Jangada: crítica, literatura, artes

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crĂ­tica | literatura | artes

jangada ISSN 2317-4722

JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES

n.2, jul-dez, 2013

Literatura e Subjetividade Literature and Subjectivity


Clock-t Edições e Artes Av. Fioravante Rossi, 3300 – Colatina – ES CEP 29.704-424 | Tel: (27) 9-9995-5853 contato@clock-t.com| www.clock-t.com Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Homocultura N.2, jul-dez, 2013 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com Editor Responsável Juan Filipe Stacul, PUC MG Editores Eduardo Ledesma, UIUC John Tofik Karam, UIUC Juan Filipe Stacul, PUC MG Raquel Castro Goebel, UIUC Conselho Editorial Andreia Donadon Leal, ALACIB Antonio Carlo Sotomayor, UIUC Cláudia Pereira, ALACIB Elisângela A. Lopes, IF Sul MG Fábio Figueiredo Camargo, UFU Gabriel Bicalho, ALACIB Gerson Luiz Roani, UFV Glen Goodman, UIUC Gracia Regina Gonçalves, UFV Joelma Santana Siqueira, UFV José Benedito Donadon Leal, UFOP José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP Karla Baptista, FCB Maria N. Soares Fonseca, PUC MG Michelle Gabrielli, UFPB Murilo Araújo, UFRJ Rubem B. Teixeira Ramos, UFG Terezinha Cogo Venturim, FCB Thiago Ianez Carbonel, UNICEP Victor Rocha Monsalve, UDP Revisão e Diagramação Clock-t Capa Tahiz Cristina Bragato


sumário

crítica

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O percurso da diáspora negra na poesia de Oliveira Silveira Elisângela Aparecida Lopes

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Cândido de Voltaire e o “melhor dos mundos possível”

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Postura e Método Realista em Gaibéus e Trabalhadores

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Conquistando espaços (e espelhos): o sujeito contemporâneo de Humberto Gessinger

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Configurações do discurso machista na internet: O blog Testosterona e os embates ideológicos na era digital

57

Aldravipeia

@

Prosa, poesia e artes

Andreia Donadon Leal

Gerson Castro dos Santos, Karina de Almeida Calado

Silvia Maria Alves Jorge

Marianna Michelle Medina

José Benedito Donadon Leal

http://www.clock-t.com/jangada-2013-2


O percurso da diáspora negra na poesia de Oliveira Silveira

Elisângela Aparecida Lopes 1

Resumo: Neste artigo, pretendemos percorrer os textos que compõem a Antologia poética de Oliveira Silveira, a fim de analisarmos a diáspora negra enquanto temática e como um movimento construído e requisitado pelo eu poético que o leva à afirmação da negritude. Palavras-chave: Diáspora, Poesia Afro-brasileira, Oliveira Silveira, Identidade Negra.

Abstract: In this article, we analyze the texts of Oliveira Silveira’s Poetic Antology, aiming to analyze the black diaspora as a theme and as a construction of the poet that leads to the affirmation of blackness. Keywords: Diaspora, Afro-Brazilian Poetry, Oliveira Silveira, Black Identity.

Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC-Minas; Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais; Professora do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas – Campus Pouso Alegre. 1

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Não que eu não passe. Que eu enraíze como a árvore, a despedir folhas (folhas verdes) no vento que vai para todos os pontos cardeais Oliveira Silveira

A

publicação da Antologia poética de Oliveira Silveira, em 2010, fruto da união de esforços de seus amigos de jornada, possibilitou-me visualizar o percurso da diáspora negra como temática recorrente na escrita desse poeta gaúcho e afro-brasileiro. Antes de nos determos aos objetivos que sustentam a escrita deste artigo, achamos

necessário e fundamental passearmos por outros poemas de Oliveira Silveira, reunidos na referida antologia, a fim de compormos os indicativos do processo da diáspora negra, tema ao qual iremos nos ater. Em Germinou, livro de 1962, podemos perceber a reincidência de temáticas que perpassam a o nascimento ou frutificação da palavra por meio do gênero poético. Nesse livro, as referências aos aspectos que perpassam os processos de produção do ambiente rural são construídos por meio de uma linguagem metafórica que nos permite compreender a idéia da frutificação, já mencionada no título, tanto enquanto processo da natureza, quanto como espaço de construção literária. Sendo assim, germinar cabe às sementes e às palavras. Por isso, a auto-referenciação constante em “dentro do bonde o poeta” e em “não importa, rapaz: / eu vou nas asas da imaginação” (OLIVEIRA, 2010, p.32), indica-nos essa posição do poetaobservador, voz a descrever o que observa, à qual se soma a capacidade poética de reconstruir, ampliar, sentidos poéticos. Já em Poemas regionais, livro de 1968, é possível ao leitor conhecer e até mesmo visualizar o retrato da região sulista brasileira, por meio de descrições que se assentam tanto no aspecto físico-geográfico – a restinga, o vento, os campos – quanto ao seu aspecto cultural mais requisitado: o mate. Ao final do livro, em “Gaúcho negro mateando”, une-se a identidade regional do sujeito poético, metaforizada na erva-mate, à sua condição étnica, indicada pelas águas de sanga

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percorridas pelos navios negreiros, o que marca, sobremaneira, a produção poética de Oliveira Silveira, ao longo das publicações seguintes. É em Banzo, saudade negra, publicado em 1970, que a mobilidade espacial do sujeito negro começa a se fazer presente de modo mais incisivo, o que se dá já no primeiro poema intitulado “Parte da crônica”, que será objeto de estudo neste artigo. Tal temática, nos escritos de Silveira, se faz presente tanto na representação do percurso da África aos países escravistas, quanto na rememoração dos tempos vividos em terras africanas, entendida como origem, porto materno, o que indica o desejo de retorno. Em Décima do negro peão, de 1974, tem-se a errância de um peão negro pelos pampas gaúchos. No livro seguinte, Praça da palavra (1972), como já indicia o próprio título, observamos uma construção política da linguagem, já que os poemas tematizam os contrastes sociais, as eleições, e também, neles, se percebe um posicionamento do eu poético ao realizar críticas à política. Outro aspecto relevante deste livro é o questionamento metalingüístico do eu lírico de alguns poemas quanto ao seu papel diante dos cenários apresentados, mas também quanto ao seu destino. O livro Pêlo escuro, datado de 1977, associa a condição étnica às questões regionais ao apontar ao leitor as ações dos negros no Rio Grande de Sul, o que engloba tanto o trabalho braçal na lavoura quanto o posicionamento e luta política na Guerra dos Farroupilhas. Nesse livro ainda se destaca o uso de expressões de origem africana – tal como “querência”. Tais aspectos parecem ter sido sintetizados por Oliveira Silveira no poema “Negro no sul”. Ainda em Pelo escuro chama a atenção a reincidência da analogia entre os desígnios do sujeito negro sulista e do boi, nos vários poemas que tematizam ou referenciam a charqueada. Em Roteiro de tantãs, publicado em 1981, Oliveira Silveira parece passear/rastrear os espaços habitados pelos sujeitos advindos da diáspora negra, o que nos indica um percurso não só geográfico, mas também de formação da consciência negra. Tal panorama pode ser reconhecido pela leitura dos poemas que retratam os deslocamentos dos africanos, como “Let my people go”; pela consciência do eu lírico da sua lacuna advinda da desterritorialização, que se manifesta no resgate

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de uma mãe África. Posteriormente percebemos a identificação do desejo de se resgatar e de promover associações de identidade por meio de elementos externos, como ocorre em “África” e “Ancestral”, mas também pela busca de suas origens culturais, a exemplo de “Elo” e “Encontrei minhas origens”, conforme veremos adiante. Da leitura da Antologia poética de Oliveira Silveira é possível estabelecer um caminho temático que nos permite observar aspectos relacionados à diáspora negra. Do grego, tal termo remete à idéia de viagem, dispersão. Na Bíblia, conforme destaca Cortes (2010), a palavra é mencionada para fazer referência à dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista deste espaço pela Babilônica. Além dos judeus, a diáspora também pode se referir ao movimento de dispersão dos negros do continente africano, em virtude do tráfico negreiro, levados para o Novo Mundo. Ainda conforme aponta Cortes (2010), tal conceito, analisado sob a perspectiva da dispersão dos negros africanos, já foi abordado por alguns teóricos. Paul Gilroy (2001, p. 382) associa esses contextos à “ideia de exílio, dispersão e escravidão”. Já Nei Lopes (2004, p. 236), por exemplo, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, acrescenta que o termo “serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram”. Nessa concepção atual do termo, a diáspora evidencia o fluxo e o refluxo intercontinental existentes. Inspirado na desterritorialização deleuziana e na nãolinearidade da física contemporânea, Paul Gilroy define o Black Atlantic como uma formação rizomática e fractal, posicionando-se contra as ideias sobre a integridade e a pureza das culturas, o absolutismo étnico. Assim, a presença do sujeito diaspórico pode quebrar o discurso determinante de uma cultura que se considera homogênea, porque questiona relação entre identidades e pertencimento. Tal movimento, então, em virtude da existência da escravidão em diferentes países ao redor do globo, levou os africanos a se fazerem presentes em diferentes nações, das quais assimilou a cultura e nelas reafirmou a presença da cultura africana. Sendo assim, historicamente, foram estabelecidos pontos de conexão entre os sujeitos localizados em diferentes nações o que permite um novo sentido para o que chamamos de identidade cultural.

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A pós-modernidade e todos os processos tecnológicos que a marcam encurtaram a distância entre essas nações e, portanto, aproximou, no campo ideológico, imagético, os homens e mulheres provenientes do movimento da diáspora. Os processos de identificações desses indivíduos apresentam também similaridades, o que tem ainda mais aproximado, por exemplo, os escritores de origem africana espalhados pelo mundo. Por outro lado, a crítica literária também tem se encarregado dessas conexões ao comparar as produções literárias de sujeitos negros de distintas nacionalidades. Nosso objetivo neste artigo não se fundamenta na comparação, mas sim na visualização dessa temática e dos desdobramentos dela na produção literária de um poeta brasileiro, gaúcho e negro. Essas identidades múltiplas, conforme aponta Hall (2003), são requisitadas pelos indivíduos a depender do papel ou função que ocupam. Em se tratando da poesia de Oliveira Silveira, essas identificações somam-se na construção de uma voz poética diferenciada, em contexto brasileiro, mas que ainda assim se assemelha a outras vozes que, por meio da literatura, também se debruçam a retratar os assuntos relacionados à negritude: quer seja no passado, ou na condição ocupada no presente. O clamor por essas outras vozes negras que se fazem presentes em outros espaços geográficos fica evidente nos poemas de Silveira e constitui o que Edouard Glissant (2006), partindo do conceito de rizoma de Deleuze e Gatarri, postula como “crioulização” das Américas, e indica a formação de identidades rizomáticas que se constroem a partir de rastros/resíduos por meio da língua e manifestações culturais requisitadas pelos sujeitos dispersos. Na produção de Oliveira Silveira, esse percurso que vai da dispersão à formação da identidade será o nosso objeto de estudo. Quanto à temática da diáspora e das construções rizomáticas na literatura brasileira, Arruda (2008, p. 38) elucida que Muitos autores afro-brasileiros confirmam esse novo pensamento sobre a diáspora negra e trazem para sua literatura marcas dessa memória coletiva que é, para eles, uma espécie de motor da narrativa ou da poesia. Através de metáforas como a do navio negreiro, insígnia da mediação do sofrimento do povo africano, ou da viagem como motivo e objeto de reflexão sobre a diáspora, esses autores tecem sua literatura suplementando, no sentido derrideano do termo, a literatura canônica e parodiando-a também.

Tendo em vista o objetivo de analisar a temática da diáspora nos poemas de Silveira, quer seja entendida como processo de deslocamento espacial, ou como

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elemento motivador de um movimento histórico-identitário da negritude, fez-se necessária a escolha de um corpus poético mais delimitado, composto dos seguintes poemas, presentes na Antologia poética de Oliveira Silveira, que serão analisados ao longo deste ensaio: “Parte da crônica”, de 1970, no qual o poeta reivindica um novo olhar sobre a história da escravização; “Sou”, de 1977, poema que aponta a multiplicidade de identidades do sujeito negro como conseqüência da diáspora; “Vozes”, que apresenta o reconhecimento das vozes dos sujeitos da diáspora; “Let my people go”, de 1981, na qual há uma errância como escolha; “Alô”, no qual há o reconhecimento espacial desses sujeito o reconhecimento espacial; e “Encontrei minhas origens”, em que há afirmação da negritude. O poema “Parte da crônica” abre a publicação de Banzo, saudade negra, livro de 1970. Nesse poema, verificamos a atribuição do dever e direito de narrar a história dos negros brasileiros a aqueles que, como o poeta, são dela conhecedor e deles descendentes. O título do poema indica-nos que aquilo que será relatado, como aspecto cotidiano em tempos idos, é uma parte, outro viés, da História oficial. Nesse poema, temos a presença de dois sujeitos poéticos, duas vozes que irão revezar a rememoração e o relato dos fatos que envolvem a escravidão dos negros e, consequentemente, a condição diaspórica destes. O que se faz inovador, nesses versos, é a personificação dos espaços geográficos percorridos na travessia dos sujeitos negros do continente africano rumo a outras localidades, já que, mais de uma vez, o eu lírico se configura como um espaço personificado: as costas d’África, o Oceano Atlântico, o rio Mississipi, os cais do porto e os logradouros; as lavouras americanas, antilhanas e brasileiras. Esses espaços funcionam como testemunhas às quais cabe relatar, respectivamente, a vida em África, a travessia, a chegada em terras escravas, o trabalho rural. Nessas estrofes, há o que podemos designar como eu lírico-testemunhal já que ele é o griot, o contador de histórias habilitado a fazê-lo, por que a testemunhou. Sua presença se concretiza nas estrofes iniciadas com travessão. Há ainda, a presença de um eu lírico encarregado de ensejar a lembrança e o relato do outro eu poético, que podemos identificar como eu lírico-memorialista e que se faz presente na primeira estrofe dos pares que compõem o poema. Nos versos que compõem o referido poema, vemos o foco do ato de contar do eu lírico-testemunhal voltado para a perda da condição humana: livres na África;

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aprisionados pelos grilhões e chibatas; mortos no navio e lançados ao mar (o que no poema é retratado de maneira positiva, ao se comparar o oceano à placenta); sem rumo conhecido na imensidão das águas; desamparados, mas tendo a imaginação como instrumento de fuga; reduzidos ao corpo e comercializados; levados às lavouras de diferentes nações para produzir a riqueza destas. Sendo assim, as duas vozes líricas se somam a fim de revelar um outro ponto de vista sobre a história da escravidão dos negros africanos, contada pelos lugares por eles percorridos no percurso que tem a África como ponto de partida e o Brasil, as Antilhas e os Estados Unidos da América como pontos de chegada. A fim de percorrermos o caminho indicativo da história da diáspora negra na poesia de Oliveira Silveira, faz-se importante ressaltar o poema “Sou”, publicado em Pêlo escuro, de 1977. Apesar do aspecto individual a que faz referência o título, percebemos o desdobramento temporal e étnico-identitário do sujeito: na primeira e na segunda estrofes, encontramos verbos no passado a designar identificações metonímicas, já que reduzem o sujeito aos instrumentos que indicam a ocupação social deste. Essas imposições encontram-se associadas ao trabalho escravo: “Já fui remo, fui enxada / e pedra de construção; / trilho de estrada-de-ferro, / lavoura, semente, grão.” (SILVEIRA, 2010, p.110) Já na segunda parte do poema, vê-se o uso de verbos no presente que indicam as escolhas identitárias dos sujeitos negros livres, das quais destacamos a auto-referenciação ao próprio poeta, o que indica a metalinguagem: “Meu canto é faca de charque / voltada contra o feitor, / dizendo que minha carne / não é de nenhum senhor”. (SILVIERA, 2010, p. 110). A associação entre a condição corpórea do negro e o gado de corte aparece nesse poema e, conforme já mencionamos, faz-se freqüente na poesia de Silveira, indicando a junção de sua identidade gaúcha e negra. Além disso, destaca-se a importância da palavra, da poesia, enquanto instrumentos de afirmação e resistência. Em “Vozes”, poema publicado em Roteiro dos tantãs, de 1981, observamos que o reconhecimento entre os sujeitos negros se dá pela palavra, e pelo poder que esta ocupa, conforme vemos no poema abaixo:

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Vozes Roucas quentes fortes vozes vivas vozes chamaram meus irmãos poetas mar a fora porto a dentro e todos responderam - sim ! Longes vozes chamaram na voz do vento leste nas correntes marinhas nas veias sanguíneas no tantã dos trovões e meu coração tantã respondeu - Aqui estou! (SILVIERA, 2010, p.117)

Essas vozes oriundas de outros sujeitos da diáspora – outros poetas – se propagam por meio dos elementos da natureza e vão adentrando espaços distintos, assim se unem em um diálogo (poético)-étnico. É pela afetividade e pelo reconhecimento da ancestralidade – que se manifesta no sangue – que essas vozes se unem e esses sujeitos se reconhecem e se identificam. Ao responder a esse chamado, o eu poético estabelece, então, conexões entre essas vozes dispersadas, o que aponta para a concepção de rizoma, já que se deseja uma conexão entre essas vozes a fim de que cantem o mesmo canto. O grito poético do eu lírico deste poema de Silveira ocupa função semelhante à postulada por Glissant (2006), ou seja,

reunir a

comunidade à qual o sujeito se liga e formar uma identidade rizomática. Em “Let my people go”, tem-se o deslocamento geográfico como um desejo do eu lírico e dos seus irmãos de cor, movimento que é barrado por empecilhos sociais. Assim, o eu poético solicita essa errância, que o povo negro se junte “pelas longas estradas / de mãos dadas”, a protestar, a ocupar seus espaços sociais, mesmo que separados pelo racismo. A indicação a esta temática, bem como o título do poema, permite-nos ler esse texto como uma alegoria à segregação racial norteamericana, por exemplo. O eu lírico destaca que mesmo sendo segregado internamente, quer seja nos EUA, ou na África do Sul, a união entre os povos negros é inevitável, necessária e temida, por isso o imperativo que abre o poema: “Deixem meu povo ir”. (SILVEIRA, 2010, p. 126)

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Em alguns poemas de Roteiro dos tantãs, é possível ainda confirmar a questão da retomada das localidades de chegada dos diaspóricos, a exemplo dos poemas “Em Cuba”, “Antilhas” e “Haiti”. Essa referenciação espacial, que se fundamenta em um processo de reconhecimento de identidades e recolha destas, fica ainda mais evidente em “Alô”: Alô Guianas Surinam Colômbia Todamérica nossos tambores de cale e couro e som de cerne se saúdam fraternos (SILVEIRA, 2010, p. 127)

A princípio, o eu lírico requisita as nações de “Todamérica”, palavra que assim grafada já aponta para a idéia de unidade que se fundamenta na negritude. Posteriormente, há referência aos tambores, enquanto elemento da cultura negra, por meio dos quais os sujeitos dessas localidades se saúdam em forma de música, batuque, como irmãos que são. Já em “No mapa”, poema publicado em Roteiro dos tantãs, Oliveira Silveira aponta de forma cartográfica a distribuição do povo negro no Brasil e a influência cultural e religiosa advinda dessa dispersão: “Pelo litoral / ficou / de norte a sul / nagô. / Ficou no Recife: / xangô. / Na Bahia ficou: / candomblé. / No Rio Grande é o quê? / - Batuque tchê (...)”. (SILVIERA, 2010, p. 131) Em ambos os poemas, têm-se a construção do rizoma, já que a identidade negra requisita o encontro de outras raízes espalhadas em outras partes do mesmo país ou em nações distintas. Já o poema “Elo”, publicado no mesmo livro, indica a relação de sustentação do eu poético, já que este se encontra ligado à África, o que confirma a necessidade de retomada das origens e o aspecto rizomático de que falamos, já que é do cordão umbilical ligado à África que o eu lírico se alimenta poeticamente. Esse reconhecimento coletivo, e a elevação da condição individual e cultural dele proveniente, abre espaço para a valorização e reconhecimento da individualidade negra, conforme tematizada no conhecido poema “Encontrei minhas origens”, que, apesar de conhecido, será aqui transcrito:

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Encontrei minhas origens Encontrei minhas origens em velhos arquivos livros encontrei em malditos objetos troncos e grilhetas encontrei minhas origens no leste no mar em imundos tumbeiros encontrei em doces palavras cantos em furiosos tambores ritos encontrei minhas origens na cor da minha pele nos lanhos de minha alma em mim em minha gente escura em meus heróis altivos encontrei encontrei-as enfim me encontrei (SILVEIRA, 2010, p. 118-119)

Nesse poema, que aponta metonimicamente o percurso de interpretação construído neste artigo, vê-se o trajeto em busca do reconhecimento e formação da identidade do sujeito negro. A princípio, a identificação do eu poético se dá com os objetos do passado que remetem ao sistema escravista: os livros, os troncos e grilhetas, o que indica a referência à construção da identidade histórica. Posteriormente, vê-se o resgate da diáspora negra como nova fase desse processo identitário, ao se referir ao mar e ao tumbeiro. Já em um terceiro momento, o canto e os tambores, enquanto símbolos da cultura africana, agregam-se à personalidade do sujeito lírico, indicando o resgate como forma de resistência da cultura negra em países estrangeiros. Nos próximos versos, o processo de identificação se assenta no reconhecimento dos aspectos físicos do sujeito – na cor da pele e nas marcas do corpo –, na identificação de semelhantes e na recuperação de uma imagem altruísta dos sujeitos negros, ao se referir aos heróis de sua gente. É desse percurso de identificações múltiplas que nasce a identidade, quando o eu poético encontra-se consigo mesmo.

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O poema “Encontrei minhas origens” representa metonimicamente o percurso realizado por nós neste artigo, tendo como referência os poemas de Silveira, no que se refere ao processo identitário dos sujeitos negros. Assim, vemos que a busca do passado e a ressignificação deste torna-se o primeiro passo dessa formação identitária, tanto no poema em questão, quanto no revisionismo em que se assenta o poema “Parte da crônica” (1970). O eu poético ao mencionar os tumbeiros e o mar, no poema em questão, remete-nos, ainda, ao poema de 1970, no qual o eu líricomemorialista requisita ao eu lírico-testemunhal, que se divide em várias vozes-lugares, que conte o percurso da diáspora negra, dando a este um novo sentido, já que os lugares personificados auxiliam o eu poético a reconstruir sua história/trajetória. A importância do canto e dos símbolos culturais africanos neste último poema aponta o poema “Vozes”, já que pelo som – dos tambores ou da poesia – dá-se o reconhecimento e a conexão entre as vozes dispersas. Como processos internos de formação identitária tem-se ainda o reconhecimento do próprio corpo, do corpo dos seus irmãos de cor e da simbologia dos heróis negros a apontar a consciência da diáspora, conforme também se faz presente em “Alô” e “No mapa”, como processo a certificar essa identidade rizomática. Do movimento dentro/fora no qual se pauta a formação da identidade negra, o eu lírico sintetiza a identificação dessas raízes dispersas e as conecta em si mesmo: “Encontrei-as enfim / me encontrei” (SILVIERA, 2010, p.119), apontado que o reconhecimentos das lembranças e marcas étnicas é a condição do reconhecimento e valorização de si mesmo, da formação da identidade negra. Portanto, pode-se dizer que o desejo de enraizamento e de dispersão que se faz presente no poema que serve de epígrafe a este artigo se concretizou na produção poética de Silveira, tanto no que se refere a esse percurso diaspórico em sua obra, quanto no que tange à proliferação de folhas/palavras que se juntam e são levadas pelo vento a lugares inimagináveis.

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Referências Bibliográficas SILVEIRA, Oliveira. Antologia poética de Oliveira Silveira. Porto Alegre: Evangraf, 2010. CORTES, Cristiane Felipe Ribeiro de Araújo. Viver na fronteira: a consciência da intelectual diaspórica em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010. ARRUDA, Aline Alves. Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman feminino e negro. (Dissertação- Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. UCAM: 2001. GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005. LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende [et al], 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

Aceito em 28/01/2014.

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Cândido de Voltaire e o “melhor dos mundos possível” Andreia Donadon Leal2

Resumo: As ideias do Iluminismo conquistaram numerosos seguidores, entre eles o filósofo francês Voltaire. Para analisarmos a obra ficcional “Cândido” de Voltaire, é necessário, compreender o mundo filosofal voltairiano e suas críticas acirradas e debochadas ao otimismo leibniziano, que garante ser este o “melhor dos mundos possíveis”; para adentrarmos e compreendermos o mundo de Cândido. Palavras-chave: Literatura e Filosofia; Voltaire; Cândido.

Abstract: The ideas of the Enlightenment gained numerous followers, including the French

philosopher Voltaire. To analyze the fictional work "Candide" by Voltaire, it is necessary to understand the philosopher's world of author and his bitter and mocking the Leibnizian optimism, which ensures that this is the "best of all possible worlds". So we can penetrate and understand the world of Candide. Keywords: Literature and Philosophy, Voltaire, Candide.

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Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa.

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Às vezes Pangloss dizia a Cândido: “todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro, por causa do amor da senhorinha Cunegundes, se não tivésseis ido parar em mãos da inquisição; se não fosse apanhado pela Inquisição, se não tivesses percorrido a América a pé; se não tivésseis assestado uma boa espadada no Barão; se não tivesses dado uma boa espadada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros do bom país de Eldorado, não estarias comendo aqui cidras em calda e pistaches”. (VOLTAIRE, 1988, p. 163)

E

xiste relação entre Literatura e Filosofia? Na literatura cabem relações com qualquer universo discursivo. Literatura é do universo textual, enquanto filosofia é do universo discursivo. Dessa forma, filosofia acha-se

imbricada na literatura. A literatura oferece gêneros textuais para a recriação da história social, ou de eventos da história, através de discursos científicos, jurídicos, políticos, filosóficos, religiosos, burocráticos e outros de todas as épocas, mas sem compromisso da comprovação contundente dos fatos. A reflexão acerca de conceitos sociais cabe em qualquer gênero literário. Segundo Matos (2001), os traços mais fascinantes do pensamento do século XVIII é, sem dúvida, a inexistência de fronteiras precisas entre filosofia e literatura e, consequentemente, a multiplicidade de gêneros praticada pelos filósofos. Nessa época, os pensadores utilizavam-se do gênero literário, destacando o romance e o conto para expressarem suas reflexões filosóficas. Tinham eles clareza de que a filosofia é do universo discursivo, para o qual não há necessidade de prisão a um gênero textual. Transitavam pelos gêneros textuais que melhor se adequassem aos propósitos da reflexão desenvolvida. Voltaire é exemplo de filósofo que se serve de variados gêneros textuais em suas composições filosóficas. No século das Luzes, nos domínios da literatura e do teatro, tocou nos temas pertinentes da filosofia da época, a saber: a questão do mal físico e do mal moral, a Providência, a concepção de natureza humana, a crítica política e da religião e a defesa da Tolerância.

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O século XVIII ficou conhecido como Iluminismo. O signo “Iluminismo” advém da palavra alemã Aufklärung, que significa iluminação, esclarecimento e aclaração, ou seja, existência de tensão entre luz e treva, esclarecimento e ignorância. O pensador iluminista preocupa-se com a ampliação do saber, no poder da razão humana, luz pela qual o homem compreende a si mesmo, para emancipar e ordenar o mundo em que vive. Segundo Foucault: (...) seria sem dúvida um dos eixos interessantes para o estudo do século XVIII em geral, e mais particularmente da aufklarung [ilustração], questionar o seguinte fato: a aufklarung chamou a ela mesma aufklarung; ela é um processo cultural sem dúvida muito singular que tomou consciência dele próprio, denominando-se, situando-se com relação ao seu passado e a seu futuro, e designando as operações que ele deve efetuar no interior de seu próprio presente. (...) (Foucault, 1984, p. 105-106).

O iluminismo representou o ápice das transformações culturais iniciadas no século XIV pelo movimento renascentista. O Iluminismo procurava explicação através da razão para todas as coisas, rejeitando a submissão cega à autoridade e a crença na visão medieval teocêntrica. Para os iluministas só através da razão que o homem poderia alcançar o conhecimento, a convivência parcimoniosa em sociedade, a felicidade e a liberdade. As ideias do Iluminismo conquistaram numerosos seguidores, entre eles o filósofo francês Voltaire. Para analisarmos a obra ficcional “Cândido” de Voltaire, é necessário, compreender o mundo filosofal voltairiano e suas críticas acirradas e debochadas ao otimismo leibniziano, que garante ser este o “melhor dos mundos possíveis”; para adentrarmos e compreendermos o mundo de Cândido. Leibniz acreditava que o melhor dos mundos deve apresentar uma maior diversidade e assim possuir o maior número possível de indivíduos. Daí ele não aceitar a existência do vácuo, pois no Universo “quanto mais matéria existir, mais Deus terá ocasião de exercer sua sabedoria e seu poder” (LEIBNIZ, 1988a, p.238). Voltaire era avesso à ideia defendida por Leibniz, de que este é o melhor dos mundos possíveis construído por Deus e que tudo “estava bem”. O primeiro capítulo da obra Cândido traz, na voz do personagem construído por Voltaire (de maneira debochada), no ingênuo filósofo Pangloss (oráculo da casa), que defende o otimismo filosófico de “melhor dos mundos possíveis”, repassando essa

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forma de pensamento leibniziano, a todos os moradores que vivem no castelo de um barão em Vestefália: Pangloss ensinava a metafísico-teólogo-cosmolonigologia. Provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que, neste que é o melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos e a senhora baronesa, a melhor das baronesas possíveis. Está demonstrado, afirmava ele, que as coisas não podem ser diferentes; pois, tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente para o melhor fim. Observai que os narizes foram feitos para sustentar óculos; por isso temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para serem calçadas, e nós temos calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para com elas se construírem castelos; por isso monsenhor tem um belíssimo castelo; o mais importante barão da província deve ser o mais bem alojado; e como os porcos foram feitos para serem comidos, comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afiançaram que tudo está bem disseram uma tolice: deviam dizer que tudo está o melhor possível. (VOLTAIRE, 1998. p.4-5)

Cândido, personagem central na ficção voltairiana, é jovem inocente que vive, também, no castelo do barão e crê piamente nos ensinamentos do filósofo Pangloss, de que o castelo é o melhor lugar para se viver: Cândido ouvia atentamente, e acreditava inocentemente; pois achava a senhorita Cunegundes extremamente bela, embora jamais tivesse a ousadia de lho dizer. Concluía que, depois da felicidade de nascer barão de Thunder-tem-tronckh, o segundo grau de felicidade era ser a senhorita Cunegundes; o terceiro, vêla todos os dias; e o quarto, ouvir mestre Pangloss, o maior filósofo da província, e por conseguinte de toda a Terra. (VOLTAIRE, 1988, p.5)

Cândido conhece o “mundo” apenas sob os ensinamentos e sob os olhos otimistas de Pangloss, ou seja, somente o “mundo em que vive”, faltando-lhe experiência, vivência e conhecimento sobre o mundo externo. Após ser expulso do castelo em que morava, ao ser flagrado pelo barão beijando Cunegundes, o personagem começa a aprender por conta própria, que o mundo e as pessoas que o cercam podem ser hostis. Cândido é apartado, brutalmente, do “mundo do conto de fadas” ou “do paraíso de melhor dos mundos possível”. Sua primeira experiência com o

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mundo externo, é extremamente cruel ao ser preso e torturado por soldados búlgaros: Cândido, expulso do paraíso terrestre, caminhou muito tempo sem saber para onde, chorando, erguendo os olhos ao céu, voltando-os repetidamente para o mais belo dos castelos (...). Dois homens vestidos de azul notaram-no (...) Dirigiram-se para Cândido e convidaram-no cortesmente para jantar (...) – Ah!, meu senhor, sente-se à mesa; não só lhe pagaremos a despesa, como nunca permitiremos a um homem como o senhor falte dinheiro ; os homens são feitos apenas para socorrerem uns aos outros. – Têm razão, disse Cândido, foi isso que o senhor Pangloss sempre me disse, e vejo realmente que tudo está o melhor possível. Pedem-lhe que aceite alguns escudos; ele os recebe e quer passar recibo; não consentem e sentam-se todos à mesa. O senhor não ama ternamente?... – Oh! Sim, respondeu ele, amo ternamente a senhorita Cunegundes. – Não, disse um dos dois, perguntamos se não ama ternamente o rei dos búlgaros. – De modo algum, contestou Cândido, pois nunca o vi. – Como! É o mais encantador dos reis, e devemos erguer-lhe um brinde. – Oh! Com todo prazer, senhores. E ele bebeu. Isso basta, disseram-lhe, o senhor agora é o apoio, o sustentáculo, o defensor, o herói dos búlgaros; está feita a sua fortuna e assegurada a sua glória. Colocam-lhe imediatamente grilhetas nos pés e levam-no no regimento. Mandam-no volver à direita, à esquerda, carregar a arma, levantar a arma. Apontar, disparar, apertar o passo, e dão-lhe trinta bastonadas (...) Cândido, estupefato, ainda não entendia muito bem por que era herói. Num lindo dia de primavera, resolver ir passear (...). Não tinha percorrido duas léguas e eis que quatro heróis de seis pés o alcançam, amarram-no, levam-no para uma masmorra. Perguntaram-lhe juridicamente o que preferia: ser fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento, ou receber de uma só vez doze balas de chumbo nos miolos. `(...) teve que fazer uma escolha: decidiu-se, em virtude do dom de Deus a que chamamos liberdade, por passar trinta e seis vezes pelas varas (...) (VOLTAIRE, 1988, p. 7-9)

Voltaire mostra através do personagem Cândido uma visão “desencantada” com a ideia do “melhor dos mundos possível”, quando os “olhos” do personagem abremse à realidade nua e crua da vida, para ver que tudo não se produz da melhor maneira possível. Quando os búlgaros entram em guerra com os árabes, o personagem Cândido foge e encontra o anabatista Tiago, que o acolhe em sua casa. Nesse momento, também, encontra Pangloss, que lhe contou que todos, na terra do Barão, foram mortos pelos búlgaros. Tiago, Cândido, Pangloss e marinheiros partem em viagem para Lisboa. O navio naufraga matando todos; menos Cândido, Pangloss e um marinheiro. Em Lisboa, o chão treme, destruindo a cidade; Pangloss é enforcado;

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Cândido, açoitado e machucado, é ajudado por uma velha, que trabalha para sua amada Cunegundes. A série de desgraças, maldade humana, guerras, terremotos, violência, que se abate sobre os personagens, no decurso de suas peregrinações pelo mundo, torna questionável a filosofia otimista de Pangloss. Dessa forma, a ordem da narrativa vai criando uma descrença de Cândido em relação às lições do filósofo, quando o personagem volta seu olhar para os próprios males da vida, rumo ao verdadeiro conhecimento do mundo. Cunegundes questiona com Cândido, o ensinamento propalado pelo filósofo Pangloss, de que tudo está nas mãos de Deus e que tudo é sempre para o melhor da humanidade: Quis gritar, dizer: Basta, bárbaros! Mas faltou-me a voz, e meus gritos teriam sido inúteis. Depois que foste açoitado, fiquei pensando: Como é possível que o amável Cândido e o sábio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber cem açoites e o outro para ser enforcado por ordem de monsenhor inquisidor, de quem sou a bem-amada? Portanto Pangloss enganou-se ao me dizer que tudo vai o melhor possível do mundo. (VOLTAIRE, 1988, p. 31-32)

A fala de Cunegundes contrapõe, perfeitamente, a visão otimista, conformista e ingênua do filósofo Pangloss, de que eles viviam num mundo maravilhoso e que tudo é sempre para o melhor da humanidade. Cunegundes sustenta que o mundo fora do “castelo de um barão em Vestefália”, não é melhor dos mundos possível e pode ser caracterizado pela dureza da sofrível realidade. Ou, mesmo, na fala de Cândido sobre o Eldorado, em que ele contrapõe a afirmativa do filósofo de que “o castelo do barão é o melhor lugar para se viver”, e, até mesmo, a própria versão de Cunegundes, de que o mundo fora de Vestefália pode ser visto, apenas, sob o prisma da dura realidade: Isto é bem diferente da Vestefália e do castelo do senhor barão; se o nosso amigo Pangloss visse Eldorado, nunca mais diria que o castelo de Thunder-tem-tronckh era o que havia de melhor sobre a Terra; sem dúvida, é preciso viajar. (VOLTAIRE, 1988, p. 82)

Voltaire, ainda, satiriza a hipocrisia da religião, nas vidas pregressas e desregradas de um judeu e um inquisidor que dividem Cunegundes, ou na crueldade

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e na imoralidade dos líderes religiosos, que matam Pangloss por exprimir sua opinião, e torturam Cândido, por escutar o filósofo. Na visão de Newton Bignotto: Sempre que a questão religiosa é abordada, os quakers são citados – menos pela admiração por sua doutrina e mais por aquilo que permitem enxergar nos costumes católicos e em sua influência sobre a política. Encontramos em Cândido um exemplo dessa persistência. A Igreja é descrita no romance quase sempre de forma irônica. O inquisidor que manda os hereges para a fogueira é o mesmo que divide uma amante com o rico comerciante. As razões para as condenações são sempre fúteis, assim como o são as motivações dos jesuítas. (BIGNOTTO, s/d, p. 73)

Cândido e Cacambo quando chegam às terras do Eldorado, vislumbram um mundo praticamente perfeito, onde não há ganância, crueldade e hipocrisia. No capítulo XVII, Cândido descreve o lugar: Eis, no entanto, disse Cândido, um país que vale mais do que a Vestefália.Sem dúvida, disse Cacambo, esses meninos que estão jogando conca são os filhos do rei deste país”. Nesse momento apareceu o mestre-escola para os levar de volta à escola. Os moleques largaram imediatamente o jogo, deixando no chão as concas e tudo que lhes servia para brincar. Cândido apanho-as, corre ao preceptor, e apresenta-lhas humildemente, dando-lhe a entender por sinais que suas altezas reais haviam esquecido o seu ouro e as suas pedrarias. O mestre-escola da aldeia, sorrindo, jogou-as ao chão, olhou um momento, muito surpreendido, para o rosto de Cândido, e continuou seu caminho. (VOLTAIRE, 1988, p.75)

É através da descrição singular da cultura de Eldorado, que Cândido se surpreende, ao conversar com o homem mais sábio e comunicativo da corte, sobre a forma do governo, costumes, espetáculos, artes, e, finalmente, religiões. Em Eldorado não havia duas religiões; padres e monges, mas, sim, a religião de todo o mundo, segundo o velho sábio: “... adoramos a Deus de manhã à noite”. (...) não lhe fazemos preces, disse o bom e respeitável sábio, nada temos que lhe pedir, ele nos deu tudo de que precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar”... (VOLTAIRE, 1998, p. 81) Cândido se surpreende mais uma vez, quando o velho explica que em Eldorado todos são sacerdotes, rei e que todos os chefes de família entoam cânticos de ação de graças. Cândido comenta: - Como! Não tendes monges que ensinam, que governam, que cabalam, e que mandam queimar as pessoas que não são de sua opinião? (VOLTAIRE, 1988, p.81-82)

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Para Newton Bignotto, “a inexistência de padres naquele que parece ser o paraíso terrestre mostra como Voltaire imaginava uma cidade livre dos constrangimentos de uma religião”... (BIGNOTTO, s/d, p. 73). Cândido e Cacambo partem de Eldorado, pois para eles é impossível viver nesse “paraíso terrestre”, depois de experimentar o fruto do “conhecimento”. Seguem para Caiena; Cacambo parte para Buenos Aires, enquanto Cândido segue para a Itália, sendo roubado de toda sua riqueza pelo capitão do barco. Cândido encontra Martinho - velho sábio, que viajam juntos e filosofam sobre suas vidas. Martinho defende a tese de que o mundo é uma grande desgraça, impregnado de miséria e de horror. Cândido pergunta a Martinho sobre o mal moral e o mal físico; Martinho responde que é maniqueísta: ... mas confesso-lhe que, olhando para este globo, ou melhor, para esse glóbulo, penso que Deus o abandonou a algum ente malfazejo; excluindo entretanto Eldorado. Não vi quase nenhuma cidade que não desejasse a ruína da cidade vizinha, nenhuma família que não quisesse exterminar outra família. Em toda parte os fracos execram os poderosos perante os quais se arrastam, e os poderosos os tratam como rebanhos de que vendem a lã e a carne. Um milhão de assassinos arregimentados, correndo a Europa de ponta a ponta, exercem a violência e a pilhagem com disciplina para ganhar o pão, porque não têm ofício mais honesto, e nas cidades que parecem desfrutar a paz, e onde florescem as artes, os homens vivem devorados por mais invejas, cuidados e inquietudes do que os flagelos experimentados por uma cidade sitiada. As mágoas secretas são ainda mais cruéis do que as misérias públicas. Numa palavra, tanto eu vi e tanto sofri que sou maniqueísta. – Há, porém, coisas boas, replicava Cândido. – Pode ser, dizia Martinho, mas não as conheço. (VOLTAIRE, 1988, p. 97)

Depois de tantos desastres, Cândido, finalmente reencontra e se casa com Cunegundes, mesmo ela tendo perdido sua beleza. Vive, também, em seu sítio, com os filósofos Martinho e Pangloss, Cacambo e a velha. Após encontrar com um velho turco, que cultivava o seu jardim e produzia sua própria riqueza através do trabalho. Segundo o velho: “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade” (VOLTAIRE, 1988, p. 161). Cândido explica que o velho conseguiu uma vida preferível à dos seis reis destronados e Pangloss diz que as riquezas “são muito perigosas, conforme o parecer de todos os filósofos”... (VOLTAIRE, 1988, p. 162). Cândido diz que é “preciso cultivar nosso jardim”. – Trabalhemos sem

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filosofar, disse Martinho. É o único meio de tornar a vida suportável. (VOLTAIRE, 1988, p. 162-163) Voltaire, talvez, queira mostrar na longa peregrinação realizada por Cândido e seus companheiros, dois mundos existentes: o do otimismo de Pangloss e o do pessimismo de Martinho. O mundo da maldade e da bondade, o da liberdade e da prisão, da guerra e da paz, do amor e do ódio, e que tudo sempre dependeria das ações e do livre arbítrio do homem para escolher... A desgraça e o otimismo fazem parte da ordem natural das coisas, sendo necessário, ao homem, tirar suas próprias conclusões, fazer suas escolhas, seus planejamentos, tornando-se autônomo e livre, para aprender a viver, a realidade da vida, nesse mundo dual. Referências BIGNOTTO, Newton. As Aventuras da Virtude. As ideias republicanas na França do século XVIII: Companhia das Letras, s/d. FOUCAULT, Michel. O Que é o Iluminismo? In: ESCOBAR, Carlos Henrique (Org.). Michel Foucault. Dossier. Rio de Janeiro, Taurus, 1984. LEIBNIZ, G. W. Correspondência com Clarke. Tradução Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: Nova Cultural, 1988a. (Os pensadores). ______. Novos ensaios sobre o entendimento humano. Tradução Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1988b. (Os pensadores). ______. Os princípios da filosofia ditos a monadologia. Tradução Marilena de Souza VOLTAIRE, François Marie Arouet. Cândido. 1988

Aceito em 21/01/2014.

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Postura e Método Realista em Gaibéus e Trabalhadores Gerson Castro dos Santos3 Karina de Almeida Calado4

Resumo: Pretende-se, no presente trabalho, investigar a postura e o método realista em Gaibéus, de Alves Redol e na fotografia de Sebastião Salgado. A adesão ao projeto estético neorrealista, entre as décadas 30 e 50 do século XX, aliou a representação das camadas populares, observada já em narrativas do final do século XIX, como Os miseráveis, de Vitor Hugo (1862), e Germinal, de Émile Zola (1885), à busca pela conscientização dessas classes. Nesse sentido, A estética neorrealista se configura como um novo movimento de captação e encenação da realidade, concebendo o homem como um agente de mudança na sociedade em que ele vive. Palavras-chave: Literatura e Fotografia, Realismo, Alves Redol, Sebastião Salgado.

Abstract: We intended, in this work, to investigate the attitude and realistic method in Alves Redol’s Gaibéus and in Sebastião Salgado’s photography. Joining the neorealist aesthetic project, between 30 and 50 decades of the twentieth century, combined the representation of the lower classes, as observed in narratives of the late nineteenth century as Les Misérables, by Victor Hugo (1862) and Germinal, Emile Zola (1885), the quest for awareness of these classes. In this sense, the neorealist aesthetic is configured as a new motion capture and staging of reality, conceiving man as an agent of change in the society in which he lives. Keywords: Literature and Photography, Realism, Alves Redol, Sebastião Salgado.

Possui graduação em História (PUC-MG; 2006); cursa mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC-MG, com conclusão prevista para 2015). Atua como pesquisador e historiador em programas de educação patrimonial e em projetos financiados pelas leis de incentivo à cultura. 3

Mestranda em Literaturas de língua portuguesa, pela PUC-Minas. Possui graduação (2007) e Especialização (2009) em Letras: língua portuguesa e suas Literaturas, pela Universidade de Pernambuco. Professora efetiva da rede estadual de ensino de Pernambuco. 4

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Introdução

A

discussão sobre o que é realismo tem sido alvo de muitos estudos no âmbito da literatura e das artes. Tais estudos nos dão base para evidenciar que há forte presença do realismo, na produção literária atual, tanto na sua

forma, quanto nos temas e conteúdos que agenciam experiências de leitura. O realismo se desenvolveu como postura e método na literatura e nas artes, no século XIX, e coincide com o surgimento da fotografia. Segundo Pellegrini (2007, p. 139), a palavra realismo foi usada na França, por volta de 1830, e na Inglaterra, no vocabulário crítico em 1856. Já a primeira fotografia foi obtida por Niépce, em 1826, porém só viria a ser patenteada e apresentada à comunidade científica por Daguerre, em 1839, na França, ano que tomaremos como referência, ancorados em Walter Benjamim. Tanto a literatura de intenção realista quanto a fotografia, no início, buscaram a representação do quotidiano e das cenas burguesas. Para Pellegrini (2007, p138) “o realismo foi compreendido como um modo de representar com precisão e nitidez os detalhes de um quotidiano burguês” (grifo da autora). Já para Rouillé (2009), a fotografia nasce em meio ao desenvolvimento socioeconômico da sociedade industrial e passa a representar a imagem mais eficaz dessa sociedade. O interesse pela representação da sociedade burguesa mudaria de foco, na fotografia, a partir do registro fotográfico da Comuna de Paris5, em 1871, na busca pela representação do proletariado e das camadas populares em personagens e cenas: Somente com a Comuna de Paris é que o mundo do trabalho tem acesso significativo à representação fotográfica. Homens e mulheres, operários ou não, posam em grupo, sobre uma barricada ou na Praça Vendôme, dentro da própria cidade: com ela. Pela primeira vez, a capital não é remetida às construções e ruas, ou a enormes canteiros de obras, mas habitada por indivíduos concretos, que lutam, que vivem e que vão morrer. Foi necessária, assim, uma insurreição popular para que a fotografia encontrasse a cidade e seus habitantes, e para que nascesse a reportagem (ROUILLÉ, 2009, p. 46 – 47).

A Comuna de Paris foi o primeiro governo operário da história, fundado em 1871 na capital francesa por ocasião da resistência popular ante a invasão por parte do Reino da Prússia. 5

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Mais recentemente, a adesão ao projeto estético neorrealista, entre as décadas 30 e 50 do século XX, aliou a representação das camadas populares, observada já em narrativas do final do século XIX, como Os miseráveis, de Vitor Hugo (1862), e Germinal, de Émile Zola (1885), à busca pela conscientização dessas classes. Não bastava aos neorrealistas mimetizar um conteúdo de fundo social, mas colocar a arte a favor da conscientização das classes trabalhadoras e romper com tradição filosófica burguesa. Conforme aponta Alves Redol (1972, p.18), ao discorrer sobre o contexto de produção de seu livro Gaibéus (1939), primeiro romance neorrealista português: O que pode suceder em dado momento, quando alguns insistem em traçar limites para a literatura, entendendo que lhe está vedado exprimir, por exemplo, os dramas quotidianos de um povo, é que outros reajam contra essa limitação, trazendo exactamente ao primeiro plano as alienações sociais de que é vítima o homem. Foi o que aconteceu aí por 1938-39 com o neo-realismo, que quis ser mudança de perspectiva na literatura, e, portanto, uma nova experiência para o seu enriquecimento (REDOL, 1972, p.18).

A estética neorrealista se configura como um novo movimento de captação e encenação da realidade, concebendo o homem como um agente de mudança na sociedade em que ele vive. Essa concepção marca uma mudança entre a estética do realismo oitocentista, que concebia as personagens situadas em uma sociedade que as determinava, para o neorrealismo, que vislumbrava a transformação da realidade histórica e social, através da atuação consciente de seus indivíduos.

1. O Realismo na Literatura Marcando a discussão sobre as diferentes formas de manifestação do realismo, evocamos as contribuições da socióloga Tânia Pellegrini sobre o “eterno retorno” do realismo, i. e, as diferentes formas do realismo se manifestar, na literatura e na arte, em todas as épocas e como essas manifestações representam, de maneira artística, a sociedade em sua dinâmica. Pellegrini justifica o “eterno retorno” do realismo, com a percepção de que, sendo o realismo uma postura e um método, ele ativa um processo mimético que não é apenas referencial, descritivo ou fotográfico, mas uma imitação em profundidade. Para ela, a sociedade, a história, a cultura, as relações humanas de modo amplo, estão

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na literatura e na arte de maneira refratada, como podemos compreender a partir de suas considerações, retomando Raymond Williams, sobre realismo: um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena elaboração, da apreensão das formas dessas relações, além da capacidade de também manejar as formas de percepção e de representação artística, mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão estética do mundo social, que o representa em profundidade, e não uma forma de representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela linguagem em si (WILLIAMS apud PELLEGRINI, 2009, p.33).

O realismo é uma postura ideológica diante do mundo. Sob a ótica dessa postura, o realismo passa a ser manifestado ou captado de maneira crítica e particular, desdobrando-se em diversas feições e técnicas, em todas as épocas. O método realista parte da ideia de refração do objeto representado. Considerando o exemplo da física, o objeto refratado não sofre alteração em sua essência, mas há uma transformação no modo como era percebido originalmente. Ou seja, o objeto refratado não é refletido diretamente no meio, propaga-se, desviando-se da direção original. A refração está sujeita à percepção de quem a representa, de quem a recebe e do meio que é utilizado para tal; no nosso foco de observação, os meios são a linguagem literária e pictórica. Compreender o realismo como postura e método levou Pellegrini a se posicionar sobre a controversa questão da representação na arte. Acerca da concepção de que o realismo, após o compromisso com a representação, passou a tentar descrever “as coisas como realmente são”, ela argumenta que: visto como uma postura geral (envolvendo ideologias, mentalidades, sentido histórico, etc.) e um método específico (personagens, objetos, ações e situações descritos de modo real, isto é, de „acordo com a realidade‟), é geralmente aceito como “ilusão referencial”, o que, na verdade, é o seu aspecto de convenção, de „mentira‟, de „máscara‟, comum a todas as linguagens e estilos artísticos, pois todos eles são convenções (2007, p. 139, grifos da autora).

O realismo está intimamente ligado às formas narrativas, sobretudo ao romance, sendo característica fundamental desse gênero. Para Bakhtin (1993), no espaço romanesco coexistem discursos, vozes, concepções de mundos, estilos e gêneros. Nele, as complexas relações entre os indivíduos de uma sociedade são agenciadas e problematizadas na organização narrativa. De modo que, a construção

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de uma teia narrativa que desconsidere o seu vínculo do mundo, é praticamente impensável. A estética neorrealista, foco de nossa discussão na análise da obra Gaibéus, é uma feição do realismo moderno, definido por Auerbach (1976) e citado por Pellegrini (2007, p.144), como “o tratamento sério da realidade quotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemático-existencial, por um lado – e, pelo outro, a estreita vinculação de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer ao decurso geral da história contemporânea”.

2. O Realismo na Fotografia A fotografia se aproveita da crise surgida do estilhaçamento do homem moderno – solitário e impressionado diante das transformações que ocorrem ao seu redor – e apresenta-se como alternativa de linguagem. Trata-se de um meio de expressão que ignora as palavras, pois que essas “penetram a tal ponto na realidade que se torna necessário investir contra a linguagem, „a pior das convenções‟, para que ela possa voltar a ser uma lente e revelar um tiers aspect perdido” (SHEPPARD apud Fonseca; SOUSA, 2008, p. 156, grifo dos autores). Há, porém, para alguns autores, um esforço pela literarização da fotografia; Fonseca e Sousa, por exemplo, entendem que a aproximação entre literatura e fotografia acontece a partir do momento em que o tempo, como afirmou Benjamin, torna-se dividido e fragmenta-se em instantes que não podem ser recuperados, apenas reproduzidos (FONSECA; SOUSA, 2008, p. 152-153). É importante salientar que a fotografia aparece e se desenvolve num contexto de crescente modernização. Máquinas são cada vez mais comuns e as cidades cada vez maiores e mais populosas; somados à intensa migração campo / cidade, esses fatores resultam na solidão e no estarrecimento provocado por tantas mudanças, concentradas em espaços tão curtos de tempo.

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Se as palavras penetram a realidade, como afirma Sheppard, talvez se comece a perceber que, em seu silêncio, a imagem fotográfica tem muito a dizer. Na verdade, esse entrosamento havia começado bem antes, conforme aponta Susan Sontag. Para a filósofa, Honoré de Balzac foi pioneiro na escrita literária com características fotográficas, porque descrevia a realidade como um conjunto de situações que se espelhava mutuamente. Segundo Sontag, esse escritor antecipa a forma característica da percepção estimulada pelas imagens fotográficas com sua “enciclopédia da realidade social em forma de romance”, experimentando a realidade como um conjunto de aparências, como uma imagem (FONSECA; SOUSA, 2008, p. 156). Essa nova forma de escrita, baseada em imagens, é o que Schøllhammer, citando Mitchell, chama de “virada pictórica” (SCHØLLHAMMER, 2002, p. 80). A “virada pictórica” surge como expressão de uma estratégia alternativa de representação, que tende a “criar formas heterogêneas e híbridas” entre literatura, arte, cinema, fotografia e outras formas de representação. A própria “virada pictórica”, em si, atende à necessidade de um novo tipo de realismo. Schøllhammer opõe esse novo tipo de realismo, que ele chama de afetivo, ao realismo histórico, de que fala Pellegrini. O realismo afetivo busca um “aspecto performático”, capaz de intervir nas emoções coletivas (2002, p. 80). Ainda, de acordo com esse teórico, essa nova perspectiva estética tem origem no “excesso de realidade” que atingiu o homem pósmoderno, constituído por construções imagéticas de natureza fugidia e “sobreexposição do real, que aniquila todo enigma, toda sombra, toda ilusão, todo mal, toda alteridade e toda morte”, provocados pelos meios de comunicação e pela tecnologia (2002, p. 76). Ao mesmo tempo em que tudo é “simulacro de si mesmo”, não existe permanência. Por essa razão, na virada dos anos 1970, surge uma ampla demanda de referencialidade, que atinge a maior parte das formas culturais: o objeto estético não é tão-somente representação do que se refere no real (ou refração, como prefere Pellegrini, no seu artigo de 2007), mas também catalisador de “efeitos sensuais” e até mesmo emocionais. Dada a sua característica refratária de uma realidade muitas vezes hostil e não mera cópia, como sugere Pellegrini (2009), a estética realista assumiu um caráter de

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denúncia, enquanto “representação necessária de uma nova realidade, em que o confronto das forças sociais e a figuração da vida de sujeitos comuns são tomados de modo „sério‟ e até mesmo trágico [...]” (2009, p. 14). Já no século XIX, o problema da “representação fiel” enquanto “complexa relação estabelecida entre sujeito criador e objeto criado” é debatido entre autores da literatura dita realista, como Flaubert e Zola. Mas, ainda conforme Pellegrini, parecia haver, entre esses escritores, o consenso de que era necessário adquirir alguma competência específica em relação ao objeto a ser representado antes de passar à sua recriação. Entretanto, esses autores “não renunciam ao ato ficcional propriamente dito, pois sabem que o texto realista não copia o real, mas pretende fazer crer que remete a uma realidade verificável” (2009, p. 1415, grifo da autora). Uma das contribuições sobre a diferença entre representação e percepção serve de medida para as transformações que o aparecimento da fotografia causou. A renomada crítica Rosalind Krauss considera a percepção superior, mais autêntica, por se tratar de experiência imediata; já a representação permanece sob suspeita, porque não passa de cópia, recriação. É, na verdade, um conjunto de signos no lugar e em vez da experiência: A percepção está diretamente em contato com o real, enquanto a representação está separada dele por um fosso intransponível, restituindo a presença da realidade apenas sob forma de substitutos, quer dizer, por intermédio de signos. (KRAUSS apud FONSECA; SOUSA, 2008, p. 150, grifos nossos).

Ao conferir maior importância à percepção, Krauss nos leva de volta às proposições de Schøllhammer, para quem a pós-modernidade, além do seu caráter de intensa transitoriedade, como apontou Benjamin, também se faz notar por um “questionamento radical da realidade” (SCHØLLHAMMER, 2002, p. 76). Como já afirmamos, a origem desse questionamento está nos excessos de realidade imposto pela mídia e nas formas cada vez mais cruas de representação. Sebastião Salgado, ao registrar cenários de sofrimentos causados por fome, guerra e desastres naturais, oferece ao seu espectador uma experiência sensorial, baseada no choque e na troca de olhares com o objeto observado. As três imagens analisadas nesse trabalho foram extraídas da série Trabalhadores (1996). As fotografias

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foram feitas durante as viagens de Salgado, na década de 1980, e enquadram-se, portanto, no período da “virada linguística” e do “excesso de real”, a que Schøllhammer se refere.

3. A Postura Realista de Alves Redol Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira, Portugal, em 1911. Sua obra é marcada pela vivência em um Portugal, essencialmente agrário, em plena ditadura salazarista. O estado totalitário está na gênese do neorrealismo português. Em oposição ao regime, o movimento se revela uma cultura de resistência, do contrapoder, fundamentada na filosofia marxista e na concepção ideológica de mimetização da realidade social e de conscientização das camadas populares. O regime político não permitia que temáticas sociais e políticas fossem abordadas, o que resultou numa tentativa de silenciar a literatura desse período. A censura mostrava-se em uma via de mão-dupla, pois, do lado dos escritores, o medo da retirada de circulação das obras, resultando na perda de material e prejuízos financeiros, fazia com que os artistas se autocensurassem. Esse fator interferiu sobremaneira na produção artística do movimento. Redol é um dos maiores expoentes da literatura de feição neorrealista portuguesa, sendo o inaugurador do movimento, com o seu romance de estreia, Gaibéus. A concepção neorrealista adotada por ele é a de vertente etnográfica, que propunha o conhecimento e o convívio com a comunidade que será ficcionalizada, a fim de produzir uma escrita mais verossímil e um “efeito de real” mais satisfatório. Essa postura do autor converge com o que Vera Follain Figueiredo considera como a busca pela credibilidade da narrativa: Nesse tipo de realismo, a credibilidade do relato não é conferida pela objetividade ou transparência do narrador-intelectual, mas ao contrário, pela ênfase no lugar de onde se fala, procurando-se, também, deixar claros os recursos utilizados no registro dos depoimentos alheios, embora seja sempre o intelectual burguês aquele que colhe, seleciona e organiza as palavras ou as imagens dos outro (FIGUEIREDO, 2012, p. 123)

O autor de Gaibéus se configura como um intelectual orgânico, aquele que,

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embora oriundo da burguesia, compromete-se com o processo de mudança social, de acordo com a proposição de Gramsci. Ainda, em seu realismo etnográfico, Redol empenha a sua literatura em dar voz ao outro social, envolvendo-se com o fato narrado. Nesse sentido, assemelha-se ao antropólogo e torna-se o escrevente das palavras do outro. Conforme Viçoso, a mediatização da voz das camadas populares é uma característica fundamental dos autores neorrealistas: O povo da macronarrativa neo-realista transitaria programaticamente, no campo da ficção, de objecto da História (ou das histórias) e do enunciado, como acontecera com o realismo-naturalismo oitocentista, para virtual sujeito da História e enunciador ficcional mediatizado pela voz dos escritores identificados com a codificação marxista da emancipação popular e da configuração de um novo tipo de intelectual (VIÇOSO, 2011, p.29).

Gaibéus se passa na área rural portuguesa, na região do Ribatejo, especificamente, na Lezíria. Essa é a área em que Redol nasceu e passou sua infância. Região fértil e que, em determinada época do ano, atraía os gaibéus – trabalhadores rurais temporários. Tal experiência lhe serviu de matéria-prima para a composição do romance homônimo. Nesse ponto, podemos pensar que, ao focar os problemas de uma região de Portugal, Redol estaria assumindo uma feição regionalista, tal como foi considerada a produção neorrealista brasileira da década trinta. No entanto, embora representada localmente, a narrativa parte da problemática de questões universais, como a condição humana no contexto de exploração do trabalho. Gaibéus não possui um eixo narrativo central. O romance se desenvolve com se fosse “filmado”; tal como se um antropólogo apontasse sua câmera e documentasse as cenas, sem interferir: Pelo tecto da poisada e pelas frinchas das portas entram cordas de claridade. Homens e mulheres, enrolados nas mantas listradas, dormem pelo chão, em ressonares profundos, sobre esteiras ou em palha, como o gado que está na mota a remoer. Estão para ali, sem divisões de sexo, vencidos pelo torpor que o trabalho lhes deixa nos corpos. Do alto da trave mestra pende um arame que agarra um candeeiro, frouxo de luz. E a claridade, entrando pelas frinchas, acorda um capataz que se levanta, a abrir os braços, e vai apagar o candeeiro. (REDOL, 1972, p. 26, grifo nosso)

A perspectiva assumida pelo narrador revela seu posicionamento diante da cena. Essa “câmera” – metafórica – registra o cotidiano em movimento, expondo a

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dinâmica das relações humanas, tal como o próprio Redol havia presenciado. Entre as relações observadas, o autor destaca a exploração do homem pelo homem: “Cá neste mundo uns são lobos outros são ovelhas. E enquanto houver dois homens não haverá lei diferente” (1972, p. 44). Redol constrói as personagens em Gaibéus seguindo os princípios do movimento neorrealista: a personagem é o homem comum, em seu trabalho, em seu drama cotidiano. No trecho a seguir, o narrador conta o trabalho extenuante a que os gaibéus estão submetidos, enquanto o patrão conta seu lucro: O ceifeiro pende mais a cabeça e vai caminhando sempre, a cortar o espaço com a foice que talha clareiras na seara! – Esses bocados rezentos ficam! – Lume nesses olhos! O que é verdete não se corta! Atrás do rancho, a cachopada vai fazendo a respiga. O Agostinho Serra traz a terra de renda à Senhora Companhia e um punhado de arroz fazlhe falta nas contas. Nas goelas anda seca de Agosto, que os xabocos dos canteiros avivam. Os lábios sorvem as gotas de suor que escorrem sempre, como os canteiros fazem o remijo para as valas de esgoto. [...] Não pode parar, porque lá em baixo, no aposento, o patrão está a fazer contas à colheita, que correu em boa maré. (REDOL, 1972, p. 36-37)

O autor busca chocar e sensibilizar o leitor. Para tal, lança mão de recursos típicos da estética neorrealista, como a animalização dos personagens. Na narrativa os trabalhadores são frequentemente comparados a animais: “O cuspo é baba de boi que deitam fora e fica a balouçar entre os lábios gretados e sem cor. Anda-lhes nos pulsos uma moinha que pede descanso, mas o trabalho não pode parar” (1972, p. 37, grifo nosso). As personagens femininas, além da animalização, sofrem com a exploração sexual masculina e também são tidas como subservientes e prontas a atender os desejos dos homens: E quando o corpo desaparecia, não se ocultava agora aos olhos castanhos, cor de fogo quase, do eguariço. Ia-se escoando aos poucos naquela mão adunca que lhe acordara a carne, só sentida até ali para os cansaços das labutas e para a tempestade das sezões. Segurava entre as suas mãos ardentes as mãos abandonadas de uma gaibéua vencida.

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Sentiu-a entregar-se por inteiro, embora só os dedos se cingissem e afagassem. Os olhos e as mãos não podiam mentir. Ele já possuía tantas fêmeas quantos garranos cavalgara e sabia de cor a expressão dos olhares e as carícias das mãos. Largou-lhe os dedos e pôs-se a enrolar um cigarro, assobiando baixo. Ela foi franzindo o avental e ficou de cabeça pendida, num jeito de abandono. O eguariço pensou que talvez amanhã, pudesse contar na mota, aos outros criados, aquela nova aventura. Bem ajeitada, com roupa da casa, era coisa que dava uma boa meia hora. (REDOL, 1972, p. 58, grifos nossos)

Outra estratégia neorrealista que visa promover a reflexão em torno das relações de trabalho é a reificação. Assim como foi pensada por Lukács, na narrativa de Gaibéus, os trabalhadores são coisificados e comparados à máquinas e objetos: Parece que dos braços as carnes caíram e só ficaram os ossos, como tomados de reumático, e os tendões retesados, como correias de debulhadoras em movimento. Os peitos arfam, as pernas derreiam-se. A malta trabalha em silêncio e só as foices e as espigas falam. As tosses, de quando em quando, dizem que ali vai gente – isso a distingue das máquinas, que não têm pulmões. (REDOL, 1972, p. 37, grifos nossos)

O autor constrói uma narrativa sem enredo tradicional. As personagens são diluídas no cenário como estratégia de representação de um protagonista coletivo. São micronarrativas tecidas em torno de ações individuais das personagens e que vão compondo a história maior. Uma metáfora das relações humanas no cotidiano, em que as ações individuais constroem o coletivo social. Podemos observar exemplos da organização das personagens em micronarrativas, nos trechos em que o “ceifeiro rebelde” é evocado: As angústias do ceifeiro rebelde tornam-se maiores do que as dos camaradas - ele sente os pesares de toda a malta que ali moireja. No seu peito todas as dores encostam a cabeça e ali deixam um vínculo de amargura. E aqueles vínculos são estradas que findam na sua cabeça, onde o desalento, porém, não caminha. O ceifeiro rebelde tem bússola bússola que marca um' norte. Por isso ele olha a terra com olhos diferentes, onde o oiro das searas se reflecte. (1972, p. 44) O ceifeiro rebelde pensava que estavam a tirar o pão a eles próprios; se todos percebessem, nunca ninguém pegaria numa maçaroca. E o trabalho seria pago ao dia, porque a ceifar ou na descamisa as barrigas não achavam diferença. Aquilo tornava-o mais sombrio que o temporal e a falta de jorna. (1972, p.110)

Ainda nesse trecho citado, podemos salientar que o ceifeiro rebelde é a única voz na narrativa que demonstra a consciência da condição de exploração a qual ele e seus companheiros são submetidos. Por isso, as angústias dele tornam-se maiores do

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que a de seus camaradas. A consciência do ceifeiro diante do problema é ratificada metaforicamente pelo narrador neste trecho: “O ceifeiro rebelde tem bússola - bússola que marca um' norte. Por isso ele olha a terra com olhos diferentes, onde o oiro das searas se reflecte” (1972, p. 44, grifos nossos). Ele enxerga com olhos diferentes porque o olhar de todos os outros é alienado. O vocábulo “moireja” remete ao trabalho árduo e sem descanso e soma-se a construção “falta de jorna (salário diário)”, no segundo trecho, para mostrar que o problema é maior que o da exploração humana. No caso de Gaibéus é da escravidão. O ceifeiro se refere ao trabalho oferecido em troca da comida, que é repassada aos trabalhadores por um valor abusivo. Eles desconhecem o valor cobrado e acabam ficando sem pagamento. Entendemos que o autor pode estar querendo fazer refletir sobre um país que escravizou e traficou negros africanos, mantinha, até aquele momento, suas colônias na África e ainda não enxergava a condição de escravidão dos próprios cidadãos portugueses. O autor lança mão de diversas estratégias textuais, na construção da personagem e da narrativa, em torno do ceifeiro rebelde, para marcar o seu posicionamento ideológico no texto. Observamos na construção “se todos percebessem, nunca ninguém pegaria numa maçaroca” (1972, p. 110, grifos nossos), a necessidade da conscientização e do engajamento coletivo para que haja a transformação da realidade social. Portanto, ao problematizar os conflitos sociais, a luta de classes, na voz do ceifeiro, o autor faz revelar a sua própria voz no texto. Quanto ao realismo, essa a obra se constrói como referencial ou real, uma vez que, ao buscar encenar o contato de sua experiência com realidade, o autor recorre a “efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos aos encontros extremos e chocantes com os limites da realidade, em que o próprio sujeito é colocado em questão” (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 133). Ele tenta agenciar o equivalente sensível da sua experiência de contato com o real. Dessa forma, o interlocutor tem a possibilidade de tocar, ou de entrar em contato com o real, reagindo afetivamente diante dos efeitos sensíveis da experiência reproduzida. O enquadramento de cenas em Gaibéus e o olhar atento no referente

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(conteúdo social da obra), aliados à escolha da terceira pessoa como foco narrativo, aproximam-se, como método, da posição do fotógrafo. Nessa perspectiva, vislumbramos que, além de posturas realistas, existem algumas estratégias que marcam pontos de contato entre Alves Redol e Sebastião Salgado, uma vez que tanto autor/narrador quanto o fotógrafo revelam a posição de observação diante da cena a ser “registrada”, conforme poderemos perceber na próxima seção.

4. A Postura Realista de Sebastião Salgado Sebastião Salgado nasceu em Aimorés / MG, em 1944. Doutor em Economia, tornou-se fotógrafo na década de 1970, auge da “crise de referencialidade”, a que já nos referimos. A motivação para a fotografia surgiu quando Salgado trabalhava como economista para a Organização Internacional do Café. Ao fotografar cafezais africanos, julgou que as imagens retratavam melhor a situação econômica do lugar do que estudos estatísticos. Decidiu então atuar como fotógrafo free-lancer para organizações humanitárias, entre as quais UNICEF, OMS e Anistia Internacional, até fundar, em 1994, a Amazonia Imagens, sua própria agência fotográfica. Salgado mantém em seu trabalho aquilo que Pellegrini chama de postura e método realista: Este sentido é base da grande controvérsia centrada na objetivo de „mostrar as coisas como realmente são‟; visto como uma postura geral (envolvendo ideologias, mentalidades, sentido histórico, etc.) e um método específico (personagens, objetos, ações e situações descritos de modo real, isto é, de „acordo com a realidade‟), é geralmente aceito como “ilusão referencial”, o que, na verdade, é o seu aspecto de convenção, de “mentira”, de “máscara”, comum a todas as linguagens e estilos artísticos, pois todos eles são convenções. (PELLEGRINI, 2007, p. 139).

A primeira fotografia, realizada em 1987, em um canavial do interior de São Paulo, mostra um grupo de trabalhadores rurais. A imagem guarda certa semelhança com cenas descritas em Gaibéus. Os trabalhadores mantém suas cabeças baixas e o rosto coberto pelo chapéu. Não é possível saber quem são: gênero, idade, etnia. O mesmo se dá com os gaibéus anônimos de Redol. Na imagem, nota-se apenas que o

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corte da cana é um trabalho árduo, que exige muito esforço - como revela a postura do trabalhador que surge em primeiro plano - e que parece não ter fim – o que pode ser deduzido da quantidade de canas-de-açúcar ainda de pé, bem inferior ao número das que foram derrubadas. Os trabalhadores encontram-se no centro da imagem, rodeados pelo canavial e encobertos por uma névoa, possivelmente fumaça provocada pelas queimadas. São condições extenuantes e arriscadas de trabalho. Podemos reparar que os equipamentos de segurança são, em sua maior parte, improvisados: à exceção das luvas e botas, o chapéu parece frágil e o rosto é protegido apenas por um pedaço de tecido, possivelmente uma camiseta. É sabido que muitas regiões do interior do Brasil mantém sua economia baseada no cultivo da cana-de-açúcar. Em determinada época do ano, faz-se a queimada e corte da produção, o que atrai milhares de trabalhadores, conhecidos por boias-frias, de diversas regiões pobres do país. Além dos riscos da atividade, a remuneração é ínfima, dada a baixa qualificação desses boias-frias e flutuações de preço que os derivados da cana-de-açúcar sofrem no mercado. Esses fatores contribuem para a manutenção dessa situação, comum no Brasil. A esse respeito, pode-se verificar também que não é possível apontar, partindo apenas dos elementos fotografados, a data da imagem, o que revela ser essa uma situação antiga e mesmo assim, presente, apesar de toda a tecnologia disponível.

Figura 1: Cana de açucar Pradópolis, São Paulo, Brasil, 1987.

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A segunda fotografia foi feita em 1989, em uma mina de carvão indiana. Três carvoeiros olham fixamente para a câmera. Há pouca expressão nos seus rostos, exceto pela última pessoa, que esboça uma expressão que pode ser um quase sorriso ou curiosidade. Também é difícil para o observador saber quem são: cobertas pela fuligem, pode-se apenas especular sobre a cor da sua pele; sua idade é indefinida. Essa imagem pode ser entendia como um quiasma: ao mesmo tempo em que há um observador, que lança seu olhar sobre a cena, há um outro olhar que parte do objeto para o observador (SCHØLLHAMMER, 2002, p. 82). Ambos os olhares refletem estranhamento e o choque; enquanto observador externo à imagem possivelmente desconhece a realidade dos carvoeiros indianos é possível afirmar que esses também desconhecem a sua realidade. No entanto, observam aspectos opostos da realidade. Ambos passam a existir a partir do olhar que emitem, sintetizando a máxima video ergo sum do pintor renascentista Leon Alberti. Vejo logo existo: sabemos que o objeto está ali porque vemos e sabemos que o mesmo emite um olhar sobre nós. Esse olhar do objeto sobre seu espectador, quando se trata de uma cena de dor ou sofrimento, traz o choque e a piedade para com aquele que sofre, mas, ao mesmo tempo, traz a sensação de conforto, porque o sofrimento é de um outro. O observador tem o conhecimento de uma realidade sem precisar vivenciá-la de fato. Nesse instante, “a imagem também é uma tela protetora que, pela união entre o imaginário e o simbólico, rebate e remedia a chamada sensível do Real sobre a visão” (SCHØLLHAMMER, 2002, p. 85).

Figura 2: Trabalhadores de mina de carvão, Dhanbad, Bihar, Índia, 1989.

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A última imagem foi obtida num cacaueiro, em Itabuna, Bahia, em 1990. Na imagem, vemos duas mulheres, quatro crianças e um cachorro à sombra das árvores. Não se trata de imagem dramática ou chocante em si mesma, ainda que se conheça o histórico escravista das lavouras de cacau baianas e que, tal como nos canaviais, o trabalho seja árduo e em condições de risco. Porém, a presença do animal nos remete a uma das obras mais conhecidas da literatura brasileira, Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Além disso, a naturalidade das pessoas fotografadas, que parecem ignorar o fotógrafo dá á cena certa beleza e placidez. Entretanto, um olhar atento revela que uma das crianças olha diretamente para a lente, remetendo novamente ao quiasma. O olhar do menino chama a atenção para outro aspecto importante da fotografia, que é o seu noema. Barthes o define como “Isso-foi”, porque trata-se de algo “necessariamente real” e não “facultativamente real”. Em outras palavras: em algum momento, essas pessoas estavam realmente sob os cacaueiros. E nesse mesmo momento, Salgado esteve lá para registrá-las. É a coisa em si, num instante de dupla posição: realidade e passado, porque não há simulação. (BARTHES, 1980, p. 114115). Ao distinguir Real de Realidade, Barthes traz novas considerações para o debate. Embora afirme que a fotografia não seja uma modalidade artística e, per si, não constitua a “estrutura (perceptiva) da imagem”, Barthes a considera a o “Novo Absoluto, a mutação, o limiar” (Idem, 2005, p. 145-147).

Figura 3: Cacau, Itabuna, Bahia, Brasil, 1990

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Conclusão A proposta inicial desse trabalho era comparar o romance de Redol às fotografias de Salgado. Partindo do princípio de que ambos se arvoram no realismo para realizar seu trabalho, é possível estabelecer contatos entre as obras. No entanto, alguns desvios foram feitos, em função do próprio realismo ter sofrido tantas mudanças em sua teoria e de se tratar de suportes artísticos diferentes. Em Walter Benjamin, nos deparamos com a expressão cópia, usada por ele e outros críticos do realismo. Embora Benjamin se referisse à fotografia como cópia de um instante, o uso dessa expressão é muito revelador das intenções dos primeiros fotógrafos, ainda em contranste com a literatura do século XIX. Se, para Susan Sontag, Balzac tinha uma escrita fotográfica, os fotógrafos do final desse século ainda não haviam literarizado sua arte, expressão também usada em Benjamin. No entanto, como apontamos, esse mesmo pensador já antevê as possibilidades linguísticas que a fotografia continha em si. Do termo cópia, passamos às noções de representação e refração, discutidas por Barthes, Pellegrini e Schøllhammer. Se, para Barthes, a literatura realista é isso – representação do real inatingível, mediado pela nossa linguagem; no efeito de real, portanto, a fotografia torna-se enigma. Como ele afirma em A câmara clara, o fotógrafo “esteve lá”; o objeto fotografado é a coisa vista, não representada. Mas o que dizer dos ângulos de câmera? Das escolhas do fotógrafo, tão intencionais quanto o vocabulário do autor e a forma que dá ao seu texto? Ao seu posicionamento diante da cena e da cena mesmo escolhida para ser registrada? Nesse sentido, é Pellegrini quem avança, ao usar o termo refração, tomado de empréstimo da física: essa coisa registrada, a cena dramática, já não é mais, mas refere-se algo que esteve ou foi; tal como a luz que incide sobre um objeto qualquer e nos faz vê-lo modificado, sem modificar ao objeto propriamente dito. Redol e Salgado se afirmaram realistas. Ambos compartilharam a intenção de denunciar a exploração do homem pelo homem; de dar voz e vida aos humilhados. Ambos usaram seu talento e arte para transgredir. Ainda que um o fizesse por ideologia – Redol se assume, na introdução de Gaibéus simpatizante do comunismo –

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e o outro com a intenção de chocar e demonstrar as condições dramáticas dos trabalhadores, ambos foram realistas. Redol se considera e se sabe um neorrealista. Salgado se afirma como um fotojornalista interessado em revelar o mundo e o sofrimento nele contido, mas sem um alinhamento estético ou metodológico. A palavra revelar, emblemática nesse sentido, sugere, à medida em que a imagem fotográfica surge no papel, “revelada” por processos químicos, também a evidência das condições e dos interesses do fotógrafo. Ambos quiseram chocar, chamar a atenção para uma realidade dura, ao mesmo tempo em que buscaram sensibilizar os seus espectadores, mas sem os fazer correr os riscos da ceifa ou da mineração de carvão. Dadas essas semelhanças, nos parece acertada a escolha dos artistas e obras. No entanto, não cabe a esse trabalho o julgamento do seu êxito como realistas. Talvez, o fato de Redol ser considerado, por causa de Gaibéus, o primeiro neorrealista português justifique, embora, como já afirmamos, esse autor se soubesse neorrealista, como afima na introdução do seu romance, para ele, sua obra é muito mais uma reportagem (1972, p. 17) sobre os conflitos que presenciou do que um romance. Para Redol, trata-se de um livro “antiassunto”, sem uma história definida, mas surgida no viver coletivo (1972, p. 16). Sobre Salgado, como já dissemos, a intenção declarada do autor e o aparecimento dos primeiros trabalhados no momento da “virada pictórica” vão ao encontro do realismo afetivo, conceituado por Schøllhammer. Se não uma comparação, ao menos uma aproximação foi tentada. E o que se conclui, apesar dos desvios tomados nas análises é que, não importam tanto a teoria e o método: na hora de criar, o homem ainda é sua maior inspiração.

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Conquistando espaços (e espelhos): O sujeito contemporâneo de Humberto Gessinger Silvia Maria Alves Jorge1

Resumo: O presente estudo propõe uma análise sobre o sujeito contemporâneo na produção virtual de Humberto Gessinger. Para tanto, busca-se uma articulação entre a produção virtual do autor no Blogessinger e os estudos acerca da identidade cultural na pós-modernidade de Hall (2005) e Bauman (2004, 2010). Faremos, assim, uma análise dos escritos de Gessinger, destacando algumas características do autor relacionadas a estilo, além de aspectos culturais e de contemporaneidade presentes em suas publicações virtuais. Palavras-chave: Humberto Gessinger, Hipertexto, Sujeito contemporâneo.

Abstract: This paper proposes an analysis of the contemporary subject in Humberto Gessinger’s virtual production. Therefore, we make a link between the virtual production of the author in Blogessinger and the studies about cultural identity in postmodernity Hall (2005) and Bauman (2004, 2010). Thus we will make an analysis of the writings of Gessinger, highlighting some features related to the author's style, and cultural aspects of contemporaneity presented in his virtual publications. Keywords: Humberto Gessinger, Hypertext, contemporary subject.

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Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.

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“cara a cara (a conquista do espelho) passo a passo (a conquista do espaço)” GESSINGER

E

ste trabalho tem por objetivo observar como o sujeito contemporâneo é representado e/ou configurado na criação artística de Humberto Gessinger, através da dissolução de fronteiras entre o real e o virtual e da

fragmentação de noções identitárias. Além disso, propõe-se uma análise do blog http://blogessinger.blogspot.com tendo em vista uma interlocução entre preceitos da Linguística Textual e algumas considerações estilísticas. Humberto Gessinger é um cantor, compositor, escritor e cronista gaúcho, nascido em Porto Alegre, no dia 24 de dezembro de 1963. Sua imagem é reconhecida mais facilmente quando relacionada aos “Engenheiros do Hawaii”, banda de rock brasileira surgida nos anos 80, com traços de influências do contexto político. As composições musicais do grupo, críticas e irônicas, questionam o poder político e dialogam com a rebeldia da juventude ocorrida no final do século XX: ideais comungados por inúmeras bandas de rock’n roll emergidas no cenário artístico e cultural pós-ditatorial. Atualmente, prestes a completar 50 anos e dando continuidade à sua carreira musical, Humberto Gessinger (HG – ou Agagê, como também é conhecido) prepara uma nova turnê pelo país, para divulgar seu novo CD, com canções inéditas. Além de manter sites na Internet referentes às bandas citadas, o autor também faz publicações semanais no “BloGessinger”; um blog com contos, poemas e textos referentes à sua carreira, família e impressões sobre seu cotidiano e as relações humanas. Este blog servirá de base para o presente trabalho, pois sua leitura e análise permitem uma observação perspicaz

de como foi se estabelecendo uma

reconstrução de sentidos, tanto estética quanto ideológica, a partir da inserção do formato digital na produção artística do autor aqui mencionado. De um outro lado, serão analisados os temas das publicações, destacando aqueles relacionados à contemporaneidade e à forma como Gessinger lida com as definições de identidade e

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alteridade, tão problematizadas em uma época de descentralização normativa e crise de valores totalizantes. Neste sentido, serão apresentados alguns conceitos que norteiam a noção de sujeito, como os apontamentos de Stuart Hall (2005). De acordo com o sociólogo, uma questão que vem sendo muito discutida na teoria social, relacionada à contemporaneidade, é a chamada “crise de identidade”, e, dentro desta perspectiva, Hall discorre sobre as três concepções de sujeito, caracterizando-as como uma evolução: a do sujeito do Iluminismo, passando pelo sociológico, até chegar ao pósmoderno. Desta maneira, Hall apresenta, partindo de um conceito individualista do sujeito e de sua identidade, o sujeito do Iluminismo: centrado e unificado, possuidor de um núcleo interior congênito contínuo, cuja essência é a identidade de uma única pessoa. Mais tarde, devido à complexidade do mundo moderno e à evolução dos questionamentos em relação a esta nova realidade, tal conceito foi sendo substituído pela noção de sujeito sociológico, cuja identidade era construída na interação entre o interior (o próprio indivíduo) e o exterior (os outros sujeitos que convivem com ele; a sociedade). Desta forma, ocorre a fragmentação do sujeito: o que antes era possuidor de uma identidade única e centrada passa a ser composto, nesta fase, por outras identidades culturais, portanto variáveis e muitas vezes contraditórias, uma vez que refletem as interações do “eu” com a sociedade. Mas a emergência das sociedades modernas, definidas pelas constantes e rápidas mudanças que sofrem de forma permanente, em oposição às tradicionais, baseadas na continuidade das tradições, faz surgir uma nova concepção de sujeito, o chamado pós-moderno. Este é definido historicamente, uma vez que assume identidades diferentes de acordo com o momento em que vive, e tais identidades podem multiplicar-se conforme a quantidade de representações culturais em uma sociedade, com as quais o sujeito pode se identificar durante um período, de acordo com o momento histórico em que está inserido. Desta forma, pode-se pensar em uma desagregação ou deslocamento do sujeito, que não é mais visto como centrado, único e contínuo, mas sim constituído

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por várias identidades culturais, em constante mutação, de acordo com a época e o lugar em que ocupa na sociedade. Esta concepção pode ser exemplificada na caracterização que Gessinger faz de si, em alguns momentos, no blog analisado: não sei de nada, mas aprendo muito ouvindo os papos destes meus amigos. O alemãozinho, o moicano, o cara de trancinhas da capa do !TCHAU RADAR!, o bigodudo que toca viola caipira no NOVOS HORIZONTES, o maluco que toca com os pés num power-duo usando terno azul... aprendo e me divirto muito com eles. Entre um cafezinho e outro, conversamos sobre os passados préfabricados que a gente vê por aí. E morremos de rir da maneira como algumas histórias são recontadas glorificando trajetórias que (quem viveu a época sabe) sempre foram oportunistas; esquecendo coisas importantes, criando soluções para problemas que nunca existiram. Eu e meus amigos achamos graça destas mentiras repetidas até virarem verdades. Morremos de rir pra não viver chorando (GESSINGER, 2012).

Este fragmento, publicado no post 47, apresenta as várias identidades assumidas por Gessinger em sua trajetória, de acordo com o momento histórico em que se encontrava inserido. Ele mostra como a interação com as várias identidades apresentadas por ele ao longo de sua história colaboraram para a formação de seu senso crítico em relação à visão que constrói do passado, bem como em relação a seus atuais questionamentos em relação à sociedade. Em outro trecho, publicado no post 5, ele coloca: Uma criança escrevendo poemas num quarto, um jovem projetando prédios na escola de arquitetura, um músico tocando para multidões. Já percorri estas 3 estradas. O que sei delas? Que todas têm a mesma curva. Um ponto onde a gente começa a tirar em vez de colocar. Aí é que começa a ficar interessante: quando começamos a selecionar! Enquanto corremos na velocidade máxima que o carro permite, somos meros prisioneiros de suas limitações (GESSINGER, 2012).

Através de reflexões como esta, é possível a construção de uma imagem do que vem a ser a fragmentação do sujeito na contemporaneidade e como as identidades deste sujeito são formadas e modificadas de acordo com o contexto cultural e social e influenciadas pelas pressões sociais, no sentido de fazer com que haja uma negociação entre o sujeito e as diversas representações e identidades, em busca daquelas que melhor se adaptem ao seu momento histórico.

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Devido à sua descendência alemã e à pouca idade e experiência que apresentava no início da carreira, Gessinger refere-se frequentemente ao sujeito desta época através da palavra “alemãozinho”, de forte valor afetivo. Além dessa, ele assume, ao longo do blog, várias outras identidades, como as anteriormente citadas, em especial a que faz referência ao clássico da literatura espanhola, o aventureiro e sonhador Dom Quixote, sobre a qual Gessinger também já compôs uma canção. No blog, a interação das várias identidades faz com que o autor refira-se a si mesmo como um “Dom Quixote Ninja”, um “Dom Quixote Zumbi”, um “Dom Quixote Jedi” ou mesmo um “Dom Quixote Nerd”, a exemplo do post de número 26. Assim, conforme os conceitos de Hall (2005) e as reflexões feitas por Gessinger, pode-se inferir que o sujeito pós-moderno é construído a partir não somente da interação com as múltiplas identidades culturais a que está exposto dentro da sociedade em uma determinada época, como também a partir da interação entre as várias identidades que são assumidas por este sujeito durante sua existência. Neste viés, é possível observar como a fragmentação está presente no mundo contemporâneo, através das manifestações artísticas, das inovações tecnológicas e mesmo através das novas maneiras de construção de sentidos de um texto, como é o caso do formato digital do gênero blog analisado, em consonância com o sujeito pósmoderno. Além disso, esta concepção de sujeito, construída a partir de interações e assimilações, é caracterizada por várias vozes que o influenciam, o que faz da intertextualidade outra característica da pós-modernidade. A escrita de Gessinger é marcada por muitas intertextualidades, inclusive, não raras as vezes, com suas próprias canções. Muitas influências são percebidas em suas obras, desde musicais e ideológicas, como as do inglês Roger Waters, quanto as linguísticas regionais do sul do Brasil, além, é claro, das várias influências literárias. Todos os tipos de influências citados são percebidos, inclusive, nos textos do BloGessinger, quando HG conta, através do uso de expressões do vocabulário gaúcho, fatos sobre sua carreira musical e cita obras e pensamentos de escritores famosos, como Friedrich Nietzsche, William Blake, Carlos Drummond Andrade, Mário Quintana, Machado de Assis, entre outros. Dentre os autores que perpassam a vida e a obra de Gessinger, o que o influenciou de forma mais relevante é o escritor e filósofo francês Albert Camus, a

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quem ele faz, constantemente, muitas referências. No blog, é possível encontrar algumas alusões, tal como visto no post 47; ao falar sobre seu álbum “A Revolta dos Dândis”, HG se apresenta como “o alemãozinho (fã do Homem Revoltado, de Camus)” (GESSINGER, 2012), sendo que o nome dado ao CD é, na verdade, o título de um dos capítulos do livro citado deste autor. Como ele mesmo diz, no post 25, “Influenciando e sendo influenciados, estamos todos (e tudo) conectados.” (GESSINGER, 2011). Já em outra postagem, de número 18, o autor comenta, em relação ao conceito do absurdo da existência humana, proposto por Camus: “Lembro de Camus comparando o absurdo da vida ao mito de Sísifo, condenado a passar a vida inteira empurrando uma pedra montanha acima só para deixá-la rolar para baixo e repetir tudo de novo.” (GESSINGER, 2011). Camus mostra, através do mito, como muitos indivíduos da sociedade contemporânea seguem uma rotina sem sentido, determinada por ideologias dominantes, como a do sistema capitalista de produção ou das instituições religiosas, reflexão compartilhada por Gessinger em várias passagens do blog. Neste sentido, somada às considerações feitas por Hall, referente a conceitos relevantes no que diz respeito ao sujeito e à contemporaneidade, não se pode ignorar a noção de “modernidade líquida”, de Zygmunt Bauman (2010). Para o sociólogo, o termo define um momento de transformação na sociedade, relacionado com a metamorfose do sujeito, mais individualizado, e com a passagem de estruturas de solidariedade coletivas paras as de competição; um momento de incertezas e questionamentos em relação ao individual e ao que diz respeito ao poder e à política. Como consequência, Bauman analisa a pós-modernidade como um tempo sem ilusões, pois devido à temporariedade e à fragmentação, não se pode mais pensar em traçar planos a longo prazo. Sobre esta questão, declara: Diferentemente da sociedade moderna anterior, a que eu chamo de “modernidade sólida”, [...], a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes

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que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades "auto-evidentes" (BAUMAN, 2004, p. 321).

Em relação à sociedade capitalista pós-moderna, o revolucionário Karl Marx, em seu Manifesto Comunista (1848) postula que “ tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Tal pensamento é reconstruído por Gessinger em uma de suas composições, nos versos da canção “O olho do furacão”, que dizem: “Tudo muda ao teu redor, o que era certo, sólido/dissolve, desaba, dilui, desmancha no ar”. Desta forma, os sujeitos pós-modernos, ao assumirem várias identidades, irão fazer, cada um sob sua perspectiva, reflexões referentes às características que marcam a sociedade contemporânea. Por outro ângulo, Bauman lança uma reflexão relacionada às consequências de uma nova realidade para o cotidiano do indivíduo, que vê sua vida afetada por esta fluidez, estando inserido em uma sociedade de consumo, individualista, marcada pela globalização e pela mudança sentida nas relações humanas. Assim sendo, muitas vezes, o indivíduo não é capaz de compreender qual é o seu papel na sociedade, pois ele se configura como um sujeito líquido e deslocado. Desta forma, para o sociólogo, o sujeito inserido na modernidade líquida é um caçador, que não se preocupa tanto com a coletividade, mantendo o foco em suas próprias necessidades de sobrevivência, o que o transforma em um ser solitário, devido ao processo chamado de individualização. Quanto a isso, ele diz, em entrevista para a revista virtual Cult, do site Uol: “Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós.” (BAUMAN, 2010). Esta solidão é também comentada por Gessinger no post 7: A gente faz as contas, projeta uma vida na outra, tenta se enxergar como se fosse outra pessoa... a gente busca espelhos por que viver é solitário. Busca simetrias porque a vida é torta. A simetria acalma. [...] a gente idealiza simetrias que não existem. Buscamos fatos que se repitam, uma ordem, um sentido, um padrão, um padrão, um padrão... Um padrão que não há (GESSINGER, 2011).

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O autor, neste fragmento, não só passa pela noção de individualização, proposta por Bauman, como também alude à questão da ausência de formas sólidas e padronizadas que caracterizavam o mundo moderno, diferentemente do mundo pósmoderno. Diante do exposto, pode-se dizer que a caracterização do sujeito contemporâneo de Humberto Gessinger, como propõe o título do presente capítulo, começou, de fato, a ser delineada nos anteriores, principalmente na análise de fragmentos do blog que o autor mantém na Internet. Tendo em vista o posicionamento assumido por Gessinger diante de fatores característicos da atualidade, como a hegemonia, a “marketização”, o artificialismo, entre outros, tornase então coerente analisá-lo de acordo com a perspectiva de Giorgio Agamben (2009), em seu ensaio “O que é contemporâneo?”. Nas palavras do filósofo: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Desta forma, ao viver em uma época de imposição de hegemonias, excesso de exposição e artificialismos, quando o status do produto é muitas vezes mais importante que a função que este busca desempenhar, uma vez que as aparências são, muitas vezes, mais importantes que a essência, Gessinger se coloca em posição contrária a estes valores, levantando críticas e questionamentos. No post 13, HG faz o seguinte comentário: Me tenho por um cara simples, com ideias claras (ainda que pouco comuns). Sei que, no meio em que me movimento, a polêmica é considerada um valor em si. Sinônimo de maior exposição, capa de revista, acessos no site. Mas este é só o meio em que me movimento, não sou eu (GESSINGER, 2011).

Tal posicionamento exemplifica a teoria de Agamben, quando este diz que os contemporâneos, ao não coincidirem com aspectos de sua época, conseguem manter um olhar fixo sobre seu tempo, “para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62). E quanto a isso, o autor esclarece que perceber esse

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escuro não significa ficar inerte ou passivo, pois o sujeito contemporâneo, ao analisar seu tempo em relação a outros, é capaz de transformá-lo. A crítica feita por Gessinger, no post 5, ilustra a alienação muitas vezes percebida na sociedade contemporânea, que se deixa manipular pela mídia e está subjugada a um poder hegemônico: Somos o macaco assistindo TV que aparece na capa do disco Amused to Death. Confortavelmente anestesiados, pra ficar nas palavras de Roger Waters. There is no pain, you are receding. A boa notícia é que acordar está ao nosso alcance (GESSINGER, 2011).

Como cronista contemporâneo, o autor constantemente discute temas relacionados ao cotidiano, e suas letras musicais configuram-se como ecos de seus questionamentos. Em entrevista ao site Uol, ele declara: “acho que uma das funções da arte é isso, testemunhar seu tempo. Acho que tudo o que eu fiz foi bem isso, testemunhar meu tempo.” (GESSINGER, 2012).

Assim, à medida que são

analisadas suas produções, em especial o blog, foco da presente análise, o autor simultaneamente constrói uma imagem de quem seria o sujeito Humberto Gessinger. Quem sabe que sou "Humberto Gessinger, 47", sabe que nasci em 1963. Que fui adolescente nos anos 70. Que, se não me embotoquei ou plastifiquei, tenho rugas. Que, se não estou careca nem pinto os cabelos, tenho muitos deles grisalhos. Que, quando surgiram os primeiros computadores pessoais, eu já tinha folheado muitos livros. Há muita informação neste "47" (GESSINGER, 2011).

Em sua obra, esta construção se torna evidente quando são feitas considerações em relação ao papel que HG desempenha na sociedade em que vive, com quais valores se identifica e quais são refutados por ele, como foi observado nos fragmentos do blog, apresentados ao longo deste trabalho. Por outro lado, relatos como os de sua rotina no BloGessinger, ao mesmo tempo em que agradam aos “de fé”, reforçam a projeção de uma imagem que o autor busca construir no leitor, como pode ser percebido no fragmento do post 82 a seguir: Como sempre faço, fui andando ao clube e, no caminho, parei na Stereophonica para autografar livros e calendários. É uma rotina semanal que me dá muito prazer. Não entendo quando me perguntam como tenho saco pra tanto autógrafo. Eu gosto mesmo de fazer os rabiscos! Sou grato a quem se interessa pela minha arte. Fico imaginando onde cada item vai chegar, como será recebido... mais que tudo, a tarefa mecânica e repetitiva da grafia me dá a mesma paz zen que sinto treinando direitas, backhands, saques e voleios. […] acho legal que meus garranchos façam algum sentido hoje. Não pela beleza, pelo afeto (GESSINGER, 2013).

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Assim sendo, uma declaração como esta facilita a aproximação do leitor com o cotidiano do artista, ao mesmo tempo em que projeta uma imagem que o autor procura reforçar de si mesmo; de uma pessoa simples, que cumpre rotinas e valoriza pequenos gestos, contrariando a ideia de celebridades que buscam apenas fama, sem se interessarem por quem seria seu público. Em outros momentos, ele busca definições de si mesmo e as apresenta ao leitor, como no post 86: Chama-se de “mercurial” algo instável e volátil; alguém temperamental, cujo humor ou comportamento se altera inesperadamente. O elemento químico Mercúrio tem como símbolo Hg. Eu sou um outro Agagê (GESSINGER, 2013).

Deste modo, o autor vai, através de seus textos, revelando traços de sua personalidade, suas preferências e o que pensa em relação aos fatos do cotidiano. É perceptível, ao longo de seus relatos, a sua intenção de projetar no leitor a sua imagem como uma pessoa que valoriza os sentimentos e as relações humanas reais, inclusive no que diz respeito àquelas intermediadas pela Internet. Eu sei que o tempo é relativo. Talvez nem exista na www. Mas não é isso que nossos corpos sentem. Eles estão se lixando para o que é virtual. Sentimos na pele a frieza do histérico ponteiro dos segundos e o calor tranquilo de algum corpo pulsando próximo. Além de espírito e visão, somos de carne e osso, lembra? Humanos. Eu gosto de ser. Poderíamos estar à beira de uma fogueira pré-histórica com esta mesma cara que ora encara o monitor. Não mudamos muito (GESSINGER, 2011).

Retornamos, nesse momento, ao debate sobre as relações humanas quando construídas no universo virtual. Se, por muitas pessoas, essas relações seriam vistas sobre o viés da artificialidade, Gessinger coloca-as no patamar dos contatos físicos, ao trazer para sua escrita a descrição daquilo que transcende o vazio da contemporaneidade industrial e globalizada para se mostrar enquanto acalentação para aqueles que se dispõe a lê-lo. O BloGessinger, portanto, deixa de situar-se no não-lugar da Internet para ser um lugar de inclusão para aqueles que comungam dos mesmos interesses e ideais. Essas discussões convergem, posteriormente, para uma reflexão sobre o próprio papel de Humberto Gessinger nesse processo de (des)construção das barreiras que envolvem o real e o virtual, como percebido no post 16: É tão bom saber com quem estamos falando! É cada vez mais difícil saber com quem estamos falando! Talvez estejamos, todos, falando muito e

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ouvindo pouco. Hey, quem são estes caras? Em blogs, bandas, citandocitações-de-citações-de-citações, links-para-outros-links-para-outros-links, sempre de bom humor, sempre de mau humor... quem são? Is there anybody in there? (GESSINGER, 2011).

O autor problematiza a visão do sujeito e, ao fazê-lo, apresenta-se igualmente incluído nesta representação. As pessoas que se propuserem a acompanhar os textos postados em seu blog talvez possam chegar a uma definição acerca de quem é Humberto Gessinger, mas, na verdade, existe uma linha tênue que divide o autor ideal do autor real. Isto se deve ao fato de que a imagem de Gessinger projetada pelo leitor é construída a partir da interação com o sujeito virtual que ele representa no blog. Neste sentido, o acesso do leitor a Gessinger é intermediado pelo que ele fala de si através das construções linguísticas, textuais e discursivas deste sujeito e não do sujeito dito real.

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Aceito em 27/01/2014.

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Configurações do discurso machista na internet: O blog Testosterona e os embates ideológicos na era digital Marianna Michelle Medina1

Resumo: No presente trabalho, propõe-se uma leitura crítica do blog Testosterona, observando como ocorre a descrição das características femininas, reduzindo-as a uma classificação unívoca, de acordo com o ponto de vista pretensamente masculino e hegemônico. Para tal análise, utiliza-se as teorizações de Susan Faludi, Elisabeth Badinter e Simone Beauvoir. Palavras-chave: Ideologia; Discurso; Machismo.

Abstract: In this paper, we propose a critical reading of the blog Testosterona, watching as the description of the female characteristics occurs, reducing women to a univocal classification in accordance with the masculine and hegemonic viewpoint allegedly. For this analysis, we use the theories of Susan Faludi, Elisabeth Badinter and Simone Beauvoir. Keywords: Ideology; Speech; Machismo.

1

Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.

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Introdução

O

Blog Testosterona foi fundado em junho de 2008 e encontra-se atualmente no portal da MTV. Além de seu caráter humorístico e satírico, transmite significados e construções sociais relacionados às

relações de gênero presentes na vida cotidiana, e proporciona uma socialização através da manutenção/formação de um modelo de masculinidade. O conteúdo virtual se divide em postagens temáticas (Mundo Macho; Listas; Mulheres; Vídeos; Tirinhas; Sexta das Gostosas; Leitoras e Acid Girl), todas relacionadas à vida do homem heterossexual engendrado no estereótipo do “macho moderno” e da mulher, quando relacionada, dentro de determinados códigos, com esse universo masculino. O blog é descrito pelo próprio administrador como de caráter humorístico. (...) "uma criação da mente perturbada de Eduardo Mendes. Cínico, sarcástico, manipulador e mentiroso. Um rapaz que acredita que toda mulher é uma rainha e a cozinha o seu castelo.” (MENDES, 2008). Daí já se pode perceber a proposta do material desenvolvido por Mendes e como este se relaciona com um ideal de masculinidade alicerçado em ideais de virilidade e posse. (BADINTER, 1996, p. 168). Nota-se em quase o todo o conteúdo do blog a necessidade de afirmar a masculinidade por meio de postagens misóginas, que retratam as mulheres ora como objetos, que estão à disposição dos homens e podem ser usados em qualquer momento, independente de seu consentimento, ora como seres que devem se mostrar sempre recatados, voltados para o lar e que desempenham todas as tarefas domésticas enquanto o homem se dedica ao trabalho, funcionando, assim, como o provedor do lar. Percebe-se que esse pensamento está fortemente ligado a uma sociedade patriarcal, que oprime tudo aquilo que não se assemelha à classe dominante, ou seja, homens brancos e heterossexuais. No blog proposto para análise, as mulheres, bem como o movimento feminista, são vistos como inimigos naturais da masculinidade e tudo aquilo que visa contestar o lugar de dominador do homem é imediatamente estigmatizado e deslegitimado. Ao apontar as mulheres (especialmente as feministas) como aquilo que deve ser vencido, os homens, no entanto, ignoram que não é o movimento ou o “sexo oposto” o responsável pela criação do estereótipo de machão ao qual eles se

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vêm forçado a atender, mas antes a cultura, que dita desde o vestuário até o modo como as pessoas devem se comportar para serem socialmente aceitas e ocuparem um lugar privilegiado na sociedade. Partindo para a estrutura textual do blog Testosterona, é importante abordar um dos recursos muito utilizados nos textos do autor do blog que é o recurso de topicalização, fenômeno em que a palavra ou expressão que queremos dar ênfase é deslocada para a esquerda, ou seja, em posição inicial na sentença. Verifica-se, nesse caso, como se pretende discutir posteriormente, que o recurso em questão, além de evidenciar uma marca textual específica, serve para referendar uma série de construções discursivas e ideológicas relacionadas às diferenças de gênero. Além de ressaltar sobre a topicalização no site em questão, é fundamental para esta pesquisa analisar determinadas formações textuais/discursivas, as quais constroem e reafirmam preconceitos e modelos cristalizados de identidade. Tais fenômenos vem sendo amplamente discutidos, no âmbito da linguística e da literatura pela Análise do Discurso Crítica e pela Crítica Cultural que veem nas construções discursivas perigosas armadilhas para reafirmação de relações de poder assimétricas (FOUCAULT, 1987). Desse modo, este trabalho tem o intuito de analisar e criticar a constituição da masculinidade, através dos posts do blog “Testosterona", considerando tanto os aspectos inerentes à análise do discurso e à estilística quanto os valores discursivos que permeiam tais questões se relacionam, de forma marcante, com as teorias feministas que muito contribuíram para os estudos de gênero e para a (des) indexação de valores normativos culturais e ideológicos. (BUTLER, 1990)

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1. O macho moderno: novas subjetividades, velhos dilemas Percebe-se, em termos gerais, que o que a sociedade exige, tanto dos homens quanto das mulheres, não se alterou muito, nas últimas décadas. Deles continua sendo cobrada a virilidade e, em menor escala, que sejam capazes de sustentar um lar. Além disso, percebe-se que ainda não comandados pela cultura na qual estão inseridos, de modo que embora não se assemelhem ao Homem do Marlboro, outros estereótipos de masculinidade surgiram para que se busque adequação. As mulheres, por sua vez, ainda não conquistaram algumas das liberdades a respeito das quais Simone de Beauvoir falava: ainda não possuem pleno direito sobre o próprio corpo, ainda há distinção na remuneração e abusos de todos os tipos continuam a ocorrer, além de continuarem a ser consideradas culpadas pela violência sofrida. Assim, embora tais textos tenham sido escritos em contextos sócio históricos bastante diferentes do que está inserido o Blog Testosterona, percebe-se que eles se mostram extremamente frutíferos para a análise do site, uma vez que seu senso de humor se pauta na dicotomia homem x mulher, bem como na reafirmação dos estereótipos citados. Isso se torna evidente no blog Testosterona na medida em que se percebe postagens misóginas e homofóbicas. Nota-se que, na perspectiva do autor do blog, o homem deve desprezar quaisquer traços de sua personalidade que possam remeter a feminilidade para, dessa forma, conseguir construir a sua identidade enquanto macho. É perceptível a necessidade de subjugar as mulheres por meio de piadas pautadas em um senso comum, que os movimentos feministas se esforçam por desconstruir e que se mostram deslocadas do contexto da contemporaneidade, como pode ser notado pelo exemplo abaixo:

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Figura 1 – “Humor” machista do blog Testosterona.

O que se nota é a necessidade de manter as mulheres numa posição de alguém cujas responsabilidades consistem apenas em cuidar da casa e do homem. Alguém que não tem capacidade para dirigir, uma tarefa que por muito tempo foi considerada masculina e que até hoje há quem diga que as mulheres não podem desempenhar tão bem quanto os homens. Nota-se, ainda, o reforço da ideia de que

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as mulheres falam e reclamam demais (“Esse silêncio ressalta seus olhos”). Por meio dessa frase, percebe-se que o autor da postagem não está interessado em ouvir o que a mulher possa vir a ter para dizer, reforçando a ideia de que mulheres são apenas objetos decorativos e que, como tal, não devem expressar opiniões. O fato de a mulher escolhida para ilustrar a postagem ser negra também contribui para o reforço de ideias racistas. Além disso, percebemos no blog analisado que a característica mais marcante da masculinidade é a heterossexualidade, de modo que postagens onde as mulheres passam por um processo de reificação são abundantes, bem como aquelas que denotam a sua necessidade de um homem para desempenhar uma gama variada de tarefas, colocando-as ainda como o “sexo frágil”, que tem a necessidade de alguém que funcione como seu protetor e provedor. Nesse sentido, Elisabeth Badinter observa que: A definição do gênero implica espontaneamente a sexualidade: quem faz o que, e com quem? A identidade masculina está associada ao fato de possuir, tomar, penetrar, dominar e se afirmar, se necessário pela força. A identidade feminina, ao fato de ser possuída, dócil, passiva, submissa. “Normalidade” e identidade sexuais estão inscritas no contexto da dominação da mulher pelo homem. Dentro desta óptica, a homossexualidade, que implica na dominação do homem pelo homem, é considerada, senão uma doença mental, pelo menos uma perturbação da identidade de gênero (BADINTER, 1993, p. 99).

Portanto, assim como o movimento feminista representa uma “ameaça a masculinidade”, a homossexualidade também se mostra um inimigo significativo. Elisabeth Badinter discute em XY: sobre a identidade masculina, que até se chegar ao conceito (e ao próprio nome) que se tem atualmente de homossexualidade, ela passou por diversas tentativas de análise e compreensão por parte da mais variada gama de estudiosos. Desse modo, no capítulo “Identidade e preferência sexual”, são apresentadas diversas definições, partindo do ponto de vista religioso, médico, psicanalítico, etc., até que se construa a noção atual de homossexualidade. Num primeiro momento, ela era tratada como um crime, conhecido pelo nome de sodomia, e caracterizada como “a relação carnal entre dois machos ou duas fêmeas” (BADINTER, 1993, p. 100). Porém, nem todas as formas de homossexualidade eram encaradas como um crime, de maneira que somente aquelas onde “haja coito, introdução do pênis no ânus, “a fim de que se distinga da simples

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volúpia (polução, masturbação) obtida mutuamente entre macho e macho e fêmea e fêmea” (BADINTER, 1993, p. 100) vão ser tratadas desse modo. Tanto por se mostrar absurda quanto insuficiente, essa definição aos poucos se alterna e na última parte do século vitoriano, surge a noção de que o homossexual é uma “espécie particular”. O surgimento de novos termos, como homossexual e invertido, para tratar a respeito do assunto se mostra importante, na medida em que funciona como a “criação de uma essência, de uma doença psíquica e de um mal social. O nascimento do “homossexual” é o nascimento de uma problemática sexual e de um intolerância que sobreviveram até os nossos dias” (BADINTER, 1993, p. 102). Assim, a homossexualidade passa a ser interpretada não mais como um crime, mas como um desvio da sexualidade compreendida pela sociedade como normal, que “provém de um “instinto” cujo objeto natural seria o outro sexo” (BADINTER, 1993, p. 103). É então que se cria o conceito de heterossexualidade para tratar a normatividade, que demarca a diferença entre os sexos e liga a identidade de gênero com a identidade sexual do indivíduo. A partir disso, para não ser visto como homossexual, o homem deveria rejeitar quaisquer traços femininos presentes em sua personalidade. Caso contrário, seriam compreendidos como efeminados e, portanto, uma ameaça ao futuro da humanidade. Operou-se um consenso para estigmatizar esses homens efeminados, incapazes de se reproduzir! Na Inglaterra, assim como na França, as atitudes anti-homossexuais estão ligadas ao temor do declínio do império. Não têm conta os textos que evocam com angústia as consequências desastrosas da redução da natalidade! O homossexual ameaça a nação e a família. Mas ele é também “um traidor da causa masculina”. Os próprios médicos condenam esses homens efeminados, que não cumprem suas obrigações de homens. Acusam-nos de falta de grandeza de alma, de coragem e devoção; deploram sua vaidade, suas indiscrições, suas tagarelices. Em suma, são “mulheres frustradas, homens incompletos”. (BADINTER, 1993, p. 104)

Logo, o que antes era compreendido como uma parte da identidade de uma pessoa passa a assumir um papel principal dentro de sua definição. Elisabeth Badinter discute que antes de ser nomeada, a homossexualidade era apenas um fragmento na constituição identitária de determinado sujeito. Quando a ciência dá a ela um nome e, através desse nome, determina que um tipo de comportamento é

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homossexual, percebe-se que a “identidade homossexual, tal como a conhecemos, é, portanto, uma produção da classificação social, cujo principal objetivo era a regulação e o controle. Nomear era aprisionar” (BADINTER, 1993, p. 105). Surge, assim, a ideia e os estudos a respeito dos Sissy boys, que consistiriam em rapazes de comportamento feminino, manifesto desde a infância, por meio de gestos e maneiras de falar. Esses rapazes demonstrariam interesse especial por roupas de mulher, bem como por brincadeiras compreendidas como femininas. Esses estudos, porém, desconsideram que mesmo que os homossexuais sejam uma minoria, há diversidade dentro do grupo. Desse modo, acabam por encarar a homossexualidade como algo que se manifesta da mesma maneira em todas as pessoas, desconsiderando a pluralidade existente e criando também um estereótipo, algumas vezes caricato.

O que foi discutido encontra exemplo na

postagem reproduzida abaixo:

Figura 2 – Configurações do discurso machista

A palavra “babado” é compreendida na postagem como uma gíria homossexual, que serve para designar um assunto que causa alguma espécie de choque. Por ser amplamente utilizada por gays e mulheres, um “homem de verdade”

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não pode fazer uso de tal vocábulo ou estará reforçando traços femininos de sua personalidade. Assim, o seu uso só será permitido quando inserido num contexto sexual, onde não haja brechas para que qualquer outra significação seja atribuída à palavra. Percebe-se, assim, que o blog Testosterona prega uma espécie de retorno a valores tradicionais, onde não há espaço para o feminismo e a homossexualidade. O autor do blog parece recusar qualquer tentativa de se demonstrar a igualdade entre os sexos e entre hetero e homossexuais, na medida em que faz piada e estigmatiza tudo aquilo que não é utilizado pela “classe dominante”.

2. O Blog Testosterona e a propagação do discurso machista na internet

Propõe-se a análise de 3 posts do Blog Testosterona. Optou-se por escolher posts do ano de 2013, por se considerar que estes são mais pertinentes ao contexto vivenciado. Porém, o argumento decisivo para essa escolha foram as diversas represálias sofridas pelo autor do blog do ano de 2010 a 2012. Blogs feministas, como da professora Lola Aronovich, a página do Facebook (e Tumblr) chamada “Machismo chato de cada dia” e o blog colaborativo Blogueiras Feministas, teceram críticas duras ao Testosterona. Entre as postagens mais comentadas estava um vídeo onde diversas formas de violência, entre elas o estupro, eram encorajadas como maneira de formas “convencer” as mulheres a praticarem sexo anal. Foram organizadas petições online, bem como protestos de grupos feministas para que a MTV retirasse o blog do ar, mas a emissora se esquivou dos pedidos dizendo, em uma postagem no Facebook, que a opinião retratada pelos colaboradores do portal MTV em seus blogs pessoais não refletia a opinião da emissora. Esperava-se que, depois de tantos protestos e comentários negativos, a MTV, no mínimo, alertasse o autor do Testosterona quanto aos comentários misóginos feitos na página e, dessa maneira, o caráter do blog se alteraria um pouco. Porém, o que se observa pelas postagens de 2013 é que o caráter antifeminista permanece, bem como a homofobia e, algumas vezes, o racismo. Dessa maneira, as postagens

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escolhidas pertencem todas ao referido ano, pois se busca demonstrar como o caráter do blog permaneceu o mesmo, ainda que isso arriscasse parte do prestígio da emissora a qual é vinculado.

Figura 3: A postagem do Testosterona que sofreu represálias (esq.) e a postagem da página “O machismo chato de cada dia” a respeito do posicionamento da MTV.

Foram selecionadas postagens onde o machismo se mostra escancarado e é manifesto por meio de arcaísmos que não se fazem mais pertinentes ao contexto do século XXI. Percebe-se, pelo conteúdo das mesmas, que ao contrário do que o senso comum costuma dizer, as mulheres ainda possuem muitos direitos por conquistas, sendo o principal deles o respeito diário. Não apenas por parte dos homens, visto que alguns comentários no blog Testosterona partem das próprias mulheres. A primeira postagem selecionada foi publicada no Dia Internacional da Mulher, intitulada “Dia da Mulher é todo dia”, que traz a imagem abaixo:

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Figura 4 – As “mulheres perfeitas”.

Notamos que a postagem, além de reforçar a ideia machista de que o papel da mulher está restrito ao ambiente do lar, ainda coloca em questionamento a própria existência de uma data que comemore o dia da mulher (embora o próprio sentido da comemoração possa ser questionado). Criado devido às operárias que morrem queimadas enquanto lutavam por salários iguais aos dos homens, o objetivo do 8 de março não é apenas relembrar o acontecido. As mulheres que inspiraram a data lutavam por igualdade, de modo que esta deve servir como maneira de se repensar questões de gênero e da luta feminista e não apenas como mais um motivo para presentear alguém. A luta por respeito e direitos igualitários é diária e, portanto, não deve ser lembrada em apenas um dia. Ao pensarmos a imagem percebemos que ela deslegitima todas essas questões, uma vez que aponta o dia da mulher como mais um dia de opressão patriarcal, em que ela deve estar confinada ao ambiente doméstico, cuidando de afazeres que não deveriam ser atribuídos apenas a ela. O fato de a modelo na foto estar usando apenas lingerie e um avental colabora ainda para colocar as mulheres como objetos e, dessa forma, tornar a postagem mais atrativa para o público leitor do blog. Por tudo o que foi discutido, essa postagem representa um retrocesso na maneira de se compreender o papel feminino na sociedade uma vez que, segundo

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Simone de Beauvoir (1970, p. 7), as mulheres, já na década de 1940, estavam destronando o mito de que precisavam ser sempre femininas e atrativas para os homens, bem como estavam conquistando sua independência, no sentido de poder assumir funções sociais significativas. Já haviam conquistado o direito de voto e, a partir da Segunda Guerra Mundial, o direito de trabalhar fora de casa. Porém, a autora ressalta que a ausência de mudanças sociais profundas, especialmente no que tange a mentalidade da época, fazia com que a sociedade ainda se mostrasse hostil aos avanços femininos, de modo que embora o casamento não fosse mais a única maneira encontrada pela mulher de deixar a casa dos pais, elas ainda precisavam se subjugar, de alguma forma, ao patriarcado. Fosse pela anulação de sua feminilidade, frequentemente utilizada como ferramenta de conquista de respeito e independência, ou mesmo por meio de coisas internalizadas, uma vez que as mulheres que viveram no contexto de produção de O segundo sexo ainda se encontravam presas às ideias de mulheres de tempos anteriores, responsáveis por sua educação e criação. Desse modo, Beauvoir destaca que: As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; começam a afirmar concretamente sua independência; mas não é sem dificuldade que conseguem viver integralmente sua condição de ser humano. Educadas por mulheres, no seio de um mundo feminino, seu destino normal é o casamento que ainda as subordina praticamente ao homem; o prestígio viril está longe de se ter apagado: assenta ainda em sólidas bases econômicas e sociais. É pois necessário estudar com cuidado o destino tradicional da mulher. Como a mulher faz o aprendizado de sua condição, como a sente, em que universo se acha encerrada, que evasões lhe são permitidas, eis o que procurarei descrever. Só então poderemos compreender que problemas se apresentam às mulheres que, herdeiras de um pesado passado, se esforçam por forjar um futuro novo. Quando emprego as palavras “mulher” ou “feminino” não me refiro evidentemente a nenhum arquétipo, a nenhuma essência imutável; apôs a maior parte de minhas afirmações cabe subentender: “no estado atual da educação e dos costumes”. Não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular (BEAUVOIR, 1970, p. 7).

A segunda postagem proposta para análise opera de maneira análoga na medida em que busca satirizar os protestos do grupo feminista conhecido como FEMEN, como pode ser visto a seguir.

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Figura 5 – A melhor defesa é o ataque.

Surgido na Ucrânia, o grupo de ativismo feminista (ou neofeminista, como as mulheres pertencentes gostam de se intitular) busca, por meio de protestos onde as manifestantes se encontram semi-nuas, contestar questões relacionadas ao machismo. O grupo, porém, sofre duras críticas por parte das próprias feministas, uma vez que suas propostas não são muito explícitas, de modo que seu neofeminismo não fica claro. Segundo a professora Lola Aronovich, em postagem no blog Escreva Lola Escreva, o FEMEN vem ganhando espaço na mídia por contar com mulheres que se encontram dentro do padrão midiático de beleza protestando de topless e por saber fazer uso da propaganda gerada em torno disso. No Brasil, o grupo ativista é representado por Sara Winters, uma moça de vinte anos que, em algumas ocasiões, soa imatura e incoerente ao defender as propostas do FEMEN. Além disso, a moça se envolveu em algumas polêmicas, pois foi descoberto que ela possui uma tatuagem de um símbolo nazista perto da nuca e que em outras ocasiões ela definiu seu pensamento político como integralista nacionalista. Outra dúvida que cerca Winters tange ao pseudônimo que adotou, uma vez que não se consegue determinar se é uma homenagem à cantora Emilie Autunn ou à alemã nazista Sarah Winter.

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Por fim, pode-se citar a principal das declarações incoerentes que Sara, que consiste num post, citado por Lola Aronovich em seu blog, onde a moça se posiciona contra a Marcha das Vadias, questionando as roupas utilizadas pelas manifestantes, bem como o embasamento do protesto que, para ela, tem como único objetivo atrair mídia. Sara, por sua vez, se defende dizendo que mudou e que o contato que teve com nazistas e outros grupos intolerantes, se deu durante a sua adolescência, quando ela tinha entre 15 e 17 anos. Mas mais preocupante do que a mudança brusca da única representante do FEMEN no Brasil, é a ausência de embasamento político da moça, que diz não considerar necessário definir o seu novo posicionamento. Porém, independente das incoerências do grupo, a postagem do blog Testosterona ataca não somente aos protestos realizados pelo FEMEN, mas ao ativismo de modo geral. É como se ver na impressa depois da realização de marchas pelos mais variados temas, notas sobre como os ativistas atrapalharam o trânsito de determinada cidade. Pouca coisa é comentada a respeito das propostas dos grupos, de modo que, ao público leigo, qualquer manifestação soa como baderna, algo que funciona apenas como meio de atrapalhar o “cidadão honesto” no trajeto para um determinado lugar. Nesse caso, porém, o autor da postagem opta por fazer uso do FEMEN para empreender a crítica aos protestos devido às vacas presentes na imagem apresentada. O ataque se dá no sentido de que ao comparar as mulheres com um animal que está deitado na estrada, pelo mesmo motivo que estaria deitado em qualquer, o autor deseja transmitir a ideia de que não há reflexão nos protestos dos grupos feministas. Mesmo que as propostas do FEMEN sejam mal delineadas, a imagem faz mais do que demonstrar isso: ela deslegitima o grupo por completo. Por fim, a última postagem proposta para análise nos apresenta um clichê típico do repertório de frases machistas:

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Figura 6 – Ironia sub-reptícia: duas faces da mesma moeda?

Segundo um post retirado do Blogueiras Feministas chamado “Mulher no volante sofre machismo constante”, a adoração por carros começa ainda na infância e, raramente, vê-se pais comprando miniaturas de automóveis para as filhas. Esse tipo de presentes é exclusividade dos meninos, de modo que somente eles constroem algo relacionado ao ato de dirigir. Assim, como não há estímulos para que as mulheres desempenhem tal tarefa, no sentido de que os carros seriam um dos símbolos da masculinidade, é comum quando algo corre errado no trânsito e o motorista de um dos carros envolvidos em um acidente ou algo do tipo, é uma mulher escutar-se a frase “tinha que ser mulher”. Isso enfatiza o quanto a sociedade patriarcal não considera as mulheres aptas a realizarem essa tarefa.

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Considerações Finais

Através deste trabalho, foi possível perceber o quanto o machismo ainda é presente em nossa sociedade, herança de séculos de dominação patriarcal. Embora as mulheres tenham adquirido vários direitos na atualidade, notou-se que estereótipos sexistas continuam fazendo parte do cotidiano das mesmas, em uma tentativa (frustrada, talvez?) de uma recuperação dos valores hegemônicos totalizadores das categorias de gênero. Observou-se em quase todo o conteúdo do blog Testosterona a ânsia de afirmar a masculinidade por meio de estereótipos e postagens misóginas, descrevendo as mulheres como objetos voltadas única e exclusivamente para as tarefas domésticas e para satisfazer o homem sexualmente. O sexo feminino é visto como inimigo do sexo masculino e tudo aquilo que refuta o lugar de dominador do homem é imediatamente criticado e deslegitimado. Para isso, o blog supracitado usa todas as artimanhas necessárias para criticar e atacar o sexo feminino, utilizando-se desde os léxicos mais ideológicos pertencentes ao discurso machista aos recursos sintáticos que possuem grande valor apreciativo. Em suma, a análise das postagens foi um fator primordial para o desenvolvimento desta pesquisa, pois os exemplos analisados comprovaram que a língua encerra valores, crenças e ideologias e, por isso, uma simples escolha lexical ou a posição em que é disposto um sintagma no texto pode representar muito mais do que imaginamos. A partir da análise do blog em questão, constatou-se que a ideologia apresentada pela linguagem introduz e reforça preconceitos que permeiam a sociedade, neste caso, o machismo. Diante de tudo, espera-se que este estudo possa colaborar para todos que se interessem pela temática, servindo de incentivo a outras pesquisas e desenvolvimento de novas teorias sobre gênero e discurso. Da mesma forma, acredita-se que o presente trabalho lançará ao panorama dos estudos discursivos a possibilidade de

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múltiplas análises que englobem as problemáticas sobre os sujeitos contemporâneos e respectivas formações ideológicas e culturais.

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Aceito em 30/01/2014.

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Aldravipeia José Benedito Donadon Leal 1

N

a apresentação das aldravias, em dezembro 2010, os poetas aldravistas anunciaram que as aldravias não seriam fôrmas, inscritas apenas numa proposição sintética de seis versos univocabulares, mas formas abertas às

mais diversas experiências poéticas que tenham como prioritária a palavra. Ficava claro que não anunciávamos unicamente um novo tipo de “poema”, mas propúnhamos uma nova “poesia” que expressasse a atualidade de qualquer tempo (aquela da pragmática sensação do presente eterno), em que a atitude própria da construção das metonímias faz emergir a força da palavra do meio do caldo visual que, nesta atualidade, inunda os meios de comunicação e, reiteradamente, cobra a veiculação das ideias através do que esta segunda década do XXI acostumou a chamar de novas narrativas. Acontece que na reflexão aldravista da abertura do século XXI, a narrativa é a estrutura básica de qualquer texto. Seja numa aldravia, encadeamento de seis versos univocabulares, seja num romance, sucessão de eventos em torno de um tema, a narrativa dá estrutura ao que será reconhecido como texto. Não são novas narrativas as que presenciamos nas veiculações dos novos meios – são novos envelopes textuais às estruturas narrativas básicas – evocação, conflito e resolução. Historicamente a narrativa, o ato de relatar, constitui a forma básica das relações sociais, uma vez que aquele que presencia um acontecimento sente-se no dever de relatá-lo aos demais, seja para simplesmente dar ciência, seja para construir alerta. O primeiro caso tem cunho noticioso e o segundo didático. Como os discursos sociais são recortados por relações de poder, os relatos simples dão lugar para relatos elaborados para conquistarem finalidades didáticas específicas – nas famílias, para garantirem que as regras internas não sejam contaminadas por regras externas; nas religiões, para garantirem seus dogmas; nos Doutor em Semiótica pela USP, Pós-doutor em Análise do Discurso pela UFMG. Professor do Curso de Comunicação Social da UFOP. Membro da comissão editorial do Jornal Aldrava Cultural. 1

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estados, para garantirem seus domínios. Todos estes estamentos, em todos os tempos, elegem algum paradigma literário, de cujas narrativas constroem seus heróis para ditarem as diretrizes a serem seguidas pelas novas gerações – o avô é o herói familiar; um profeta, um pajé, um pastor será o porta-voz de uma divindade; um rei, uma rainha, um presidente, um general será um herói nacional. Entre os tantos exemplos históricos de relatos, podemos citar os dos livros sagrados e as epopeias. Os livros sagrados, cada civilização à sua maneira, constroem relatos da criação do mundo e das lutas pelas organizações sociais; as epopeias (seja Gilgamesh da Mesopotâmia ou Odisseia da Grécia) são poemas que relatam feitos na construção de heróis; mitos que são tomados como exemplo de força e poder. Imaginando a possibilidade de um relato poético instaurar a construção não de um herói, persona divinizada, mas de um tema heróico, grandioso, capaz de enlevar uma palavra da simples condição de palavra simples à de palavra grávida de sentidos heróicos e grandiosos, apresentamos a possibilidade de construção de um conjunto de aldravias temáticas, ao qual se designará por aldravipeia, conjunto de 20 aldravias dedicadas a uma palavra, que deverá aparecer ou ser aludida em todas as aldravias desse conjunto. Não se trata de uma nova narrativa, mas de uma nova forma, ou um novo texto, capaz de pôr em destaque um conceito, um nome, um lugar, um sentimento, uma sensação, explorando a polifonia, isto é, a multidão de sentidos que explodem de cada palavra de uma língua. As possibilidades de exploração de sentidos diferentes de uma palavra são experimentadas cada vez que nós percebemos universos discursivos diferentes. Azul para o universo discursivo de um aeronauta pode ter sentido de céu aberto; mas pode ser possibilidade de emprego, se assumir o sentido de empresa aérea; pode representar a monotonia de uma longa viagem, a estabilidade de um voo sem turbulência, o poder do pássaro, a alegria da vastidão do céu ou a tristeza de ser minúsculo nessa mesma vastidão; o pavor de ter azul acima e negritude na barriga do avião. Que dizer então de multidão de sentidos de azul nas religiões, nos símbolos nacionais e institucionais, nos esportes, nas artes, nos sentimentos. Não importa a

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palavra; todas são polifônicas; todas têm inúmeros sentidos. Para construir uma aldravipeia, basta experimentar uma palavra em lugares e situações diferentes, compondo 20 aldravias a partir de uma mesma palavra. O nome aldravia foi sugerido por Andreia Donadon Leal em 2010 e agora, inspirada em transmutações, conjunto de aldravias dedicadas à palavra pedra, de Gabriel Bicalho, publicado em 2011 no livro Germinais, primeiro livro mundial de aldravias, essa inventora de palavras propõe aldravipeia para designar o conjunto de 20 (vinte) aldravias dedicadas a uma palavra. Em 20 aldravias, uma palavra poderá ser experimentada em 20 diferentes universos discursivos.

Aldravipeia Andreia Donadon Leal LÁGRIMAS I apaixonadas torrentes lacrimais olhos saudade poesia II compreensão lacrimais versos carpidos desafinam linométricas III fino choro finíssima

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lágrima orvalhada alma IV fio aquoso fiapo sentimental finíssimo choro V líquido lacrimal transborda dor ou alegria VI lágrimas inundação devastadora de alma transborda VII quentes lágrimas evaporam-se verão finda primavera VIII lágrimas

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regam flores sobre solo pedregoso IX seus olhos molhados espargem alma ressecada X choro fingido palavras molhadas lágrimas cenográficas XI tristeza particular alegria pública comunicado lacrimal XII sonhos lágrimas vêm e vão ?

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XIII lágrima fala o que voz embarga XIV lágrima divina ora brilho ora mistério XV lágrima alma refletida espelho de espelho XVI lágrima cristalina sombra de mistérios interiores XVII vela choras lágrimas de

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ceras crentes XVIII lua gerânios ciclos lágrimas espinhos fases XIX corpo sem pouso lágrima sem rosto XX concebida no espírito lágrima nasce água

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