟enfant queer?”, de Beatriz Preciado, um texto fundamental para os estudos queer contemporâneos, que suscita um debate profícuo sobre as relações de poder e o controle dos corpos infantis, além de colocar em questionamento quais interesses sociais e políticos se tornam evidentes na manutenção de práticas repressivas das subjetividades queer na infância. Acreditamos que todos esses trabalhos sejam de especial relevância para os estudos sobre homocultura na atualidade e esperamos que nossos leitores façam bom proveito do material que disponibilizamos nesta primeira edição da Revista Jangada. Boa leitura (e bons estudos)!
Juan Filipe Stacul Editor Chefe
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artigos Ethos homoafetivo e constructos retórico-discursivos no romance brasileiro contemporâneo: uma análise das obras “Trem fantasma”, de Carlos Hee, e “Cinema Orly, de Luis Capucho Thiago Ianez Carbonel 1 Resumo: Este estudo objetiva demonstrar como constructos retórico-discursivos podem evidenciar a existência de uma produção homoerótica que caracteriza a realidade de uma literatura gay na produção cultural brasileira. Nosso foco são Trem fantasma, de Carlos Hee, e Cinema Orly, de Luis Capucho, porque nossa finalidade é demonstrar como há uma tendência atual de autores gays escreverem obras literárias de temática gay, e isso não está relacionado apenas a autores mais consagrados, como Caio Fernando Abreu e outros. Na verdade, nós tentamos demonstrar que essa tendência segue diferentes caminhos de acordo com as características pessoais de cada autor. Palavras-chave: Discurso, Retórica, Literatura Brasileira, Homoerotismo.
Abstract: This study aims to demonstrate how rethoric-discoursive strategies can evidence the existence of an homoerotic production that characterize the reality of a gay literature in brazilian cultural production. Our focus is on Carlos Hee’s Trem fantasma and Luis Capucho’s Cinema Orly in order to show how there is a current trend of gay authors write gay literary works, and it is not just related to more consagrated authors, like Caio Fernando Abreu and others. Actually, we try to prove that this trend follow different ways accordind the personal features of each author. Keywords: Discourse, Rethoric, Brazilian Literature, Homoerotism.
Doutor em Linguística e Língua Portuguesa. Professor do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP). E-mail: thiagocarbonel@gmail.com 1
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O
presente estudo insere-se no âmbito mais amplo de uma pesquisa que tem por objetivo analisar a progressão do discurso homoerótico (com foco no homoerotismo masculino) na Literatura Brasileira, tomando por
ponto de partida o final do século XIX. A premissa central dessa investigação é a existência de um processo discursivo sutil, porém constante, de apagamento e suavizações da estigmatização social das práticas homossexuais no texto literário, processos não necessariamente produto do engajamento pessoal dos autores, nem mesmo instrumento de afirmação de um determinado discurso sexual libertário – ainda que, como pretendemos também analisar, seja possível já se falar nesse tipo de literatura no Brasil, hoje. O recorte para este trabalho encontra-se na contemporaneidade, com duas obras de diferentes autores do século XXI – Carlos Hee e Luis Capucho. A análise que segue tem por escopo perscrutar os recursos retórico-discursivos utilizados para a consecução do que, como será visto adiante, pode ser definido como a “intenção do texto” (ECO, 2005). O foco, dentre vários recursos classificáveis na tessitura dos textos, será o ethos discursivo que, no caso das obras analisadas, corresponde ao caráter do próprio narrador de cada uma delas. O estudo desse elemento retórico do discurso (ethos) remete às diversas questões que orbitam a concepção pragmática da linguagem (AMOSSY, 2008). Benveniste (1989), com sua lingüística da enunciação, talvez tenha sido um dos primeiros estudiosos a conceber, no bojo de suas teorias lingüísticas, a construção da subjetividade na língua (inscrição do locutor). Para Benveniste, o ato da enunciação inscreve-se em um quadro figurativo biunívoco, no qual são visíveis o locutor (origem da enunciação) e o alocutário (destino da enunciação), havendo entre eles dependência mutua. Pêcheux (1975), ao ponderar sobre a mesma questão (enunciação), fala em dois entes, A e B, que ao se posicionarem em uma situação comunicativa, necessariamente produzem um a imagem do outro – tanto A considera quem é B, no ato da emissão, quanto B leva em consideração A ao interpretar o que foi dito. Nessa mútua consideração, obviamente, está implicada a competência
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cultural das partes, o que leva à conclusão de que não apenas interessa ao analista do discurso o ethos do enunciador, mas também o do enunciatário. Assim, ao se falar em uma pragmática lingüística aplicada (AMOSSY, op. cit.), a enunciação deve ser pensada como uma interação na qual os sujeitos são denominados, segundo a autora, locutor e alocutário – interactantes que exercem uns sobre os outros uma rede de influências mutuas. Desse modo, a interação discursiva pressupõe sempre jogos de imagens (de quem enuncia e quem recebe a enunciação) construída “no” e “pelo” discurso. De grande relevância para a retomada do estudo da retórica na modernidade são os trabalhos de Ducrot, que propôs uma teoria polifônica da enunciação. Segundo Amossy (op. cit.), a uma pragmática semântica. Ducrot (1984) evita relacionar o enunciado (e, conseqüentemente, a enunciação) a um sujeito falante, pois sustenta que o próprio enunciado fornece os dados sobre que o produz- o que , em tese, permitiria “recuperar” o enunciador (e, talvez, o enunciatário) considerando-se como objeto de análise apenas o texto enunciado. Para Ducrot (op. cit.), há uma importante distinção entre ser empírico que se encontra fora da linguagem (sujeito ontológico, o sujeito de carne e osso) e a ficção discursiva que é o locutor, esse intrinsecamente discursivo – o que se coaduna com a proposta original de Aristóteles, para quem o homem possuía uma natureza ambígua, animal e política, que implicava a necessidade de se produzir um caráter (ethos) perante os demais cidadãos. Ducrot (op. cit.) se apega a esse conceito de sujeito que é lingüístico, mas questiona a sua unicidade, diferenciando-o do enunciador. Em sua proposta teórica, o locutor genérico deve ser compreendido como um ser duplo, o locutor λ, ser “do mundo”, sujeito da enunciação, parcela extralingüística do locutor L, ressaltando que o analista deve buscar esse sujeito não no que ele fala de si, mas nas modalidades de sua fala – ou seja, em seu discurso. A elaboração teórica de Ducrot foi de grande relevância na medida em que, na esteira do trabalho de Benveniste, trouxe o discurso em ato (a parole saussureana) para a arena da ciência, estabelecendo ainda a importante distinção entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo. Em seu trabalho, porém, a compreensão
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do ethos é apenas acessória e não foi suficientemente desenvolvida. Coube a Maingueneau (2001), no desenvolvimento de sua semântica global, elaborar os conceitos de ethos, ao lado do importante conceito de cena de enunciação2. O conceito de ethos, considerado esse breve panorama de sua evolução teórica, é tomado nesse trabalho como ponto de partida para a investigação de como o discurso homoerótico se materializa através do texto literário, e como a literatura incorpora as transições ideológicas em torno das diversas questões referentes à vivencia homossexual. O que se pretende com a seleção dos dois romances estudados é mostrar como o universo da homossexualidade masculina é corporificado pela vivência de dois narradores que, através da postura confessional (memorialista), figurativizam parte importante do discurso gay da atualidade – práticas, anseios, posicionamento social etc.
Trem fantasma, de Carlos Hee
Romance de estréia do jornalista paulistano Carlos Hee, Trem fantasma foi publicado em 2002 e enquadra-se na categoria apontada por Bessa (1997) como “literatura sobre a AIDS”. O foco do texto são as memórias do próprio autor, cobrindo os anos finais da década de 70, toda a década de 80 e os anos iniciais dos anos 90 – momentos que estão diretamente relacionados aos posicionamentos ideológicos sobre a AIDS, tanto na interioridade da comunidade homossexual (já, então, portadora de um discurso relativamente autônomo), quanto na sociedade – que interpretava a AIDS, então, como “câncer gay” (SONTAG, 2007). A narração em primeira pessoa e a referência, via discurso indireto livre, ao narrador por outras personagens, confirmam a identidade entre o sujeito textualizado no papel de narrador e o autor, sujeito ontológico. Diante disso, podem ser apontados alguns aspectos importantes que devem ser considerados na análise do O trabalho de Graziela Kronka (1995) explorou a cenografia de Maingueneau na análise do discurso imagético do homoerotismo em revistas para o público gay. 2
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texto, começando pelo papel central que este narrador desempenha na vida das demais personagens – a narrativa é composta por um mosaico de experiências do narrador, envolvendo um conjunto tríplice que parece constituir um topos na literatura homoerótica das últimas décadas: hedonismo, sexo e drogas. A estrutura da obra é flexível, composta por capítulos praticamente interdependentes, organizados em uma ordem cronológica que, muitas vezes, apenas se supõe. O verdadeiro critério organizacional parece ser uma espécie de lógica emocional, por meio da qual o autor-narrador estabelece uma curva de progressão narrativa. O primeiro capítulo, intitulado “Mineshaft3, faz referencia a um bar em Nova York, ponto de encontro de homossexuais e pessoas “descoladas do cenário artístico da cidade. O parágrafo inicial deste capitulo expressa bem a atmosfera de liberdade e a euforia da vida gay no final dos anos 70: “Mineshaft. Esse era o nome, o lugar. Ir ao Mineshaft era estar no lugar certo, na hora certa, com os caras certos. Pelo menos era isso o que pensávamos e o que todos diziam” (HEE, 2002, p. 3) Note-se que o posicionamento enunciativo do narrador-autor localiza-se em uma esfera presente, distante dos acontecimentos narrados e marcada pela utilização dos verbos no pretérito imperfeito do indicativo (era, diziam). Essa forma de modalização estabelece uma cisão entre o “antes” (passado alegre, sem as sombras da AIDS) e o “agora” (momento da escrita, marcado pela solidão do narrador-autor, uma vez que seus amigos morreram quase todos), intermediado por uma fase transitória que se caracteriza pela progressiva tomada de consciência da AIDS e das reações que a mistificação da doença provocou nas pessoas. A sentença final do parágrafo citado evidencia o posicionamento do narrador-autor com relação aos episodias que seguem. Os capítulos iniciais são marcados pelas memórias referentes à explosão libertária da vivência gay – fase que a historiografia da homossexualidade designa por “pós-Stonewall‟4. Este momento, situado principalmente nos anos 70, proporciona diversos fatores de ordem cultural que culminarão na efusão subversiva do inicio da Dutos verticais usados em minas de carvão para ventilação. Referencia ao episódio ocorrido nos EUA, em 1969, quando homossexuais e travestis confrontaramse com a policia. 3 4
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década de 80. O discurso homoerótico de então coincidia com o ethos ansioso pela liberação sexual pelas pessoas do mesmo sexo (conquista dos anos 60 para os heterossexuais), liberação esta que se materializava nas praticas extravagantes e na postura indiferente (no sentido de blasé, como quem acha perfeitamente natural e não vê nada de excepcional) diante disso. Essa característica do ethos homoerótico já é visível nos contos de Caio Fernando Abreu, a exemplo de “Terça-feira gorda”, conto da obra Morangos mofados (1982), no qual duas personagens (uma delas, o narrador) do sexo masculino entregam-se ao erotismo devasso em uma baile de carnaval; o jogo dos corpos, o envolvimento pelo olhar, pela musica e, finalmente, pela droga, evidenciam esse atributo que irá se instaurar nas narrativa homoeróticas contemporâneas – em muito, tributárias de Caio Fernando Abreu (o que se depreende por citações, menções, dedicatórias, referências diretas e indiretas). Em Trem fantasma, esse clima de subversão associada às práticas da vida gay é um elemento que permeia praticamente todas as memórias do narrador-autor. Mesmo ao narrar fatos do cotidiano ordinário de suas personagens, um namoro, por exemplo, há componentes que inserem a ruptura com os modelos da heteronormalidade normativa – no caso, dois homens namoram, vivem “maritalmente”, porém levam vidas sexuais desregradas com outras pessoas. As histórias seguem no ritmo da vida gay efervescente do início dos anos 80 e o narrador-autor vai costurando suas experiências, focando os parâmetros de sua própria realização pessoas, principalmente no sexo, ressaltando a premência do desejo e a busca por aventuras cada vez mais ousadas (banheiros públicos, praças, casas noturnas – um itinerário sexual pela cidade de São Paulo, pontuados pelo titulo de cada capitulo). O fluxo da narrativa, na verdade, parece ser determinado pela temática sexual, tratada, como já foi dito, de maneira eufórica. O brusco encerramento do animo sexual exacerbado é marcado, no texto, por um capitulo intitulado “Intermezzo”. O autor opta, inclusive, por uma concessão estilística e corrompe o próprio gênero do texto – a narrativa pontuada pela voz do narrador é substituída pelo esquema de falas, típico do texto teatral. O recurso, ao que tudo indica, distribui atenção narrativa e permite que as vozes das demais
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personagens sejam democraticamente distribuídas no capitulo em questão, uma conversa sobre conduta sexual. No capítulo seguinte “UTI”, aparece a primeira menção a AIDS, o que será, então,
gradativamente instaurado como foco do
restante da narrativa. O discurso, então, assume contornos disfóricos e, o que até a descoberta da AIDS foi sinônimo de liberdade e realização, passa por uma reavaliação, dessa vez moralizadora. A sutil insinuação marcada pela modalização enunciativa do narradorautor ganha corpo e o fantasma do medo, da doença, da condenação e punição pelos excessos assume o lugar das festas, do álcool, das drogas e do sexo. O que parecia ser uma nova era de conquistas para os homossexuais – análoga às conquistas feministas dos anos 50 em diante – esfacelou-se aos poucos, dando espaço para discursos de variadas naturezas (político, medico, religioso), que sancionaram negativamente as praticas sexuais entre homens, levando, assim, a outra questão que também é abordada na obra: a violência contra homossexuais. Historicamente, vários termos pejorativos foram aplicados como rótulos aos homossexuais – sodomita, pederasta, uranista etc. – e o preconceito era algo arraigado nos alicerces ideológicos da quase totalidade das sociedades ocidentais. Discursivamente, a própria homossexualidade, estava adstrita aos parâmetros opressivos das disfunções sexuais, sendo vista como uma doença, uma forma de mal ou perversão. A violência, então, era uma forma de reação social ao individuo diferente, incompatível com os padrões genéricos aceitos e licenciados pela coletividade. De certo modo, poder-se-ia dizer que o homossexual simplesmente não tinha o direito de existir enquanto “aberração” e, portanto, sofrer um ato de violência era quase uma certeza. Após as conquistas dos anos 60, porém, a metamorfose ideológica dos discursos libertários trouxe o preconceito para a arena de debates e é razoável afirmar, com base em diversos autores (TREVISAN, 1986; LOPES, 2005), que a “certeza do soco” foi substituída pela concessão social do direito de existir ao homossexual como sujeito sexualmente identificado com o seu grupo. Com a descoberta do vírus HIV e o subseqüente discurso médico que propagou conceitos arbitrários, tais quais “grupo de risco”, “predisposição”, “câncer gay”, deu-se um retrocesso das referidas conquistas, mas não um retorno aos métodos coletivamente
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legitimados de perseguição, e sim formas isoladas, análogas ao terrorismo, de violência contra indivíduos escolhidos ao acaso. Surgiram, principalmente nas grandes cidades, casos de criminosos ou grupos de criminosos que atacavam e matavam homossexuais; alguns deles, com requintes de crueldade. Essa nova forma de medo – o inimigo oculto nos amantes ocasionais que eram levados do espaço público das boates e da rua para apartamentos de homens solitários – também foi determinante dos atributos que passaram à configuração do ethos homoerótico contemporâneo. O caráter confiante e despreocupado do homossexual dos anos 70, livre para o sexo e aberto ao amor, dissolveu-se entre as novas e pungentes questões de ordem entre os homossexuais, todas elas relativas à própria sobrevivência e segurança. Entre os capítulos finais de Trem fantasma, Carlos Hee guarda espaço para histórias de maníacos que matavam homossexuais e o misterioso assassinato de um travesti de meia-idade – símbolo, na narrativa, da ponte entre a era de ouro do universo gay e a fase da retração e do medo. No restante da obra, os capítulos afunilam-se no ponto de convergência do apagamento total dos anos felizes em que tudo era possível. O narrador-autor vê morrerem quase todos os seus amigos, acompanhando de perto a devastação provocada pela AIDS – no capítulo intitulado “Colorido”, conta um episódio envolvendo uma rapaz soropositivo que, incapaz de controlar as cólicas intestinais, defeca nas próprias roupas bem em meio ao público de uma casa noturna. Humilhado, prostrado pela fraqueza e pelo descontrole sobre seu corpo, volta para casa e, simbolicamente, organiza seu próprio funeral: Quando tudo no latão havia sido consumido pelo fogo, Celso abandonou os pensamentos e partiu para a Ação. Pegou uma chupeta, que sempre ficava na gaveta ao lado a cama, duas caixas de sonífero, que sempre tinha em casa (...) Deitou-se direto. Cobriu-se com um lençol que apresentava algumas manchas, pôs a chupeta na boca, chupando-a com a avidez que lhe era possível. E dormiu (Hee, op. cit., p.136).
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Cinema Orly, de Luis Capucho
Em comum com Trem fantasma, o romance de Luis Capucho tem o tom confessional, quase moralista, que parece buscar a cristalização de uma época, uma fase, por meio do texto escrito. Essa forma de fixação pela via da materialidade é ainda mais intensa em Cinema Orly, uma vez que a obra é, na sua gênese, um texto verbal e, ao mesmo tempo, visual – há a escrita de Capucho, mas é fundamental levar-se em consideração (na leitura do todo) a tarefa de ilustração de César Lobo. Publicado pela primeira – e única – vez em 1999, este texto já se anunciou, no próprio prefácio, como uma obra “maldita”, subversiva, chocante. Se o tom é autobiográfico e a existência do sujeito-autor não pode ser ignorada nesse caso, é importante também considerar que Luis Capucho é portador do vírus HIV – esta informação está à disposição do leitor na orelha traseira do volume impresso. Tem-se aqui, novamente, um narrador que se identifica por vários meios (no texto) com o sujeito-autor, Luis Capucho – o que permite assumir tal relação já como prerrogativa analítica. O modo como esse narrador se expõem ao leitor é significativo de sua postura diante do universo que pretende transpor para sua narrativa – o ambiente polissêmico do espaço de um cinema pornô na cidade do Rio de Janeiro.
Figura 1. Cinema Orly, hoje (fonte: http://cinematreasures.org/theaters/19867)
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Após uma breve introdução na qual se apresenta como alguém “à espera” (o que permite diversas interpretações), o narrador assume o ethos da sexualidade exacerbada, reconhece seus desejos e parece placidamente em paz com os mesmos – diferentemente de Carlos Hee, que se julga um “sobrevivente” da conturbada onda que levou seus amigos, amantes e sonhos. O primeiro capítulo – e cumpre observar que, do mesmo modo que em Trem fantasma, existe apenas uma relação muito sutil de dependência cronológica entre os capítulos – tem o título de “Os répteis ou O parquinho ou Paus pra toda obra”. É o contato inicial com clima subterrâneo de Orly, espaço que figurativiza a existência gay a partir da perspectiva do narrador. Logo na primeira página, uma síntese da narrativa surge através do narrador: No Orly, sente-se que somos répteis milenares e, então, a visa na penumbra do porão, do cinema, com sua camada de concupiscência em torno de tudo, é mais espessa: a luminosidade, o movimento, o oxigênio, o odor, tudo é mais espesso, porque os sentidos se aguçam. (Capucho, 1999, p. 17).
Se Carlos Hee reporta objetivamente suas memórias, incorporando ao discurso homoerótico o estilo jornalístico, conciso e pontual, Capucho mitifica o erotismo subversivo do cinema pornô, comparando seus freqüentadores a “répteis milenares” e recorrendo à sinestesia para apagar os traços negativos dos elementos que objetivamente denigrem o espaço do sexo e da depravação. Barcellos (2002) explora em Cinema Orly a centralidade do corpo como topos literário homoerótico, e assevera que a obra, mais que um romance sobre indivíduos dotados de alma, enfoca o corpo, a materialidade física e bruta do homem, do animal masculino e lascivo, todo composto por elementos palpáveis, palatáveis, sensíveis ao olfato e à luxuria. Segundo o autor, a essência do romance é a performance do corpo de transmuta o corpo e a fantasia em torno do corpo em performance, em ação orquestrada , poética e sensível. Capucho, seguindo a tendência notadamente recorrente na obra de Caio Fernando Abreu, trata da interação entre homens de modo a transcender o vulgar da corporalidade abjeta que os discursos moralistas atribuem a práticas como a “pegação” em cinemas e banheiros públicos. Se na obra de Hee a objetividade
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jornalística confere uma dimensão quase “tabloidesca” aos atos sexuais (o pudor lexical no que se refere a palavras como pênis, por exemplo, praticamente não ocorre, sendo o membro masculino sempre referido como “pau”, “vara” entre outros), em Cinema Orly, a despeito do mesmo despudor vocabular, a objetividade dá lugar à subjetividade poética que evidencia um ethos distinto, menos documental e testemunhal, e mais afetivamente ligado a esse universo de transgressão sexual. Ao considerarmos o enredo de Cinema Orly, temos um narrador-personagem que transita pelo Rio de Janeiro, em busca de um tipo indefinido de felicidade e/ou satisfação. Trata-se, porém, de uma busca sempre inglória, e a personagem retorna, invariavelmente, ao espaço escuro, abafado e mal-cheiroso do cinema de pegação. Diferentemente de Hee, porém, Capucho eleva o lugar estigmatizado da sexualidade pujante ao patamar de uma espécie de “locus amoenus” às avessas, no qual homens 5 fogem do peso existencial da vida “do lado de fora” em busca da ruptura com o fluxo opressivo do cotidiano. Nesse aspecto, Luis Capucho é, entre os autores ligados à produção homoerótica na literatura brasileira, o que mais se aproxima do estilo marcante de Jean Genet, que imortalizou a figura do homossexual transgressor em obras como Querelle e Diário de um ladrão. Isso o diferencia drasticamente de Carlos Hee, pois Capucho analisa a problemática da existência gay sob perspectiva diametralmente diversa. Se para Hee a AIDS criou uma linha divisória entre a euforia e a disforia nas práticas homoeróticas, Capucho transcende essa questão e dissolve a crueldade do estigma sexual por meio de um processo constante de poetização do sujeito gay e seu modo de vida. Hee documenta com descritivismo fotográfico a pegação, o hedonismo homossexual, a agitação da vida noturna; Capucho, apesar de não se furtar de descrições bastante naturalistas, prioriza a concepção do sexo entre homens como forma de amor em detrimento de julgamentos, implícitos ou explícitos, que consideram a conduta sexual gay algo promíscuo e devasso.
É interessante notar que Capucho estabelece claramente a distinção entre o homem supostamente heterossexual que busca sexo com outros homens e o homem abertamente homossexual, geralmente afetado e afeminado, que fornece prazer aos primeiros. 5
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Considerações finais A leitura, ainda que apenas superficialmente analítica, das duas obras selecionadas para este estudo permitiu observar como diferentes intenções demandam recursos retóricos de naturezas distintas. Ao mantermos o foco no ethos, buscamos demonstrar como, retoricamente, o eu desdobra-se na tessitura textual, deixando pistas evidenciadoras de sua imagem psicológica, de seus valores, angústias e desejos. Mas a questão que nos parece fundamental considerar ao final do trabalho é a possibilidade de, por meio de ferramental teórico linguístico (a retórica e a enunciação), demonstrar traços palpáveis e analisáveis de uma literatura que tem a homossexualidade não apenas como questão incidental da vida, mas sim como temática central, definidora de seu caráter – do mesmo modo que o sertão o é, por exemplo, para a literatura regionalista, ou como o índio para a indianista.
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Artigo aceito em 12/05/2013.
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A Fabricação do Gênero: o corpo transexual em A paixão da Nova Eva e A pele que habito
Renato Gama de Lima6 Gracia Regina Gonçalves7 Resumo: Este ensaio tem como objeto de análise as relações de gênero presentes no romance A paixão da Nova Eva (1977), da escritora inglesa Angela Carter, em diálogo com o filme A pele que habito (2011), do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Nas obras em questão, referenciaremos atenção especial às personagens Evelyn, no romance, e Vicente, no filme, que passam por um processo transexualizador que inclui, além da mutilação fisica de seus corpos masculinos, uma posterior tentativa de internalização das suas novas condições de „mulher‟. Nas duas obras, há um processo de aculturação e socialização do que se concebe como constituinte do „ser mulher‟, levando a cabo a icônica frase de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”. Nesse sentido, tanto o texto literário quanto o filme incorporariam a sexualidade como um dispositivo, marcado pelo caráter performativo das identidades de gênero e pelo alcance subversivo das performances e das sexualidades fora das normas de gênero pré-estabelecidas. Além disso, torna-se evidente uma concepção do corpo como núcleo do biopoder, „fabricado‟ por tecnologias precisas. Notamos, nas duas alegorias em análise, uma ilustração das identidades de gênero enquanto constructo social e cultural presentes nas postulações de Foucault (2004), Louro (2005), Butler (2003) e Lauretis (1994). Palavras-chave: Subjetividade; Gênero; Biopolítica.
Abstract: This essay analyzes the gender relations in the novel "The Passion of New Eve" (1977), by the
British writer Angela Carter, in dialogue with the film "The skin I live In" (2011), by the Spanish director Pedro Almodovar. In the works in question, we will focus the characters "Evelyn" in the novel, and "Vincent" in the film, which undergo a transgender process that includes, besides the physical mutilation of their male bodies, a subsequent attempt to internalize their new conditions of 'woman'. In both works, there is a process of acculturation and socialization than is conceived as constitutive of 'womanhood', carrying out the iconic Beauvoir’s phrase: "Woman is made not born." In this sense, both the literary text and the movie incorporate sexuality as a device, marked by the performative character of gender identities and the extent of subversive performances and sexualities outside of gender norms predetermined. Furthermore, it is clear conception of the body as a core of biopower 'manufactured' by technologies accurate. We note, in both allegories under review, an illustration of gender identities as social and cultural construct present in the postulations of Foucault (2004), Louro (2005), Butler (2003) and Lauretis (1994). Keywords: Subjectivity, Gender; Biopolitics.
Graduado em Serviço Social e Mestrando em Economia Doméstica pelo Programa de Pósgraduação em Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa – UFV. 7 Doutora em Letras (UFMG) e Professora Associada do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa – UFV. 6
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“A porta do quarto continuava fechada. Pelos postigos fechados, você via um jardim, um pequeno lago, cisnes. Tarântula vinha visitá-la todos os dias, longas horas. Vocês falavam da sua vida nova. Você era outro.... Outra.” (JONQUET, Thierry. Tarântula, p. 142) Introdução
O
livro Tarântula, que empresta trecho para a epígrafe deste trabalho é um thriller do francês Thierry Jonquet, publicado pela primeira vez em 1984, e serviu de inspiração para o cineasta espanhol Pedro Almodóvar
produzir o filme A pele que habito, no ano de 2011. Neste filme, António Banderas interpreta um renomado cirurgião plástico (Dr. Robert) que, após o acidente da esposa, inicia experiências disposto a criar uma pele cada vez mais resistente, mesmo que tenha que atravessar campos proibidos, como a transgênese com seres humanos. Vicente, acusado de violentar a filha do médico, é encarcerado e sujeito a um conjunto de operações que o transformam fisicamente numa mulher, como uma forma de vingança e de reparação por suas ações passadas. As experiências que o Dr. Robert realiza são condenadas pela bioética, mas ele continua a realizá-las em segredo. Nos seis anos de reclusão obrigada, Vicente, que se transforma em Vera, perdeu, entre outros, o órgão mais extenso do seu corpo, a própria pele. De acordo com Pedro Almodóvar, a pele é a fronteira que nos separa dos outros, determina a raça a que pertencemos, reflete as nossas raízes, sejam elas biológicas ou geográficas. Muitas vezes reflete os estados de alma, mas a pele não é a alma. Ainda que Vera tenha mudado de pele, não perdeu com isso a sua identidade (ALMODÓVAR, 2011)8.
Já o romance A paixão da Nova Eva da escritora inglesa Angela Carter, definido como pós-apocalíptico, narra historia da criação de uma Nova Eva, signatária do processo de transformação necessária para o surgimento da Era da Compreensão que, “marcado pelo entendimento íntimo e pela conciliação definitiva, a relação de harmonia entre os opostos dará lugar à equivalência absoluta: a natureza de cada homem comportará os acessórios femininos e vice-versa” (CARTER, 1987, p. 1). Nesta trama, a personagem Evelyn, um professor inglês machista, é sequestrada 8
Cf. http://www.lapielquehabito.com/
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por uma comunidade de mulheres guerreiras, àvidas por vingança contra o patriarcado e lideradas por uma deusa, a Grande Mãe. Evelyn, transformado em mulher, através de uma cirurgia plástica, seria usado pela Grande Mãe como matriz de uma nova cosmogonia, agora, centrada no gênero feminino. Em seu artigo sobre a Nova Eva de Angela Carter, Lima (2002) ressalta que, ironicamente, a Grande Mãe “pretendia infligir a Eva o mesmo tipo de violência simbólica por que a mulher normalmente passa até efetivamente „tornar-se mulher‟ (...), o papel social vivido pela mulher é antes uma imposição da sociedade do que o resultado de um instinto natural qualquer” (LIMA, 2002, p. 201). Dessa forma, o argumento do livro, e também do filme, é o destronamento/subjugação/castração de um modelo cristalizado de homem opressor e sua posterior experienciação de vivências femininas. Por extensão, as duas obras desenham as complexas tramas de disciplinamento dos comportamentos sexuais diante a norma e o „normal‟. Curioso perceber que, no filme, a trama que desemboca na castração de Vicente é o estupro que ele supostamente teria cometido à filha do cirurgião, Norma. Conhecido pelas suas astúcias filmográficas, Almodóvar, para quem nada é gratuito, propõe o que podemos interpretar como uma significação metafórica de que a punição, o sofrimento, que fora imposto em Vicente se justifica, uma vez que ele violou Norma – entendida aqui tanto como nome próprio, quanto como sua acepção „regra‟. A partir do panorama apresentado, este ensaio tem como objeto de análise essas relações de gênero presentes no romance A paixão da Nova Eva(1987), em diálogo com o filme A pele que habito (2011). Nas obras em questão, referenciaremos atenção especial às personagens Evelyn, no romance, e Vicente, no filme, que passam por um processo transexualizador que inclui, além da mutilação fisica de seus corpos masculinos, uma posterior tentativa de internalização das suas novas condições de „mulher‟.
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1. A fábrica, ou, as relações de gênero são relações de poder Para que o tempo não agisse sobre mim, para que eu não morresse. Assim fui seduzido pela idéia de ser mulher, que é a negação. Passividade, ausência de ser. Ser tudo e nada. Ser uma vidraça que a luz do sol atravessa. (CARTER, 1987, p. 133)
Os argumentos de A paixão da Nova Eva e A pele que habito, trazem algumas características comuns. Ambos tratam de um processo de mudança de sexo forçada em um personagem homem (Evelyn/Vicente). E as situações que sucedem a transexualização indicam que somente a alteração anatômica dos corpos não bastaria, seria necessária uma re-significação das identidades e expressão das subjetividades das personagens. “Eva passaria por um processo artificial de psicoprogramação que consistia em injeções hormônios, exposição massiva a vídeos sobre maternidade, lições sobre feminilidade, representações artísticas sobre o feminino (...)” (LIMA, 2002, p.203) Podemos perceber que decorre de um processo de poder o ato de forjar e manipular as identidades segundo interesses alheios ao indivíduo, segundo a afirmação que Teresa de Lauretis (1989) faz segundo a qual o gênero não é um simples derivado do sexo anatômico ou biológico. Para a autora, o gênero é antes o produto de diferentes tecnologias sociais, ou seja, o efeito cruzado de representações e modos de vida produzidos por diferentes dispositivos institucionais: como a educação, a família, a medicina e a religião; mas também, pelos meios de comunicação (internet, cinema, jornais, rádio, televisão, arte e literatura). Assim, o gênero não é propriedade dos corpos nem algo que prescinda os seres humanos ditos masculinos e femininos, mas sim um conjunto de efeitos que produz uma ficção reguladora. Na mesma esteira desse pensamento está Judith Butler, para quem a construção histórica e social das sexualidades pode ser compreendida como um processo de materialização estabilizado ao longo do tempo para produzir efeito de naturalização, em que se definiriam os limites e fronteiras: O gênero só existe na prática, na experiência e sua realização se dá mediante reiterações, cujos conteúdos são interpretações sobre o masculino e o feminino, e um jogo, muitas vezes contraditório, escorregadio, estabelecido com a normas de gênero. O ato de pôr uma roupa, escolher uma cor, acessório, o corte de cabelo, a forma de andar, enfim, a estética e a estilística corporal, atos que fazem o gênero, que
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visibilizam e estabilizam os corpos na ordem dicotomizada dos gêneros. Também os/as mulheres biológicas se fazem na repetição de atos que se supõe sejam naturais. A partir da citacionalidade e uma suposta origem, transexuais e não-transexuais igualam-se. (BENTO, 2006, p. 228)
Em seu trabalho O Nascimento da Clínica (2000), Foucault discute que o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. De acordo com esta perspectiva, foi no biológico, no somático e no corporal que, antes de tudo, a sociedade capitalista investiu. Para esse autor, o corpo é uma realidade biopolítica. De fato, é a inversão na hierarquia desnudada por Lauretis, Butler e Foucault que observamos no filme A pele que habito, pela criação de uma pele geneticamente modificada em que Dr. Robert aprisiona um homem num corpo de mulher, sem, com isso, efetivar a “feminização” de sua identidade – mesmo quando prossegue com o processo, através de reforços tidos como pedagógicos da identidade feminina: vestidos, maquiagens, exposição de vídeos de obras de arte sobre o corpo feminino, etc. A esse respeito, cabe-nos uma reflexão sobre a concepção hegemônica do feminino, segundo a qual para socializar alguém como menina, para que sua identidade feminina tenha êxito, é imprenscindivel que o corpo seja, em sua aparência exterior de uma menina standard, capaz de sustentar o olhar e a palavra da sua mãe, de seu pai e a sua própria percepção como ser sexuado. O corpo volta, portanto, não como uma sustentação material imprescindivel da assunção do gênero e do êxito desta assunção ao longo da vida. (CABRAL & BENZUR, 2005, p. 288)
Já no romance de Carter, o discurso médico-científico sobre a biopolítica é substituído por uma paródia do discurso religioso. À personagem de uma Deusa, a Grande Mãe, é que caberá a tarefa de operar a transformação sexual de Evelyn para Eva. A apropriação do mito bíblico por Carter se faz astutamente, quando a castração da personagem masculina se torna a abreviação de seu nome de Evelyn para Eva, além de ser também a castração física e anatômica. A cirurgia plástica que me transformou em meu próprio diminutivo, Eva, a forma abreviada de Evelyn, esse mutante artificial. [...] Então, estendido em minha cama, teve início a programação, e, maravilha das maravilhas, a velha Hollywood me forneceu um novo conjunto de contos infantis. (CARTER, 1987, p. 69)
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É interessante observar, ainda, no trecho apresentado, como a autora empreende, também, uma crítica aos modelos de gênero criado pela mídia, sobretudo no cinema e na TV. Esse tipo de construção cultural é evidente desde a infância, quando a menina e o menino são colocados, continuamente, diante de imagens dos papéis de gênero que referendam as exigências do poder heteronormativo, com visões cristalizadas desde a princesinha dos contos infantis até os modelos de herói e de vilão (atenta-se, por exemplo, ao fato de que vilões clássicos do cinema hollywoodiano sempre evidenciavam caráter de afetação, associado à ambigüidade sexual, enquanto que os mocinhos representavam fielmente o masculino e o feminino hegemônicos).
2. Panóptica dos gêneros, o corpo vigiado Não sei coisa alguma. Sou uma tabula rasa, uma folha de papel em branco, um ovo não chocado. Ainda não me tornei uma mulher, embora possua forma de mulher. Não uma mulher, não; ao mesmo tempo mais e menos que uma mulher de verdade. Agora sou um ser tão mítico e monstruoso como a própria Mãe; mas não consigo pensar nisso. Eva permanece, por vontade própria, no estado de inocência que precede a queda. (CARTER, 1987, p. 80)
Realizado o processo transexualizador das personagens Evelyn/ Vicente, as duas obras em análise incursionam seus enredos sobre a inculcação da identidade de gênero feminina no corpo de, agora, Eva/ Vera. A adoção de um nome feminino se dá como o esforço primeiro de re-significação dessas personas com o universo das experiências de gênero às quais ela devem se identificar. No romance, a palavra utilizada para definir essa transformação da identidade de gênero é psicoprogramação, esse processo que envolverá a desidentificação do corpo transexualizado com o seu gênero anterior, através da tentativa de internalização das experiências e comportamentos identificados enquanto característicos do novo gênero, a saber, o feminino. Temos aqui um processo de aculturação e socialização do que se concebe como constituinte do „ser mulher‟, levando a cabo a icônica frase de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”. À medida que somente a operação instrumental e cirúrgica não basta, as personagens têm de passar pelo que Berenice Bento (2006) chama de “panóptica dos gêneros”, termo cunhado em alusão ao poder disciplinar de Foucault (1993), e que
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essa autora utiliza para explicar a pedagogia do gênero, cuja finalidade seria antecipar as experiências do sujeito para viver em uma referência heteronormativa: Após o nascimento da criança, os investimentos discursivos dirigem-se para a preparação do corpo, a fim de que este desempenhe com êxito os papéis de gênero: bonecas, saias e vestidos para as meninas; bolas calças, revólveres para os meninos (BENTO, 2006, p. 89)
Neste ponto de nossa análise, concebemos estas obras como ilustração da condição prática e experiencial que tem as identidades de gênero, que só se realizariam quando materializadas através de determinados códigos sociais e culturais. Há que se inscrever além dos corpos, uma segunda pele: as normas de gênero. Veremos, então, como isso ocorre no filme, através da análise de uma cena em particular. Depois da cirurgia, Robert, o médico, dá algumas instruções, e a primeira evidência de uma imposição de gênero feminino não poderia ser mais simbólica do que as palavras abaixo: Escute atentamente o que vou dizer. É muito importante. Como pode ver, a operação foi um sucesso, mas os tecidos da vagina ainda estão muito sensiveis e podem juntar-se. Mas não se preocupe, é fácil evitar isso. Você tem que manter o novo orifício aberto e trabalhar, pouco a pouco, para torná-lo mais profundo. Pense que sua vida depende desse orifício, que você respira através dele. Nesta caixa existem vários dilatadores de diferentes tamanhos. Comece introduzindo o menor. Vai doer no começo, mas em poucos meses o maior caberá sem qualquer esforço e a pele estará perfeitamente cicatrizada. (ALMODÓVAR, 2011)
Nessa parte do filme, Dr. Robert apresenta as próteses que vão deixar o referido orifício aberto, são pênis de silicone de diversos tamanhos. Conforme a citação acima, o médico orienta começar pelo menor e aos poucos ir até o maior. São seis próteses em formato peniano que variam de tamanhos. É interessante notar como a fotografia aproveitou bem seus recursos: Nesta cena, o corte de câmera mostra Vicente (agora Vera) em segundo plano, atrás; e o primeiro plano é ocupado onipresentemente pelas próteses penianas, ordenadas metaforicamente como uma grade, sendo possível atrás delas ver a expressão de Vicente atônito, impotente e „preso‟.
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Imagem1: Filme „A pele que habito‟ (2011)
Essa constiuição identitária confusa, presa nas amarras do gênero, vai se revelar também na personagem de Evelyn/Eva, no romance de Angela Carter: Tratavam meus sentimentos de antigo homem com muito tato e muita consideração – até demais, na verdade; aliás, elas me paternalizavam – maternalizavam? – sem piedade. Sua camaradagem solícita, por demais generosa e disposta, a maneira mâgnanima, embora zombeteira, com que perdoavam a desajeitada condição de meu antigo estado, juntamente com os discursos da Mãe e a interminável reestruturação da minha personalidade e da minha programação quase me desequilibraram. Sentia indicios de colapso total, de desespero absoluto. (CARTER, 1987, p.77)
Posteriormente, no romance, o caráter performativo dos gêneros e das sexualidades, de forma análoga ao processo histórico que caracterizou a transição dos estudos feministas, aos men’s studies e aos estudos queer, transpassa a problemática do corpo feminino, engendrado nas normas do poder masculino hegemônico, para verificar-se enquanto caracterizante do próprio corpo masculino – encravado pelas mesmas normas que constróem ambos os gêneros. Isso pode ser verificado em um dos trechos da obra, no qual a personagem Tristessa constata, surpresa, a própria constituição biológica, já há muito esquecida pela vivência de uma outra forma de gênero que não aquela a qual deveria, por norma, se identificar: Tristessa passou suas longas mãos pelo rosto e com a expressão oca baixou os olhos para a própria masculinidade como se nunca a tivesse visto antes. Parecia atordoado com a redescoberta de sua virilidade, algo que lhe era incompreensível. (CARTER, 1987, p. 136)
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A cena é paradigmática por dois motivos: primeiramente, por desnudar as relações de poder que permeiam a pretensa associação natural entre sexo e gênero, em segundo lugar, por promover, em um movimento de identificação quase narcisista, uma crise identitária da protagonista Eva, que, ao se deparar com a ambiguidade de Tristessa, percebe a sua própria condição de ser híbrido, conjugando características que, antes, deveriam se excluir. A hibridez e a contraditoriedade, nesse caso, deslocam-se do lugar abjeto para se constituírem como marcas dos papeis de gênero, em suas várias esferas possíveis: Masculino e feminino são correlatos que envolvem um ao outro. Tenho certeza – o predicado e sua negação estão unidos na necessidade. Mas qual é a natureza do masculino e a natureza do feminino, se eles envolvem homem e mulher, se têm algo a ver com o instrumento por tanto tempo negligenciado de Tristessa ou minha incisão recém-saída da fábrica e meus seios artificiais, isso eu não sei. Embora tenha sido homem e mulher, ainda não sei a resposta a essas perguntas. Elas ainda me confundem. (CARTER, 1987, p. 144)
Neste sentido, citamos a filósofa francesa Beatriz Preciado que, em seu trabalho Manifiesto Contrasexual, evidencia a relatividade das identidades sexuais e de gênero, que se concebem como estanques e fixas, quando na verdade não o são: La tecnología social heteronormativa (ese conjunto de instituciones tanto lingüísticas como médicas o domésticas que producen constantemente cuerpos-hombre y cuerposmujer) puede caracterizarse como una máquina de producción ontológica que funciona mediante la invocación performativa del sujeto como cuerpo sexuado. La identidad sexual no es la expresión instintiva de la verdad prediscursiva de la carne, sino un efecto de reinscripción de las prácticas de género en el cuerpo. (...) El género es ante todo prostético, es decir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es puramente construido y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia. El género se parece al dildo. Porque los dos pasan de la imitación. Su plasticidad carnal desestabiliza la distinción entre lo imitado y el imitador, entre la verdad y la representación de la verdad, entre la referencia y el referente, entre la naturaleza y el artificio, entre los órganos sexuales y lãs prácticas del sexo. El género podría resultar una tecnologia sofisticada que fabrica cuerpos sexuales. (PRECIADO, 2011, p. 20-21)
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Conclusão O que se pode verificar, a partir das leituras que propusemos no presente trabalho, é que tanto o texto literário quanto o filme incorporam a sexualidade como um dispositivo, marcado pelo caráter performativo das identidades de gênero e pelo alcance subversivo das performances e das sexualidades fora das normas de gênero pré-estabelecidas. Além disso, torna-se evidente uma concepção do corpo como núcleo do biopoder, „fabricado‟ por tecnologias precisas. Notamos, nas duas alegorias em análise, uma ilustração das identidades de gênero enquanto constructo social e cultural, que, ao desnudar o processo de fabricação supracitado, apresenta para o panorama artístico e, consequentemente, para a sociedade contemporânea, novas possibilidades de compreensão –e de crítica – dos valores normativos que estruturam determinadas relações sociais e, muitas vezes, reiteram práticas excludentes e relações assimétricas de poder.
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Artigo aceito em 14/05/2013
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“E o que eu pregava, eu estava vivendo”: Identidade social e identidade discursiva na narrativa de vida de um católico gay Murilo Silva de Araújo9 Mônica Santos de Souza Melo10 Resumo: A existência de homossexuais que vivem a fé católica é uma realidade. Não obstante, religiões cristãs tradicionais comumente lidam com a homossexualidade de maneira conflituosa, de modo que homossexualidade e catolicismo são duas experiências que costumam ser vistas como incompatíveis. Neste trabalho, investigamos como se dão alguns processos de construção de identidade social e discursiva na narrativa de vida de um membro do Diversidade Católica, grupo de homossexuais católicos que existe desde 2006 na cidade do Rio de Janeiro. A partir da proposta da Análise do Discurso Semiolinguística (CHARAUDEAU, 2006; 2008; 2009), identificamos quais estratégias discursivas são acionadas pelo participante da pesquisa para articular estas duas identidades. Palavras-chave: Catolicismo; Homossexualidade; Análise do Discurso Semiolinguística; Identidade Social; Identidade Discursiva
Abstract: The existence of homosexuals who follow the Catholic faith is a reality. Nevertheless, traditional
Christian religions commonly deal with homosexuality in a very confrontational way, so that homosexuality and Catholicism are two experiences that are often seen as incompatible. In this paper, we analyse some processes of construction of social and discursive identities in a life narrative of a member of Diversidade Católica, a group of gay Catholics that exists since 2006 in the city of Rio de Janeiro, Brazil. Using the theoretical and methodological apparatus from Semiolinguistic Discourse Analysis (Charaudeau, 2006, 2008, 2009), we identify the discursive strategies which the research participant employs to articulate these two identities. Keywords: Catholicism; Homosexuality; Semiolinguistic Discourse Analysis; Social Identity; Discursive Identity.
Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, mestrando em Letras – Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Viçosa-MG. 10 Pós-Doutora em Estudos Linguísticos. Professora da Universidade Federal de Viçosa. 9
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1. Introdução
A
existência de homossexuais que vivem ativamente a experiência da fé católica é uma realidade. Não deve ser muito difícil encontrar sujeitos que, com ou sem “crises existenciais”, levam a vida praticando uma experiência
de fé vinculada ao catolicismo, ao mesmo tempo em que vivem uma sexualidade não-heterossexual. Chega a ser comum, inclusive, que muitos homossexuais – homens, especialmente – desenvolvam tarefas de liderança leiga em diversas pastorais e movimentos, nas várias instâncias da hierarquia da Igreja Católica. Apesar disso, a forma como a maior parte das religiões cristãs lida com a homossexualidade é, historicamente, uma relação conflituosa. Seja pela leitura fundamentalista de trechos da Bíblia que condenariam experiências homoeróticas, ou por éticas sexuais que consideram a procriação como fundamento do sexo e da família, estas igrejas costumam condenar a “prática do homossexualismo”, tanto no ambiente eclesial quanto no social e político (ARAÚJO & CALEIRO, 2011). Neste contexto, uma longa história de invisibilidade e silenciamento marca o rosto, o corpo, as identidades e as histórias de vida dos sujeitos que carregam essas duas “facetas” de identidade, que costumam ser vistas como díspares. Ainda que homossexuais sejam acolhidos “abertamente” vez ou outra nos espaços eclesiais, a recepção acontece sempre em termos de “tolerância pastoral”, mais do que da aceitação, do reconhecimento e da valorização de sua experiência de vida e de fé (MUSSKOPF, 2005), que, desse modo, tende a ficar reservada ao silêncio ou, em um termo comum no “universo gay”, ao armário11. Musskopf (2003) aponta que um caminho importante para quebrar com este tipo de invisibilidade é o compartilhar das histórias de vida de gays e lésbicas. E é daí que surgem alguns dos nossos objetivos: neste trabalho, queremos investigar como se dão os processos de construção de identidade em uma narrativa de vida produzida por um membro do Diversidade Católica – um grupo de homossexuais católicos que existe desde 2006 na cidade do Rio de Janeiro – em contexto de entrevista de Referência ao processo de assumir-se como gay ou lésbica, conhecido como “saída do armário”. No armário, portanto, permanecem aqueles que ainda não “se descobriram”, ou que não assumem publicamente sua homossexualidade, seja por vontade ou por medo, repressão, controle. 11
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pesquisa. Queremos, além de dar ouvidos a uma destas vozes silenciadas, identificar e entender, a partir do olhar teórico-metodológico da Análise do Discurso Semiolinguística (CHARAUDEAU, 2006; 2008; 2009), quais estratégias discursivas são acionadas pelo participante da pesquisa para articular estas duas identidades sociais que são costumeiramente vistas como antagônicas e incompatíveis. Antes de iniciar a discussão sobre o nosso objeto, porém, é pertinente lançar alguns apontamentos sobre o nosso aporte teórico-metodológico, o que faremos nas primeiras seções deste trabalho, a seguir. 2. Entre a fé e o afeto: a homossexualidade na tradição Católica Uma das maiores zonas de conflito da sociedade contemporânea, no mundo inteiro, é a política dos direitos das minorias. Especialmente no que diz respeito aos cidadãos LBGT12, a disputa entre os movimentos sociais e os grupos conservadores tem gerado caminhos quase paralelos de avanços e retrocessos contínuos. Neste contexto, é comum aparecer, tanto nas mídias quanto no discurso cotidiano do senso comum, elementos de caráter religioso cristão. O que é problemático nisto é que, por mais diverso – e disperso – que seja o discurso cristão, muitas vezes a chamada homofobia religiosa (NATIVIDADE & OLIVEIRA, 2009) é tratada como um fenômeno quase homogêneo, presente em todas as denominações, sem particularidades em cada uma delas. É muito comum, por exemplo, haver quem se espante quando ouve falar na existência de igrejas ou cristãos inclusivos, que acolhem a experiência da diversidade sexual. Neste mesmo caminho, muito se fala sobre a postura da Igreja Católica a respeito das sexualidades não-heterossexuais, mas nem sempre com o devido conhecimento a respeito dos posicionamentos oficiais e das orientações pastorais presentes nos documentos e códigos canônicos, e achamos pertinente apresentar aqui um breve panorama desta relação – até porque, como veremos posteriormente, esta questão institucional é um elemento sociodiscursivo bastante importante, tanto
12
Lésbicas, Gays, Bissexuais e pessoas transgêneras.
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na construção da identidade social do participante da pesquisa, quanto na configuração da encenação no seu ato de linguagem. Ao contrário da maior parte das igrejas protestantes – especialmente as pentecostais e neopentecostais –, a Igreja Católica não considera a homossexualidade um pecado em si mesma. Enquanto nas primeiras, a homossexualidade é quase sempre vista como fenômeno causado por razões “externas” ao indivíduo – abuso sexual, possessão demoníaca ou mesmo escolha –, e, portanto, passíveis de conversão, os documentos de Roma consideram a possibilidade de que existam pessoas com “tendências homossexuais profundamente enraizadas” – o que, a princípio, não as tornaria pessoalmente responsáveis (ARAÚJO & CALEIRO, 2011). A zona de conflito surge quando a questão da homossexualidade esbarra nos outros elementos da ética sexual da Igreja, que, a partir de uma visão que poderíamos chamar “naturalista”, estabelece que a função do sexo, da família e do matrimônio são, por excelência, a procriação. Qualquer prática sexual fora desta finalidade – ainda que dentro do casamento – é considerado pecado grave contra a castidade. Tanto que, no Catecismo da Igreja Católica, as orientações sobre os chamados “atos homossexuais” aparecem todas no capítulo em que consta a doutrina sobre o sexto mandamento da Lei de Deus, “não atentar contra a castidade”, mesmo capítulo em que constam condenações a práticas como o sexo antes/fora do casamento, masturbação ou uso de preservativos. Diz o documento: A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que "os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados". São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados. (CIC, 1998, n. 2357)
Neste caminho, como orientação aos que possuem as tais tendências homossexuais, a Igreja indica que mantenham preservada a castidade através da contenção sexual (CIC, 1998, n. 2359).
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Há ainda outros documentos que tratam desta questão, entre eles: a Declaração Persona Humana sobre alguns pontos de Ética Sexual, de 1975, e a Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre o Atendimento Pastoral das Pessoas Homossexuais, de 1986, que partem de princípios semelhantes aos do Catecismo, orientando que se ofereça aos que se encontram na condição de homossexuais uma especial “solicitude pastoral”, de modo a não discriminá-los injustamente, mas também em momento nenhum dar a entender que a sua tendência seria passível de alguma aprovação. Como mencionado no começo de nosso trabalho, este modo de lidar com a experiência de pessoas homossexuais, ainda que pareça revestido de acolhida, ainda perpetua um tipo de controle sexual que invisibiliza e silencia esses indivíduos (MUSSKOPF, 2003; 2005). Em questionamento a este tipo de tratamento, alguns grupos têm surgido nos últimos anos com o objetivo de problematizar a ética sexual vigente e construir uma nova leitura teológica que acolha, aceite e valorize a experiência da diversidade sexual. Entre estes grupos, podemos mencionar os brasileiros Pastoral da Diversidade, de São Paulo, e Diversidade Católica, do Rio de Janeiro – grupo a que pertence o participante de nossa pesquisa. 3. Identidade na Teoria Semiolinguística: proposta e modelo de análise A questão da identidade tem sido hoje um tema de interesse para os mais diversos campos de conhecimento. O modo como os indivíduos se veem, se constituem, se expressam, se manifestam pela linguagem, se representam, a maneira como colocam o seu eu em interação com o outro, enfim, são diversos os aspectos que têm gerado estudos a respeito das questões identitárias. Para Charaudeau (2009), este deve ser um tema importante também para a Análise do Discurso Semiolinguística, por três razões: A primeira é que, no domínio das ciências humanas e sociais, e diante da expansão da sociologia, este tema justifica a existência de uma disciplina da linguagem em posição central, tecendo ligações entre elas: não há sociologia, nem psicologia social nem antropologia que não levem em conta os mecanismos linguageiros. A segunda diz respeito às ciências da linguagem propriamente ditas, pois o tema das identidades sociais mostra a necessidade de distinguir a língua do discurso, num sentido inverso ao de uma certa representação que pretende que o discurso seja secundário em relação à língua: na realidade, o discurso é que é fundador da língua. E se insistem em dizer que é através da língua que se dá o funcionamento do discurso, é necessário precisar que se trata da língua enquanto discurso, enquanto registro do discurso. Entretanto, esta posição não diz nada a respeito do sujeito que fala. E é este, com efeito, o terceiro aspecto posto em evidência pelo tema das identidades: o da existência de um sujeito, o qual se constrói através de sua identidade discursiva, que, no entanto, nada seria sem uma identidade social a partir da qual se definir. (CHARAUDEAU, 2009, s.p.)
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É a partir deste último aspecto, o da existência de um sujeito dotado de identidade social e de identidade discursiva, que Charaudeau (2006; 2009) vai traçar a sua proposta de conceituação e de análise das questões identitárias na Teoria Semiolinguística. Segundo o autor, a identidade de um sujeito não é única e global, mas composta por alguns elementos, ou “traços de identidade”: aspectos biológicos – aquilo que o nosso corpo é; dados psicossociais que são atribuídos ao sujeito a partir do lugar que ocupa na sociedade – aquilo que dizem que somos; e dados construídos por nosso próprio comportamento, através de nossos atos de linguagem – aquilo que pretendemos ser. Do ponto de vista da significação, porém, os aspectos biológicos só fazem sentido a partir dos significados sociais que os diversos grupos sociais lhes atribuem, de modo que estes componentes podem ser reduzidos a dois: a identidade social, que envolve o componente biológico e o psicossocial, e a identidade discursiva, que envolve o componente “comportamental”, de linguagem. Antes de tratar especificamente destes aspectos da identidade, porém, é importante considerar que, para Charaudeau (2006; 2009), o modo como esta identidade é apresentada para o interlocutor na encenação discursiva, a imagem de si que o falante apresenta – o ethos – é um elemento que exerce função argumentativa por excelência, assim como o pathos e o logos. Charaudeau (2006) aponta isto a partir de considerações sobre a Retórica aristotélica, em que estas três categorias são apresentadas como meios discursivos utilizados para influenciar o auditório: de um lado, o logos, como pertencente ao domínio da razão, utilizado para persuadir; de outro, o ethos e o pathos¸ pertencentes ao domínio da emoção, utilizados para seduzir, emocionar. O pathos sempre voltado para o auditório, e o ethos, para o orador, através de recursos discursivos que ele aciona para mostrar-se fidedigno, aceitável, amável e sincero. E como, para Charaudeau (2006), o ethos é o lugar onde as identidades social e discursiva fusionam-se, a discussão que ele faz a respeito de ambas será perpassada por esse viés argumentativo. Segundo o autor, a identidade social tem como particularidade a necessidade de ser reconhecida pelos outros, uma vez que ela é responsável por instalar a legitimidade do falante – o seu direito à fala. Ter legitimidade – ou ser reconhecido pelos outros como um portador de legitimidade - é o que autoriza os indivíduos a agir de determinadas maneiras dentro de determinados contextos específicos. Essa legitimidade pode ser atribuída ou reconhecida através de certas habilidades ou características que o indivíduo possui: ser portador de um determinado saber que seja reconhecido institucionalmente ou de um saber-fazer reconhecido pela performance deste indivíduo; ocupar uma determinada posição de poder, reconhecida ou
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por filiação ou por eleição, condecoração; estar em posição de testemunha, o que lhe confere autoridade para falar de determinado acontecimento; ter valor reconhecido pelos membros de um determinado grupo ou comunidade. Neste sentido, Charaudeau (2009) conclui que a identidade social é, em parte, determinada pela situação comunicativa: é ela quem vai definir aquilo que o sujeito falante pode/deve dizer em cada contexto específico, a partir do status que lhe é conferido naquela situação. Entretanto, cabe ainda pontuar que, como o autor aponta, esta identidade social não é estanque: ela pode ser reconstruída, negociada, mascarada ou deslocada. A identidade discursiva, por sua vez, está ligada ao duplo espaço de estratégias da credibilidade e da captação (CHARAUDEAU, 2009). A credibilidade diz respeito à necessidade que o indivíduo tem de que acredite nele, “tanto no valor de verdade de suas asserções, quanto no que ele pensa realmente, ou seja, na sua sinceridade” (CHARAUDEAU, 2009, s.p.). Para isso, ele pode adotar três identidades discursivas distintas: (i) a neutralidade, através do apagamento de qualquer vestígio de avaliação pessoal em seu discurso; (ii) o distanciamento, através da tomada de atitude fria e controlada do indivíduo em relação ao seu discurso; ou (iii) o engajamento, através de atitude de tomada de posição na escolha de argumentos ou do uso de modalidade argumentativa, a fim de aparentar forte convicção. Sobre estratégias de captação, Charaudeau (2009, s.p) afirma: As estratégias de captação surgem quando o Eu-falante não está, para com seu interlocutor, numa relação de autoridade. Se estivesse, seria suficiente dar uma ordem para que o outro a cumprisse. A captação vem da necessidade, para o sujeito, de assegurar-se de que seu parceiro na troca comunicativa percebe seu projeto de intencionalidade, isto é, compartilha de suas idéias, suas opiniões e/ou está “impressionado” (tocado em sua afetividade). Deve então responder à questão : “como fazer para que o outro possa „ser tomado‟ pelo que digo”. Neste caso, o objetivo do sujeito falante passa a ser o de “fazer crer”, para que o interlocutor se coloque numa posição de “dever crer”. (CHARAUDEAU, 2009, s.p.)
Para alcançar este objetivo, o falante pode lançar mão a uma entre outras três atitudes discursivas: (i) atitude polêmica, de enfrentamento e questionamento dos valores e posicionamentos do interlocutor ou de um terceiro; (ii) atitude de sedução, propondo ao interlocutor um imaginário em que ocuparia papel de “herói beneficiário”; ou (iii) atitude de dramatização, através da apresentação de fatos perpassados por carga dramática, referentes a valore afetivos compartilhados socialmente, a fim de despertar a emoção. Para Charaudeau (2009), a diferença entre estas duas identidades, em última instância, serve de base para um modelo comunicacional para a Análise do Discurso, modelo
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que ele define em termos de três tipos de competências e três tipos de estratégias. As competências que o autor enumera são as seguintes: 1.
competência comunicacional ou situacional: “corresponde, no sujeito, à sua
aptidão em reconhecer a estruturação e as restrições da situação de comunicação, na qual são determinadas, entre outras, as características da identidade social dos parceiros da troca linguageira.” (CHARAUDEAU, 2009, s.p) 2.
competência semântica: capacidade de organizar os diferentes tipos de
saberes que o indivíduo possui, bem como a capacidade de tematizar estes saberes durante o ato de linguagem. 3.
competência discursiva: corresponde ao domínio das possibilidades de
organizar o discurso – os modos enunciativo, descritivo, narrativo e argumentativo (cf. CHARAUDEAU, 2008) – em função das restrições do quadro comunicacional. Quanto às estratégias, Charaudeau (2009) aponta que elas se definem em relação ao contrato de comunicação: Para o sujeito, trata-se inicialmente de avaliar a margem de manobra de que dispõe no interior do contrato, para jogar entre, e com, as restrições situacionais e as instruções de organização discursiva e formal. Em seguida, escolher, entre os modos de organização do discurso e os modos de construção textual, em relação com os diferentes conhecimentos e crenças de que dispõe, os procedimentos que melhor correspondam a seu próprio projeto de fala, às metas da influência que pretende exercer sobre o interlocutor, e às condições que ele se impõe (CHARAUDEAU, 2009, s.p.).
Assim, em função destas condições, as estratégias a serem utilizadas poderão ser de legitimidade, credibilidade ou de captação, que são aspectos que já comentamos anteriormente. Para Charaudeau (2009, s.p), Estes três tipos de estratégias constroem uma identidade discursiva própria ao sujeito, ao passo que o contrato de comunicação constrói, por suas instruções, uma identidade discursiva convencional, a que se coloca em conformidade com o contrato. Assim, no nível das estratégias, o sujeito comunicante pode escolher falar em conformidade ou não com as instruções dadas pelas restrições do contrato de comunicação, e fazer valer sua especificidade identitária (CHARAUDEAU, 2009, s.p.).
Apresentados estes aspectos conceituais e de análise propostos por Charaudeau
(2006; 2009), passaremos a apresentação e discussão dos dados que compõem o nosso estudo. Tomaremos as discussões já feitas até aqui como lentes teórico-metodológicas, a fim de responder mais apropriadamente às nossas questões de pesquisa.
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4. “O chamado era maior”: a narrativa de vida de um católico gay Isaías13, participante de nossa pesquisa, é um jovem negro de 28 anos, que vive no Rio de Janeiro. Sua entrevista nos foi concedida como parte de uma pesquisa sobre o grupo Diversidade Católica, de que participa, e, para esta análise, foi utilizado apenas o trecho da entrevista em que Isaías relatou a sua experiência de vida como gay e cristão. Apresentamos aqui a transcrição dos dados14, para apontar e discutir algumas observações em seguida.
Pesquisador: Bom, Isaías, a primeira coisa que eu queria que você me contasse é um pouco da sua da sua trajetória de vida, assim, enquanto gay cristão. Isaías: hmrum Pesquisador: Como é que essa coisa funciona, ou funcionou, na sua história... Isaías: foi um processo. Sou de berço católico, fui batizado com vinte dias de nascido. Enquanto eu morava em Niterói, aqui mesmo no estado do Rio, eu tinha uma vida católica, vamos dizer assim, ativa com a minha madrinha, porque ela sempre me levava pra procissão, festividades da semana santa, dias santos, enfim, sempre ia com ela. Muito cedo eu me mudei pra Campos, que fica aqui no norte do estado, com os meus pais, e lá eu morei dos 8 aos 18 anos. Quando eu fiz 14 anos, eu senti a necessidade de começar a frequentar a missa, tal, e fui num encontro onde eu me encontrei na verdade. Dali até agora eu continuei a seguir, participei de grupo jovem antigamente, participei de comunidades, de aliança, tal. Cheguei a ministrar muitas vezes o grupo jovem, cheguei a pregar no grupo de oração, então eu tinha uma vida ativa dos 14 até os 24 anos... muito ativa, né, pra se dizer, na Igreja. E a minha homossexualidade só veio, só despertou, assim, quando eu tinha 24 anos, na verdade. Eu sempre tive relacionamento com mulheres, tal, mas quando eu fiz 24 anos (eu até brinco que foi 23 anos e meio, já no limiar), eu comecei a sentir algo que não era o que eu sentia por homens, eu comecei a ficar atraído. E aquilo pra mim foi um problema muito sério porque eu era líder de um movimento, eu era líder de um grupo, de uma juventude e pregava contra isso. E o que eu pregava eu tava vivendo. Então eu senti na pele o que era ser aquilo a que eu ia de encontro. Então foi complicadíssimo pra mim no início. A primeira coisa que eu fiz foi me afastar da eucaristia, que eu não me achava digno de comungar, tal, sem ter cometido o ato em si, sem ter dado um beijo, mas a primeira coisa que eu fiz foi me afastar da eucaristia, o que me deixou muito mal porque eu era comungante assíduo, três vezes na semana no mínimo, domingo sem... domingo nunca faltava, mas, da semana, quando podia umas três vezes no mínimo eu comungava. Cê imagina uma pessoa que comungava quatro vezes no mínimo na semana não comungar durante um período imenso. Foi assim pra mim do ano de 2007 até início de 2008. Foi muito complicado, porque aí eu tava com conflitos internos grandes, grandes, grandes, e eu não consegui, eu não sabia como resolver. A Bíblia não me dava nenhuma resposta pra isso e onde eu procurava também não tinha Nome fictício, bem como todos os outros que aparecem na transcrição dos dados. Julgamos importante a consideração de aspectos discursivos relacionados à oralidade – especialmente aspectos paralinguísticos como pausas, entonação, repetição e/ou prolongamento de sons, ritmo de fala, etc. Entretanto, optamos por não contemplar estas questões neste trabalho, por exigir um esforço mais exaustivo e detalhado de análise que não caberia no espaço curto de um artigo. Em função disso, nossa transcrição será apenas ortográfica, registrando algumas marcas de oralidade, mas sem considerar aspectos fonéticos ou fonológicos. Cabe ainda comentar que considerações interessantes a respeito da transcrição de material sonoro ou multimodal podem consultadas em textos de autores do campo da Análise da Conversa Etnometodológica (ACE). Sugerimos particularmente a leitura de Gago (2002) e de Loder (2008). 13 14
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resposta alguma. Eu simplesmente me achava indigno e fui me afastando. Aí eu abandonei as lideranças que eu tinha, parei de cantar na igreja, parei de pregar, parei de conduzir grupo jovem, saí da comunidade, e fiquei como apenas como assistente, aquele que vai à missa e vai pra casa. Até que no início de 2008 eu conheci um cara que foi amor à primeira vista, assim, e ali eu resolvi viver aquilo que eu tava sentindo. Aí deixei pra lá, comecei a viver, fiquei com ele, mas aí eu abandonei a igreja, a verdade foi bem essa, abandonei a igreja. Sei lá, um ano depois, eu... eu... a todo momento eu tinha vontade de voltar, o coração ardia, tal, aquelas coisas, né, “não é possível eu viver tudo aquilo que eu vivi e abandonar agora”, tal, mas eu preferi viver aquela coisa nova que eu não tinha vivido. Ainda.
Pesquisador: Na sua cabeça as duas coisas eram incompatíveis? Isaías: Incompatíveis. Não tinha como ser. Até que o chamado era maior, assim, de “volta, volta, volta, volta”... a volta do filho pródigo, pra mim sempre vinha essa passagem, Lucas 15, Lucas 15 15 direto na minha cabeça, e eu comecei a procurar coisas porque, “gente, não é possível que que que só eu, só eu seja.. esteja passando por isso. Não é possível.” Comecei a procurar grupos, né, pela internet, comecei a procurar literatura sobre o assunto, até que eu conheci a Igreja Cristã Contemporânea e passei a frequentar... a Igreja Cristã Contemporânea. Só que aquilo não era o que eu tava querendo, que pra mim aquilo ali era um grupo de um grupo de oração, algo que eu ia toda semana, durante a semana, não me preenchia como a missa me preenche. E... aí eu fui me sentindo vazio ainda, eu ia, gostava, tal, era um momento de louvor, principalmente de encontro muito bom com Deus mas não era o que eu queria, faltava alguma coisa. Até que eu conheci um garoto lá, o Josué, eu falei com ele “é eu sou católico”, ele: “como assim você é católico?” “não, eu sou católico! Eu tô aqui, mas sou católico”. Aí ele disse que conhecia esse grupo, conhecia o Jeremias16 e conhecia esse grupo, o Diversidade Católica, e me passou o contato do grupo, me mostrou o site, tal. Aí eu enchi o saco, comecei a mandar e-mail, comecei a mandar mensagem, mas ninguém me respondia, comecei a ser grosso, perguntando “por que não me responde? por que não me responde?”... até que um dia me responderam e eu tive um encontro com o Alberto e com o Fernando17 e eles me apresentaram o grupo antes da reunião. Depois eu fui pra reunião. Mas assim, não fugindo muito da pergunta, o que me fez mudar foi as coisas que eu li. Eu li muita coisa a respeito, eu li muita coisa até na Bíblia, aí as escamas dos meus olhos foram caindo e eu consegui entender de fato. Primeiro, não dava pra me condenar porque não foi algo que eu escolhi, eu não entendo a minha homossexualidade como uma opção e sim como uma condição. E como é uma condição eu não tenho como mudar. Eu tenho como optar, eu torço pelo flamengo, posso torcer pelo vasco, isso eu- eu opto. Agora a minha sexualidade não é uma opção. É uma condição que eu posso aceitar ou não. E eu decidi aceitar. Então, no início foi muito complicado, mas agora eu vejo com muita naturalidade, com muita tranquilidade. Não me penalizo mais e voltei a comungar no Diversidade Católica. Foi minha primeira vez que eu fui, foi emocionante pra mim. Porque eu não comungava há anos, tinha me confessado pouco tempo e aquele momento, assim, foi maravilhoso. Maravilhoso, maravilhoso. Podemos dizer sobre esta narrativa que temos envolvida uma série de elementos importantes, que vão ser constitutivos do contrato comunicacional, bem como definir a
Referência à parábola bíblica do Filho Pródigo, escrita no livro do evangelista Lucas, ao capítulo 15, versículos 11-32. 16 Padre que acompanha o grupo, como orientador espiritual (nome fictício). 17 Casal de membros do Diversidade Católica. Isaías cita uma espécie de reunião de apresentação, e cabe esclarecer que este é um costume corriqueiramente adotado pelo grupo. A maior parte das pessoas que faz contato através de meios eletrônicos (e-mail ou redes sociais), manifestando interesse em participar das atividades, passa por um encontro prévio com algum dos membros para uma apresentação prévia. É um procedimento adotado para resguardar, na medida do possível, a segurança dos participantes e evitar perseguições por parte de pessoas ligadas a movimentos conservadores da Igreja. 15
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situação comunicativa, a ponto de determinar algumas das estratégias que Isaías utiliza em sua narrativa. No plano situacional, temos o contexto de uma entrevista de pesquisa, em que, podemos considerar, a legitimidade é negociada. Em função do posicionamento institucional do cientista, que lhe confere o status de “portador de saber”, o direito à fala, inicialmente, pertence a ele. Através da pergunta que inicia a interação, esse poder de fala é transferido a Isaías, mas com uma limitação: é o pesquisador quem define o tema do seu discurso, e, portanto, interfere em alguma medida na construção do seu projeto de fala. Esse projeto, num primeiro olhar, é constituído pela necessidade de que Isaías atenda ao pedido do seu interlocutor, contando-lhe a respeito da sua trajetória enquanto gay cristão. Neste ponto, já vemos instaladas duas identidades sociais em Isaías: primeiro, a identidade social de gay; segundo, a identidade social de católico. Estas duas identidades, que são costumeiramente vistas como conflitantes, acabam também trazendo para o plano situacional a questão da relação entre a homossexualidade e a vivência de fé na Igreja Católica – enquanto instituição que estabelece papeis e normas. Isto também interfere na construção do projeto de fala de Isaías. Consideradas
estas
questões,
podemos
assim
representar
a
encenação
comunicativa, de acordo com a proposta de Charaudeau (2008):
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O sujeito comunicante (EUc) Isaías assume no espaço interno – espaço do dizer, espaço em que o ato de linguagem se realiza – a posição de sujeito enunciador (EUe) através do acionamento das identidades sociais gay e cristão, como já apontamos. De início, é possível perceber que Isaías aciona sua competência discursiva: ao ser solicitado que conte sobre a sua “trajetória”, Isaías organiza seu discurso através do uso de procedimentos característicos da ordem do narrativo e do descritivo (cf. CHARAUDEAU, 2008). Além disso, por se tratar de um texto de caráter “autobiográfico”, Isaías usa procedimentos característicos do modo de organização enunciativo, especialmente através da modalidade elocutiva, que utiliza para expressar seu ponto de vista e a sua relação com a própria história. Porém, o que há de mais interessante a ser percebido no discurso que Isaías constrói, são as estratégias que ele utiliza a fim de conseguir credibilidade e captação. Ainda que tenha alguma legitimidade, o direito a fala que lhe é conferido pelo cientista, ele aparenta sentir a necessidade de convencer a respeito do valor de verdade e da sinceridade das suas considerações, bem como de conseguir adesão às ideias que expressa. Acreditamos que isto está fortemente vinculado ao já mencionado fato de que Isaías é portador de duas identidades sociais que são tidas como antagônicas, tanto nos imaginários coletivos quanto no discurso da instituição a que se vincula. O projeto de fala de Isaías, neste sentido, começa a se delinear a partir da intenção de mostrar que não há problema em ser gay católico, tanto para o pesquisador com quem dialoga, que vai produzir algum tipo de reflexão sobre aquele discurso, quanto para quem eventualmente venha a ter acesso a este discurso através da pesquisa de que participa. Analisando a trajetória da narrativa que Isaías conta, é possível perceber quatro momentos distintos: um primeiro, em que ele fala da sua trajetória enquanto católico, e do início da sua pertença à Igreja; um segundo, em que descobre a sua homossexualidade, começa a vivê-la e, gradativamente, vai afastando-se da vivência católica; um terceiro, em que manifesta o desejo de reaproximar estas duas identidades que afastara, chegando inclusive a participar de um grupo de vivência cristã18, ainda que não católica; e um último, em que restabelece este vínculo com a Igreja, através do contato com o grupo Diversidade Católica – e a retomada da participação no sacramento da comunhão que, no segundo momento da narrativa, marca o começo do seu afastamento.
Isaías menciona a Igreja da Comunidade Metropolitana, denominação religiosa “inclusiva” surgida nos Estados Unidos, que acolhe e valoriza a experiência de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas transgêneras. 18
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Na sua busca por captação, Isaías carrega o seu discurso com de marcas de dramatização, numa exploração forte de sentimentos que procuram emocionar. Interessante é perceber que esta carga dramática vem sempre representada por sentimentos negativos nos momentos em que há conflito entre a as suas identidades gay e cristã, e positivos quando elas estão em harmonia. Vejamos nos trechos: (i) eu comecei a sentir algo que não era o que eu sentia por homens, eu comecei a ficar atraído. E aquilo pra mim foi um problema muito sério porque eu era líder de um movimento, eu era líder de um grupo, de uma juventude e pregava contra isso. E o que eu pregava eu tava vivendo. Então eu senti na pele o que era ser aquilo a que eu ia de encontro. Então foi complicadíssimo pra mim no início. A primeira coisa que eu fiz foi me afastar da eucaristia, que eu não me achava digno de comungar, tal, sem ter cometido o ato em si, sem ter dado um beijo, mas a primeira coisa que eu fiz foi me afastar da eucaristia, o que me deixou muito mal porque eu era comungante assíduo, três vezes na semana no mínimo, domingo sem... domingo nunca faltava, mas, da semana, quando podia umas três vezes no mínimo eu comungava. Cê imagina uma pessoa que comungava quatro vezes no mínimo na semana não comungar durante um período imenso. (ii) Foi muito complicado, porque aí eu tava com conflitos internos grandes, grandes, grandes, e eu não consegui, eu não sabia como resolver. A Bíblia não me dava nenhuma resposta pra isso e onde eu procurava também não tinha resposta alguma. Eu simplesmente me achava indigno e fui me afastando. (iii) no início foi muito complicado, mas agora eu vejo com muita naturalidade, com muita tranquilidade. (iv) Foi minha primeira vez que eu fui, foi emocionante pra mim. Porque eu não comungava há anos, tinha me confessado pouco tempo e aquele momento, assim, foi maravilhoso. Maravilhoso, maravilhoso.
O primeiro excerto é o trecho mais carregado de dramatização em todo o texto, e marca os desdobramentos emocionais do fato de Isaías ter se afastado do sacramento da comunhão. Nos últimos excertos, que estão no fim da narrativa, é curioso perceber que o sentimento de tranquilidade e a emoção boa se reconstituem exatamente quando ele volta a comungar – uma espécie de símbolo da retomada do seu vínculo de fé e do seu sentimento de pertença à Igreja Católica – que, vale destacar, ele ainda não tinha quando participava da Igreja da Comunidade Metropolitana, por exemplo. O trabalho de dramatização de Isaías só tem uma interrupção mais marcada quando há a necessidade de inserir a sua estratégia de credibilidade, que, marcada pelo engajamento, evoca para o si o fato uma experiência de vida e um saber que procura dotar de verdade e de sinceridade, além aquela afirmação específica, toda a trajetória de vida que narra. É a estratégia que está presente neste excerto.
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(v) o que me fez mudar foi as coisas que eu li. Eu li muita coisa a respeito, eu li muita coisa até na Bíblia, aí as escamas dos meus olhos foram caindo e eu consegui entender de fato. Primeiro, não dava pra me condenar porque não foi algo que eu escolhi, eu não entendo a minha homossexualidade como uma opção e sim como uma condição. E como é uma condição eu não tenho como mudar. Eu tenho como optar, eu torço pelo flamengo, posso torcer pelo vasco, isso eu- eu opto. Agora a minha sexualidade não é uma opção. É uma condição que eu posso aceitar ou não. E eu decidi aceitar.
5. Considerações Finais Iniciamos este trabalho comentando o fato de existir uma carga histórica de invisibilidades que afeta as pessoas que vivem uma sexualidade não-heterossexual e que buscam uma experiência de fé na Igreja Católica. Depois de termos percorrido todo este percurso de análise, talvez fique um pouco mais evidente o porquê da importância de ver estas histórias sendo contadas. Fazer dos nossos estudos um espaço de visibilidade para esses indivíduos é necessário não apenas por um engajamento político, elemento que, ainda que necessário à ciência, não costuma estar no centro dos interesses das pesquisas desenvolvidas no campo da Análise do Discurso Semiolinguística; mas fundamentalmente porque estas histórias invisíveis podem apresentar processos discursivos novos (ou pouco explorados) que nossos estudos podem não identificar com tanta evidência e profundidade no discurso cotidiano, ou das mídias, ou dos grupos conservadores. Muitos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais vivem experiências religiosas cristãs, construindo histórias de identidades que, por alguma razão, não são aceitas ou sequer compreendidas por padrões tanto de fé quanto de sexualidade dominantes. E a cada vez que precisam falar de sua vida, nas situações mais cotidianas de comunicação, acabam surgindo sempre os mesmos questionamentos, as mesmas dúvidas, os mesmos embates, e a mesma necessidade de transformar um “simples” relato de vida em um grande trabalho argumentativo, que prove que não há nada de errado com esta identidade ou com aquela – ou com as duas, quando vividas ao mesmo tempo. Neste caso, cabe a reflexão: quantas destas estratégias que analisamos aqui, quantas negociações, quantos procedimentos linguístico-discursivos de credibilidade ou de captação precisam ser acionados por esses sujeitos a cada interação cotidiana em que estas identidades sociais e discursivas vêm à tona? Temos, portanto, uma problemática bastante complexa, que precisa despertar mais estudos, a fim de ampliarmos a compreensão sobre diversos outros aspectos destes atos de
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linguagem que, neste trabalho, não foram discutidos – como, por exemplo, a presença de estratégias de patemização (CHARAUDEAU, 2006), não raras em discursos de teor religioso; ou mesmo questões relacionadas à presença dos diversos modos de organização do discurso (CHARAUDEAU, 2008). Referências Bibliográficas ARAÚJO, Murilo Silva de; CALEIRO, Maurício de Medeiros. A fé e os afetos: Diversidade Sexual, Catolicismo e Protestantismo em sites de grupos cristão inclusivos In: XVI Congresso de Ciências da Comunicação da Região Sudeste, 2011, São Paulo. Anais do XVI Congresso de Comunicação da Região Sudeste. São Paulo: Intercom, 2011. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes,1998. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006 _________. Linguagem e Discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. _________. Identidade social e identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia. (Org.) O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. GAGO. Paulo Cortes. Questões de Transcrição. Revista Veredas, v.6, n. 2, p.18-113, dez/2002. GOMES, Ademildo; TRASFERETTI, José. Homossexualidade: orientações formativas e pastorais. São Paulo: Paulus, 2011. LODER, Letícia Ludwig. O Modelo Jefferson de Transcrição: Convenções e Debates. In: LODER, Letícia Ludwig; JUNG, Neiva Maria (orgs.). Fala em Interação Social: introdução à Análise da Conversa Etnometodológica. Campinas: Mercado de Letras, 2008. MUSSKOPF, André Sidnei. A Teologia que sai do armário - um depoimento teológico. Impulso, Piracicaba, 14(34): 129-146, 2003 _________. À meia luz: a emergência de uma teologia gay: Seus dilemas e possibilidades. Cadernos IHU Ideias. São Leopoldo, ano 3, n. 32, p 01-34, 2005. NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro de. Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores. Sexualidad, Salud y Sociedad Revista Latinoamericana. n. 2, pp.121-161, 2009.
Artigo aceito em 15/05/2013.
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Homossexualidades à deriva nos alojamentos da Universidade Federal de Viçosa-MG: algumas reflexões iniciais Jairo Barduni Filho19
Resumo: O presente artigo aborda meu interesse de pesquisa pelos jogos de poderes entre estudantes nos alojamentos da Universidade Federal de Viçosa/MG. A pesquisa, que, no caso, é um recorte adaptado do meu próprio projeto de doutorado, origina-se da minha experiência como ex-morador do alojamento Novíssimo da UFV. O objetivo aqui é apresentar brevemente o histórico de dois alojamentos específicos: Novo (feminino) e Novíssimo (masculino) e traçar um paralelo com as referências foucaultianas no tocante à vigilância, disciplinamento e controle, portanto, a metodologia aqui é a de cunho referencial bibliográfico, pois, trata-se de um projeto que ainda não iniciou a fase de coleta de dados de pesquisa como entrevistas e observações. Tais conceitos foucaultianos estão presentes no espaço microsocial dos alojamentos como elementos de expiação e controle entre estudantes, concretizando tramas e caças às subjetividades incomodantes, se é que podemos assim dizer, das subjetividades homossexuais. Palavras - chave: Alojamento estudantis, vigilâncias, controles
Abstract: This article discusses my research interest in games of power between students in accommodations
in the Federal University of Viçosa / MG. The research, which in this case is an excerpt adapted from my own PhD project, stems from my experience as a former resident in the accommodation “Novíssimo” of the UFV. The goal here is to briefly present the history of two specific places: “Novo” (female) and “Novíssimo” (male) and draw a parallel to the references regarding Foucauldian surveillance, discipline and control, so the methodology here is to die bibliographic references therefore it is a project that has not yet started the process of gathering research data such as interviews and observations. Such Foucauldian concepts are present in the accommodation space microsocial as elements of atonement and control among students, implementing plots and fighters subjectivities incomodantes if we may say so, of gay subjectivities. Keywords: Student Accommodation, surveillance, controls
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Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
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Introdução
H
“Desses acontecimentos, que ninguém percebe, é que se nutre a linha axial interna de nosso destino. A falha, a rachadura se fecham mais tarde; podem cicatrizar e cair no esquecimento; mas em nossa câmara secreta mais recôndida nunca cessam de sangrar” (HESSE 2005, p.32)
á fatos que acontecem e que carregamos conosco, que nos marcam significativamente, e que, por vezes, deixam cicatrizes bem escondidas, mas existentes. Por isso, na epígrafe, trago um trecho da obra Demian, do
contista alemão Hermann Hesse. Este livro me afeta na medida em que a figura de Sinclair, como projeção da vida do autor, vê o rumo de sua vida modificado a partir de um encontro com Demian, na infância. No meu caso, posso dizer que minha vida acadêmica ganhou novos rumos a partir do encontro com o alojamento Novíssimo. Tanto, que este artigo é fruto de um recorte feito do meu projeto de doutorado (2013), intitulado: Novo, Novíssimo: a invenção das homossexualidades nas moradias estudantis da Universidade Federal de Viçosa/MG. Este surgiu da minha inquietação enquanto um ex-morador do Alojamento Novíssimo, da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Nele, trago um querer particular de pesquisar o local onde morei e que me marcou significativamente durante minha graduação em Pedagogia. Ali, fiz vários amigos gays, bissexuais e heterossexuais, além de ter vivenciado na pele a homofobia que permeou as relações nestes espaços de convívio. Talvez eu tenha feito história, devido minha resistência, em 2007, quando tendo sofrido um explícito caso de homofobia no alojamento em que morava, levei o meu caso até instâncias superiores da universidade. Ao invés de me submeter à discriminação (expulsão) perpetrada por meus colegas de quarto e sair do alojamento, eu resolvi “botar a boca no trombone” e denunciar uma prática “antiga” e cotidiana dentro do campus da UFV, porém muito pouco problematizada tanto pelos estudantes, quanto pela Administração Superior da instituição. Este local, como já mencionado, se tornou minha escolha de pesquisa para o doutorado, que começou neste ano de 2013. Em meu projeto, eu incluo, além do alojamento Novíssimo, o alojamento Novo, no caso, um alojamento feminino. O objetivo deste artigo é discorrer brevemente sobre o histórico destes alojamentos,
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bem como tentar fazer um paralelo entre os referenciais foucaultianos e os alojamentos como espaços de vigilância e disciplinamento. 1. Os Alojamentos da Universidade Federal de Viçosa-MG: um breve recorte histórico O primeiro alojamento universitário da UFV foi inaugurado em 1928, quando a Universidade de Viçosa ainda era denominada de Escola Superior de Agricultura e Veterinária do Estado de Minas Gerais (ESAV). O edifício foi batizado com o nome de um dos fundadores da ESAV, João Carlos Bello Lisboa. O prédio hoje é comumente conhecido pelos estudantes como o Alojamento Velho.
Foto 1: (Alojamento Bello Lisboa na década de 20) – Fonte: Museu Histórico da UFV.
Naquele período, a Escola recebia estudantes de várias localidades rurais de Minas Gerais e de outros estados, e um dos elementos que funcionava como atrativo à vinda e permanência dos alunos na instituição era precisamente a existência de um sistema de internato. A princípio, era pequeno o número de estudantes no internato e estes viviam num modo rígido de vida. A rigidez ocorria em todos os aspectos: na atenção a horários, condutas disciplinares e formação de maneiras de pensar que não se restringiam apenas às questões agrárias, ou seja, de estudo, mas também àquelas referentes à higiene, moralidade e conduta cívica. O que era almejado pelos dirigentes
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esavianos, era que os estudantes alcançassem um espírito de liderança, cooperação, e responsabilidade. Por tal intento, este objetivo alcançado passou a se chamar de: “espírito esaviano”, tal lógica de pensamento da época procurava cuidar do espírito acadêmico quanto o corpo e seu disciplinamento. Lopes (2012) considera, sobre a ESAV, que tão importante quanto preparar os grãos e arar a terra, fazia-se necessário também formar seres humanos imbuídos desses ideais de progresso e patriotismo. Deste modo, o internato rural da ESAV acontecia como local de construção de homens líderes da pátria, tão carente de cabeças técnicas para o comando do campo, quanto para formar exemplos de homens viris e responsáveis. Obviamente, uma das ações da escola era a de controlar pensamentos e comportamentos. O controle assim focava a “boa moral” que estava ligada a boas maneiras dos alunos como a construção de valores morais e uma vigilância rigorosa a fim de alcançarem o dito “espírito esaviano”. A partir da década de 70 acompanhando o crescimento da Universidade, os alojamentos começaram a se multiplicar, reforçando a característica de uma instituição que oferece apoio estudantil além da qualidade do ensino.
Fotos 2 e 3: Alojamentos recém construídos na década de 70: Novíssimo-masculino e Novo-feminino, em destaque o alojamento Novo. Fonte: Museu Histórico da UFV.
Com o crescimento da UFV, esta se viu na emergência de aumentar o número de alojamentos, inclusive femininos para comportar a quantidade de
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estudantes que chegavam todo ano. Toda essa transformação, processo de crescimento e construção dos alojamentos é apontada por Lopes (2012), quando diz que: Se inicialmente, em 1926, a UFV era denominada de Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV), tornou-se Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG) em 1949 e, a partir de 1969, foi federalizada. Atualmente, em 2012, a UFV (abrangendo três campi: Viçosa, Florestal e Rio Paranaíba) oferece 61 cursos de graduação, 54 programas de pós-graduação e possui aproximadamente 14.000 estudantes matriculados. Destes últimos, cerca de mil e quinhentos residem em seis alojamentos (três masculinos e três femininos) que se encontram distribuídos pelo campus Viçosa. Nos alojamentos – não mais abordados como internatos de tempo integral, mas sim como moradias estudantis – os discentes constroem as mais diferentes configurações de convívio e práticas sociais que não necessariamente são do conhecimento e do controle das instâncias superiores da UFV, apesar de a instituição possuir uma Divisão de Assistência Estudantil (DAE) que é responsável pelo alojamento. (p.3)
A UFV possui um histórico de acolhida de seus estudantes, e estes movimentam o campus desta instituição como uma verdadeira “casa” que os acolhe por 4, 5, 6 anos. Há uma intensa interação discente na vida cotidiana do campus, o que produz contínuas maneiras de existir e habitar a universidade; modos estes que não necessariamente coabitam sem conflitos. É importante também salientar que o campus é provido de vários serviços voltados para a comunidade ufeviana como: supermercado, bancos, farmácia, restaurante universitário, espaço para lazer e prática de esportes, e este panorama faz com que muitos moradores digam que a UFV seria uma mini-cidade, ou mesmo que existem duas Viçosas, a da cidade e a do campus universitário. Os alojamentos, assim, são as casas dessa grande cidade universitária, promovendo maneiras de convívio pouco conhecidas do público que se movimenta pelo campus em visita e mesmo estudantes que moram nas repúblicas da cidade. Neste sentido, a UFV torna-se literalmente uma casa de criatividades, resistências e invenções discentes, sendo que tais inventividades tendem a produzir suas conseqüências tanto a formação profissional quanto pessoal dos estudantes.
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2. Foucault e a sociedade disciplinar Ao se falar em controles, não se pode deixar de mencionar as resistências, que, de acordo Foucault (1979), trata-se da possibilidade de produção de saber, de prazer, de discursos, etc. Segundo o autor, o poder não estaria restrito ao aspecto negativo, mas, sim, como ele próprio diz, sobre o poder: “deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.” (p. 8). Na análise entre elementos constitutivos da vida contemporânea, em Foucault, percebe-se que a tecnologia do sexo (produções discursivas criadas no século XIX dentro do campo de saber denominado: sciencia sexualis), seriam os chamados “dispositivos de controles” como, por exemplo, a histerização do corpo da mulher (histeria termo oriundo de hister = útero); a pedagogização do sexo da criança; a psiquiatria do prazer perverso, que, dentre outras, teriam como função colocar do indivíduo em um esquadrinhamento de utilidade e de valor. Deste modo, as normas de desses dispositivos estariam a serviço do esquadrinhamento de condutas. E, as normas de desses dispositivos estariam a serviço do esquadrinhamento de condutas. Neste sentido, ocorria o desdobramento de um discurso inicialmente vertical, que depois se difundiria como capilaridades por meio dos discursos cotidianos para uma melhor economia. Nesse desvelar das sexualidades possíveis, as mesmas tecnologias reveladoras foram criadas para esta vigilância. No século XVI, essas tecnologias já haviam iniciado sua criação com o Sistema Bethaniano, gerando o chamado sistema Panópticon, que será retomado mais a frente. A necessidade de se criar essas tecnologias pode se entendida quando se contextualiza a época: elas poderiam garantir a procriação para abastecer o período fabril e suas sexualidades. Nesse sentido, toda e qualquer informação sobre a sexualidade da mão de obra tornou-se importante para garantir operários aptos para o trabalho árduo, em detrimento de seu prazer sexual, que deveria ficar em segundo plano. Além disso, as tecnologias viabilizavam a eliminação das sexualidades desviantes e as encaminhava para áreas médicas. Afinal, toda energia que não fosse de caráter útil, estaria automaticamente fadada a ser considerada patologia,
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classificando-as, era mais fácil de obter um controle sobre estas, e assim, conseqüentemente extrair maior utilidade. Quando Foucault (1988), diz que: “A sociedade moderna é perversa, não a despeito de seu puritanismo ou como reação à sua hipocrisia: é perversa real e diretamente. (p.55). Ele quer dizer que, as múltiplas sexualidades implantadas nos corpos, se intensificando e se concretizando em sua instalação produziu uma sociedade de regras de poderes e prazeres. Deste modo, segundo o autor, “Prazer e poder não se anulam” (p.56), e na sociedade que se apresenta, sobretudo a partir do século XIX, várias foram às formas de se produzir desejos, e cada vez mais tais produções se antecipam aos sujeitos e criam novas formas de querer, de desejar, ou seja, maneiras que se utilizam de um jogo estratégico refinado e complexo para a manutenção dos controles e vigilâncias. Neste sentido, a sociedade definitivamente não reprimi as sexualidades com o uso de um poder vertical, ao contrário, ela ramifica os discursos e segue alimentando uma explosão dos desejos. A estrutura dos alojamentos: Novíssimo e Novo faz lembrar a forma arquitetônica do Panópticon do século XIX, descrita por Jeremy Bentham (jurista inglês) como (um sistema arquitetônico de vigilância e controle disciplinar). Esta forma arquitetônica também faz parte dos estudos que Foucault (2007) a respeito do modelo do panoptismo, apontado como sendo uma estrutura analítica do poder e da produção disciplinar de corpos dóceis. No panoptismo, como aponta Foucault (2011) “a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer” (p.104). Contudo, é importante frisar que corpos dóceis buscados neste sistema não significam corpos submissos, mas sim flexíveis e possíveis de serem controlados por um jogo de poder constituído como uma ação sobre ações. Assim, em seu trabalho, um dos interesses de Foucault foi o de buscar entender como o poder é capaz de produzir saberes, como nos articulamos frente a este poder, e como fazemos uso deste? No caso do presente artigo, temos que o alojamento Novíssimo (Masculino) é uma verdadeira engrenagem de capilaridades subjetivas, pois se trata de um prédio retangular, com portarias envidraçadas onde porteiros se situam numa bancada central a fim de “vigiar” os estudantes que entram nos edifícios, nos apartamentos, não existem quartos com portas, há apenas um grande cômodo dividido em dois por
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um guarda roupa de seis portas, o que facilita a vigilância. E, ao adentrar nos mesmos, o estudante depara-se com corredores largos e extensos que conduzem a quatro blocos de apartamentos. A estrutura física do alojamento faz também lembrar cortiços em sua disposição interna, pois a arquitetura proporciona uma fácil vigilância para o centro do prédio, onde se localiza a lavanderia com tanques. Grande parte dos estudantes lavam a própria roupa ali, o que torna o pátio central do alojamento Novíssimo um local de bate-papo, fofocas, zoeiras e de socialização dos moradores. No final de semana, o fluxo de encontro é mais intenso, bem como o de clima de festa com músicas de diferentes estilos e em diferentes quartos. São, portanto, diversos modos de habitar os quartos de alojamento que, tantas vezes, fogem à vigilância dos porteiros por mais que a arquitetura propicie o acompanhar do movimento dos discentes. Todavia, outro tipo de vigilância se faz presente no cotidiano dos alojamentos e esta se refere aos modos como os próprios estudantes se policiam, definindo o que é normal e o que é patológico para as lógicas moleculares de convívio que são trançadas na rotina vivencial das moradias. E um dos sistemas de vigilância que acredito se exercer de modo significativo é aquele sobre as sexualidades, em especial dos estudantes gays. E penso que os quartos habitados exclusivamente por estudantes de orientação homossexual – e tidos como sendo “depósitos de gays” – seriam ainda mais propícios à vigilância dos quartos vizinhos. Diante disso, entendo que a expressão “as paredes tem ouvidos” definitivamente faz sentido nos alojamentos universitários. Ou seja, os alojamentos são espaços de produção da “expiação” do cotidiano, e obviamente das sexualidades, desejos, comportamentos, excentricidades, movimentações incomuns e “desvios”..., sendo também habitados por olhares e pensares vigilantes que visam, muitas vezes, neutralizar o efeito desordenador de tudo o que seja considerado como prejuízo a uma “boa convivência”. Tal vigilância tanto parte dos olhos e ouvidos alheios aos estudantes, mas, também do convívio entre os próprios discentes, capturando todos nas tessituras de produções cotidianas que fazem jus ao que Foucault (2007) qualificou de “sociedade disciplinar”. Seguem abaixo, portanto, imagens dos alojamentos: Novíssimo e Novo a fim de ilustrar a descrição feita dos mesmos:
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Fotos 4 e 5: Alojamentos da Universidade Federal de Viçosa-MG: Novíssimo-Masculino e NovoFeminino. Ano: 2012. Fonte: Museu Histórico da UFV.
Fotos 6 e 7: Interior do Alojamento: Novíssimo-Masculino com destaque para o quarto estigmatizado como “depósito de gays”, que, é um dos quartos onde todos os moradores são gays. Ano: 2009. Fonte: Museu Histórico da UFV.
Assim, apesar de os porteiros serem oficialmente responsáveis pelas funções de vigilância e disciplinamento, esses poderes a eles conferidos pouco interferem nas relações de tensionamentos emergentes nos agenciamentos cotidianos dentro dos quartos e entre quartos vizinhos. O porteiro, para muitos, acaba sendo visto como mera “figura decorativa”, no sentido de que a verdadeira vigilância se encontrava no interior dos alojamentos: aquela exercida no convívio entre os moradores. Na convivência entre os moradores, configuram-se relações de poder que estabelecem, igualmente, relações de verdade, Estas últimas, estabilizam práticas de convívio que tendem a invisibilizar e ou discriminar o que não se encaixa dentro do modelo padrão estabelecido: nesse sentido as sexualidades homossexuais nos alojamentos se tornam alvo privilegiado das mais diferentes práticas discriminatórias e segregacionistas, em minha época, tanto eu quanto outros colegas do alojamento
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Novíssimo passamos pela experiência de sermos expulsos do quarto por ser homossexual. E, apesar de não conhecer as dinâmicas que ocorrem no alojamento feminino (Novo), creio que também pode haver práticas segregacionistas neste alojamento. E, não bastasse a dificuldade de ser aceito quando se é gay, o calouro quando entra em um quarto, encontra um ambiente de provações que de certo modo o força a muita das vezes negar-se enquanto um sujeito homossexual. Aliás, quase seis anos se passaram desde minha expulsão do quarto 421 e ainda ouço20 que há calouros que precisam recorrer a Divisão de Assistência Estudantil para garantir sua vaga no alojamento. O que me leva a questionar que problemáticas se perpetuam e se reinventam naqueles espaços? Que dinâmicas cotidianas tem se gestado naqueles ambientes? Como se apresentam possíveis práticas de resistências e transgressões? Enfim, os alojamentos são espaços que nos passa uma falsa imagem de pluralidade, pois, de fato, aqueles são espaços que acolhem diferentes sujeitos de diferentes regiões do Brasil, de diferentes crenças religiosas, de diferentes cursos e ideologias, porém, nem todas as singularidades são bem vindas e principalmente a homossexual é tratada como uma ameaça em potencial, sobretudo para a heterossexualidade dominante nestes espaços. Os jogos de poderes que permeiam os quartos se produzem enquanto tramas discursivas excludentes, e, nenhuma subjetividade existente nessas tramas é tão segregada enquanto a homossexual nos alojamentos universitários.
Como membro do projeto: A invenção da vida discente nas moradias estudantis da Universidade Federal de Viçosa/MG, sob coordenação do professor/pesquisador: Eduardo Simonini Lopes – Departamento de Educação - DPE/UFV, tenho acompanhado algumas entrevistas com moradores dos alojamentos: Novo e Novíssimo. Tal pesquisa serviu de inspiração para a construção do meu projeto de doutorado, sobretudo, após minha inserção no grupo de pesquisa (Cotidianos em Devir), também coordenado pelo professor Eduardo. 20
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Considerações finais Na verdade a relação da Universidade com seus alojamentos desde a época em que fui morador, sempre me pareceu muito burocrática, sendo que os problemas que emergem no interior desses ambientes só são vistos como importantes no momento em que podem “ferir” a rotina ufeviana de viver, de se apresentar, e foi o que ocorreu quando fui expulso do meu quarto por ser homossexual, ou seja, somente quando a tranqüilidade no campus é ameaçada por polêmicas que podem sair do controle da UFV, é que está busca rapidamente resolver, logo, buscando trazer a “normalidade” preservada. Neste sentido, a instituição não se dedica ao que tudo indica, até hoje, pensar ações que possam ajudar a combater segregações existentes no interior dos alojamentos. E, justamente por serem ambientes ricos de análises é que acredito que este artigo, que se trata apenas de um primeiro ensaio reflexivo irá amadurecer com minha inserção no doutorado e, futuramente, com a devolução da tese para a UFV, esta pode quem sabe vir a ser utilizada pela Universidade como embasamento nas ações de assistência estudantil, pois, acredito que a tese trará muitas informações importantes para a desinvibilização das práticas de viver, maneiras de habitar os alojamentos, pouco percebidas e problematizadas na UFV.
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Artigo aceito em 20/05/2013.
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Problematizando o direito homoafetivo à adoção
Andréa de Lima Costa do Carmo 21 Maria de Fátima Lopes22 Resumo: Este estudo objetivou analisar alguns artigos, textos e dissertações já escritos em torno do assunto homossexualidade e adoção, para elaboração de meu projeto de pesquisa que tem como tema a adoção por casais homossexuais e suas reivindicações ao acesso a este direito. Pretendo, com a pesquisa, analisar e identificar através de observações e entrevistas, quais as percepções de família pelas pessoas envolvidas e quais as singularidades desse novo “arranjo familiar” e ainda, através de análise de sentenças judiciais, onde houve o deferimento ou não do pedido de adoção, buscar compreender os fundamentos e especificidades que objetivou as decisões e quais são os quesitos observados pelo judiciário para se conceder ou negar a adoção. Existiria um “padrão normativo” de comportamento, classe social e raça que privilegiaria o processo de adoção e o aceite social como entidade familiar? Palavras-chave: Família; Adoção; Gênero; Sexualidade.
Abstract: This study aimed to analyze some articles, texts and essays ever written about the subject
homosexuality and adoption, to developing my research project whose theme is the adoption by homosexual couples and their demands for access to this right. I intend to research, analyze and through observations and interviews, the perceptions of families of the people involved and what the singularities of this new "family arrangement" and, through analysis of judicial rulings where there was the acceptance or not of adoption application, seeking to understand the fundamentals and specifics that objective decisions and what are the requirements that are observed by the judiciary to grant or deny the adoption. There would be a "normative standard" of behavior, social class and race that would favor the adoption process and the social acceptance as a family? Keywords: Family; Adoption; Gender; Sexuality.
Mestranda em Economia Doméstica pelo Programa de Pós-graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa – UFV. 22 Doutora em Antropologia Social (UFRJ) e Professora Associada do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa – UFV. 21
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Introdução
C
omeço minha justificativa de escolha do tema de pesquisa pedindo que os leitores observem a imagem abaixo, talvez ela por si só esclareça que a mudança de papéis sociais de pai/mãe para dois pais ou duas mães vêm
alterar normas e valores já assimilados de um modelo de hegemonia familiar. Assim entendo necessárias discussões e pesquisas problematizando em como se dão, de fato e de Direito, o acesso à adoção. Existe, na atualidade, uma “efervescência” de discussões e pesquisas (bio e social) em torno do tema “família homoafetiva”, o que consequentemente tem levado à busca de regulamentações pelo Estado de direitos como: o de união civil, aos direitos sucessórios e ao direito de adotar, etc. A aprovação por unanimidade, no dia 05 de maio de 2011, da Ação Direta Inconstitucional-ADI 4277/2011, onde se reconhece, no Brasil, a união civil entre duas pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar” vem reforçar a necessidade de se discutir e problematizar como se dará o direito de adoção dentro desse novo modelo familiar.
Figura 1 – União homoafetiva e novos arranjos familiares
Passos (2005) fala um pouco da decadência do sistema patriarcal e das novas demandas relacionais que vêm surgindo, embora ele ainda afirme que este modelo ainda se mantem em grande medida no Brasil.
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Embora não possamos falar em uma total falência do sistema patriarcal, é preciso reconhecer que suas leis e noções internas não dão mais conta das demandas relacionais criadas nas sociedades liberais e democráticas, onde os cidadãos criam e recriam mais livremente suas experiências afetivas. Além disso, contam com recursos técnicos da medicina reprodutiva para escolher como desejam conceber seus filhos. Neste sentido, o declínio do patriarcado tem se mostrado evidente em muitos contextos relacionais, dos quais a família é o mais visível, mas ele permanece ainda com certa força no imaginário social de sociedades ainda frágeis do ponto de vista do favorecimento da expressão livre de seus cidadãos. Isto se verifica não só nas manifestações afetivas, mas na forma como é conduzida, com frequência, a política das relações entre gêneros. Vivemos, assim, muitas contradições: na prática acompanhamos a diversificação dos modelos familiares, mas em tese continuamos, em grande medida, a considerá-los a partir de concepções que se tornam cada vez mais obsoletas. Anteriormente, ressaltei a impossibilidade de seguirmos adotando as mesmas referências das famílias patriarcais nas distintas configurações que surgem na sociedade atual. Evidencio agora alguns significados da manutenção de uma ordem obsoleta na formação dos novos grupos familiares e, em certa medida, no processo de subjetivação dos filhos. É preciso assinalar, no entanto, que, mesmo em declínio, algumas leis do sistema patriarcal brasileiro ainda têm grande repercussão em nossa sociedade, em particular nos pequenos grupos sociais. A ideia do homem provedor e da mulher responsável pela educação dos filhos, por exemplo, ainda se mantém em grande medida no Brasil. Passos (2005).
Em uma análise de alguns conceitos de família no decorrer da história, especificamente na história brasileira, percebe-se que não existe um conceito único para o termo família, mas que na contemporaneidade, fala-se mais do que nunca em “famílias”. Segundo alguns autores o conceito de família é plural, está em constante transformação, assumindo formas diversas e não mais se restringindo apenas ao modelo tradicional familiar. Prevalece hoje um modelo mais preocupado com os sujeitos, em que a família é também local de desenvolvimento pessoal. Para Nathalie Itaboraí (2005) a família é o espaço no qual, em princípio, a disponibilidade de amor gratuito e incondicional alimenta a construção/descoberta do eu nas diferentes etapas da vida, cabendo-lhe, portanto, como função central e quase exclusiva nos dias de hoje a produção identitária. Sierra (2011) nos traz reflexões interessantes sobre o que acontece na atualidade, pois a discussão de tal assunto na mídia, no âmbito jurídico, nas manifestações populares e nos meios sociais nos traz a urgência de também discuti-lo na academia. “Estamos no meio de uma revolução dos relacionamentos íntimos e pessoais. Nenhuma mudança é mais expressiva do que as mudanças que estão para ocorrer na sexualidade, nas relações, na família e no casamento”.
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A autora acima ressalta ainda o quanto a sexualidade é algo íntimo e pessoal do casal, não devendo ser relevante em outros setores da vida como o profissional. “No amor confluente, a realização do processo sexual é central para os parceiros. Aliás, os relacionamentos não se limitam a heterossexualidade, pois a sexualidade é negociada por dentro do relacionamento”. Ela frisa que o problema vai muito além da aceitação social. A demanda por direitos iguais para casais homossexuais e heterossexuais encontra resistência pelo fato de que a existência de gays e lésbicas desafia as estruturas nas quais a sociedade foi construída, como a repressão sexual e a heterossexualidade compulsória. A família é o lugar onde ocorre a reprodução biológica e social. Atualmente com a equiparação de direitos e deveres de casais heterossexuais e homossexuais e o reconhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça como Entidade Familiar, a união civil homoafetiva passa a ser regida pelas mesmas regras que se aplicam à união dos casais heterossexuais, conforme previsão do Código Civil. Porém o fato dos homossexuais estarem conquistando seus direitos não diminui a discriminação e o preconceito ainda existente na sociedade. Em minha pesquisa optarei por usar o termo brasileiro “família homoafetiva”, muito usado pela desembargadora Maria Berenice Dias, que seria a diferenciação dos termos homossexual onde pressupõe a ênfase no casal de mesmo sexo; homoerótico que pressupõe a ênfase em zonas erógenas do corpo e homoafetiva seria uma relação que não se localiza apenas no sexo ou em zonas erógenas, mas no amor e na afetividade. Na contemporaneidade este é o termo mais usado para remeter a este modelo familiar. O tema é complexo e remete a tensões dentro da sociedade e da família tradicional brasileira, seguidora dos valores cristãos; um dos entraves para a regulamentação da família homoafetiva. Porém a realidade está aí presente, queiram ou não, principalmente nos grandes centros urbanos. É um direito que lhes é assegurado pela Constituição Federal, se partirmos do princípio que seus pilares são, entre outros, o direito à dignidade, à liberdade e principalmente, o direito à igualdade. Talvez a principal mudança seja a mudança dos papéis de pai/mãe para dois pais ou duas mães vem alterar todas as normas e valores já assimilados de família hegemônica.
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Como o homossexual historicamente não constituiu família, isso o deixa em desvantagem, porque não disporiam de filhos, enfim, os vínculos familiares dos quais se podem esperar apoio. A ausência de filhos costuma gerar em alguns sentimentos de falta de “continuidade”, muitas vezes acompanhado por fortes sentimentos de frustração. Para Juliet Mitchell (1972) a legalização da homossexualidade, que é uma forma de sexualidade não reprodutiva, deve ser defendida pelo motivo de que dissociar a sexualidade da reprodução significa libertar a sexualidade de sua alienação ou na reprodução não desejada e, para esta autora, as campanhas reacionárias contra a homossexualidade devem ser combatidas sem hesitação. Miskolci (2007) em seu artigo pânicos morais e controle social, fala da resistência que todos nós temos ao “novo”, que pode ser visto como ameaça a ordem. Analiso a polêmica por meio do mecanismo de resistência e controle da transformação societária conhecida como pânicos morais, aqueles que emergem a partir do medo social com relação às mudanças, especialmente as percebidas como repentinas e, talvez por isso mesmo, ameaçadoras. No caso do casamento gay é necessário reconstituir historicamente o temor com relação a gays e lésbicas que marca a rejeição deste direito que há algumas décadas pareceria um puro e simples paradoxo já que a identidade gay e o casamento eram visto como opostos. Para além da retórica do renascimento dos valores morais do passado, o que se constata é a tendência contemporânea a pensar a sociedade como se estivesse sob ameaça constante. Vivemos em uma sociedade de risco, ou seja, marcada pela percepção de que a modernidade aumenta a exposição da coletividade a perigos. Miskolci (2007, pag.103).
Segundo este autor na sociedade de risco, um pânico moral como o suscitado pelas relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo revela que as fronteiras morais são renegociadas na moeda do controle social. A luta pela parceria civil entre pessoas do mesmo sexo é uma causa com grande poder de mobilização, mas também uma forma de “domesticação” das demandas de um movimento social que se depara com uma atmosfera de intolerância crescente. Para Miskolci o casamento gay é um bom exemplo do processo citado. Foi diante de um pânico sexual gerado pelo HIV que este se estabeleceu. A família nuclear burguesa padrão jamais foi um modelo social generalizado e, antes de mais nada, sempre foi um padrão acessível apenas às classes mais abastadas. Os primeiros países a concederem a parceria civil a pessoas do mesmo sexo o fizeram na década de 1980, sob a justificativa de que esse direito incentivaria a constituição de relações estáveis e coibiria o avanço da
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epidemia de AIDS. Além do enquadramento das relações a um modelo, algo por si só questionável, a parceria civil se tornou o novo alvo daqueles que se opõem à extensão da equidade de direitos a gays e lésbicas. Miskolci (2007, pag.108).
Quando pensamos em relação homoafetiva logo remetemo-nos a uma relação igualitária, porém o modelo hierárquico construído em torno do feminino/masculino não se dissolve totalmente nessas relações. A autora Maria Luiza Heilborn (2004) deixa explícito em seu livro que a relação homo tem homologia com o modelo relação hetero, e que, embora sejam os pares do mesmo sexo ainda existirá uma hierarquização dentro dessa relação. A autora afirma ainda que o casal homo feminino estaria mais próximo do que se pode definir como “casal igualitário”. O casal igualitário, pelos valores que encarna, simetria nas atribuições domésticas e ênfase no cuidado da relação e de seus humores, é atualizado de maneira diferente pelos pares heterossexuais, gays e lésbicas. Tal conjugalidade celebra, bem ao gosto de um ethos originado da cultura dos anos 1960/70 e do feminismo, uma feminização da relação. A parceria marcada pelo ideal de simetria acaba por torna-se uma espécie de instituição feminina, se confrontada ao casal tradicional hierarquicamente constituído. O casal moderno implica, em termos lógicos, uma maior proximidade com o casal de mulheres. Por um lado os gays são atraídos para o padrão heterossexual, visto que existe a polaridade ativo/passivo; por outro, como são mais simétricos na administração burocrática do lar do que o casal heterossexual, vêem-se capturados pelo modelo do casal feminino. As mulheres homossexuais levariam ao extremo a conjugalidade igualitária, sendo que isso parece implicar uma menor eroticidade da relação. Heilborn (2004, pag.189).
Embora as relações familiares aconteçam de fato, independente de serem regulamentadas, entre vários campos de estudo, o campo do Direito, o qual normatiza e regulamenta as relações familiares e em se tratando de casos de pedidos de adoção o Direito se pauta principalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA não traz de forma expressa a possibilidade de adoção por casal homossexual, mas também não veda, ele fala apenas de “pessoas”, nos levando a crer que, se um casal possui todos os requisitos para que a adoção seja deferida e que seja para o interesse e benefício da criança, independente de sua condição sexual, teria um casal homo direito de adotar, sem que haja alteração ou legislação específica para tal. O ECA será considerado uma verdadeira revolução na forma de conceder e tratar a infância, ele alarga o universo dos adotáveis e adotandos. Afirmando, portanto, o direito do indivíduo crescer pertencendo a uma família, conforme já havia exposto na Constituição de 1988, no artigo 227. Uma importante mudança trazida pelo ECA seria a concepção de família clássica, onde se
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privilegiava o interesse da família para uma concepção moderna, na qual se privilegia sob toda e qualquer circunstância o interesse da criança. Eiterer et al (2011, pag. 98/99).
A sociedade ainda vê com “olhos desconfiados” duas mães lésbicas cuidarem de um filho e quando se trata de pais gays criando um bebê a situação se agrava ainda mais. Existem pessoas que acreditam que ainda é melhor a uma criança viver em um abrigo do que em uma “família homoafetiva”, porém o poder judiciário vem deferindo pedidos de adoção em razão da crença de que a maior necessidade da criança ainda é a família; família que ofereça uma rede de apoio e afetividade para que ela se desenvolva com plenitude. A afirmação que a família é o melhor lugar para o desenvolvimento da criança aplicava-se apenas a um determinado tipo de família tido como ideal. Essa instituição familiar “ideal”, marcada por lugares determinados, possuía algumas características invariáveis como patriarcalismo, heterossexualidade e monogamia, que ao longo da história foram se configurando em um modelo hegemônico, uma importante instituição estatal. Eiterer et al (2011, pag.25).
Amaral (2003) diz que a respeito da constituição de laços familiares em linha descendente, apesar de a adoção poder ser pleiteada por uma pessoa homossexual, teria de fazê-la sozinha (e jamais como “casal”), isto é, a adoção dar-se-ia apenas por um dos parceiros, fragilizando a situação do adotado, que teria direitos somente em relação àquele que o adotou e, em via inversa, o parceiro que não participa do processo não teria direitos ou deveres em relação ao adotado.
Há também a
possibilidade de negativa do pedido de adoção pelo entendimento, ainda corrente, de que homossexuais não oferecem ambiente familiar apropriado. É esse mesmo raciocínio – equiparando a homossexualidade com a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes – que pode fundamentar eventual decisão pela perda do poder familiar por parte do pai ou mãe homossexual em relação a filhos havidos em ligações heterossexuais. A forma como se vivencia o sexo, o sentido e o significado de sexo/ sexualidade/prazer/erotismo é dinâmico e guarda homologia com o contexto histórico social em que é vivido. No império grego e romano era homossexualidade “exaltada” como algo dado somente aos intelectuais, em contrapartida, até poucas décadas, em nossa sociedade contemporânea, era tida como doença, desvio, distúrbio que precisava de tratamento, em outras épocas, já foi punida e em alguns países
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criminalizada. Essa não é uma questão nova, embora a efervescência em torno de luta por direitos está se dando na atualidade. Enfim, o homossexual ainda é visto por algumas pessoas como o pária da família, o escondido, o rejeitado, o pervertido, o que vive no “submundo” do sexo, e jamais se cogita a possibilidade de que por um casal homossexual que não se enquadre perfeitamente nos padrões de normalidade socialmente impostos, vir a formar uma família envolvendo crianças. Antes do século XIX a “homossexualidade” existia, mas o/a homossexual não. Embora a sexualidade tenha existido em todos os tipos de sociedade, em todos os tempos, e tenha sido, sob diversas formas, aceita ou rejeitada, como parte dos costumes e dos hábitos sociais dessas sociedades, somente a partir do século XIX a nas sociedades industrializadas ocidentais, é que se desenvolveu uma categoria homossexual distintiva e uma identidade a ela associada. Weeks (2001, pag. 65).
Faria (2008) ressalta que a família formada por pessoas do mesmo sexo, não se respalda na procriação e sim nas relações de amor e afeto, podendo os casais escolher se querem ou não ter filhos. Do ponto de vista jurídico, estas relações familiares vêm conseguindo amparo legal, mas ainda que aceitas, são taxadas como “anormais” pela maioria da sociedade. Através das entrevistas feitas pela autora Carla Beatriz Faria observa-se que o casal homoafetivo quase sempre se apresenta como amigos (as) que dividem a mesma casa, a fim resguardarem a si mesmos e aos outros, ressaltando que os casais entrevistados se sentiam confortáveis em falar da relação para algumas pessoas, mas na maioria das vezes não se assumiam publicamente e até acreditam que um beijo em público seria uma agressão aos que não apoiam a relação, mostrando assim a conformidade como sendo uma família “não normal”. Segundo Oliveira (2004) os homossexuais sempre foram pais capazes. A única diferença é que até aos anos 70, mais ou menos estes, eles mantinham relações heterossexuais. Esta autora quer, com isto dizer, que até essa época os homossexuais eram casados com pessoas do sexo oposto, para assim esconderem também a sua orientação sexual, porém essas pessoas já eram bons pais. Embora esta autora erre ao “generalizar” quando fala de bons pais e boas mães, a sua ideia principal é tentar mostrar ao leitor que a discussão em torno da desqualificação do homossexual, para que seja bom pai ou boa mãe, por ter se assumido publicamente é descabida. Uma polêmica social e que poderia servir de entrave para que se houvesse facilidade na aceitação de adoções por homossexuais seria a dúvida se a condição
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sexual dos pais influenciaria na escolha de relacionamentos dos filhos. O argumento das pessoas que se opõem à adoção de crianças por homossexuais é de que alguns especialistas ligados à área da psiquiatria e da psicanálise alertariam para o perigo da identificação das crianças com o modelo dos pais, o que as levaria, por lealdade afetiva, a se tornarem também homossexuais. Parte da sociedade ainda acredita que se os pais são homossexuais, grande é a possibilidade de os filhos também o serem. Ainda não sabemos dizer o que determina a preferência sexual de uma pessoa, de forma que, seria difícil afirmar se a condição sexual dos pais influenciaria nas escolhas dos filhos. O ambiente onde a criança está inserida (família, escola, grupos, etc.), interfere e influencia, mesmo que indiretamente, no desenvolvimento de sua personalidade, pois a família transmite cultura e forma “sujeitos de valores”, porém se existe uma discussão pela igualdade de direitos entre heterossexuais e homossexuais e uma busca pela desnaturalização da heteronormatividade, seria discriminatório excluir crianças destas famílias pelos riscos destas se identificarem com seus pais/mães? A autora Zamberlam (2001) problematiza as relações familiares homoafetivas e em seu texto discorre sobre a história da família e sua importância para o desenvolvimento de um indivíduo como pessoa. Citando Ariès (1981) em seu já clássico estudo sobre como a criança, antigamente era vista como um adulto em miniatura, não sendo, inclusive, considerado um membro importante da família e atualmente, em contrapartida, se tornou o “centro das atenções”. O bem-estar dos pequenos vai além das “paredes invisíveis” do lar, se tornando uma preocupação do Estado, podemos facilmente constatar isso se observamos diversas escolas especializadas em educação infantil, pedagogos, psicólogos, psicopedagogos, pediatras, conselheiros tutelares, assistentes sociais, enfim, um conjunto de profissionais especializados. Esta autora acredita que na relação pais e filhos, em uma família homoafetiva, pode haver complicações tendo em vista que seria uma relação ainda “imersa em segredos”, pelas discriminações sociais e pelas confusões de papéis paternos e maternos, mas acredita que o número de filhos homossexuais nestas famílias nãos seria maior que nas heterossexuais. Porém se nos atentarmos a este ponto de vista da autora podemos concluir que a relação só estaria “imersa em segredos” no caso de
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pais/mães que não se auto-aceitam e não lidam com os possíveis conflitos que poderão advir com clareza e naturalidade (conflitos existentes em quaisquer modelos familiares). Em contrapartida Costa (2003) diz que se uma criança sofre maus tratos no seio de sua família biológica, evidentemente que sua adoção, quer seja por parte de casal homossexual ou heterossexual ou mesmo por pessoa solteira, onde seja haja cuidado, amor e assistência, só apresentará vantagens. Segundo ele, porque se a afirmação de que os filhos imitam os pais fosse uma verdade inexorável, como se explica que crianças, geradas, criadas e educadas por casais heterossexuais, se descubram e se proclamem mais tarde homossexuais? No campo de estudo por mim eleito, observa-se que os operadores do poder judiciário ainda acreditam que a figura feminina seria a mais adequada, com raras exceções, para cuidar dos filhos, tanto que poderemos facilmente constatar, através de consulta a processos judiciais, que na maioria das vezes as mães ficam com a guarda dos filhos nas separações judiciais. Desconstruir essas “verdades” sobre os papéis definidos para o pai e a mãe não é tarefa fácil, a visão do pai como bom, forte, honrado, viril e provedor e da mãe como cuidadora, afável e protetora é algo muito enraizado e muitas vezes os interesses particulares da família esbarram com as normas socialmente aceitáveis como modelo de família. Queiroz (2003), diz que no início da vida o bebê tem uma relação muito forte com a mãe, como se fosse uma extensão desta, a inserção do pai na vida do filho se dá gradativamente, mas o homem vem se engajando em ter um papel de mais completude em relação aos filhos. Esta autora questiona se seria “sexismo” por parte dos juízes, quase sempre dar a guarda às mães, tendo em vista que na contemporaneidade, pais e mães quando divorciados enfrentam problemas parecidos como falta tempo, dinheiro, cuidados domésticos, etc. Assim, ele acredita que pais gays sofrem dupla discriminação, por serem homens e por serem pais, assim têm chances mínimas de conseguir a guarda dos filhos, pois perante os olhos de alguns “poderiam atacar seus filhos já que são vistos como seres obcecados por sexo”, “expor seus filhos a situações ridículas” ou “influenciar na sua orientação sexual”. Carmem Lúcia Eiterer et al, em seu livro Preconceito contra a filiação adotiva ressalta a importância do amor altruísta entre adotantes e adotados, fala que é preciso
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que ambos “se adotem” de fato e não tão somente convivam em um mesmo ambiente doméstico. Como gesto de amor, a maternidade/paternidade (independente de por qual venha a se constituir) implica acolher e aceitar o outro (esse desconhecido) na sua diversidade, de cor, de gênero, de idade, de origem, incorporando-o a seu grupo familiar, procurando construir com ele uma convivência de respeito e afeto. Eiterer et al (2011, pag. 100).
Outro importante friso de Eiterer et al (2011) seria o preconceito que gira em torno do ato da adoção, ou especificamente da discriminação do “filho adotivo”. Muitas pessoas tendem a perguntar aos pais de um filho adotivo: mas ele não é seu filho de verdade? Ou ainda se o filho é legítimo. Lembramos que, no exercício da sua função, o Magistrado detém um tipo de poder digno de nota. O poder de criar, de instaurar uma realidade. Sua palavra gera a realidade que nomeia. Quando o Juiz declara que duas pessoas, a partir deste momento, estão casadas, elas se tornam casadas no mesmo momento em que este pronunciamento se dá. Seu ato cria a condição mudando o estado civil dessas pessoas, por força da autoridade do Juiz. Do mesmo modo, a adoção constitui uma nova realidade por força da palavra do Juiz. A criança torna-se filho pelo ato do Magistrado. Eiterer et al (2011, pag. 87).
Alguns autores defendem que a heterossexualidade também uma forma e uma possibilidade, embora não seja única, enxergado a sexualidade como identidades socioculturais, histórica e socialmente construídas, que condicionam diferentes maneiras de viver, sentir e se relacionar. Desse modo, o arcabouço social, ainda impede a formação de entidades familiares por homossexuais impondo-lhes uma “esterilidade afetiva” e dificultando a criação de uma rede de suportes e cuidados seria parcial e injusto. Jeffrey Weeks (2001) argumenta que, embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é muito mais do que simplesmente o corpo. A sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso corpo físico. Para ele, a sexualidade é, entretanto, além de uma preocupação individual, uma questão claramente crítica e política, merecendo, portanto, uma investigação e análise histórica e sociológica cuidadosas. Este autor lança questões reflexivas como por que a dominação masculina é tão endêmica na cultura? Por que a sexualidade feminina é vista tão frequentemente como subsidiária da sexualidade do homem? E por que nossa cultura celebra a heterossexualidade e discrimina a homossexualidade?
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1- Análise de Imagem:
Figura 2 – O professor Angelo Pereira e seu filho adotivo Pedro Paulo
Na imagem acima vemos: Angelo Pereira, ex-aluno da UFV, professor, psicanalista, homossexual assumido e seu filho adotivo Pedro Paulo, atualmente com aproximados 13 anos de idade. Em seu livro Retrato em Branco e Preto, Pereira (2002) afirma que, numa visita a um orfanato, “teve a certeza” de que o menino Pedro Paulo, ainda com 01 ano e três meses, seria seu filho. Relata ainda as “dificuldades e alegrias” de ser um pai solteiro que passou por todos os trâmites de adoção, criando uma família pouco convencional e sofrendo preconceitos não só pela sua condição sexual, mas também por ter adotado uma criança de cor diferente da sua, como podemos observar na imagem acima. Analisando comentários localizados na contracapa deste livro, me atentei para este: “sem fazer alarde e sem precisar recorrer a teorias complicadas Angelo aborda aspectos centrais do estilo de vida e dos desafios da nossa época, a forma com que Angelo lida com seu papel de pai solteiro e homossexual, resolvendo implicações e problemas que surgem, aliás, segundo o seu livro, problemas estes não muito diferentes dos advindos de famílias heterossexuais”, no comentário a preocupação, entrelinhas, da (não) especificidade desse tipo de adoção. Siro Darlan, Juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca do Rio de
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Janeiro/RJ, faz a apresentação do livro de Pereira (2002), deixando explícito sua opinião favorável a este tipo de adoção e em alguns momentos sendo até um tanto poético ao citar o adotante como “anjo” e se referindo a instituição de abrigo como local de “pobreza e abandono”: Pedro Paulo era um menino triste que vivia no Educandário Romão de Matos Duarte, antiga Casa da Roda, que abriga quase duas centenas de crianças que como ele haviam sido abandonadas por suas famílias. Famílias? Cada dia de visitas era um dia de angústias e falsas expectativas. Os adultos o seguravam no colo, achavam-no bonitinho, engraçadinho e logo iam embora deixando um rastro de frustração, logo substituída por uma tristeza infinita que só desfazia com o carinho das freiras que o embalavam até dormir. Num dia de visitas, entrou no educandário um anjo que olhou o menino e disse: “Não fiques mais triste que logo terás uma família e sua tristeza dará lugar a uma luminosidade que não mais se apagará. Terás uma referência e um nome de família que te permitirá exercer na sua plenitude sua cidadania e serás muito amado”. Nesse instante secaram as lágrimas e um sorriso abriu em seus lábios. Pedro Paulo finalmente teria uma família após dois anos de institucionalização e abandono. Angelo desafiou o preconceito e fez prevalecer à letra da lei que diz: “Podem adotar os maiores de vinte e um anos, independente de estado civil”. E Angelo se tornou pai de Pedro Paulo e este, finalmente, foi liberto do estado de prisioneiro de uma entidade de abrigo em razão do abandono e da pobreza e ganhou uma família. Bendito o anjo que salvou Pedro de seu estado de sofrimento e agora dá a todos os leitores o testemunho de um amor que liberta através da adoção. Hoje Pedro tem um pai que o ama, é sua referência, sua família, que lhe deu um nome. A adoção tem sido um caminho de valorização da criança como ser humano em processo de desenvolvimento, e a grande alternativa para aquelas que são abandonadas por seus pais biológicos. Vida longa a Angelo e Pedro Paulo e que este livro seja um estímulo a novas adoções e novas uniões que levem à felicidade das pessoas que se amam, sejam por gerarem seus filhos, seja por adotarem-nos. Oliveira, Siro Darlan-Juiz da primeira Vara da infância e juventude do Estado do Rio de Janeiro (2002, pag.9).
Considerações Finais Não tenho, com essa pesquisa, a pretensão de, hierarquicamente, eleger um modelo familiar como melhor ou pior, apenas tento “desnaturalizar” um único modelo conjugal e familiar que ainda prevalece como “normal”, assim termino esse artigo não com respostas prontas, mas deixando algumas questões para os leitores refletirem acerca do tema e motivar futuras pesquisas. Eleger homoafetividade como campo de estudo é tomar como tarefa entender a sociedade contemporânea: Por que é nesse momento que se pode consumir o direito de pares homo adotar crianças? Por que uma Lei de União Estável específica
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para casais homo? Quais as condições sociais estão dadas para que tais reinvindicações fossem elaboradas, aceitas, e tornassem lei? Quais mudanças podemos apontar como relevantes para criação das condições históricas de casamento homo? Não haveria um “contradição” na reinvindicação de casamento – modelo hegemônico de relação conjugal não seria um arranjo familiar tido como conservador? O Brasil ainda se apresenta como país majoritariamente católico? Que profissão de fé/crença professam os casais que reivindicam união estável? O aumento do número de adeptos a outras religiões pode ou não influenciar novos arranjos de conjugalidade? Que tipo de família homossexual esta sendo idealizada pela sociedade para que se permita a adoção? Crianças deficientes, negras e em idade avançada que (geralmente) não são adotadas por casais heterossexuais seriam as destinadas aos casais gays? O casal homossexual teria maior propensão a adotar estando em “união estável” e tendo uma vida afetiva discreta? Será que os casais heterossexuais poderiam vir a ter prioridade, ou vice-versa, em razão dos juízes de direito também serem sujeitos carregados de subjetividades? Seria o casamento civil gay uma maneira de subjugação às normas heteronormativas, precisando o casal ter um comportamento “regrado” para que consiga a adoção? Segundo Maki (2005), “é preciso que haja uma “trégua” entre o heterossexismo e o homossexualismo, é preciso que haja uma revisão sobre o assunto, refazendo-o e despindo-o das crenças e estereotipos”. Afirma ainda que esta construção social sobre o homossexual como um ser “espalhafatoso” ou “totalmente ligado ao sexo” é equivocada, precisando que se trabalhe, desde cedo, nas escolas e famílias, a valorização da diversidade como algo enriquecedor e não algo ruim. Esta autora fez entrevistas com homossexuais e heterossexuais sobre o que conseideram importante no relacionamento e percebeu-se pelos resultados que há grande valorização pelo público homossexual na estabilidade afetiva e econômica do relacionamento em detrimento de tantas outras coisas, valorizando o companheirismo e a manutenção do relacionamento como forma de maior tranquilidade e segurança na velhice, o que contradiz o senso comum que acredita que o homossexual varoliza mais a relação sexual. Para os operadores do Direito a família ideal para uma criança seria aquela onde exista diálogo, cuidado e afeto, respeitando e estimulando todas as etapas de
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seu desenvolvimento. Independente da orientação sexual do casal, o bem-estar da criança deve ser o foco principal, de forma que as implicações de uma “família homoafetiva” seriam na verdade muito parecidas com as de uma “família heteroafetiva”. A desembargadora Maria Berenice Dias, operadora do Direito, em textos e artigos disponibilizados em seu site, em sua maioria com teor jurídico, fala de forma quase poética sobre os laços familiares que antes se dava pelo casamento. O amor não tem sexo. Esta, ainda que pareça ser uma afirmativa chocante, é absolutamente verdadeira. O amor não tem sexo, não tem idade, não tem cor, não tem fronteiras, não tem limites. O amor não tem nada disso, mas tem tudo. Corresponde ao sonho de felicidade de todos, tanto que existe uma parcela de felicidade que só se realiza no outro. Ninguém é feliz sozinho. Como diz a música, é impossível ser feliz sozinho, sem ter alguém para amar. Essa realidade começou a adquirir tamanha visibilidade, que o amor passou a ter relevância jurídica e acabou ingressando no ordenamento jurídico. Dias (in site: http://www.mariaberenice.com.br/pt/home.dept).
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Artigo aceito em 28/05/2013.
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ensaios Dimensões Conceituais do Desvio: do Formalismo ao Homoerotismo
José Luiz Foureaux de Souza Júnior, PhD23
Aqui, há uma distinção básica, negligenciada demasiado freqüentemente nos estudos literários, entre dois tipos de projetos: um, modelado na lingüística, considera os sentidos como aquilo que tem de ser explicado e tenta resolver como eles são possíveis. O outro, por contraste, começa com as formas e procura interpreta-las, para nos dizer o que elas realmente significam. Nos estudos literários, este é um contraste entre a poética e a hermenêeutica. A poética começa com os sentidos ou efeitos comprovados e indaga como eles são obtidos (...). A hermenêutica, por outro lado, começa com os textos e indaga o que eles significam, procurando descobrir interpretações novas e melhores. (Jonathan Culler, Teoria da Literatura: uma introdução)
23
Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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O
que vai aqui dito é simplesmente uma tentativa de síntese de um longo e intrincado processo de investigação teórica acerca da Literatura. O pressuposto básico é o de que é necessário, mais que possível, produzir
um conhecimento específico acerca do literário, para que esta “disciplina”, a Teoria da Literatura, não se torne apenas um exercício retórico de descrição de um objeto alheio a este mesmo exercício. Daí a idéia de que a leitura do texto literário não perde, nunca, a sua efetividade. O conhecimento teórico que se procura produzir, então, terá a marca do exercício da leitura crítica que interpreta, projetando sentidos discursivos possíveis, a partir de uma subjetividade que se constitui e se submete, paradoxal e simultaneamente, neste mesmo discurso. O leitor deixa de ser a figura decorativa entronizada por um acerta tradição teórica, para ocupar o lugar de cento do discurso teórico-crítico-interpretativo da literatura, instituído a partir dos estudos da Estética da recepção. Assumido este pressuposto, é possível conceber o “olhar” do leitor como o elemento agente desta construção discursiva que é a Teoria da Literatura, pois é a ele que a subjetividade autoral se dirige. Nesses termos, pensar estas subjetividades voltadas e/ou marcadas pela sexualidade, e mais, uma sexualidade que procura a identificação entre seus “iguais” – estou aqui me referindo ao que denomino de olhar homoerótico – faria desta legítima instância discursiva, textual, um operador a mais para a leitura do que a literatura está a produzir. Tal possibilidade causa um estranhamento justificável que, nas palavras de Eagleton, remonta aos formalistas russos: Os formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de “artifícios”, e só mais tarde passaram a ver esses artifícios como elementos relacionados entre si: “funções” dentro de um sistema textual global. Os “artifícios” incluíam som, imagens, ritmos, métrica, rima, técnicas narrativas; na verdade, incluíam todo o estoque de elementos literários formais; e o que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de “estranhamento” ou de “desfamiliarização”. A especificidade da linguagem literária, aquilo
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que a distinguia de outras formas de discurso, era o fato de ela "deformar” a linguagem comum de várias maneiras. (EAGLETON, 1983, p.4)
O que o autor parece não ter notado e, por conta disso, não deu a devida importância, foi o fato de que a arbitrariedade é o traço fundamental da subjetividade e esta não tem regras universais e fixas para se expressar, seja em linguagem comum, seja em linguagem literária. De mais a mais, talvez fosse o caso de se associar esse “estranhamento” provocado pela linguagem literária, nas palavras do autor, a uma percepção inconsciente de que um sujeito “outro” se explicita no exercício dessas mesmas possibilidades “técnicas” anunciadas, que caracterizam o fazer literário. Não estaria aqui uma oportunidade de se pensar, nos termos da linguagem literária, em um princípio de sexualização da literatura? Na altura do Formalismo Russo, não é equivocado considerar a influência das idéias freudianas acerca do assunto e perceber seu impacto no desenvolvimento teórico das próprias Ciências Humanas, de maneira geral. Afinal de contas, um novo “paradigma” já estava posto. As idéias de arbitrariedade, artifício e funções, no raciocínio de Eagleton, levam a pensar na idéia mater do Formalismo: o desvio. Essa noção, relacionada diretamente a seu oposto, a noção de norma, na perspectiva lingüística dos formalistas russos, pode ensejar uma visada homoerótica, ao explicitar a possibilidade crítica de uma espécie de norma outra, que aponta para a escrita da homotextualidade, sem a preocupação de manter uma ética (ainda que implícita) da legitimação hegemônica da literatura. Isso faz retomar os caminhos do “cânone”, em seu processo de constituição crítico-discursiva, estabelecendo “normas” secundárias para reconhecimento de “valor” literário das obras. Este estabelecimento, por sua vez, far-se-á modificado pela perspectiva do pretendido olhar homoerótico. Com a inserção da idéia de um olhar homoerótico, como mediação operacional, esse tipo de dicotomia deixa de existir, enquanto critério de legitimação e quebra com o influxo do pensamento “formalista”. Este, por sua vez, pode sustentar a celebração do desvio como a citada norma “outra”. Em outras palavras, o que se destaca como vetor de orientação da busca de uma literariedade fundadora do
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estatuto do literário, para os formalistas russos, acaba por constituir-se como um vetor outro, apontado para a inserção do olhar homoerótico, enquanto olhar desviante – em relação à tradição hegemônica –, desenhado um horizonte de expectativas também outro. Tanto no Formalismo, quanto na interlocução entre literatura e homoerotismo, o que se destaca é o papel do desvio, como o elemento de orientação e discussão do perfil discursivo que a Teoria da Literatura desenvolve, enquanto produção de conhecimento, quando da abordagem do literário, texto cultural diversificado e, por isso mesmo, afeito a essas novas visadas críticas. Mais importante que isso, a idéia de desvio de linguagem – fundamental para os formalistas russos– é a chave do equacionamento que o olhar homoerótico propõe. Ou seja, para os formalistas, a literatura se constitui – enquanto trabalho estético com a linguagem – se, e somente se, souber explorar os desvios que essa mesma linguagem deixa entrever. Estabelece-se, então, uma “norma”, a qual tem de ser “esquecida” para que a criação apareça. Ora, toda norma pressupõe o seu próprio desvio e a constância deste acaba, por sua vez, constituindo uma outra norma. No caso do Formalismo, por que não considerar o desvio lingüístico como a explicitação poética de desvios outros, de ordem vária? Subscrever a Teoria da Literatura à consideração dos desvios da linguagem per se é denegar um princípio constitutivo da própria linguagem: a subjetividade. Esse é o nó do Formalismo, na perspectiva do olhar homoerótico: a redução do exercício interpretativo/teórico da Literatura apenas como linguagem, como texto. Não há como negar a participação da subjetividade nesse processo, e isso é tudo aqui. Como (pré) determinar, apenas na expressão lingüística, o desvio como norma a ser considerada crítica e/ou teoricamente? Esta impossibilidade sustenta a hipótese de revisitar o Formalismo russo, na perspectiva desenhada, dado que nesta a idéia de desvio ganha espessura, desvinculando-se do perímetro lingüístico, em tudo e por tudo redutor. Em outras palavras, articulam-se as duas dimensões anunciadas na epígrafe, que caracterizam de certa forma, o exercício de leitura crítico-interpetativa da Teoria da Literatura: a dimensão poética e a dimensão hermenêutica.
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Por outro lado, como circunscrever o texto – produto do desvio lingüístico – à sua expressão poética de um exercício racional de utilização da língua? O sujeito, para além de suas determinações conscientes – Freud àquela altura já tinha feito suas advertências – explicita pela língua um universo incomensurável de motivações inconscientes; todas elas, de maneira geral, marcadas pela sexualidade em sua multiforme expressão. Denegar isso é como dizer que a linguagem é uma entidade autônoma e independente. Cada um de nós está cansado de saber que não é assim que as coisas funcionam... Entretanto, a aproximação entre o Formalismo russo e a intervenção do olhar homoerótico sobre a literatura, encontra um ponto comum, ponto de fuga que os aproxima e faz com que os dois passem por uma interação no sentido de voltar-se para as possibilidades infinitas de leitura. O “desvio” dos formalistas russos, em tudo e por tudo, não deve ser afastado do “desvio” – moralmente condenado – que pode ser explicitado pela operacionalidade do olhar homoerótico. Tanto numa, quanto noutra direção, é a idéia de fuga de uma “norma” que se apresenta como panorama ao qual o olhar crítico deve se voltar. Fica patente, ainda que de maneira um tanto superficial, que o Formalismo russo provoca o ocultamento da alteridade do sujeito, na alteridade da linguagem. Sua visada crítico-teórica fazia tabula rasa das diferentes possibilidades de alteridade, resumindo-as todas na própria idéia de desvio. Ora, ainda que, aparentemente, tenha faltado aos formalistas russos a sensibilidade de perceber que a linguagem desviante – o que, ao fim e ao cabo, para eles, era a literatura – é a expressão de uma subjetividade outra, que se dirige a um interlocutor/sujeito, também outro; não se deve descartar a possibilidade de estabelecer uma interlocução entre este mesmo desvio – qualquer que seja – e o olhar homoerótico, na perspectiva mesma da (re)construção da Teoria da Literatura. Este detalhe, o da interlocução entre alteridades subjetivas (ou subjetivadas!) parece ter escapado aos formalistas russos, o que não chega a condená-los à execração total. Pelo contrário, é por isso mesmo que esta perspectiva de abordagem se faz interessante aqui. É quase inconcebível acreditar que eles tenham deixado escapar esse “detalhe”, uma vez que todo o seu trabalho está imbuído da força operacional da alteridade da linguagem literária. A
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redução por eles produzida foi profunda, mas pode, hoje, ser resgatada com a operacionalidade do olhar homoerótico. Por outro lado, pode-se inferir um certo sentido tautológico, amarrando o tecido de leituras sucessivas e intrinsecamente ligadas, fazendo pensar na distância entre as concepções de linguagem consideradas, respectivamente, pelos formalistas russos e por exemplo, pelo próprio Foucault. Instituindo o discurso, como espaço de representações significativas operadas pela leitura, o desvio deixa, definitivamente, de ficar circunscrito ao campo de ação da linguagem per se. O sujeito, no caso, o leitor, vai ser então o responsável pela articulação dos sentidos múltiplos de que fala Foucault, que tem a sua tese sobre a imponderabilidade do poder da linguagem por ela mesma, corroborada. De certa forma, remonta-se aqui à idéia de transgressão, implícita nas argumentações que o pensador francês desenvolve acerca do conceito de poder, o quê, ao final das contas, aparece articulado ao conceito de discurso, na dicção do mesmo pensador: O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do instransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos: ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento rapidamente se embaraça por querer apreendêlas. O limite e a transgressão devem um ao outro a intensidade de seu ser: inexistência de um limite que não poderia absolutamente ser transposto; vaidade em troca de uma transgressão que só transportaria um limite de ilusão ou de sombra. (FOUCAULT, 2001, p.32)
Em termos gerais, a Teoria da Literatura, em todos os seus momentos, tomou em consideração o leitor, mas sempre em relação ao texto. Exemplo disso é o conjunto de investigações do Formalismo russo, como aqui referido. Apesar de ser tomado sempre como uma das correntes textualistas, o Formalismo não prescinde do leitor, uma vez que a idéia de desvio só pode ser pensada a partir desse
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pressuposto. É absurdo pensar num grau de autonomia tal, para a linguagem, que fosse capaz de produzir seus próprios desvios. Na verdade, é a arbitrariedade do sujeito que utiliza a linguagem é que vai determinar esse grau de desvio. A intensidade, o objetivo e a instrumentalidade desse desvio respondem a uma demanda de desejo do sujeito e não da linguagem, pois que esta existe em função daquele e vice-versa. Há, portanto, uma relação de interdependência intrínseca nessa interação, não sendo possível hierarquizar, na linha do tempo, qual dos dois elementos “vem primeiro”. Esse detalhe, aparentemente banal, óbvio e superficial, é o olho do furacão do/no ideário formalista. A linguagem, como disse, não tem autonomia para se livrar disso. Ora, ao postular o desvio como marca da linguagem literária, o Formalismo russo está, implícita – e eu arriscaria a dizer, inconscientemente – invocando o sujeito, utilitário da linguagem. Ele se constitui nela e essa crença é tudo. Não há como escapar dessa ilação. Mais adiante, quando a idéia de desvio é substituída pela de horizonte de expectativa – a generalização, aqui, não fere o princípio epistemológico da Teoria da Literatura, nesses dois momentos de sua História: o Formalismo e a Estética da Recepção –, o sujeito continua presente, dessa feita, explicitamente. Em qualquer uma das duas situações em que o sujeito “aparece”, acredito ser possível pensar no olhar homoerótico, como um farol. Esse olhar, no primeiro caso, apontaria para o desvio de linguagem, como um subterfúgio lingüístico para a constituição de subjetividades complexas, que poderiam ser chamadas de alteridades. É a dinâmica constitutiva que vai poder ser percebida e “aproveitada” pela própria Literatura, em primeira instância e por sua teorização, em segunda. Um bom exemplo dessa situação é o tipo de ambigüidade que se instaura quando o sujeito da enunciação e o sujeito do discurso pertencem a gêneros diferentes, como em várias canções de Chico Buarque ou, mesmo, nas cantigas de amigo da lírica trovadoresca. Quando o “poeta” fala no feminino, abre-se, de maneira inequívoca, a possibilidade de expressão de um amor nem sempre “autorizado” pelo contexto sócio-cultural. Mais ainda: é todo o sistema disciplinador de gêneros, sexualidades e papéis que se revela como convencional. Esse travestismo poético é pouco explorado e pode
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render leituras interessantíssimas de algumas dessas canções ou cantigas. Por outro lado, as relações entre dois homens, por exemplo, podem explicitar, ainda que nas entrelinhas, uma homoeroticidade insuspeitada, como seria o caso, por exemplo, do conto “O sorvete”, de Carlos Drummond de Andrade; ou de “Pílades e Orestes”, de Machado de Assis; ou ainda “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade. Em síntese, o que se pode reafirmar conclusivamente é que o olhar homoerótico não deve se restringir a sujeitos homoeroticamente atraídos, mas alargar o campo de visão da leitura proporcionada anteriormente pela homossociabilidade manifesta e aceita pela hegemonia da cultura androcêntrica heterossexista na/da tradição. Em outras palavras, não se trata de postular um gênero exclusivo para o exercício teórico da Literatura, mas proporcionar a ela a oportunidade de examinar outros quadrantes expressivos e representacionais. O discurso ficcional engendra situações que o discurso teórico pode “explicar” – não exatamente no sentido clássico e, por que não, ultrapassado do termo. Cabe à Teoria da Literatura, esse exercício semiótico de articulação de signos culturais – e a sexualidade está inclusa em tal conjunto, sem dúvida. Estas considerações dão um outro colorido aos impasses que a operacionalização do olhar homoerótico pode trazer para a Teoria da Literatura. No entanto, parte destes impasses pode ser esclarecida se se retomar o conceito criado por Foucault em sua genealogia da sexualidade. O que se pode entender por “moral” ou “ética”, a partir deste pressuposto, é um código de regras ideais de conduta e procedimento interpretativo. A crise é o conflito com o código, determinado pelo afastamento das condutas práticas do modelo ideal. O conceito central, nesta forma de raciocínio, é o de transgressão. O conjunto de prescrições metodológicas, que pode atingir, às vezes, o estatuto de princípios morais é o que permite julgar a gravidade das infrações cometidas. A conduta emergente é sempre definida de forma negativa. A lógica da apreciação é feita por subtração. Comparam-se as ações intencionais com os grandes princípios do código e faz-se o cálculo da deficiência. O que vai mal é o que falta. Esta falta é o “pulo do gato” aqui. Na esteira deste raciocínio, pressinto os ecos do Formalismo russo e suas idéias acerca do “desvio de linguagem”.
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Como resultado de uma interlocução com o sujeito, esta linguagem não pode ser tomada objetivamente, o que leva à constatação de que o desvio que ela expressa pode ser uma decorrência de igual desvio do sujeito. Nesta dialética, a leitura do desvio, por parte da teoria e da crítica, visando à constituição de uma teoria, também vai ser desviada de um certo “caminho do bem”. A transgressão, então, se dá a perceber como única forma de se tornar plausíveis as propostas que dela mesma se podem inferir para o trabalho teórico, no caso específico dos Estudos Literários. Ocorre que tal constatação não é assim tão tranqüila. Ela também se auto-questiona, enquanto processo de definição de princípios operacionais que, porque transgressores, não podem abolir uma certa ordem de definição de campos e valores a serem seguidos, por quem assim o desejar:
Pensamos sempre que não agimos como seria bom agir porque uns transgridem as normas por cinismo e outros por ignorância. Os primeiros são autores ou cúmplices da imoralidade porque sabem o que é bom, mas manipulam as brechas do sistema social para obter privilégios ilícitos e injustos. Os segundos transgridem por inépcia; porque jamais souberam o que significa ser tratado como um sujeito moral. A convivência com o desmando ou visa à sobrevivência dos que não têm saída ou à saída mais fácil dos que sempre “se deram bem”. (COSTA, 1995, p.39)
É claro que em termos sociológicos a situação acima descrita não é de difícil percepção. Na verdade, a sociedade atual está sendo (infelizmente) acostumada a conviver com situação de desmando, inépcia e privilégios que, nem sempre são explicados de maneira satisfatória. Da mesma forma, o circuito institucional da Teoria da Literatura, quando se toma, por exemplo, a universidade enquanto um microcosmo que explicita analogias com a sociedade como um todo pode ser um modo de analisar a mesma situação. O fato é que existe sempre uma tendência atávica dos estudiosos de estabelecer seus próprios limites, numa tentativa de determinar áreas de poder e circunscrição de idéias e procedimentos. O movimento é
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“natural”, mas sempre causa uma dissensão que, por vezes, pode ser não muito positiva. O que desejo dizer é que a transgressão por ela mesma, não leva a nada. No caso da Teoria da Literatura, dada a natureza absolutamente relativa de seus possíveis posicionamentos crítico-interpretativos, estas dissensões não produzem uma segurança metodológica e, mesmo, epistemológica. Assim, há que se retomar a prática, sempre de um ponto adiante, sem, no entanto, desconsiderar os pontos anteriores. Um movimento difícil, principalmente quando o desejo é o de determinação de campos de ação limitados, circunscritos a princípios supostamente universais e suficientes. Numa outra perspectiva, estes mesmos princípios, estes modos de agir generalizados, podem vir a ser considerados um desvio do que seria tido e havido como o “caminho certo”. Nesta perspectiva, não se pode deixar de lado a possibilidade de pensar a prática da leitura teórica e crítica como um instrumento político de conquista de espaço no vasto universo da cultura. Para que um suposto sistema de “valores” teórico-operacionais mantenha sua coerência, as causas devem poder funcionar como razões. Isto quer dizer que entre causas e efeitos tem de haver uma relação de plausibilidade. Os conteúdos racionais ou descritivos dos fatores causais devem apresentar certa homologia com os conteúdos dos efeitos. Os comportamentos transgressores vistos como “negativos” devem encontrar na raiz de suas causas fatos também “negativos”. Mais uma vez, a idéia de desvio se faz importante e pertinente. O aspecto deficitário do que se tornou costumeiro no exercício produtivo da teorização deve refletir o aspecto deficitário dos eventos que levaram à determinação deste mesmo exercício. As condutas impropriamente chamadas de transgressoras põem a nu, ao mesmo tempo, o fracasso das tentativas individualizantes em meio ao “mal-estar da cultura”. Aqui, esse mal-estar pode ser percebido nas dificuldades de se vencer certos impasses epistemológicos que, ao longo dos anos, a Teoria da Literatura vem enfrentando. A determinação do que seja desvio, por exemplo, pode ilustrar um destes impasses. Isto se dá, uma vez que o Formalismo russo é tido e havido como uma “corrente” superada e, por isto mesmo, sujeita a um abandono que, em nada e
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por nada, deve ser subscrito. Sua “recuperação” parece ser o caminho mais adequado a um momento como o que se vive. Se pensarmos tudo isso na perspectiva de uma ética do comportamento sócio-cultural em que se inserem os estudos literários, não se pode deixar de constatar que a imoralidade é percebida como excesso ou omissão, desequilíbrio ou inadequação à norma. É como se houvesse a possibilidade de se prever todo tipo de transgressão e, conseqüentemente, seu controle seria viável. Quando se enfoca a linguagem, tal raciocínio não procede, comprovando a impossibilidade de um controle prévio. Nestes termos, trabalha-se sempre com a idéia de que a transgressão é um desafio constante. O fracasso na tentativa de vencêlo pode ser lido como a representação da falência no desempenho pressupostamente esperado. O discurso, como se sabe, já foi considerado uma função representativa da linguagem na época clássica. Agora, o discurso, considerado em sua materialidade ou como prática, é um conjunto de enunciados, isto é, uma espécie de dispersão pura – no sentido em que não tem princípio de unidade, dado por um objeto, um estilo, uma arquitetura conceitual, um tema –, mas a respeito da qual a “arqueologia” estabelece uma regularidade, ou um sistema de relações que funciona como “lei” desta mesma dispersão. O enunciado, neste quadro, é o elemento a partir do qual o discurso pode ser definido: uma função que torna possível relacionar um conjunto de signos, em primeiro lugar, com um domínio de objetos, ou com um referencial; em segundo lugar, com um espaço vazio que diversos indivíduos podem/devem preencher para se tornar sujeito, um espaço vazio em que diferentes sujeitos podem vir a tomar posição. Em conclusão, os discursos são feitos de signos, mas o que eles fazem é mais do que utilizar estes signos para designar coisas ou explicitar temas. É esse “a mais” que os torna irredutíveis à língua – e a seu perímetro de ação. É esse “a mais” que é preciso fazer aparecer e descrever. Não se trata de negar o conceito de linguagem – o que, equivocadamente, faria repetir a “condenação” do Formalismo russo e a operacionalidade de sua idéia de desvio lingüístico –, mas de defender que o discurso é mais abrangente e multifacetado que esta.
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El ropero torcido del extraño Augusto d’Halmar: Escritura y homoerotismo en Chile a comienzos del siglo XX Víctor Rocha Monsalve24 Al abrir el ropero…, nos encontramos con unos pocos ropajes singulares, muy llamativos como excéntricos, y con varios trajes de sastre a la medida aunque de formas y colores muy semejantes.
Primer ropaje: Augusto Goémine Thomson/Augusto G. Thomson/Augusto D´Halmar/ Augusto d´Halmar
Segundo ropaje: fotografía de Augusto D'Halmar y Rafael Valdés en Estambul (1920).
Tercer traje: “Algo… que hasta ahora nadie ha dicho claramente, aunque todos lo saben: el uranismo de D´Halmar, que no lo explica todo, pero sin el cual nada se entiende”. Hernán Díaz Arrieta. Los cuatro grandes de la literatura chilena del siglo XX. Editorial Zig-Zag, Santiago, 1963. Cuarto traje: “Llamado El Hermano Errante, así con mayúsculas, porque reside una parte considerable de su existencia en el extranjero y es un nómade por vocación y atavismo”. Enrique Espinoza. Antología de Augusto D´Halmar. El hermano errante, 1963.
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Profesor de Historia y Ciencias Sociales, Universidad Diego Portales, Santiago de Chile.
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L
a irrupción del deseo homoerótico y su posibilidad de inscripción en una subjetividad en la sociedad chilena se encuentra vinculada a dos procesos que definirían la experiencia histórica durante la primera mitad del siglo
XX. Por un lado, la llamada “cuestión social” con sus discursos de crisis del proyecto estatal ilustrado y, de otro, las nuevas sensibilidades literarias, se constituyeron paradójicamente en el soporte de las fantasías y ansiedades creadas por la modernización. Soportes sociales y materiales discursivos que a su vez coincidieron con la problematización de las fronteras genérico-sexuales y las identidades deseables que debían integrar la comunidad imaginada de la nación, en tanto, asociación limitada y soberana, siguiendo la propuesta de Benedict Anderson25, vinculada por medio de lazos fraternales homosociales que daban cuenta de su carácter hegemónico como excluyente frente a lo considerado diverso como lo hibrido. Es en este contexto de debates sobre las ciudadanías deseables y de la incipiente acción productiva de la maquinaria biopolítica sobre los cuerpos de la multitud, en tanto cuerpos patológicos potencialmente subversivos que deben ser regenerados, no debemos olvidar la proliferación de discursos en torno a la raza, la virilidad, la decadencia, el afeminamiento, entre otros tropos sobre la identidad, cuando la figuración del sujeto homosexual masculino se hace más visible a partir de su calidad de signo inestable. De lo que “no se puede hablar sin repugnancia ni horror”, pero no se puede callar, de acuerdo a la expresión utilizada por un estudio médicolegal sobre la inversión26, lo siniestro, lo reprimido deseante, el secreto a voces, lo abyecto fundante de las reglas de pertenencia al cuerpo social. Leyes de inscripción tatuadas por las narrativas médicas entorno al cuerpo sano, masculino y heterosexual. La visibilidad del cuerpo homoerótico en los discursos de la ansiedad finisecular, entonces, posibilitaron fijar por medio de las prácticas clasificatorias de la cuidad higienista, en su ilusión delimitadora como fijadora sustentada en una epistemología de unas señas e indicios superfluos, de un sujeto espectral en constante devenir identitario desde su presencia pública en calidad cuerpo ocultado, de un Benedict Anderson. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. Fondo de Cultura Económica, México, 1993, págs. 22-25. 26 Citado en Leonardo Phillips Müller Homosexualidad: estudio médico-legal y social de la inversión. Memoria para Licenciatura en Ciencias Jurídicas y Sociales, Universidad de Chile, Dirección General de Prisiones, Santiago, 1937, pág. 42. 25
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deseo silenciado, apenas murmurado, de un placer camuflado artificiosamente entre los trajes masculinos del buen vestir. En tanto ficción normativa de la comunidad imaginada, el cuerpo homoerótico en su calidad fantasmática se constituyó en el lugar material para los ejercicios de la violencia objetivizadora de los discursos de la nación desde sus hablas biomédicas y de los disciplinamientos policiales, pero también, en la posibilidad de autoconstrucción narrativas de unas subjetividades que apropiándose del carácter performativo de las ficciones somáticas del lenguaje médico y la literatura naturalista tensionaron, utilizando para ello sus cuerpos: espacios por excelencia de la diferencia genérica-sexual, los fundamentos del proyecto hegemónico desde la parodia, las poses y el exhibicionismo, prácticas desarrolladas bajo el alero de la pasión escoptofilica que caracterizaba a la cultura de fin-de-siècle con sus diagnósticos y pánicos27. Por otro lado, el ejercicio biopolítico se desplegó mediante una serie de estrategias de profilaxis destinadas a la contención social como a la despolitización de los sectores populares28. El “arte de conservar la salud i de velar por el bienestar de los gobernados”29, eran consideradas desde ahora en adelante la base fundamental de la reforma socio-política que buscaba en el reordenamiento corporal de la nación hacer frente a los efectos mórbidos producidos por la cuestión social o crisis popular. De esta manera los cuerpos otros, marcados por su clase, género y raza, devinieron en materialidad sexopolítica. Por consiguiente, el rol del Estado a través de “órganos i sus agentes”
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debía estar orientado en palabras de Federico Puga Borne, principal
representante de la intelectualidad biocientífica y para quien Augusto trabajo como secretario cuando este fue ministro de Salubridad, a la producción disciplinaria y a la reproducción regularizada de la vida del pueblo por medio de la “dictadura de la higiene”, principal instrumento que fundamentaba esta epistemología de la política moderna, en la cual “la vida”, tanto en su sentido individual como colectivo, “no Jorge Salessi. “Identificaciones científicas y resistencias políticas” y Sylvia Molloy. “La política de la pose” y en Las culturas de fin de siglo en América Latina, Josefina Ludmer (compiladora). Beatriz Viterbo Editora, Rosario, 1994, págs. 80-89 y 128-136, respectivamente. 28 Al respecto, véase a María Angélica Illanes, “Maternalismo popular e hibridación cultural, Chile, 1900-1920”, Nomadías. Serie monográfica. N° 1, Santiago, 1999, págs. 185-211. 29 Dr. Roberto del Río. Primer Congreso de Protección a la Infancia. Imprenta y Encuadernación Universo, Santiago, 1912, pág. 147. 30 La primera cita pertenece a F. Puga Borne. Elementos de higiene. Imprenta Gutenberg, Santiago, tomo 2, 1895, pág. 367. Las siguientes referencias son de Dr. Roberto del Río. op.cit., pág. 147. 27
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consiste en estar vivo, sino en estar sano”31. Mediante la intervención asistencial-legislativa, la élite civil profesional -portadora de los nuevos poderes seculares, entre ellos: el higienismo, la criminología y eugenesia- articuló un renovado pacto de gubermantalidad a través de la gestión política de los cuerpos de la patria, el cual tenía por finalidad refundar la unidad nacional desde los lenguajes de la ciencia. En este discurso y praxis médica-social, se apropió de los cuerpos sexuados en su calidad de „raza chilena‟, fuerza viva, fenotipo moral, objeto de estudio, que debían ser normalizados con la finalidad de alcanzar el progreso. Lo masculino, lo femenino y lo disidente comienzan a ser moldeados desde un conjunto de estrategias, tecnologías y dispositivos estatales destinados a racionalizar la vida de la especie por medio de las prácticas de salud, de higiene, de natalidad y de clasificación, prácticas que encuentran en los cuerpos, el deseo y la sexualidad su lugar de intervención. Fue en esta incipiente articulación de carácter difusa de la acción biopolítica, cuando el homoerotismo, especialmente masculino, abordado como ficción reguladora de la diferencia, en un doble movimiento perverso de figuración y borradura, presencia y ausencia, no solo posibilitó la formulación de la norma erótica del proyecto nacional sancionada tempranamente por las novelas del canon sentimental del siglo XIX, sino también, el nombramiento de una subjetividad no adscrita a identificaciones nacionales y sexuales naturalizadas, polares y discretas. De esta manera, la reescritura de la nación desde la enunciación de otras identidades será una de las principales características que marcará la obra del „raro‟ Augusto D´Halmar y su propia narrativa biográfica, “porque la patria no es el pabellón, la nacionalidad, el idioma, ni aun el hogar sino, sobre todo y ante todo, la zona propicio, el suelo adecuado, el terruño nativo”32. Un deambular por el decirse que quedará tempranamente plasmado con la publicación de Juana Lucero en 1902, primera y única novela de su proyecto serial llamada Los vicios de Chile, que siguiendo las retóricas del naturalismo contingente se proponía abordar de manera científica la prostitución como uno de los problemas sociales más evidentes de la cada vez más masiva y moderna ciudad de Santiago. Por medio de las vicisitudes de la guacha o hija legitima Lucero, signada F. Puga Borne. op. cit., tomo 1, pág. 13. Augusto Thomson. “La novela de los recuerdos (1904). Fragmentos de un diario íntimo”, Mapocho, Nº 31, Santiago, 1992, págs. 223-238. 31 32
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desde su concepción por el estigma de un erotismo nefasto de las estructuras tradicionales de integración a la gran casa nacional, nos relata las vivencias de su proceso de transformación física, moral y estética de sirvienta a Nana Juana, una prostituta de un importante burdel citadino, aludiendo directamente al texto de Zola33. D‟Halmar al criticar las bases naturalizantes de las identidades nacionales como a sus políticas de identidad definidoras de los limites esencialistas sobre lo anormal y subalterno, lo realiza desde la resignificación de las estructuras discursivas del poder provenientes del saber médico-antropológico presentes en la narrativa naturalista y la retórica orientalista, obsesionado con la delimitación de un sujetoobjeto otro. A través de distintos desplazamientos coreográficos, poses retóricas y tácticas ficcionales, situadas en el juego constante entre el decoro y la transgresión, D´Halmar va hilvanando una identidad homosexual a partir del subtexto homoerótico que cruza persistentemente sus novelas, apropiándose de los artefactos culturales dominantes que posibilitan su representación, entre ellos: el tropo orientalista, el viaje y la homosociabilidad, que en esta oportunidad analizaremos desde su inscripción de marcado carácter fragmentario y ambivalente, mediante el soporte fotográfico en tanto materialidad de captura como atestiguamiento de uno de sus viajes a Estambul. En este sentido, el retrato fotográfico como su puesta en escena, en este caso un montaje asociado con los ropajes y poses corporales orientales, se transforma en un espacio perturbador que aprovechando las plusvalías de la técnica fotográfica posibilita enunciar aquello considerado indecible en una materialidad fantasiosa como deseante entre quien posa para ser observado y quienes observarán la fotografía. Traza técnica de un vestigio luminoso sobre una verdad artificiosa que permite dar cuenta a los ojos de los iniciados de de un lazo de complicidad cargado de homoerotismo entre dos amigos desde las virtualidades identitarias de aquello que se simula exageradamente en tanto pose de un cuerpo masculino otro ataviado con ropajes extraños. Es decir, un acto de producción testimonial de una identidad En su primera edición en 1902 la novela fue titulada Los vicios de Chile. Juana Lucero, en las ediciones posteriores mantuvo el título de Juana Lucero o La Lucero. Para profundizar, véase Claudia Darrigrandi. “Trayecto urbano, aprendizaje y decepción: Juana Lucero se re (descubre) en el Santiago de fin de siglo (XIX-XX). Nuevos Mundos, Mundos Nuevos, 2009 y Rodrigo Cánovas. “A cien años de Juana Lucero, de Augusto D‟ Halmar: guacha, más que nunca”, Anales de literatura chilena, Año 3, Nº 3, diciembre 2002, págs. 29-41. 33
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pasajera visible en el recuerdo de lo que ya ha sido34, vinculado con la fugacidad de un instante ya ausente, como de su posteridad, asociada con la huella de lo que todavía sigue siendo. En este sentido, fue en el intento de volver a escribir las ficciones fundacionales, centrales en la definición de las identidades hegemónicas del proyecto nacional y sus contratos sexo-genéricos, cuando D´Halmar articula una política de resistencia estructurada desde el exilio del discurso, especialmente a través de la parodia engañosa y los nomadismos, dispositivos de lo torcido queer que posibilitan el nombramiento de una identidad homosexual y la construcción de una genealogía erótica disidente, históricamente tachada, nombrada desde el no nombrar, representada desde un cuerpo sin carnalidad, de un espacio fantasmal que “nos dice que somos… lo que no somos”, se señala en Pasión y muerte del cura Deusto de 1924, considerada la primera novela gay de la literatura latinoamericana35.
Turbantes y pelucas, capas y tules…
Poses y performances de un deseo otro. “Se sabe que ha llevado el fez de osmanlí en el Oriente de los sultanes y en el Extremo Oriente el turbante hindú, que en España gasta capa y sombrero cordobés en Andalucía, por lo pronto se contentaba con exhibir una cardenalicia peluca blanca, que no me hubiese extrañado lo más mínimo se trocara en rubia melena de paje, o en greña zaina de hombre de mar en la tierra. De él podía esperarse cualquier desconcertante transformación”. Augusto D´Halmar. El reportaje que nadie nos hace nunca. Un prólogo-epílogo, 2 de enero de 1935.
Roland Barthes. La cámara lúcida. Notas sobre la fotografía. Ediciones Paidós, Barcelona, 2006. Al respecto, el mejor estudio crítico sobre D´Halmar y las poses escriturarles, es sin duda lugar a dudas el trabajo de Sylvia Molloy. “Of Queens and Castanets: Hispanidad, Orientalism, and Sexual Difference”, Queer Diasporas. Comps. Cindy Patton y Benigno Sánchez-Eppler. Durham: Duke University Press, 2000, págs. 105-21. Existe traducción al español bajo el título: “Dispersiones del género: hispanismo y disidencia sexual en Augusto D´Halmar”, Revista de Crítica Cultural, Nº 25, Santiago, 2002, págs. 44-47. Véase de manera general, Daniel Balderston. El deseo, enorme cicatriz luminosa. Ensayos sobre homosexualidades latinoamericanas. Rosario: Beatriz Viterbo, 2004; e “Interpellation, Inversion, Identification: The making of sexual diversity in Latin American literature, 1895-1938.” A contracorriente, vol. 6, Nº 2, 2009, págs. 104-21. 34 35
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El excéntrico novelista, pero por sobre todo un cronista crítico de las costumbres nacionales, Joaquín Edwards Bello, en su trabajo de evocación de aquellos hechos que habían marcado su experiencia personal y literaria, recuerda que en una ocasión Augusto D´Halmar le había confesado que una de las cosas que más “lamentaba” del final de su infatigable periplo por Oriente era “no poderse vestir de turco” ahora en Santiago36. Pero detengámonos en este acto de confesión no sólo alude a las tecnologías
disciplinarias
del
decirse
a
sí
mismo
desde
la
incitación/desmantelamiento narrativo del deseo y la sexualidad, sino también a esa epistemología del closet, utilizando la expresión de Eve Sedgwick37, definidora de lo disidente en su condición de identidad tensionada por su condición a la vez privada como pública, relacionado con aquello conocido pero no dicho. Solo pensable en el marco de una escritura híbrida como las memorias, consideradas un género menor en el canon literario, la que le autoriza a hablar de esa imposibilidad de Augusto del ser, de aquello que no pude ser en su nación, pero también, y de manera estratégica, del potencial placer producido por el travestismo, relacionado con el gozo por lo exótico a través de los ropajes turcos en su calidad de fetiche erótico colonial. La confesión d'halmariana, en este sentido, desestabiliza lo público/privado que cubre las sexualidades “minoritarias” al politizar productivamente una epistemología del secreto sobre la identidades a partir del ensamblaje textil de una apariencia ya en sí misma artificiosa para pasar/posar como un turco normal. En esta performance estética de visibilidad corporal, Augusto juega constantemente con el carácter contingente como precario de las subjetividades al poner en escena por medio de la mímesis, la parodia e ironía los procesos de rotulación en la definición de las identidades desde lo repudiado. No olvidemos que al despuntar el siglo XX, la palabra turco activaba una serie de imágenes negativas y estereotipos vinculados con los materiales de lo abyecto como a su carácter subalterno. Benedicto Chuaqui, uno de los más de ocho mil inmigrantes árabes que se establecen en el país luego de la crisis del imperio otomano, recuerda que en el momento mismo de su llegada se le
36 37
Joaquín Edwards Bello. Recuerdos de un cuarto de siglo. Santiago: Zig-Zag, 1963, pág. 44. Eve Sedgwick. Epistemología del armario. Barcelona: Ediciones de la Tempestad, 1998.
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“...hizo comprender, mucho antes de conocer el idioma, el sentido despectivo que aquí en Chile se le ha dado a la palabra turco”38. En la prensa reiteradamente se recogían los imaginarios hegemónicos referidos indistintamente a lo árabe y turco en su generalización oriental: “ya sean mahometanos o budista, lo que se ve y huele desde lejos, es que todos son sucios al igual que los perros de Constantinopla… nadie les pregunta quiénes son, de dónde vienen, ni para dónde van. Ni siquiera se comprueba si traen o no alguna de esas horribles y misteriosas plagas de Oriente, como es el caso de la lepra descubierta días pasados en Talcahuano, después de siete años que el infectado se pasea tranquilamente en ese puerto, repleto de marineros chilenos. Y es así como han entrado a Chile por la gran vía de nuestras indolencias todas las plagas que al presente sufrimos”, señalaba un artículo publicado en El Mercurio de Santiago del 13 de abril de 1911. El Oriente como material polisémico, en esta economía del discurso sobre los males que afectaban a la sociedad chilena, deviene en agente perturbador de las bases culturales como biológicas de la nación al cuestionar su viabilidad de organismo saludable y homogéneo. Por otro lado, debemos considerar que el „ser turco‟ aludía a un concepto amplio en lo que quedan borradas cualquier diferencia cultural, lingüística y étnica, sólo importando su identidad religiosa: el ser musulmán. En el caso de los árabes provenientes de Palestina, Siria o el Líbano esta rotulación evidenciaba una asociación violenta con una nacionalidad que no les correspondía al quedar reducidos a la identidad del opresor, es decir, a una identidad intolerable en la que Augusto se ubica estratégicamente en tanto zona propicia para el despliegue de su actuación. A través de este otro oriental que como cuerpo de la diferencia más radical, resinificado por medio de la exuberancia de las extrañas telas del fez de osmanlí del Oriente de los sultanes y del turbante hindú del Extremo Oriente, D´Halmar desafiaba los límites de lo nacional y sexual desde una afuera inquietante mediante la desnaturalización de una política del deseo hegemónico que le permite manifestar ese deseo torcido a nivel de huella y desplazamiento. La pose orientalista “que le daba cierta semejanza a un joven faquir musulmán” según recuerda uno de sus compañeros fundadores de la Colonia Tolstoyana, Fernando Santiván al destacar el carácter domínate y teatral de camarada escritor junto a la simulación que significaba “el mudar
38Benedicto
Chuaqui. Memorias de un emigrante. Santiago: Editorial Orbe, 1942, pág. 278.
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de disfraz”39, se conformaron en ese espacio performativo que le permitía manifestar una subjetividad que le incomodaba y atemorizaba pero, que a su vez, tensionaba por medio de la visibilidad artificiosa desde la desviación de una señas unas identidades sexuales hegemónicas mediante la enunciación de lo reprimido e irrepresentable, ya que como señala el propio D‟ Halmar “no es pueril exotismo de jugar al mameluco lo que me ha hecho insistir en mi tocado oriental, y sí lo llevo es para conjurar no sé qué obscura suerte de la cual apenas si me atrevo a ocuparme”40. El travestismo D´Halmariano entonces se encuentra relacionado con aquello que el propio Augusto define como la “obsesión del yo y del nombre específico”, del deambular de un deseo censurado y tachado que sólo puede ser expresado desde el enmascaramiento del discurso, organizado en una irresoluble tensión entre el ser y el parecer, lo uno y lo otro, lo mismo y lo diferente, lo público y privado, el trazo y la huella. En El reportaje que nadie nos hace nunca, suerte de autobiografía y selección estratégica de recuerdos, nos señala: “yo no enuncio, sino anuncio, y todas mis palabras, desprovistas a veces de sentido, escóndenlo doble y son otras tantas anticipaciones”41. Los ropajes travestiles se constituyen en un espacio material, doblemente inscrito en el soporte fotográfico en su calidad de prueba instantánea de la realidad y pretensión historicista, para decirse y pensarse diferente al desafiar la supuesta naturalidad de la relación subjetiva entre el cuerpo, género y sexualidad, definidos por un régimen de intengibilidad heterosexual, desde la identificación con unos artefactos, símbolos y gestos provenientes de una visión estereotipada de un otro cultural radical, para producir una representación camp de una masculinidad en constante desplazamiento definida en torno a lo extravagante-excesivo que paradójicamente es motivada por el deseo de estabilidad para conjurar esa tristeza e incertidumbre de porvenir que desde que era un niño lo motivaba a escapar todas las tardes de los domingos para refugiarme en una taberna subterránea en Valparaíso, espacio de nomadismo cotidiano que marcará en adelante su temperamento errante.
Fernando Santiván. Memorias de un Tolstoyano. Santiago: Zig-Zag, 1955, pág. 84. Héctor Domínguez Ruvalcaba. “La intimidad homosocial en Memorias de un tolstoyano de Fernando Santiván”. Acta Literaria Nº.33, 2006, págs. 41-54. 40 Augusto D‟Halmar. Nirvana. Viaje al Extremo Oriente. Ercilla, 1935, pág. 106. 41 Enrique Espinoza. Antología de Augusto D´Halmar. El hermano errante. Santiago: Editorial Andrés Bello, 1963. 39
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Una política fotográfica de la pose queer ambientada en una topografía de lo oriental que posibilita enunciar un discurso homoerótico en tanto inscripción de un deseo incierto y reprimido y una identidad fijada. Una geografía espiritual del reencuentro entre iguales, en palabras de su amigo y camarada de viaje Francisco Valdés42, pero también, de un espacio de sexualización a través de los cuerpos exóticos de esos otros hombres lejanos, extranjeros, pero siempre familiares. De unas corporalidades masculinas soñadas antes de ser vistas. En esa suerte de bitácora autobiográfica que es la novela La sombra del humo en el espejo, escrita en París al final de su travesía por el Oriente en 1918, antes de comenzar su viaje por Egipto nos relata que en sueños le “evocaba un hombre en traje talar, cubierto de una alta tiara, teniendo en su bastón enroscada en una serpiente”43. Así, el sujeto d´halmariano se construye permanentemente entre estos desplazamientos territoriales e imaginarios, de allí la importancia de la traza fotografía a nuestro entender en tanto artefacto de la cultura de masa que le permite reescribir como apropiarse de una identidad espectral haciendo uso de la ambigüedades propias de este dispositivo, a partir del mirar y del ser mirado, buscando aquello que Salvador Novo define como un “mundo soslayado de quienes se entendían con una mirada”44. Decirse desde la mirada en un constante juego de exhibición del propio cuerpo deseante, de esos ojos que “reciben la luz del mismo foco, puesto que miran del mismo modo” sentencia en médico hindú que trata de entender la velada enfermedad que padece D´Halmar en su paso por la India junto a su sirviente y compañero exótico de “belleza perturbadora Zahir”, idealización o ficcionalización del pintor Rafael Valdés, su camarada, enfermero, cómplice real de su ires y devenires orientalizantes. Es este efebo egipcio quien guía al viajero occidental en su travesía que le posibilita constituirse como sujeto viajero ya que en su rostro puede ver lo que no puede ver en sí mismo en un devaneo erótico constante, enmarcado en la dinámica amo-esclavo, entre lo diferente y lo parecido, lo igual y subalterno: “un esbelto muchacho que esgrime en la mano un látigo...es mi criado de allá: mi mejor amigo... Zahir miraba siempre a los ojos, sobre todo cuando mentía y, salvo a mí, les mentía a todos por vicio o por fantasía. Su verdad como su honradez, me estaban exclusivamente reservadas; y, sin embargo, era Francisco Valdés. “A propósito de este libro de viajes”, en Augusto D´Halmar. La sombra del humo en el espejo. Santiago: Ediciones Ercilla, 1928, pág. 10. 43 Augusto D‟Halmar. La sombra del humo en el espejo., pág. 489. 44 Salvador Novo. La estatua de sal. México: Fondo de Cultura Económica, pág. 34. 42
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tal vez a mí al único a quien le costaba mirar de frente... eramos uno en dos en el vasto mundo de los extraños, y no nos teníamos sino el uno al otro. Nunca volveré a sentir con nadie la sensación de identificación absoluta que me inspiraba su afecto. Nunca, ni con el propio Zahir, volví a sentirla, una vez pasada esa postración en que se desnudara mi alma”45. Un mirarse inscrito en una economía representacional del deseo a través de los actos corporales, y que muchas veces de manera trágica, no olvidemos que el cura Deusto decide suicidarse para no sucumbir frente a un cuerpo y amor sensual situado fuera de la ley heterosexual. Un decirse que encuentra posibilidad de desplegarse en la discreción del lenguaje del susurro, en los pactos escriturales, en las miradas culpables y complacientes en un de/venir sinuoso de aparición/desaparición, sueño/realidad, pero que siempre terminan en fatalidad, errancia, mascarada, en “la espera de algo que no llega y pensamos que marchando le saldremos al encuentro”46. De ese „abismo secreto‟ o „secreto a voces‟ que hace público en un acto de encubrimiento Díaz Arrieta o Alone, al nombrarlo para condenarlo nuevamente al silencio, a ese espacio a su vez privado y abierto que es el gran closet de la crítica literaria chilena escrita bajo la cautela permanente de la “prohibición fóbica” que insistía solo con mirar y registrar aquel traje ocupado para la foto oficial al recibir el Premio Nacional de Literatura en 1942.
45 46
Op.cit. pág. 490. Augusto Thomson. “La novela de los recuerdos (1904)”, op. cit., pág. 224.
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tradução Quem defende a criança queer?47 Beatriz Preciado48 Tradução: Fernanda Ferreira Marcondes Nogueira49 Os católicos, os judeus e muçulmanos integralistas, os copeístas50 desinibidos, os psicanalistas edipianos, os socialistas naturalistas à la Jospin, os esquerdistas heteronormativos e o rebanho crescente dos modernos reacionários se juntaram neste domingo para fazer do direito das crianças a ter pai e mãe o argumento central que justifica a limitação dos direitos dos homossexuais. Foi o dia deles de sair, um gigantesco “sair do armário” dos heterócratas. Eles defendem uma ideologia naturalista e religiosa que conhecemos muito bem. A sua hegemonia heterossexual sempre esteve baseada no direito de oprimir as minorias sexuais e de gênero. Eles têm o hábito de levantar o facão. Mas o que é problemático é que forçam as crianças a carregar esse facão patriarcal. A criança que Frigide Barjot diz que protege não existe. Os defensores da infância e da família apelam à família política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. Uma criança que privam de qualquer forma de resistência, de qualquer possibilidade de usar seu corpo livre e coletivamente, usar seus órgãos e seus fluidos sexuais. Essa infância que eles afirmam proteger exige o terror, a opressão e a morte.
PRECIADO, Beatriz. Qui défend l‟enfant queer? Libération, jan. 2013. Disponível em http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/qui-defend-l-enfant-queer_873947 48 Filósofa, diretora do Programa de Estudos Independentes do Museu d‟Art Contemporani de Barcelona (MACBA). Autora dos livros El manifiesto contra-sexual (2002), Testo Yonqui (2008) e Pornotopía. Arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la Guerra Fría (2010). 49 Mestre em Letras (USP). Pesquisadora, tradutora e crítica literária. 50 Seguidor de Jean-François Copé, político francês (NT). 47
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Frigide Barjot, a musa deles, aproveita que é impossível para uma criança se rebelar politicamente contra o discurso dos adultos: a criança é sempre um corpo ao qual
não se
reconhece
o direito
de
governar.
Permitam-me
inventar,
retrospectivamente, uma cena de enunciação, de dar um direito de réplica em nome da criança governada que eu fui, de defender outra “forma de governo” das crianças que não são como as outras. Em algum momento fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E me revolto hoje em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero? O discurso onipresente de Frigide Barjot e dos protetores dos “direitos da criança a ter um pai e uma mãe” me faz lembrar a linguagem do catolicismo nacional da minha infância. Nasci na Espanha franquista, onde cresci com uma família heterossexual católica de direita. Uma família exemplar, para quem os copeístas poderiam erigir uma estátua como emblema da virtude moral. Tive um pai, e uma mãe, que cumpriram escrupulosamente a sua função de garantir domesticamente a ordem heterossexual. No discurso francês atual contra o matrimônio e a Procriação com Acompanhamento Médico (PMA) / Inseminação Artificial para todos, reconheço as idéias e os argumentos do meu pai. Na intimidade do lar, ele usava um silogismo que evocava a natureza e a lei moral com a intenção de justificar a exclusão, a violência e inclusive o assassinato dos homossexuais, travestis e transexuais. Começava com “um homem deve ser um homem e uma mulher, uma mulher, como Deus quis”, continuava com “o que é natural é a união entre um homem e uma mulher, é por isso que os homossexuais são estéreis”, até a conclusão, implacável, “se o meu filho é homossexual prefiro matar ele”. E esse filho era eu.
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A criança a ser protegida da Frigide Barjot é o resultado de um dispositivo pedagógico terrível, o lugar onde se projetam todos os fantasmas, a justificativa que permite que o adulto naturalize a norma. A biopolítica51 é vivípara e pedófila. A reprodução nacional depende disso. A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma ronda os corpos meigos. Se você não é heterossexual, é a morte o que te espera. A polícia de gênero exige qualidades diferentes do menino e da menina. Dá forma aos corpos com o objetivo de desenhar órgãos sexuais complementares. Prepara a reprodução da norma, da escola até o Congresso, transformando isso numa questão comercial. A criança que a Frigide Barjot deseja proteger é a criatura de uma máquina despótica: um copeísta diminuído que faz campanha para a morte em nome da proteção da vida. Lembro do dia em que, na minha escola de freiras, Irmãs Reconstituidoras do Sagrado Coração de Jesus, a madre Pilar nos pediu para desenhar a nossa futura família. Eu tinha sete anos. Desenhei eu casada com a minha melhor amiga, Marta, três crianças e vários cachorros e gatas. Eu tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia casamento para todos, adoção, PMA… Alguns dias depois a escola enviou uma carta à minha casa, aconselhando os meus pais a me levarem a um psiquiatra, para consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual. Depois dessa visita, vieram várias represálias. O desprezo e a rejeição do meu pai, a vergonha e a culpa da minha mãe. Na escola foi espalhado o rumor de que eu era lésbica. Uma manifestação de copeístas e frigide-barjotianos era organizada todos os dias na frente da minha sala de aula. “Sai daí sapatão, diziam, você vai ser violada para aprender a beijar como Deus ensinou.” Eu tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da depressão, da exclusão, da violência. O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo, e a morte. Eu tinha um pai e 51
Conceito de Michel Foucault que designa um poder exercido sobre o corpo e as populações. (NT)
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uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade. Eu fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot exige para mim, a minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa os roubaram de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual. A ideologia de Frigide Barjot (que está ligada com o franquismo católico nacional daquela época) impediu àquela criança que eu era ter um pai e uma mãe que poderiam me amar e cuidar de mim. Levou muito tempo, conflitos e cicatrizes superar essa violência. Quando o governo socialista do Zapatero propôs, em 2005, a lei do casamento homossexual na Espanha, meus pais, sempre católicos praticantes de direita, se manifestaram a favor dessa lei. Eles votaram a favor do partido socialista pela primeira vez na vida deles. Eles não se manifestaram só a favor da defesa dos meus direitos, mas também para reivindicar o próprio direito deles de serem pai e mãe de uma criança nãoheterossexual. Votaram pelo direito à paternidade de todas as crianças, independentemente do seu gênero, sexo ou orientação sexual. A minha mãe me contou que teve que convencer o meu pai, mais reacionário. Ela me disse “nós também, nós também temos o direito de ser os seus pais”. Os manifestantes do dia 13 de janeiro em Paris não defenderam o direito das crianças. Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual e de gênero, como se fossem supostamente heterossexuais. Eles desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter vergonha deles, rejeitá-los e corrigi-los. Nós defendemos o direito das crianças a não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Defendemos o direito das crianças e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de esperma e futuros úteros. Defendemos o direito das crianças e dos adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem à identidade de gênero, sexo ou raça.
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expediente
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Viçosa – MG, junho de 2013.
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contos
sumĂĄrio n.1 | jan-jun | 2013 | ISSN 2317-4722
1
Editorial
3
Bailarina da Meia-Noite
8
Latejantes Horas
Ana Paula Lopes
Brenda Mar(que)s Pena
10
Toque desejo da morte
13
A mulher do balaio
18
Naquela tarde, em que encontrei Mykaela Wondracek
Deirka Hangelus
Estela da Silva Leonardo
Francisco Nunes
21
Festa com BufĂŞ
24
The Gun
Maria Beatriz Del Peloso Ramos
Lisa Allen-Agostini
editorial Caro leitor, cara leitora: É com muito orgulho e alegria que venho apresentar a primeira edição da seção de prosa da Revista Jangada. Este é um projeto antigo que, agora, graças ao apoio de uma maravilhosa comissão editorial e de autores estupendos de vários cantos do nosso país (e de outros países), se concretiza nas próximas páginas que você terá o prazer de ler. Para o dossiê temático Narrativas urbanas, recebemos tanto o material produzido em minhas oficinas de escrita criativa, quanto contos inéditos submetidos para avaliação de nossos editores. Na seleção de textos escritos por alunos de graduação da UFV, em minhas oficinas, a poesia não se deixa sufocar em meio ao caos e à frieza dos edifícios. Solidão, angústia, amores contrariados, alegrias infantis: tudo se mescla, rompendo muros e rachando estruturas - das casas e das almas. Isso pode ser evidenciado na prosa de escritoras iniciantes, mas já com o gérmen de uma criação literária produtiva, como é o caso dos contos Bailarina da Meia-Noite, de Ana Paula Lopes, Toque desejo da morte, de Deirka Hangelus e A mulher do balaio, de Estela da Silva Leonardo. Além dessas contribuições, somos agraciados com a escrita sensual e provocativa de Brenda Mar(que)s Pena, que em seu conto Latejantes Horas nos faz passear por sutilezas do universo cotidiano, constatando nossa própria impotência diante da força de uma espécie de pulsão metamorfoseada em várias ―pequenas epifanias‖, citando Caio Fernando Abreu, mas em constante diálogo com a sua essência mítica – o que, por isso mesmo, a torna mais visceral e ambígua. Já nos contos Naquela tarde, em que encontrei Mykaela Wondracek, de Francisco Nunes e Festa com Bufê, de Maria Beatriz Del Peloso Ramos, o leitor e a leitora se colocam diante de situações inusitadas, às vezes absurdas, nas vivências cotidianas de personagens extremamente familiares, em grandes centros urbanos. O caos das vivências na urbe, nesse caso, se apossa da própria estrutura narrativa das criações literárias, reconfigurando-a, transformando-a em parte da arquitetura e do espaço sensorial (e cultural) das cidades contemporâneas. Destacamos, finalmente, a contribuição da colega Lisa Allen-Agostini, escritora de Trinidad e Tobago, que sempre nos agracia com sua simpatia
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indescritível e sua prosa incomparável. Desde que conheci Lisa na Universidade de Miami e a encontrei, posteriormente, no Boca’s festival, pude conhecer de forma mais aprofundada um fragmento dessa arte caribenha que muitas vezes escapa de nosso conhecimento. Nesse sentido, The Gun é um conto duplamente importante: ao mesmo tempo em que nos insere, apreensivos, em um enredo arrebatador, apresentanos a uma literatura relativamente nova a nós brasileiros. Desejo-lhes uma ótima leitura!
Juan Filipe Stacul Editor Chefe
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contos Bailarina da Meia-Noite Ana Paula Lopes
N
aquela noite de ano novo, eu estava em meu escritório tentando escrever um novo conto, porém nada me trazia inspiração. Não havendo mais ninguém em casa, o silêncio do lugar começava a me angustiar. ―Como era possível eu estar tão só numa noite de ano
novo?‖, pensava comigo. E a rua, toda iluminada pelos restos de decoração de natal, somente aumentava minha solidão. Não digo que isso é ruim. Não é. Pois se não fosse a solidão da noite, o que seria dos grandes poetas? De qualquer forma, não há companhia mais sincera nessas horas do que uma boa e triste trilha sonora. Pensando assim, busquei, entre meus discos, algo que pudesse embalar uma noite festiva e solitária. A valsa começou a se espalhar pelo ar. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando, de fato, absorver cada nota como se fosse o perfume de dama da noite. E é nessas horas que o destino nos faz voltar no tempo e se arrepender das escolhas erradas que fizemos na vida e, talvez, até se perguntar como estaríamos hoje se tivéssemos tomado outros caminhos no passado. Aquela música me trouxe um rosto do passado, cuja dona fazia tempo que não ilustrava meus pensamentos. Onde andará Amanda? Uma velha amiga, personagem de minha juventude. Amanda era uma mocinha alegre que morava no meu bairro quando eu tinha por volta dos dezoito anos. Conhecemo-nos por acaso, mas, desde então, nos tornamos os melhores amigos. Pobre Amanda... Seu único pecado foi me amar demais, enquanto eu fingia desconhecer este amor, pois queria manter nossa amizade e sabia que não poderia machucá-la. O curioso é que ela era bailarina e, mesmo com a nossa grande amizade, só a vi dançar uma vez, no seu aniversário de dezoito anos. No tempo, eu estudava fora. Mas tão insistente era a moça, que me fez largar os estudos para vir vê-la. A festa era
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na casa dela, no salão de festas. Ela veio me receber na rua, com um sorriso que mal lhe cabia nos lábios. – Achei que não viesse... Ela disse com uma pitada de sensualidade na voz caprichosa. – Eu prometi que viria. Respondi num abraço forte. Feliz aniversário. Amanda estava linda. Vestia um vestido azul e os cabelos soltos em belos cachos castanhos. Pela primeira vez, senti que podíamos realmente ficar juntos. Ela estava tão feliz ao meu lado que parecia estar diante de seu grande ídolo. Mesmo assim, se continha na pose de moça educada e fina da época. Passamos a noite nos divertindo naquele grande jantar de aniversário. Já no fim da noite, todos já haviam jantado, ela veio até mim e disse baixinho ao meu ouvido. – Precisamos conversar. Venha comigo. Ela me levou até o jardim, onde não havia ninguém além de nós dois. Já não sorria. Parecia que estava prestes a me dizer algo muito sério. No fundo, sempre soube que chegaria a hora em que ela não seguraria mais o segredo do seu amor por mim. Mas eu não estava preparado. Estava com vinte anos na época, namorava uma moça na cidade onde morava, queria mais me divertir. Definitivamente aquela não era a melhor hora! Ela começou a falar. – Sabe que eu nunca entendi os homens? Já eu não havia entendido a pergunta, o que ela queria dizer com aquilo? Ela continuou. – O que tem de errado comigo? Por que ninguém me quer? Amanda já não sorria. Agora parecia querer chorar. Senti o coração apertado ao ver minha amiga daquele jeito. – Não há nada de errado com você, Amanda, você é bonita, inteligente, engraçada... – E que diferença faz? Ela me interrompeu. Eu estou sozinha do mesmo jeito. – Não é verdade. Garanto que tem um monte de pretendentes na cidade... Ela lançou-me um olhar raivoso, como se fosse me atacar, e disse: – Como amiga!
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Senti que aquele ―amiga‖ tinha vindo na intenção de me agredir. Mas tentei disfarçar e contornar a situação. – Talvez você não tenha percebido, mas você tem tudo para que qualquer um se apaixone por você. Não há como te conhecer e não se apaixonar! Você pode ter quem você quiser... Amanda me deu as costas perdendo o olhar entre constelações na noite escura. – Eu não pude ter você... Amanda disse baixinho, encolhendo os ombros, como quem se fecha de vergonha. – Amanda, você sabe que eu gosto de você, você é minha melhor... – Amiga? Ela me interrompeu novamente, mas agora em lágrimas. Acha que tudo que eu fiz por você foi porque queria ser sua amiga? Você não entende não é? – Amanda... – Não. Ela continuou. Você não entende. Mas não se preocupe que eu vou te explicar... eu menti. Esperava que depois de dois anos você entendesse, mas não... – Amanda, o que foi? – Eu queria que você me visse, pelo menos uma vez, não como sua melhor amiga, mas como mulher! Queria que soubesse quanto o amo, de todo meu coração e com toda a minha alma. Queria que correspondesse, mas não! Sempre serei sua amiga! – Amanda, eu não estou entendendo... Por que isso agora? – Eu vou me casar! Agora entendeu? Esse ano que você passou fora, eu conheci o ―homem certo‖ de que você tanto falava que um dia eu encontraria. Eu fiquei noiva e vou me casar. Mas adivinha: o homem certo não é assim tão certo, sabia? Eu estava confuso. Amanda acabara de se declarar em prantos a mim porque ia se casar. Não era algo que fizesse sentido, ou pelo menos, não fazia pra mim. – Apesar de ser perfeito, o principal ele não tem. Porque meu coração a ti pertence! E nunca se importou com isso. Estou lhe dando uma última chance... Diga que me ama e eu termino meu noivado agora mesmo. Serei sua. Caso contrário, não me procure mais, está bem?
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Naquele exato momento, uma tia dela veio procurá-la para dizer que a esperavam para a valsa. Eu, porém, nada tinha respondido à pobre moça. Mas esta secou as lágrimas com as costas das mãos e, tomando-me as mãos, disse: – Última chance... Diante de tudo aquilo, mil coisas se passavam pela minha mente. Amanda ia se casar? Em nenhuma das cartas ela havia mencionado sequer um namorado. Eu senti uma angústia, um nó na garganta. Amanda era minha melhor amiga, sempre a vi assim, eu não podia simplesmente dizer que a amava sem que eu realmente sentisse isso. Por isso, tudo que eu pude dizer foi: – Me desculpe. Amanda sorriu com uma imensa doçura nos olhos molhados e respondeu: – Tudo bem, eu já esperava por isso. E para a tia: diga a todos que dançarei Valsa da Despedida e que dançarei sozinha. A tia se espantou com o pedido. – Mas e o seu... – Diga a ele que hoje dançarei sozinha. Amanda respondeu. Por favor... E assim ela fez. Foi até o centro do salão e valsou sozinha. Foi a última vez que a vi. Não sei se se casou ou se teve filhos, nunca mais tive notícias. Fazia anos que não pensava nela, por que me lembrei logo agora? Fui até a janela. Os fogos do ano novo começavam a estourar no céu. O telefone tocou. Fui atender. A voz do outro lado começou a falar: – Alô? Por favor, o Professor Moreira mora aí? – Sou eu. Quem fala? – Não sei se o senhor vai se lembrar, já faz cinqüenta anos, mas minha avó precisa te ver. Lembra-se da Amanda? Anotei o endereço e foi imediatamente até lá. Ainda da porta, pude ouvir a valsa tocar. Quantas recordações me traziam aquelas notas... Bati à porta. Logo fui atendido por uma mocinha com um sorriso alegre. – Professor Moreira? Ela sussurrou. – Sim. – Ela está no quarto, mas não sabe que te chamei. Espero que saiba aproveitar bem a surpresa.
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A mocinha me levou até Amanda. Lá estava ela deitada na cama. O tempo havia lhe levado a juventude, mas não o brilho no olhar. O mesmo brilho de quando me viu chegar ao seu aniversário de dezoito anos, eu via agora ao me receber. Senteime numa cadeira à cabeceira da cama. Ela tomou minhas mãos e, olhando em meus olhos, disse: – Última chance... Não posso esperar mais cinqüenta anos. Eu sorri, ali estava minha velha amiga. Como pudemos nos separar por tanto tempo? Eu não conseguia me perdoar por ter deixado que isso acontecesse. – Senti sua falta, minha amiga. Bailarina da meia noite. – Tudo bem, eu já esperava por isso. – Amanda, eu te amo. Amanda sorriu docemente e, num suspiro profundo, adormeceu ao meu lado, dizendo: – Eu sempre soube disso.
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Latejantes Horas Brenda Mar(que)s Pena
A
água fria de uma fonte escorria a sonorizar a tarde pela janela; os micos, pássaros e cigarras continuavam seu canto, formando uma paisagem peculiar de um lugarejo longe da agitação urbana. Mas, diante de toda calmaria, algo pulsava freneticamente das entranhas e todo ambiente se
rompeu em uma hora latejante, como um martelo a destruir cada veia do cérebro com o seu barulho ensurdecedor. Assim, certo dia sentiu o homem que buscava nas montanhas de Minas refúgio para as preocupações cotidianas. Mas afinal, o que era aquele ruído latente nos tímpanos que fazia a cabeça doer além do insuportável, a ponto dos sentidos irem se esvaindo pouco a pouco? A sensação provocada era como de uma morte súbita: o coração a bombear mais sangue que o normal, a ponto de entupir veias e artérias. A pressão daquelas horas era demasiada e diante daquela dor flamejante, interrompeu-se o encanto da mata. O que teria provocado aquela perturbante sensação? A resposta estaria nas águas, em alguma picada de um inseto peçonhento ou quem sabe teria sido provocada por uma outra pessoa? A evidência mostra que aquele homem em busca de refúgio nas Minas Gerais procurava também o que de mais precioso surge por estas terras, entre todas as belezas naturais escondidas pelas cidades e povoados montanhosos: a liquessência perfumada de uma figura feminina, capaz de provocar ao mesmo tempo paz e inquietude, como se os pulsos fossem cortados de uma só vez, mas a vida não se esvaísse neste limiar entre vivenciar o extremo de existir ou não neste plano e fosse necessário mais energia e fluído do que o corpo é capaz de produzir. Diante daquela sensação provocada por alguns instantes de fulgor intenso, aquelas horas despertaram a plenitude capaz de elevar o corpo a estágios pulsantes únicos e desencarnar naquele momento não seria exatamente migrar para o paraíso. Como desejar livrar-se de um momento de permanência ou pelo menos de vislumbre da possibilidade de outras experiências sensoriais como esta? Só a recordação
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daqueles momentos já poderia provocar calafrios, despertar os sentidos mais íntimos, exalar cheiros e desencadear pulsações provocadas pela memória latente. E neste ímpeto de recobrar o fôlego e o pulso, a respiração difícil foi voltando aos poucos e a dor se aliviando diante da visão da mulher que carregava dentro dela um rio, capaz de ao desviar de curso despejar tanto líquido, que alagava qualquer ambiente. Assim, naquela tarde, diante da fonte de água, no meio do som de pássaros, cigarras e macacos, antes de mais um pôr-do-sol, depois do cérebro pulsar como um terremoto, a vida daquele homem não se foi, mas tampouco permaneceu sendo a mesma e jamais seria, desde que ele provou o suco daquela mulher, destilado de prazer intenso. Foi necessário para ele nadar todo o Atlântico e atravessar continentes só para perceber que a cura para toda dor encontrar-se-ia no soro antiofídico, roubado do próprio veneno da víbora: a encantadora Lilith a perturbar para sempre seus sonhos e a lhe tirar do seu lugar, levando-o para o rio dos prazeres intensos, nos extremos onde todo o líquido corpóreo jorra e as pulsações alcançam o estágio em que a matéria e o tempo de tornam ilimitados. E neste novo estado de ser, não se pode explicar os limiares entre o deleite pleno e o sentir-se morto por um momento, uma pequena morte que leva a liberdade, ao respirar, ao menos por uma hora, latejantes sensações.
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Toque desejo da morte Deirka Hangelus
E
ra linda, uma menina muito querida, porém invejada. Sua beleza era celestial. Não havia na comunidade dos Anjos menina igual a ela. Por onde passava jovens faziam cortejo. Ela era a beleza e o coração daquela cidade.
Outono chegava, os dias eram mais lindos nesta época. Ela adorava, mas não esperava o que o destino iria aprontar. Uma armadilha cruel e dolorosa: Lúcia já não seria mais tão linda, nem especial - mas amaldiçoada. Filha caçula da família Hangelus - esta família era bem conhecida e a mais antiga da cidade, os fundadores da cidadezinha Anjos, Lúcia tinha um brilho a mais. Seus irmãos, Joseph e Arthur, eram jovens soldados, que estavam em Mariah Luz, cidade vizinha, lutando contra o rei ditador Áckilles Dímenes. Voltando a Anjos, Lúcia caminhava todos os dias. Ela ia a praça e principalmente a igreja, era muito devota dos Anjos. Acreditava na existência deles e de que podia conversar com eles enquanto dormia. A sua pureza concedia esta permissão de contato com o celestial. Era aniversário de 18 anos de Lúcia, a madrugada estava fria, e em seu quarto um vento fria insistia em bater na sua janela, ela levanta e olha lá fora. Era um temporal que estava chegando. Ventava, trovoava, relampeava, as pessoas da cidade nunca haviam visto um temporal igual aquele. Todos ficaram com medo, menos Lúcia, amava temporais. Neste dia a cobrança de uma aposta seria acertada. Fazia e já se tornava moça, deixava a pureza e a inocência para ser uma mulher, uma mulher prometida ao tirano, este seria o seu companheiro, seu amor, seu marido. Ela não queria casar, a sua vida queria aos anjos dedicar, sua família não aceitava. Deveriam, mas não podiam contar o real segredo e o motivo deste casamento forçado. Rogels era príncipe de Mahutine, um reino próximo a Anjos, ele era um grande feiticeiro e a família de Lúcia concedeu uma magia, trouxe a eles a vida de sua pequena menina, Lúcia havia nascido sem vida, sua pele era branca e fria, sua mãe em desespero prometeu se alguém conseguisse trazer e dar a vida a sua filha, a mão dela
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em casamento teria, e assim que completasse 18 anos o casamento seria realizado. Ouvindo isso muitos feiticeiros apareceram, mas nenhum conseguiu dar vida a criança. Todos estavam perdendo a esperança quando surge Rogels, o feiticeiro mais poderoso de seu reino, e o mais amaldiçoado, trazia tatuado em seu destino a praga de viver eternamente sozinho, mulher nenhum o amava. Ele deu vida a Lúcia e a sua mão teve prometida. Os dias passaram ele acompanhava de perto o crescimento de sua amada, por ela tinha um imenso amor, a desejava como nunca desejou uma mulher em sua existência, Lúcia era para ele a esperança de ser amado e desejado por uma mulher. Porém Lúcia não o correspondia, o amor dela era dos anjos, a vida dela era os seres celestiais. Rogels não gostava quando ela ficava na igreja por muito tempo, ele repudiava anjos, mas pelo amor da amada aceitava que ela fosse ir à igreja. Chega então o sai do casamento, a cidade inteira era festa, era um casamento de juramento e promessa, devia ser cumprido. Mas ninguém imaginava que seria o fim de Lúcia. Todos na igreja só faltavam à entrada da noiva. Chega Lúcia linda em um vestido branco como asas de anjos, ela estava majestosa. O casamento já ia começar, mas surge uma mulher trajada de preto, asas negras, era o Anjo da Morte que Lúcia tanto visitava escondida na igreja. Antes que houvesse algum balburdio o Anjo Khell fala que veio levar o prometido a ele e castigar o traidor de sua amizade. Ninguém naquela igreja entendeu o que o anjo queria menos a Lúcia que não aguardava a cobrança de um traidor. Naquela escuridão e na igreja todos estavam com medo, Lúcia aponta ao anjo o prometido, ele havia feito um pacto do anjo, que em troca da vida devolvida por Rogels, a dele teria que ser tomada, ele quebrou a maldição de dar vida a um ser morte, isso o libertou da maldição de eterno, o que era bom ele era mortal, mas isso custou caro, a sua amada o traiu, ele daquela igreja foi levado, em seu rosto lágrimas de um amor não correspondido escorria, em troca desta ingratidão, em sua amada condenou vida eterna. Lúcia não questionou, não havia em seu rosto resquícios de arrependimento, para ela eternidade não era nada diante de um casamento forçado. O anjo partia quando voltou-se para todos e a Lúcia disse, você traiu um homem que deu a vida sua, que a amou e protegeu dos inimigos, e a este carinho retribuiu matando-o, não posso arrancar a sua vida, mas lhe deixo a maldição todos
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aqueles que se aproximarem de você a vida perderá, você será mais sedutora e será minha serva eterna, trará muitas almas para mim. Em desespero ela fica, mas o mau já estava feito, agora era dor e mortes naquela cidade que um dia foi luz. Lúcia agoniza, todos que ela ama, perdem a vida ao aproximarem dela, ela sente em sua eternidade dor e sofrimento. Perdeu tudo, sua fé em anjos ruiu ao ódio. O seu maior erro foi deixar cordear por um anjo justo e traiçoeiro. O beijo pecado naquela igreja selava a sua maldição.
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A mulher do balaio Estela da Silva Leonardo
H
oje, pela manhã, Catarina estava já com seu balaio de frutas na cabeça. Ela vinha pela rua descalça, tropeçando nas pedras fincadas da rua. Catarina sempre foi mulher simples, que aprendeu cedo a se virar. O pai morreu há uns dois anos e deixou sua esposa aos cuidados
dela, sua única filha viva. A mãe de Catarina, dona Eulália, há muito não se via, nem na janela, onde costumava ficar. Ela estava de cama há não sei quanto tempo. Vivia então Catarina a cuidar da mãe doente e dos seus três filhos de pais incertos. Catarina já teve irmãos, dois pra ser mais exato. Um morreu ainda menino, vítima de pneumonia, e o outro morreu há uns três anos em um acerto de contas. Vive agora Catarina, seus três filhos e a mãe doente em uma casa ali na esquina. Aquela negrinha aprendeu ainda cedo a colocar comida na mesa. Uma conhecida, amiga da família, tem um sítio não muito longe daqui. Ela permitiu então, que Catarina vendesse as frutas que o sítio produzia. Este sítio tinha praticamente todo tipo de frutas. Catarina, então, todos os dias, antes do sol nascer, sai de casa rumo ao sítio, apanha suas frutas, e sai com seu balaio pelas ladeiras da cidade. Outro dia estava Catarina descendo com seu balaio na cabeça por uma ladeira não muito longe daqui, quando um sujeito saiu de um bar apressado e, sem vê-la, derrubou o balaio de frutas. Um monte de gente se ajuntou, alguns riram dela e ficou Catarina ali desnorteada no meio daquela humilhação, caída no chão vendo seu balaio e as frutas rolando a ladeira. As crianças que estavam por ali fizeram a festa com as frutas espatifadas. Umas senhoras, vizinhas do bar, ajudaram Catarina a se recompor. Uma senhorinha que observava tudo da janela sentiu pena da negrinha e quis ajudá-la. Chamou uma das crianças que estavam ali brincando e mandou que a chamassem. Mesmo sem saber do que se tratava, Catarina não queria nada além de sair dali o mais rápido possível. Pegou seu balaio vazio e entrou na casa da senhorinha que ainda observava pela janela.
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A senhora, com um olhar carregado pela velhice, nada disse. Apenas pegou um embrulho de jornal e entregou-o à negrinha. Catarina observava aquela casa, de aparência luxuosa, porém corroída pelo tempo. Viu, dentro de um armário, um conjunto de pratos e copos que reluziam, de tão brilhantes. Depois, distraiu-se observando seu reflexo em um enorme espelho. Catarina há muito perdera a vaidade, andava desarrumada, seus cabelos estavam escondidos em um lenço encardido e suas vestes estavam largas. Ela se lembrava do tempo de infância, dos vestidos e sapatos que seu pai lhe comprava. Hoje, nem sapatos podia comprar. Tinha apenas um par, que lhe ficavam sempre apertados, mas lhe serviam aos domingos, quando ia à igreja. —Moça, moça! Disse à velhinha que não entendia o silêncio da negrinha frente ao espelho. —A senhora desculpa eu pela desatenção. Catarina disse meio encabulada. A senhora entregou-lhe o embrulho e recomendou que o abrisse somente quando chegasse em casa. Mesmo sem entender o motivo de tal pedido, Catarina saiu agradecida. Nem olhou para os lados, e procurou esquivar-se o mais rápido dos curiosos que a espreitavam pelas janelas e pela porta do bar e ainda seguravam o riso do acontecimento. No caminho, Catarina ainda pensava sobre a sua imagem refletida no espelho. Tentava a todo custo lembrar-se de quando se deixou descuidar tanto, mas não se lembrava. Em poucos minutos, estava em casa, chegou até a porta do quarto onde sua mãe estava, olhou-a por um instante e foi ver onde estavam os meninos. —Pra dentro cambada! Já é tarde. Gritou bem alto a negrinha. Os meninos, que brincavam em um terreno baldio próximo, entraram. Eles, todos sujos dos pés à cabeça, foram mandados direto para o banho. Catarina, que até a esta hora havia se esquecido do embrulho que havia colocado dentro do balaio e deixado sobre a mesa, lembrou-se repentinamente do mesmo e correu a abri-lo. Não conteve as lágrimas ao ver o que tinha dentro, suas pernas estremeceram e faltou-lhe chão. Puxou uma cadeira e segurando os jornais amassados que formavam o embrulho tentava contar por entre as lágrimas as muitas notas que havia dentro do mesmo. Não conseguiu saber ao certo quanto dinheiro havia ali, contudo
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sentiu uma felicidade nunca antes sentida. Seu coração palpitava e as lágrimas desciam sem parar. Catarina colocou o embrulho já aberto em cima da mesa e aguardou alguns instantes até as lágrimas cessarem. Foi ver se os meninos já tinham terminado o banho e deu a cada um dos filhos, um pano para se secarem. Deu mais uma espiada na mãe que dormia e voltou a cozinha onde estava o embrulho. Agora, mais tranqüila, pegou as notas e desamassou-as. Nunca havia visto tanto dinheiro. Ficou sem entender o que havia acontecido. Tentava a todo custo entender o motivo que levara a velha senhora a dar-lhe tamanha quantia. Sentiu-se aliviada de um peso que a gente carrega nas costas quando as contas chegam e quando a comida falta. Agradeceu a Deus e decidiu que, no dia seguinte, voltaria à casa da senhorinha para agradecer a ajuda. Catarina foi ao fogão, esquentou um mingau de fubá que sobrara do almoço, juntou com um pouco de feijão preto batido que a vizinha lhe dera e colocou um tanto no prato de cada um dos meninos. Depois de comerem, deitou-os no colchão duro no chão da sala e apagou a luz. Logo após alimentar sua mãe, Catarina também comeu um pouco daquela mistura estranha. Veio na sua cabeça a ideia de comer algo melhor do que aquilo e decidiu que na vinda da casa da senhorinha passaria no açougue da esquina, saldaria sua dívida e compraria um bom tanto de bife. Mal pôde dormir e, dessa vez, o motivo não era o colchão duro que ressaltava as tábuas da cama. Não dormia pensando em tudo que lhe ocorrera naquele dia. O chão duro que pisara pela manhã, a cesta de frutas cheia até a boca, a humilhação na ladeira, as frutas rolando pelo chão, lembrou-se até de alguns rostos que caçoaram dela, e também das vizinhas que a ajudaram. Veio em sua mente, novamente, sua imagem refletida no espelho, pensou em comprar um espelho, há muito tempo não tinha um. Pensou na sorte que teve de conhecer aquela senhora bondosa, pensou em Deus e agradeceu a Ele. Dormiu. Quando amanheceu, Catarina não foi, como de costume, apanhar as frutas para vender. Apanhou o embrulho de notas, colocou dentro de uma sacola e saiu rumo à casa da senhora, sua salvadora. Nem terminou de subir a ladeira e viu uma movimentação estranha em torno da casa da senhora, ficou sem entender o que aquela gente toda fazia ali. Viu alguns
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conhecidos pelo caminho e passou sem falar nada com ninguém. Viu muita gente estranha, bem arrumada e muitos carros luxuosos parados na rua. Aproximando-se da casa, viu que a multidão era maior dentro da própria casa da senhora. Entrou apressada. As pessoas estranharam aquela negrinha no meio de tão distintos amigos e parentes. Alguns acharam que fosse uma empregada da casa e pediram que lhe servissem algo para beber. Catarina nem escutou os pedidos e continuou entrando, procurando aquela senhora que ela nem havia perguntado o nome no dia anterior. Viu que alguns se aglomeravam em torno de uma caixa de madeira na sala, aproximou-se procurando passagem em meio à aglomeração. Quando enfim chegou mais perto, mal pode acreditar no que via. Estava morta! Estava morta aquela senhora tão bondosa! Catarina ficou ali durante alguns instantes, imóvel. Sentia algo que não podia descrever. Sentiu tristeza pela morte de alguém que mal conhecera. Quem era aquela senhora? Por que lhe dera aquele embrulho? Sabia que sua hora chegara? Por que ela? Por que ajudar aquela moça que mal conhecera? Por que ajudar aquela pobre mulher que nem tivera o atino de perguntar seu nome? Por que ela? Por quê? As perguntas giravam em torno dela. Sua cabeça fervilhava. Sentiu-se mal, precisou retirar-se à janela, pois lhe faltava o ar. Sua vista embaralhava e teve dificuldade para chegar até lá. Ficou ali uns instantes, respirou fundo, sentiu fome. Lembrou-se que não havia comido nada antes de sair, tamanha sua pressa. Quando se sentiu melhor, começou a observar as pessoas que ali estavam. Alguns se pareciam com a senhora. Todos muito bem vestidos com roupas em tons escuros. Alguns estavam com os olhos inchados e não saíam de perto do caixão, algumas mulheres tinham os olhos parados como se ainda vissem aquela senhora ali sentada ao sofá. Catarina ficou ali por um tempo sem saber o que fazer. Sem respostas, decidiu sair. Quando alcançava a saída viu que algumas vizinhas comentavam o ocorrido. —Morreu de velhice a pobrezinha! Disse uma vizinha de frente. —Pobrezinha que nada, ela tinha muitas posses e dinheiro aos montes. Não vê as roupas de seus filhos? Não sei o que ela fazia ainda morando aqui. Disse outra vizinha em tom mais baixo.
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Resolveu ir embora e, ao alcançar a rua, agarrou a sacola em suas mãos e saiu. Pensou em contar o que ocorrera a alguns dos filhos da senhora. Desistiu no mesmo instante. Quem acreditaria nas palavras de uma negrinha? Diriam que era ladra e tomariam o dinheiro. Ela poderia ser presa e quem poderia depor a favor de uma pobre vendedora de frutas que nem sapatos possuía? Foi pra casa, sem nem se lembrar de que havia prometido a si mesma passar no açougueiro. Entrou e foi direto ao quarto da mãe que a esta hora já estava acordada. Pediu a benção e foi à cozinha, tirou de dentro da sacola o embrulho de jornais e abriu-o novamente. Dessa vez reparou um pensamento bem pequeno, que havia no canto da página de um dos jornais. Leu: “As almas belas, são as únicas que sabem o que há de grande na bondade.” François Fénelon Não entendeu muito bem a frase, mas achou bonito e pensou que aquilo significava alguma coisa. Pegou o dinheiro, retirou algumas notas do monte, guardou o restante em uma lata vazia do armário da cozinha e completou a lata com os jornais amassados. Lembrou-se dos bifes e pensou também em umas batatas. Saiu pela rua descalça. As crianças brincavam na rua. O sol estava a pino.
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Naquela tarde, em que encontrei Mykaela Wondracek Francisco Nunes
F
oi às 2. (Seu Albuquerque Maximiano sempre dizia: Não é 2, é 14 horas, 14! 2 é da manhã. o dia tem 24, dois ciclos de 12 horas. Se não explica, ninguém sabe a qual ciclo você está a se referir. Então, 14, 14 horas!) Eu cheguei 13
minutos antes das 2. As três não haviam chegado ainda. Então, esperei com paciência. Sempre fico irritado com atraso e com quem me pede paciência. Não tenho, nasci sem, não me peçam. Atrasos me irritam e minha inexistente paciência me diz que devo ir embora, deixar tudo, xingar. Sempre faço isso. Mas como ela estava com as duas, naquele dia não fiz. Esperei. O inverno estava chuvoso. Começou a chover de novo logo que cheguei. E isso aumentou a irritação, a sensação de estar perdendo tempo, de não ser respeitado pelas três, pois eu cheguei no horário, um pouco antes até como sempre faço, elas podiam ter chegado também se quisessem e me respeitassem. Mas ainda não eram 2. Nem estava muito frio. Pedi um café espresso (um dia me explicaram porque não é com x, mas esqueci. Táxi é com x e exemplo também e cada x tem um som diferente. Como pode? O x é um grande mistério pra mim. Ele me assusta um pouco, pois pode assumir personalidade. Um psicopata. É um cs ou um z. Pode ser a causa desconhecida da morte de milhões – um veneno x exterminou a população – ou aquilo que ninguém consegue explicar, mas parece óbvio pra todo mundo: o x da questão. Qual é o x da questão que não tem x e todo mundo finge que entendeu a explicação? Marque com x sua vítima. No x do mapa está o tesouro. Tudo que é multiplicado por x se torna enorme, incontável, sem medida. O café tinha uma espuma fina na superfície.) A xícara pequena era antiga, de um tempo em que tomar café fora de casa era tão comum como hoje. Mas meu pai nunca deixou. Havia perigos. Sempre há perigos. E chovia. O relógio de ponteiros havia parado, talvez há dois séculos, às 2 horas, exatamente. Eu percebi isso, pois não moveu seus ponteiros desde que cheguei. Então, fiquei em dúvida: a que horas cheguei? Às 2? Pensei ter entrado aqui 13
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minutos antes das 2, e como sei disso? E as três não estavam. Será que fui enganado por essa máquina morta e também estou atrasado. Será que o universo presenciou esse cataclisma cósmico: eu me atrasei? Poderia, por culpa de algum inconseqüente balconista que não deu corda no bonito relógio antigo de ponteiros, ter havido, pela primeira vez desde que o tempo foi criado, que, enganado, atrasado eu estava e estou? A xícara (começa com x) tremeu em minha mão, sangrando um pouco de café com espuma no pires imaculado. Pousei-a com cuidado, temendo ser tomado de raiva e me vendo jogá-la na parede – não, no relógio, no balconista. As três talvez já tenham passado por aqui, talvez elas se tenham surpreendido e irritado com meu atraso e já tenham partido, já tenham tomado café em xícaras brancas e continuado a vida sem o incômodo de me esperarem por, quem sabe?, quantas horas, já estejam espalhando a conhecidos e desconhecidos que eu, inacreditável mas verdadeiramente e primeira vez, havia – quase dói só pensar nisso – perdido um compromisso por atraso. Uma atitude perversa delas, desumana, mas justificável. Eu as havia ofendido cruelmente, iludido, desperdiçado seu tempo. Tempo, tempo, tempo, o tempo parado no relógio me condena, joga na minha cara meu pecado venial, minha vileza. O café está frio. A espuma sumiu. O sangue no pires parece ter secado. Os ponteiros imóveis perpetuam meu crime. Tão brilhante quanto o relâmpago lá fora, uma idéia surge diante de mim, quase fazendo com que eu sorria. E se eu perguntar as horas? Tremi. Minha mão conteve-se de derrubar a xícara. Coração disparou, assustado. Olhei ao redor, para me certificar de que ninguém tinha ouvido meu pensamento profano. Quem havia pensado tamanha estupidez dentro de mim? Não podia ter vindo de mim mesmo sugerir-me expor-me (som de s) aos outros, fazê-los pensar que eu pensava ser possível eu estar atrasado. Todos sabem que isso é impossível! A frágil tessitura do cosmos seria irreparavelmente abalada se as pessoas apenas aventassem a possibilidade: ele se atrasou. O relógio continuava parado e alguém pediu um café com leite e uma coxinha (outro x). Respirei fundo, expulsando (e ele muda de som de novo. É louco!) aquele pensamento suicida, voltando à sobriedade, ao controle de tudo. Preciso pensar com clareza, com calma, sem deixar ninguém perceber o que se passa. Com a
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voz o mais natural possível, peça mais um café forte, sem açúcar. O balconista ouviu atentamente e sorriu. Estava tudo no lugar uma vez mais. Por enquanto. A chuva havia parado. Só frio. Tentei ver, por aquela janela baixa com cortinas vermelhas ensebadas, se havia algum grande relógio lá fora, em algum lugar. Mas eu sabia que não havia. Um homem parou na calçada e olhou o relógio no pulso, depois olhou para mim, como se soubesse que eu precisava daquela informação. Mas não me viu e nada disse. Continuou caminhando, levando consigo seu relógio vital. A hora certa foi embora com ele. Comigo ficou a angústia. As engrenagens precisas se tornaram o mecanismo mais importante da vida. Aquele conjunto minucioso de diâmetros, dentes, corda, eixos, distâncias agora detinha o poder de macular ou resguardar meu caráter, meu nome, minha reputação. E ele estava parado na parede, no pulso do homem que já ia longe, de posse de estranhos hostis. E talvez as três, a essa hora, já estivessem divulgando para as fofoqueiras e as colunistas sociais da cidade: cansamos de esperar, fomos embora, ele, sim, ele! atrasou-se, não apareceu, falhou. Um homem levantou-se, colocou na cabeça o chapéu que estava sobre a mesa, ajeitou-se, pegou a bengala que encostara à cadeira. Tirou da algibeira um relógio, um grande e belo relógio pendurado ao final de uma corrente de ouro. Fitei meus olhos nele, esperançoso. Aparentemente sem nenhuma razão, o homem não o consultou. Olhou para os lados, talvez tentando recordar se já havia pago o croissant com café sem açúcar que havia comido. Inclinou-se um pouco para o lado, ajeitando a perna que parecia não ter força e apoiando-se na bengala. Trouxe o relógio à altura dos olhos. Parei de respirar. Quase gritei-lhe que dissesse em voz alta que horas eram. Ele cerrou os olhos. Parecia não enxergar direito, só com o esquerdo. E o silêncio. Tudo em silêncio. Todos em silêncio. A expressão no rosto enrugado foi primeiro de preocupação (estaria atrasado também?), mas logo se abriu num sorriso quase infantil (teria descoberto que sobrava tempo?). Encaminhou-se para a porta, relógio ainda na mão, arrastando consigo o segredo eterno do instante marcado pelos ponteiros. Ninguém o impediria? A porta se abriu. Ele saiu. Ela entrou. Com as duas, com xale xadrez. Viramme. ―Você, hein?!, sempre pontual!‖ O ponteiro dos minutos do relógio da parede começou a se mover. Ele largou a bengala e, saltitante, seguiu pelo calçadão.
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Festa com Bufê Maria Beatriz Del Peloso Ramos
P
or favor, para a Avenida Rio Branco, esquina com Sete de Setembro. - É pra já; graças a Deus a senhora vai para o centro. Estou vindo
de Copacabana e fiquei engarrafado mais de duas horas. Aquilo lá está uma
loucura, o trânsito todo parado; sei lá porque, acho que são uns presidentes ou políticos que estão visitando o Rio; tem cordão de isolamento, segurança, patrulha pra tudo quanto é lado, está uma confusão. Vou deixar a senhora no centro e sigo direto para casa. Hoje já deu tudo errado mesmo, é melhor eu recolher mais cedo. Passei o dia tentando telefonar para o meu garoto, a gente ia se encontrar no escritório onde ele trabalha, esperei a manhã toda, nem trabalhei direito, e agora ele telefona e diz que não pode sair porque o chefe pediu um serviço extra. E, só agora, ele me avisa! Esse meu garoto mais velho é office-boy num escritório de advogados, e disse que ia me arranjar um muito bom para pegar minha causa; a senhora vê, meu táxi é novinho, pago as prestações com o maior sacrifício, agora atrasei duas e a financeira quer que eu pague três de uma só vez! Como é que pode? Diz que não recebe as duas atrasadas, só se eu pagar três juntas. Dá pra entender? Eu quero pagar duas, três juntas não posso. E era justo hoje, que meu garoto ia me apresentar ao advogado para resolver esse abacaxi para mim. Mas, filho é isso mesmo! Não se pode contar com eles para nada. Só na hora que eles querem; e o celular só serve para ele falar que depois me liga, que agora não dá. Não dá nunca e a mania de dizer:- depois eu retorno- é conversa fiada! Fiquei esperando um tempão, retornou coisa nenhuma. Quando eu ligo, está na caixa postal. Ah, vá pro diabo! Perdi meu dia de trabalho, não faturei nada, e ele me dá esse bolo. Mas, sábado ele está lá em casa, com a mulher, as crianças, todos para dormir, comer e ligar os ventiladores o dia inteiro. Até a conta da água já aumentou. Minha mulher dana de comprar comida diferente, diz que é para agradar a sogra do meu garoto que, agora, também passa o domingo lá em casa, leva um cachorro fino e orelhudo que ela tem, cachorro que toma mingau de manhã e só anda no colo dela. Já viu disso? Minha mulher está pensando em aumentar o puxadinho dos fundos e botar uma cama para a sogra. Aí mesmo que ela vai chegar na sexta-feira e só vai embora no domingo, depois do lanche. Mortadela é
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pobre, tem de ser presunto! Diz que se comer mortadela fica com dor de cabeça. Dor de cabeça eu que sinto, minha senhora, doze, quatorze horas nesse inferno de calor, nesse trânsito engarrafado e atolado de manhã à noite. Eu era bacana, bem apanhado, usava camisa de botão, perfume, tinha um monte de morena que me queria; agora estou gordo, com o colesterol alto, fazer o quê? Meu filho do meio está tentando tirar o 1º grau, já faz tempo, mas diz que quer tocar numa banda. Isso lá enche barriga? Não vai dar em nada. A caçula, se Deus quiser, um dia vai para a faculdade. Vou fazer questão de levar a menina de táxi, toda manhã, até o prédio grande da universidade, lá perto de casa, no Maracanã, e quero vê-la entrando com a mochila pesada, cheia de livro; e depois que tirar o diploma, na hora de preencher essas fichas que a gente tem que preencher, pela vida afora, ela vai poder escrever, no quadradinho da escolaridade, um superior, bem bonito.Vai dar tudo certo, é só ela despachar aquele moleque que fica à toa, conversando no portão lá de casa, quer dizer, ele acha que conversa, mas não fala nada, parece um empacado, a gente pergunta as coisas e é um custo para ele responder; quando responde, diz um -éhchocho ou um -valeu-, e só. Cara sem graça esse, e está rondando demais; já falei para minha mulher ficar atenta, tem que botar olho nele. Pela menina, passei a vida economizando. Todo final de mês tiro o dinheiro da prestação do táxi, da despesa da casa e o resto entrego limpinho à minha mulher para ela depositar na poupança. Porque o salário dela, da faxina no shopping, é só para as coisinhas miúdas. Mês passado, tive que comprar uma roupa nova porque foi o casamento da minha cunhada e a mulher falou que a festa era chique e que eu precisava de um terno bom. A cunhada contratou até um bufê. Eu estava doido para ir numa festa com bufê. Nunca tinha ido, nem sabia como era. Coisa fina, muito salgadinho, bebida de qualidade, garçom oferecendo uns aperitivos caprichados, de primeira aquele bufê. O colarinho da camisa me incomodou um pouco, porque estava apertado, meu pescoço é grosso, mas eu estava gostando do bufê, o garçom chegava, olhava, oferecia, eu aceitava, pegava um guardanapo, agradecia, comia, e assim foi a noite toda até que minha menina sentou-se do meu lado e perguntou: -Está gostando da festa, pai? -Está ótima, muita fartura! -Sabe quem pagou o bufê?
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-Sua tia, ora. -Não pai, foi você. Eu, minha senhora, eu paguei por aquele bufê. Minha mulher mexeu na poupança. Aliás, há muito, eu desconfiava que ela vinha mexendo. Desde quando o pai dela morreu e eu tive que enterrar o velho, percebi que já estava faltando dinheiro na conta. Depois, vieram os lanches no shopping com as colegas, os aniversários, sorvetes com não sei quantas bolas e caldas, uma blusinha da moda, a sandalinha da liquidação e eu sustentando a farra. É por isso que eu atrasei as prestações. Mas a festa com bufê acabou. Agora, quem guarda o dinheiro sou eu. E a madame que contratou o bufê, que nem está falando direito comigo, acorda todo dia, duas horas mais cedo, e com a cara amarrada vai para a cozinha fazer comida, porque arroz e feijão a quilo, no restaurante do shopping é caro, pesa muito, e ela bate um prato de trabalhador de todo tamanho; e, além de ser pobre, é cheia de luxo, diz que não come feijão de véspera, nem arroz dormido; os dois têm de ser fresquinhos, feitos na hora. Pois então é isso: ou a madame leva de casa, ou passa fome. Vai ficar com raiva de mim, pode morrer de vergonha, mas vai ter que carregar, todos os dias, a bolsa marmitex dupla, forrada de isopor e alça de náilon, se quiser comida farta e quente. E agora, eu é que estou me divertindo com a festa da marmita, sem pagar nada. Chegamos, minha senhora.
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The Gun1 Lisa Allen-Agostini
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he pothole was an open sore on the scabbed road. Justin walked around it and hitched his book bag high on his shoulder so the trailing ends of the straps wouldn‘t drag in the pool of mud and stain his crisply starched
school shirt and pants. He had spent half an hour ironing his uniform that morning. He was careful, too, to step where his clean black suede Clarks would stay storefresh, away from the orange-brown sludge left by rain on the roughly paved ground. It was 8:15 and he wouldn‘t have time to clean the boots again before he got to school. The first bell had already gone, he knew. Lichelle was lagging; he gave her hand a little tug and she sped up behind him. ―Way, faddah,‖ called a clean-shaven boy leaning on a mango tree a few feet down the street. ―I have it nice this morning, eh!‖ He plucked a cigarette from behind his ear, holding his other hand loosely clenched, palm up, at waist height. His Clarks were just as pristine as Justin‘s, but he was wearing an NBA basketball uniform, not school clothes. The bright white of the silky vest dazzled Justin‘s eyes; the sun had come out and dappled the other boy through the spears of lush green leaves. ―What happen now, faddah,‖ Justin replied. He and Lichelle didn‘t break stride. The other boy grinned as they passed him. A thin black puppy ambled across Justin‘s path and he focused on the fluffy hair sheathing its protruding ribs. A patch of mange was spreading across its bony hips. Lichelle giggled. ―Pedro, bathe your dog, nah. Look he getting minge.‖ Pedro pursed his lips and made a kissing noise; the puppy turned to look at him but swiveled back its wolfish head and made to follow the boy and girl walking down the street. ―Like Mackie going to school with you today or what, Lichelle?‖ The boy called the dog again and it halted, looking with longing at Justin as he walked away. Justin shook his head and went on. ―Check me when school done, nah,
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This story was first published in sx salon, issue 5.
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faddah. If I not here I inside. Wake me up if is anything.‖ But Justin was nearly out of earshot already. Justin liked Mackie. He wished he could stop and tickle his pointed ears and snout. When he had the time he liked to sit under the mango tree on a makeshift seat of cardboard stacked on an old beer crate with Mackie‘s head on his lap or his paws on his chest. He never let the other boy see it when Mackie licked his face with a soft, wet tongue, his shaggy tail wagging so hard his whole body snaked after it. Justin glanced back at Mackie and saw the puppy lapping water from the pothole behind him. Out of the corner of his eye he saw Pedro lick the end of the joint he had finished rolling. Pricking his ears at the rumble of an approaching car, Justin hurried to the corner, pulling Lichelle behind him. He flagged down the black sedan and they ducked inside the back seat when it pulled to a stop in front of them. Justin caught the gaze of the driver and raised his chin in greeting. ―Morning, Ben.‖ The driver grunted a response. Music boomed from speakers as big as buckets embedded in the car‘s interior; Justin bobbed his head and sang along with the song. It was one of his favourites: Money, money, money, ha ha! My money money money, ha ha! chanted the singer in Jamaican patois. Me have money in a jug, money in a paint pan . . . Lichelle‘s voiced piped up, interrupting Justin‘s singing. ―Jussie, why Pedro does treat Mackie so?‖ ―Because Mackie is a pot hound.‖ ―So?‖ ―So,‖ he said in a slow voice, ―Mackie mother is a pedigree pit bull. Pedro vex because a boy pot hound come in the yard and breed she when she was in season.‖ ―What is ‗in season,‘ Jussie?‖ He rolled his eyes but continued to answer without impatience. ―That is when lady dogs does be ready to have babies.‖ ―Oh. But Mackie nice. Why Pedro does treat him so bad?‖ ―Because Pedro find Mackie not as good as a real pit bull. That is why Mackie does have to thief food from the mother dog and Pedro doesn‘t feed him. And that
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is why Pedro does let Mackie run in the road so. All the other puppies in the litter, Mackie brothers and sisters, done get bounce down in the road already and dead.‖ ―They dead?‖ Her eyes were shiny and wide. ―I don‘t like Pedro. Ent that is Mackie mother tie up by the side of Pedro house? Why Pedro don‘t tie up Mackie like he does tie up the mother dog?‖ ―You want me drop she in school, star?‖ Ben interrupted, again meeting Justin‘s eyes in the rearview mirror. The car was paused at the entrance to the lane leading to Lichelle‘s school. ―Yeah, me ain‘t ‘fraid that,‖ Justin replied. It would save him a few minutes if she were taken right to her school gate, otherwise he‘d have to get out, walk her to the gate, walk back out, and take another taxi to his own school—although, since he was already late, it didn‘t really matter either way. The driver jerked his head in acknowledgement. Sunlight bounced off his gold-rimmed sunglasses and the gold sticker on the brim of his baseball cap. As she was leaving the car, Lichelle hesitated. ―Mammy didn‘t give me the money for the book, Jussie. Miss say I have to bring it today or I go get licks.‖ Her small bottom lip trembled. Justin wordlessly handed over a twenty. She beamed as she took it, her tears and fears drying up. ―Don‘t lose it, eh, Lichelle!‖ Justin called through the open door to the child as she gamboled to the gate clutching the bill in a tiny fist. She waved goodbye. Justin, alone in the back seat, closed his eyes and leaned back into the plush leather, humming to the music. Heavy black tint on the windows kept the car‘s interior cool and dim in the back. As the shiny car pulled up outside the school gate, Justin grabbed five dollars from his book bag and passed it to Ben. ―Nah, don‘t worry,‖ the driver said, waving the money away. ―I see how you handle your sister with your lunch money. Buy a corn curls or a Chubby or something with that. I was coming right here anyway.‖ On the sidewalk, Justin squinted at the spinning glittering chrome rims on the car‘s wheels as they whirled away from him. He hoisted his bag again and squeezed through the small gap the security guard left open for latecomers. As he hustled past the guard booth, he heard a gravelly voice call his name and skidded to a stop.
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―Morning, Sir,‖ Justin mumbled to the tall, fat teacher stalking towards him. ―You‘re late again.‖ The teacher stood in front of him with arms crossed and a sneer on his face. ―What is your excuse this time, Huggins?‖ ―Sir, my mother wasn‘t home and I had was to give my little sister she breakfast, Sir.‖ The sneer deepened. ―Eh heh? And where your mother was?‖ Justin didn‘t answer. ―Cat got your tongue, boy?‖ The teacher‘s eyes bulged under a sweaty forehead. Justin kept his head down and looked at the ground but in his peripheral vision he could see damp blossoms of dark perspiration at the teacher‘s armpits. The boy focused his gaze on the teacher‘s shoes, scuffed brown loafers badly worn at the heels. The teacher‘s shadow fell sharp and black between their feet. In the waiting silence, the shadow on the ground disappeared. The air grew chilly. The sun had gone behind a cloud. Sucking his teeth, the teacher shoved Justin to the office and waited while he signed the late book. ―Miss Jones,‖ he said to a pretty young secretary who was slowly typing at a bulky computer behind the counter, ―could you check how many lates Huggins has had this week?‖ ―Yes, Mr. Peters,‖ she said. Her high voice was a reedy whisper. Justin, his head still down, saw her saunter from her chair to flick through the foolscap pages of the ruled notebook. ―Ahhhmmmm . . . six, Mr. Peters.‖ ―But, Miss,‖ Justin protested, his eyes boring into hers, ―how I go be late six times in one week when it only have five days in the week?‖ Mr. Peters wrapped a massive hand around the top of Justin‘s arm and shook him hard. ―Boy, stop talking back.‖ He turned back to Miss Jones, his snarl turning to a purr. ―Are you sure? Double check it, please.‖ Miss Jones giggled, whipping her head to one side to flip the long bangs of her weave from her eyes. ―Oh, gosh, I make a mistake, yes! Is three this week and three last week, Mr. Peters. Huggins? Yes, three last week and three this week. And today is only Wednesday!‖ The teacher gave her a toothy grin that vanished when he wrenched Justin around to face him. ―You know three lates is a detention, Huggins.‖
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―Yes, Sir, but I can‘t stay late today, Sir, my sister—‖ ―Don‘t argue with me, boy. You boys always have an excuse. Don‘t you know that without an education you have no future?‖ The hand on Justin‘s arm was a vice. ―You have detention. Come by the courts as soon as the last bell rings. Don‘t be late. If you don‘t come I‘ll have to call your mother in. Maybe I‘ll finally get to meet this mystery lady.‖ Justin‘s sleeve was wrinkled when Mr. Peters let him go. The boy brushed at the wrinkles but it was no use; he sucked his teeth softly and left Mr. Peters leaning on the office counter in front of the slender girl. The rain was falling again. He ran to his classroom, dodging drops as solid as bullets. * Lichelle‘s screams pierced his ears. Justin eased through the back door, silently slipping off his boots before tiptoeing through the kitchen and whisking aside the curtain over the bedroom door. He could hear his mother shouting and the crack of a slap that made Lichelle scream even harder. He took off his bag and threw it aside. It fell next to a cardboard barrel, the only object in the room other than a sagging double bed, and Justin left it there. The barrel overflowed with clothes; he shucked his shirt, khaki pants and socks and snatched up a pair of football shorts entangled with a sequined brassiere. He tossed the bra back, dragged the shorts over his hips to the relentless sound of Lichelle‘s wails and slithered through the window, landing palms first in the cold muck outside. Dusk was falling. Razor grass as high as his head edged the track he took to the mango tree. Pedro was still there, now wearing skinny jeans and a slim shirt glinting with diamante studs. ―I say you forget,‖ Pedro drawled. ―It nearly done. A man come and buy a whole pound, yes.‖ He offered Justin a miniscule plastic bag of marijuna. ―Nah, I good,‖ muttered Justin, shaking his head. He sat down, shifting the layers of cardboard under his bottom until they were marginally more comfortable. Mackie toddled up to him, wagging his tail in swift, wide arcs. ―If is money you ain‘t have, you know that is not a problem, faddah.‖ Pedro slipped the bag backing into his pocket and flicked away a seed from the handful of weed he had been cleaning as he leaned against the mango tree. ―You know you‘s my
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boy. Ent we play pitch together? Ent I give you them Clarks you does wear to school? A ten dollars ain‘t nothing, faddah.‖ Justin silently rubbed the hard ridge of the pup‘s spine, ruffling the hair on the wriggling animal. Mackie yipped for joy. But when Justin touched the bald patches of scabrous skin at his hips, Mackie backed away and threw a nip at his fingers. ―Boy, forget that pot hound, nah,‖ Pedro said with a laugh. ―That dog going and dead just now, faddah. He only thiefing he mother food. She go done he just now. Nyam nyam!‖ In the twilight, Pedro‘s teeth gleamed white in his brown face. Still, Justin said nothing, shifting his touch to the puppy‘s furry belly. Mackie quickly lay on his back, his tongue lolling from an open mouth, eyes glazed with pleasure. Sweet, acrid smoke curled in the darkening air. Shifting on his seat, Justin rocked the plastic case back so he could lean against the tree‘s massive, scarred trunk. The bark dug into his bare back and he lurched forward a bit, jerking the case. Justin heard something fall to the soft ground with a low thud. Mackie left him, wedging his wet, black nose between the tree and the case. ―Aye, move from there, Mackie!‖ shouted Pedro, continuing to smoke his joint while leaning on the tree next to Justin. ―Eh, faddah, move that dog from there before he shoot off he stupid head.‖ Easing forward, Justin reached for the puppy, which whined and started licking his hands. ―Pick up that thing and put it back for me, there,‖ Pedro instructed him. Looking down, Justin saw the dull sheen of a gun‘s metal barrel in the damp dust. He bolted to his feet and whirled around. Mackie tumbled to the ground with a yelp. Pedro laughed again. ―It ain‘t go bite you, faddah. Just pick it up and put it back.‖ Justin bent at the waist and leaned low in the gathering dusk to watch the black steel gun resting in the dirt. He glanced back at Pedro. Pedro looked at him with shining, hard eyes above a brilliant smile. Justin looked back at the gun. He could barely see it in the shadows.
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There was nobody in the street. The pit bull bitch slept at the end of her chain next to the house behind the mango tree. Sunset had turned the muddy pothole to a kaleidoscope. No breeze blew. Extending his right thumb and forefinger like pincers, Justin picked up the gun. It was heavier than he had expected and it slipped from his fingers. He crouched, looking over his shoulder as he wrapped his hand around the barrel and withdrew it, swiftly shoving it back into the beer bottle crate. ―You ain‘t want to look at it, faddah?‖ Crouched beside the case, Justin shook his head. Mackie stuffed his nose into his hand, but Justin pushed him away. ―Go on, nah, dog.‖ ―It not going and do you nothing, faddah. You could watch it. Just don‘t pull the trigger.‖ Pedro was still laughing through the smoke. His hands suddenly frigid and trembling, Justin cautiously reached for the gun. He placed it flat in his palm and with his other hand gingerly stroked the bumpy plastic grip of the stock. ―Hold it good, nah.‖ Justin folded three fingers around the stock and slid his index finger next to the trigger. ―Don‘t shoot me, eh!‖ Pedro, choking on his mirth, began to cough violently. The rhinestones on his shirt twinkled like stars. Justin removed his finger from the trigger. He wished there were more light so he could read the letters and numbers he could see etched into the side of the rectangular barrel. Hefting it in his hand, he thought it was about the weight of his sister‘s bottle, which he still had to make her every night even though she was going on six. No, it was heavier than that. Maybe the weight of the pot he made her porridge in, a battered old iron pot with fat, round handles on either side. The gun‘s barrel was smooth. He had never felt anything like it. * ―Jussie, I hungry.‖ Lichelle‘s voice was hoarse. The white tracks of tears and crusted snot covered her face. Justin leapt from his narrow bed and pulled her by the hand to the galvanized steel shower stall outside the kitchen. ―The water cold, Jussie,‖ she complained in her croaking voice. He ignored her and stripped her to her
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panties, turning his back while she lathered up and rinsed her body with water he dipped from a barrel in the yard. Bundled in a threadbare towel, she disappeared into the bedroom to start dressing while Justin plugged in the iron and pressed her school clothes on the drawing room couch. Handing them to her around the curtain, he bustled to the kitchen. The bucket next to the sink was empty; he filled it outside and returned to wash her porridge pot. As he took up the pot he stilled. Meditatively he weighed the pot in his hand, and then shook the moment off to continue making breakfast. Lichelle emerged from the bedroom dressed in her pressed pinafore, shirt and knickers. ―Where Mammy?‖ Porridge steamed on the stove. He washed a bowl for her to eat from. ―You know she work last night,‖ he said. Lichelle shrugged and went to sit on the couch. Justin scraped the sugar pan to sweeten the dish, and then blew on the bowl until it cooled. Tasting it, she asked for more sugar. He brushed her hair and tied her ribbons on straight before she cleaned her teeth. ―You not going to school?‖ she asked, still croaking a little, as he slipped her backpack over her shoulders. One strap was frayed so he hunted for a safety pin to hold it secure for the time being. He took her hand and they walked out the door. A black, furry lump lay next to the pothole on the roadside. Lichelle gasped. ―Mackie! Jussie, look Mackie! What happen to him?‖ Justin walked past without looking at the dead pup. ―He get bounce down. Stop crying, Lichelle. Is time to go.‖
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