Jangada: crítica, literatura, artes

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crĂ­tica | literatura | artes

jangada ISSN 2317-4722

JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES

n.3, jan-jun, 2014

Marginalidades Marginalities


Clock-t Edições e Artes Av. Fioravante Rossi, 3300 – Colatina – ES CEP 29.704-424 | Tel: (27) 9-9995-5853 contato@clock-t.com| www.clock-t.com Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Marginalidades N.3, jan-jun, 2014 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com Editor Responsável Juan Filipe Stacul, PUC MG Editores Eduardo Ledesma, UIUC John Tofik Karam, UIUC Juan Filipe Stacul, PUC MG Raquel Castro Goebel, UIUC Conselho Editorial Andreia Donadon Leal, ALACIB Antonio Carlo Sotomayor, UIUC Cláudia Pereira, ALACIB Elisângela A. Lopes, IF Sul MG Fábio Figueiredo Camargo, UFU Gabriel Bicalho, ALACIB Gerson Luiz Roani, UFV Glen Goodman, UIUC Gracia Regina Gonçalves, UFV Joelma Santana Siqueira, UFV José Benedito Donadon Leal, UFOP José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP Karla Baptista, FCB Maria N. Soares Fonseca, PUC MG Michelle Gabrielli, UFPB Murilo Araújo, UFRJ Rubem B. Teixeira Ramos, UFG Terezinha Cogo Venturim, FCB Thiago Ianez Carbonel, UNICEP Victor Rocha Monsalve, UDP Revisão e Diagramação Clock-t Capa Tahiz Cristina Bragato


sumário

crítica

n.3 | jan-jun | 2014 ISSN 2317-4722

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Quando "falha a fala" e "fala a bala": lingua(gem) e violência em Cidade de Deus, de Paulo Lins Rita Gabrielli Pereira

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Montechios, Capuletos e nós: quando a adaptação expande a noção de comunidadeiniciais

29

A literatura como resistência política: traços neorrealistas na produção literária do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Erika Viviane Costa Vieira

Caroline Alves Pereira

41

O que é literatura?

50

Ensaio: Narrativa – uma fantasia

58

Prosa, poesia e artes

Natalícia Aparecida Máximo

José Benedito Donadon Leal


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Quando "falha a fala" e "fala a bala": lingua(gem) e violência em Cidade de Deus, de Paulo Lins Rita Gabrielli Pereira1

Resumo: Cidade de Deus traz em si a história da construção do conjunto habitacional, cujo nome intitula o romance, e de sua transformação em uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro, por meio do entrecruzamento das histórias de Cabeleira, Bené, Zé Pequeno e Busca-Pé. Concebendo o romance, nos atos da escrita e da leitura, como uma enunciação (BENVENISTE, 1989a; 1989b; 1995a; 1995b) entre autor e leitor, constituída por outras enunciações — entre narrador e narratário e entre personagens — a partir do "ato ficcional" (ISER, 2002) do autor, vamos nos guiar por essa tessitura de/entre histórias para rastrear o modo como Lins relaciona linguagem e violência. Palavras-chave: Lingua(gem), Subjetividade, Violência

Abstract: Cidade de Deus tells the history of the construction of the housing complex that entitles the novel and its transformation process into one of the most violent slums of Rio de Janeiro. By treating the novel as an enunciation (BENVENISTE, 1989a; 1989b; 1995a; 1995b) between author and reader, which is made of other enunciations − between narrator and narratee and between characters −, based on the author´s “fictional act”(ISER, 2002), we intend to analyze the way how Lins relates language and violence. Keywords: Language, Subjectivity, Violence.

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Mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC Minas/ CAPES).

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Considerações Iniciais

C

idade de Deus, obra literária concebida a partir da experiência de pesquisa do autor, Paulo Lins, enquanto aluno de iniciação científica de Alba Zaluar, traz em si a história da construção do conjunto habitacional, cujo nome intitula

o romance, e de sua transformação em uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro, por meio do entrecruzamento das histórias de Cabeleira, Bené, Zé Pequeno e Busca-Pé. Para nossa análise, tais personagens serão tomados como heróis romanescos, sujeitos ficcionais que, diferentemente do herói épico, não mais encontram, numa perspectiva coletiva sobre a existência, a resignação diante do fato da morte e uma forma de regular seu querer com as demandas do mundo (BENJAMIN, 1987), mas são marcados pela fragmentação imposta pela condição de sujeitos, com a particularidade de serem esses sujeitos constituídos em meio a violência. Assim, concebendo o romance, nos atos da escrita e da leitura, como uma enunciação (BENVENISTE, 1989a; 1989b; 1995a; 1995b) entre autor e leitor, constituída por outras enunciações — entre narrador e narratário e entre personagens —, a partir do "ato ficcional" (ISER, 2002) do autor, vamos nos guiar por essa tessitura de/entre histórias para rastrear o modo como, pela contraposição entre processos de construção identitária dessas personagens e pela organização discursiva do narrador, o autor relaciona linguagem e violência.

1. Cabeleira, herói movido pela gana de liberdade

Cabeleira faz parte da primeira geração de bichos-soltos de Cidade de Deus. E é pela descrição da transformação espacial de Portugal Pequeno, que dá lugar ao conjunto habitacional para onde são levados moradores de diversas favelas do Rio, que o narrador anuncia, na forma de sua narrativa, o objeto nuclear de sua enunciação: a violência.

Na cena seguinte a que são apresentados Busca-Pé e Barbantinho

devaneando a respeito do futuro e relembrando da infância, enquanto fumam

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maconha, nos deparamos com um tom lírico, com traços de bucolismo, que traz em si marcas que nos remetem ao prenúncio de uma mudança. Tais marcas, mais explicitamente, se referem à transição do espaço rural para o urbano, mas também anunciam, pela reiteração do caráter descontínuo da existência, bem como pela evocação dos processos de colonização e escravatura, a violência que tomará conta, de modo crescente, do enredo e da forma da narrativa. Neste trecho vemos a descrição de uma paisagem natural, feita com certo lirismo, que acaba por fazer saltar aos olhos a menção à colonização do Brasil e à escravatura: "Antigamente a vida era outra aqui neste lugar onde o rio, deixando o coração bater em pedras, dando areia, cobra-d'água inocente, risos-líquidos, e indo ao mar, dividia o campo em que os filhos dos portugueses e da escravatura pisaram." (LINS, 1997, p.16, grifos nossos) Aí, o dêitico temporal destacado evoca certa nostalgia de um tempo cuja descrição, pelo uso da imagem do rio, do adjetivo "inocente" – que complementa o substantivo "cobrad'água", reiterando o caráter inofensivo dessa espécie de serpente –, contrasta com o verbo no pretérito perfeito do indicativo que inicia o predicado também destacado. Esse é agenciado para evocar os violentos processos de colonização do Brasil e escravatura, ambos constituídos pelo estabelecimento da relação dominadordominado. E essa mistura de lirismo à reiteração da divisão espacial como figuração da segregação dos negros e pobres, herdada da colonização e da escravidão, bem como a divisão temporal entre passado e presente — que serve ao estabelecimento da relação: o passado equivale a predominância de uma aparente paz, o presente equivale à prevalência da violência — perdura até o momento em que o narrador anuncia a que veio e reverbera sob outras formas em todo o romance. Acrescenta-se, ainda, a esses elementos da mistura de tons, a descrição de brincadeiras infantis, que precede ao brusco rompimento do lirismo, para que se instaure de modo efetivo e crescente a violência na narrativa. Com referência à mencionada divisão temporal, atentemo-nos para dois trechos em que a vemos nitidamente marcada. O primeiro diz respeito ao passado e nele é preservado a ambiguidade do tom que já mostramos:

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Um dia essas terras foram cobertas de verde com carro de boi desafiando estradas de terra, garganta de negros catando samba duro, escavação de poços de água salobra, legumes e verduras enchendo caminhões, cobra alisando o mato, redes armadas nas águas. (LINS, 1997, p.16-17, grifo nosso)

No segundo, vemos prevalecer verbos que remetem a ações de violência e o narrador se anunciar presente no espaço de sua narrativa, por meio do agenciamento autoral do dêitico espacial destacado, assim como no primeiro trecho analisado: "Depois vieram as máquinas arrasando as hortas de Portugal Pequeno, espantando os espantalhos, guilhotinando as árvores, aterrando o charco, secando a fonte, e isso aqui virou um deserto." (LINS, 1997, p. 17, grifo nossos). A forma como o narrador se coloca presente nas cenas que narra, conforme veremos ao longo de nossa análise, é essencial para que sintamos, pela mistura de lirismo e agressividade nas palavras do narrador, a violência denunciada na narrativa e nos apercebamos da relação entre essa e a linguagem, ou mais especificamente entre essa e a impossibilidade de apropriação da linguagem por meio da língua. Em seguida à descrição espacial da favela, antes de sermos apresentados ao trio ternura — os três bandidos mais perigosos da primeira fase de Cidade de Deus─, do qual faz parte Cabeleira, e depois de sermos bruscamente esclarecidos quanto ao tema do romance — "Mas o assunto aqui é o crime, eu vim aqui por isso..." (LINS, 1997, p. 22) — nos deparamos como uma espécie de evocação à poesia enquanto musa inspiradora do narrador, que, neste momento, se aproxima do autor: Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. [...] A palavra nasce no pensamento, desprende-se dos lábios adquirindo alma nos ouvidos, e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala. (LINS, 1997, p.23)

Esse trecho explicita um dos traços constitutivos do romance, que é a reflexão metalinguageira ─ já anunciada no texto de Leminski, tomado como epígrafe 2 ─, especificamente no que diz respeito à violência como causa e consequência da “Vim pelo caminho difícil, / a linha que nunca termina /a linha bate na pedra, / a palavra quebra numa esquina, / mínima linha vazia, / a linha, uma vida inteira, / palavra, palavra minha.” 2

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impossibilidade de apropriação da capacidade de linguagem por meio do signo, por meio da enunciação, apropriação essa por meio da qual um indivíduo se constitui como sujeito, segundo Benveniste (1989a; 1989b; 1995a; 1995b). De acordo com o estudioso, a linguagem é constitutiva do homem e se realiza na enunciação, que consiste na assunção, por parte de um locutor, de sua subjetividade ao, diante de um outro — tu —, apropriar-se de sua capacidade de linguagem, expressando-se com referência a algo ou alguém — ele. E, uma vez que a "linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso" (1995b, p. 286), as instâncias enunciativas não são rígidas, de modo que o alocutário ao reagir, verbalmente ou não, diante do que lhe é expresso pelo outro, assume o lugar de locutor. Um romance é, portanto, nos atos da escrita e da leitura, uma enunciação entre autor e leitor, constituída por outras enunciações — entre narrador e narratário, entre narrador e personagens e entre personagens —, como uma espécie de caleidoscópio, e por ser um texto ficcional apresenta uma configuração distinta da de outros textos. Iser (2002), tomando a representação artística como um ato criativo a partir da apropriação da realidade e opondo-se a oposição clássica entre ficção e realidade para discutir o ficcional no texto literário, postula que na produção de um texto literário o autor realiza um ato ficcional, que consiste em uma série de operações a partir de sistemas referenciais pré-existentes, por meio das quais instaura um imaginário3 e o relaciona com o real4. Tal ato acarreta, portanto, transgressões de limites, a partir das quais o autor encena as mudanças que gostaria de operar na realidade em que vive. Em suma, ao transformar em signo a realidade vivencial, o autor toma emprestado da língua o seu caráter de realidade e o cede ao que por ele foi imaginado ao tornar compartilhável o que só existia em seu íntimo, e por conseguinte irrealiza a realidade vivencial, já que ela excede a língua.

O termo imaginário, conforme utilizado por Iser, é uma "designação comparativamente neutra e, daí, distinta das ideias tradicionais sobre ele." (ISER, 2002, p. 985). 3

Iser define o real como sendo o "mundo extratextual, que, enquanto faticidade, é prévio ao texto e que ordinariamente constitui seus campos de referência." (ISER, 2002, p. 985) 4

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Mas não nos esqueçamos que, para um romancista ser bem sucedido em seu ato ficcional, assim como qualquer outro locutor em uma situação enunciativa, é preciso que haja um outro sujeito que se coloque como seu interlocutor. O leitor, então, persuadido pelo autor a colaborar, tem que, ciente de se tratar de um texto ficcional, aceitar, por meio da atividade de leitura, "irrealizar" o seu saber sobre o mundo vivencial, relativizá-lo, colocá-lo "entre parênteses", e participar do mundo tornado realidade textual pelo autor, de forma a seguir as pistas autorais para tentar desvendar enigmas no enredo, compreender extensões de significados, características de personagens, enfim, construir sentido(s) no/para o romance, enquanto experimenta suas própria sensações despertadas pelo mundo em que é convidado a participar "como se" fosse realidade. Tendo sempre essas noções em mente, ao longo de nossa análise, vamos à história de Cabeleira, um dos personagens concebidos por Lins, para expressar o que da sua singular experiência não seria expressável de outro modo, senão pelo romance — a que devemos nos ater enquanto participantes de uma enunciação sem, contudo, termos a pretensão de buscarmos, por meio de dados biográficos do autor, compreender o que extrapola os limites do texto conosco compartilhado. Atentemos ao que levou tal personagem ao crime e ao que o ajuda a atribuir sentido à sua existência. O “bicho-solto” cresceu no morro de São Carlos, onde conviveu, desde a mais tenra idade com foras-da-lei, para quem prestava favores e por quem nutria certa admiração. Ainda na infância, pensava que "Quando ganhasse mais corpo, arrumaria um berro [revólver] para ficar rico no asfalto, mas enquanto criança continuaria a roubar os trocados de seu pai." (LINS, 1997, p. 50-51). Constituiu-se em bandido para recusar a condição de escravo, única possibilidade, segundo sua perspectiva, que a vida dentro das leis da sociedade podia lhe oferecer. Matava, roubava e agredia, como saída para não ser escravo de uma sociedade que julgava ser injusta por tudo o que lhe faltava. Filho de uma prostituta e de um alcoólatra concebia como sendo a maior desgraça da sua vida a homossexualidade do irmão e alegava ser pelo assassinato da avó — que morreu queimada num incêndio provocado, durante uma operação policial na favela onde morava — que escolheu a criminalidade.

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Assim é encenada a aflição de Cabeleira por saber ser travesti o seu irmão: "Imaginava o Ari chupando o pau dos paraíbas lá na Zona do Baixo Meretrício, dando o cu para a garotada do São Carlos, fazendo troca-troca com marinheiros e gringos na praça Mauá, comendo bunda de bacana nos pulgueiros da Lapa". (LINS, 1997, p.25) É por meio desse modo agressivo de enunciar, contrastante com o lirismo e a ele misturado no todo do romance, que o autor sob a voz do narrador faz ressoar a voz do personagem, representação de um modo de ser e de um modo de dizer que, sem ser por meio do ato ficcional, não seria visto com o olhar perplexo mas crítico e de, certa forma, holístico com o qual nos convida Lins a interagir com esse. Essa mistura entre a linguagem em função do poético e a linguagem em função da violência perpassa toda a narrativa, como veremos, e parece estar a serviço da representação da mistura entre querer e dever, que se instaura no caráter dos sujeitos, e da dialética entre bem e mal. Dessa forma, temos os lugares bem delimitados — herói versus vilão — a que estamos acostumados deslocados e consequentemente a nossa necessidade imanente de categorias fechadas em si para operarmos, seja na interpretação literária, seja na vida, é ferida. Assim, vemo-nos obrigados a lidar com a nossa própria mistura para estabelecermos um novo lugar para as coisas, que abarque a descoberta de que "as-coisas-não-são-bem-assim" e, em concomitância, nos possibilite lidar com a inexistência de verdades absolutas e com a impossibilidade de se ter uma perspectiva verdadeiramente global de um fato. A respeito da razão que leva Cabeleira à vida fora da lei, o narrador nos diz: Na verdade, a morte da avó serviu somente de atenuante para seguir o caminho no qual seus pés já tinham dado os primeiros passos, porque mesmo se a avó não morresse assassinada seguiria o caminho que para ele não significaria escravidão. Não, não seria otário de obra, deixava essa atividade de bom grado para os paraíbas que chegavam aqui morrendo de sede [...] bandido que é bom dá sorte; ele dera na primeira vez que sujou. Um dia ganharia a boa. (LINS, 1997, p.51-52, grifo nosso)

Fica claro que o que move Cabeleira é o desejo de liberdade. Além disso, nesse trecho vemos um interessante movimento do narrador: o de denunciar problemas acarretados pela desigualdade social — que faz do direito universal à educação privilégio de alguns — enquanto, na contraposição da formação subjetiva dos personagens, mostra que há uma parcela de escolha do sujeito no lidar com a violência

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enquanto parte do cotidiano; seja a violência do Estado, que inegavelmente não cumpre o dever de garantir os direitos a todos os cidadãos; seja a violência vivenciada no espaço familiar ou na rotina da vida na favela. Veremos isso com mais clareza, mais adiante, quando falarmos de Busca-Pé. Cabeleira pode ser visto como a representação do sujeito que, pela intensa convivência com a violência, desde a infância, e pela falta de acesso à educação de qualidade, vê na criminalidade a única opção possível para recusar a condição de exploração imposta por péssimas condições de trabalho. E é por meio do fato de ter tido apenas exemplos de vida em que prevalecia a criminalidade como forma de se ter uma vida melhor, de se ter o desejo realizado, e da vaidade advinda dos ganhos dessa escolha, que ele lida com culpa por matar: O fato de ter convivido por toda a sua vida presenciando assassinatos por este ou aquele motivo aliviava aquela dor que não era dor, pois imaginava a notícia de que fora ele o matador do paraíba se espalhando. Ficaria mais temido [...] Gostava de ver o pessoal com medo dele (LINS, 1997, p.6768).

Esse herói viveu uma intensa vida fora da lei, buscando "arrebentar a boa" ─ conseguir “ganhar” dinheiro o suficiente para manter uma vida com tudo o que desejasse sem precisar continuar "trabalhando" ─ para sair da criminalidade e viver em paz com Berenice, sua mulher, conforme ela lhe pedia frequentemente. E foi depois do êxito obtido em um grande assalto, mas que ainda não era a grande oportunidade almejada, que Cabeleira se encontrou com a própria morte e com ela uma espécie de redenção, liricamente concedida pelo autor: Ao contrário do que esperava Touro, uma tranquilidade sem sentido estabeleceu-se em sua [de Cabeleira] consciência [...] Talvez fora muito longe para buscar algo que sempre estivera ao seu lado, nas luz das manhãs. Mas pode realmente haver paz plena para quem o viver fora sempre remexer-se no poço da miséria? [...] Mas pode alguém enxergar o belo com os olhos obtusos pela falta de quase tudo que o humano carece? Talvez nunca tenha buscado nada, nem nunca pensara em buscar, só tinha de viver aquela vida que viveu sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão marginais [...] Aquela mudez diante das perguntas de Touro e a expressão de alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (LINS, 1997, p.201-202, grifo nosso)

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O primeiro sintagma destacado expressa a paz advinda da morte, que diferentemente da vida — marcada pela única certeza inabalável que é a de que se vai morrer — não demanda sentido. E os outros dois sintagmas grifados estabelecem um jogo de sentido que trabalha, ao mesmo tempo, para reforçar o lirismo agenciado nesse episódio e para evidenciar o traço metalinguageiro do romance, pela oposição entre um fazer literário clássico e outro que põe em questão a estética tradicional, a qual também expressa a oposição entre formas de significar a existência. Vejamos, agora, a relação que Zé-Pequeno estabelece com o crime e a forma como o autor relaciona linguagem e violência ao encenar a vida dessa personagem.

2. Zé Pequeno, herói movido pela ganância e pela desmesura

Dadinho era criança quando Cabeleira era um dos bandidos mais respeitados de Cidade de Deus. Nessa época, ainda não tinha cunhado para si o apelido de Zé Pequeno, inspirado em Grande, "temido de todos e querido pelas mulheres" (LINS, 1997, p.59), "dono" da Macedo Sobrinho, por quem tinha verdadeira adoração. Já nessa época, o menino participava de uma quadrilha de ladrões composta por crianças da favela objeto do romance, e ajudava o Trio Ternura. Cabeleira o tinha em alta consideração pelo seu potencial para o crime. Do bando de meninos infratores, Eduardinho era o líder e "o único que portava armava e a levava de cão para traz." (LINS, 1997, p.60). Nasceu na Macedo Sobrinho, em 1955, era o segundo dos três filhos de uma mãe que, depois da morte do marido, em 1959, obrigada a trabalhar, deixou os filhos sob cuidados de parentes. Dadinho foi criado pela madrinha, na casa da patroa dela, sem limites, já que o trabalho não lhe dava meios de acompanhar os passos do menino, que mal frequentou a primeira série primária. Sem quem lhe impusesse limites, Dadinho, "conforme ia crescendo intensificava a sua vida criminosa. Assaltava de manhã de tarde e de noite, porém a vagabundagem mais velha do morro volta e meia tomava-lhe o roubo." (LINS, 1997, p. 185) E a promessa de vingança fazia parte dos seus planos de se tornar o bandido mais perigoso e temido do Rio e dono da Cidade de Deus.

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Esse herói era determinado e trabalhava duro para realizar seus objetivos, era cruel, gostava de causar sofrimento ao outro, matava por prazer, "nada pesava sobre sua cabeça" (LINS, 1997, p.77), mas, com uma aparência física desfavorável e uma personalidade que não inspirava afeto, nunca conseguiu ser desejado pelas mulheres, o que marcou profundamente sua vaidade de dominador. Não sabia ler, mas tinha uma lábia feroz, que lhe possibilitava manipular os comparsas e, por isso, o ajudou a se vingar dos inimigos e a ser soberano em Cidade de Deus, por meio do tráfico de drogas. Todavia, o reinado de Pequeno chega ao fim, pela sua própria desmesura ─agravada depois da morte de Bené, seu melhor amigo ─, quando estupra a namorada de Mané Galinha, que, apesar de trabalhador e honesto, se alia a Cenoura numa guerra pelo domínio da favela, a qual acaba por desencadear a morte de muitos, inclusive de Pequeno. Mas, antes de falarmos da morte desse herói, em cuja descrição falta o lirismo agenciado nas de Cabeleira e Bené — conforme veremos—, devemos nos ater à forma como a abordagem do analfabetismo de Zé Pequeno contribui para o traço metalinguageiro do romance, bem como a trechos em que a reflexão sobre o papel da linguagem na existência do sujeito se faz presente. Neste trecho, referente ao momento em que Dadinho atua como vigia de "samango" num assalto a um motel, liderado por Cabeleira, encontramos uma analogia em que o revólver figura como palavra. Enquanto estava do lado de fora atento à chegada de policiais para alertar os amigos ─ descontente por não poder participar da ação em si, apesar de ter sido sua ideia assaltar o motel ─ sonhava com um poder absoluto, mexendo em sua arma: "Alisava o revólver como os lábios alisam os termos da mais precisa premissa, aquela capaz de reduzir o silogismo a um calar de boca dos interlocutores." (LINS, 1997, p.77) Para Pequeno, assim como Cabeleira e outros bandidos do romance, a violência é o argumento para conseguir o que se quer da sociedade. Ela substitui a capacidade de negociação pela palavra entre o querer de um sujeito e o que é esperado dele pelo outro. E esse recurso estético de agenciar termos metalinguísticos para descrever ações violentas é recorrente em todo o romance. Vejamos mais um trecho em que o vemos em uso: Matar, matar, matar... Verbo transitivo exigindo objeto direto ensanguentado. (LINS, 1997, p. 217) Encontramo-lo como uma inserção da reflexão do

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narrador no momento em que narra o pensamento de um menino de nove anos enquanto ele cumpre a ordem de Pequeno de matar o dono da boca rival. Também com relação à entrada na violência e sua relação com o desligamento da inserção cultural, vejamos o trecho retirado do episódio em que Paulo Dancinha se descobre, revendo antigos cadernos de escola, enquanto se lamentava por ter entrado na guerra, incapaz de responder às perguntas do caderno em que colecionava perguntas e respostas de amigos: entou de todas as maneiras passar naquela prova, sim, era uma prova, talvez a mais difícil a que se submetera, se conseguisse responder aquelas perguntas seria uma pessoa que possuía ainda um lado saudável, mas nada, nadinha vinha à sua mente, só lágrimas chegaram aos olhos (LINS, 1997, p. 493).

Quanto à forma como o analfabetismo de Pequeno serve ao traço metalinguageiro do romance, atentemo-nos para um trecho retirado da descrição do episódio em que ele está aprendendo a ler com a mulher de um comparsa: Agora realizava o sonho que tomara conta dele na cadeia, pois tinha sempre que pedir a alguém para ler cartas que recebia e isso podia ser perigoso [...] Já sabia assinar o nome, e se encontrasse o tal doutor Crespo, que resolvia qualquer problema, poderia ter identidade e talão de cheque, coisa que também sonhara em ter. (LINS, 1997, p. 537-538)

Apesar de, na infância, ter se recusado a frequentar a escola conforme solicitado pela mãe — "Tá bão, tá bão... vou trabalhar de engraxate porque dá grana, agora esse negócio aí de voltar prender ler, num vô não!" (LINS, 1997, p.186) — em nome dos seus planos de ser rico e poderoso, o dono de Cidade de Deus descobre ser a palavra escrita parte crucial do poder. Embora tenha conseguido ser detentor de bastante dinheiro, temido e chefe de uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro, o bandido, em sua morte, não encontra redenção. Diferentemente da dos outros heróis, o momento em que essa personagem se despede da vida não é longamente descrito e não apresenta lirismo algum: Os quatro atravessaram a praça dos Apês, enfiaram-se no primeiro prédio, entraram num apartamento onde uma família comemorava a passagem do ano. Os bandidos mandaram fechar a porta, Pequeno sentou-se no sofá, revirou os olhos, estrebuchou e morreu quando começava a queima de fogos para a entrada de mais um Ano-Novo. (p. LINS, 1997, p.547, grifo nosso)

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Apesar de haver aí a sincronia entre o último suspiro do personagem e a queima de fogos, que poderia representar uma comemoração do fato ou até mesmo um tributo ao fim da existência daquele que, independentemente de juízo de valores, foi bem sucedido em seus objetivos, qualquer traço poético é eliminado pelo atributo "mais" dado ao Ano-Novo, que traz em si uma ideia de repetição, levada para o sentido da insignificância.

3. Bené, o mediador na desmesura de Zé Pequeno

Bené cresceu junto com Pequeno, era o seu melhor amigo, talvez o único. Segundo nos é narrado, dentre todos “só os dois eram assim desde os tempos de criança [...] Uma piscada de olhos ou uma risada ou um coçar de cabeça valia mais que uma oração com todos os seus termos essenciais.” (LINS, 1997, p. 214 ) E, aí, vemos ser evidenciado, mais uma vez, o traço metalinguageiro do romance pelo agenciamento de termos metalinguísticos. Esse herói que atua como limite de outro esteve ao lado de Pequeno em todo o seu processo de transformação de promessa de bandido implacável no ferino dono de Cidade de Deus, a todo tempo apontando a ele a sua desmesura. Bené pode ser tomado como a figuração do limite que nem a madrinha, nem a mãe e tampouco a sociedade conseguiram impor ao nosso herói movido à ganância. Quando Pequeno, movido pelo seu objetivo de ser além do mais temido, o mais rico de Cidade de Deus, decidiu trocar a prática de assaltos pelo tráfico de drogas e, em nome disso, planejou convencer os comparsas a tomar as bocas de Bé e Chinelo Virado, para ter o monopólio do tráfico na favela, Bené o aconselhou a não matar Virado: “Bené ainda o chamou num canto, depois da decisão tomada, com vistas a convencê-lo a deixar Chinelo Virado viver, poderiam muito bem apenas expulsá-lo.” (LINS, 1997, p. 214 ) E mesmo depois da recusa de Pequeno em atender seu conselho, Bené o alerta mais uma vez a respeito de sua desmesura: “Porra! Você só pensa em matar, matar, matar, nunca opita por outra solução!” (LINS, 1997, p. 214). Essa função de mediar as ações de Pequeno exercida por Bené é evidenciada ainda na fala de personagens ─ “Depois que Bené morreu, Pequeno ficou mais endiabrado ainda, viu o que ele fez ali na Via Onze, mês passado?” (LINS, 1997, p.392) ─ e na própria descrição

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do pensamento de Pequeno: “Se Bené estivesse vivo, talvez não estivesse estuprado a mulher de Galinha e nada daquilo estaria acontecendo; na certa estaria com muito mais dinheiro e sem inimigos.” (LINS, 1997, p.483) E o único episódio da vida de Pequeno em que encontramos certo lirismo é o que ele poupa a vida de um menino da quadrilha rival, durante a guerra, porque se lembrou de Bené, que havia morrido ao ser atingido por um tiro que tinha como alvo o dono de Cidade de Deus. Ao se deparar com o menino, saudoso do amigo, ordena, com a arma apontada para sua cabeça, que ele cante a canção Maluco Beleza, a preferida de Bené: O garoto parou. Pequeno mandou que cantasse outra vez. De novo, olhando para o céu, procurava a imagem de Bené recostado em alguma estrela, pois sua voz havia lhe soado aos ouvidos na hora em que ia apertar o gatilho da arma apontada para a cabeça do inimigo. Nada. Bené não estava em nenhuma estrela, somente sua alma ali, do seu lado, lhe mostrando que aquele não era um inimigo de verdade. Olhou para o vazio, piscou o olho, acreditava que Bené veria. (LINS, 1997, p.483)

Nesse episódio, por única vez em todo o romance, vemos o simbólico atuar como mediador na decisão de Pequeno de matar, justamente por intermédio de sua relação com Bené. Esse, apesar da vida criminosa desde criança, prezava a paz e na medida do possível zelava por ela nos lugares que frequentava. Ele tinha outros planos para si: “Queria ser bonito, andar vestido como os cocotas, namorar aquelas meninas que andavam com eles, que pareciam felizes como os ricos: queimados de sol, cabelo parafinado, tatuagem no corpo.” (LINS, 1997, p. 275-276). E buscou por isso sem, contudo, abandonar Pequeno e o tráfico de drogas. Enturmou-se com os cocotas, adolescentes da favela, que frequentavam a escola, gostavam de festas, drogas e de usarem as marcas de produtos da moda: “Sentia-se agora definitivamente rico, pois vestia-se como eles. [...] Iria frequentar a praia do Pepino assim que aprendesse o palavreado deles. Na moral, na moral, na vida tudo é uma questão de linguagem.” (LINS, 1997, p. 278, grifo nosso) É importante atentarmos para a reflexão acerca do papel da linguagem destacada no trecho, uma clara inserção da perspectiva do autor na narrativa. Quanto à morte dessa personagem, sua descrição é tão extensa quanto a de Cabeleira e apresenta também certo lirismo, o que faz aumentar o contraste entre a desumanização de Pequeno e a dos outros bandidos, bem como entre essa e a

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persistência de Busca-Pé referente à manutenção de sua inserção cultural: “E uma lua redonda, claríssima, encantou ainda mais o eterno mistério que a noite sempre traz, e o enterro daquela manhã de sol intenso foi o maior que já se viu.” (LINS, 1997, p. 385)

4. Busca-Pé, herói movido pela arte e antítese de Zé Pequeno

Busca-Pé cresceu, assim como Pequeno, em Cidade de Deus. Foram crianças na mesma época, mas ao contrário do outro, esse herói movido pela arte não tinha inclinações para a violência, embora tenha crescido em meio a ela: Ficaram [Busca-Pé e seu amigo de infância, Barbantinho] com as retinas presas na água, era impossível aparar a dor de um corpo que se ia na correnteza na melhor hora da tarde. Largaram os aparadores. Sem calçarem os chinelos, saíram correndo, dando ao vento as lágrimas que tantos olhos prometeram. (LINS, 1998, p. 93)

Neste trecho, vemos encenadas a inocência e a delicadeza que marcaram a infância de Busca-Pé e que foram ausentes na de Pequeno: A chuva voltara e chorava por Busca-Pé, que mesmo vendo a destruição das marcas de sua infância, encantava-se com as manobras das máquinas que matavam pés de boldo, dormideiras, onze-horas, ervas-doces e girassóis [...] Oferecia água gelada para os trabalhadores, pedia para dar uma voltinha no trator; passava o dia por conta dessas aventuras. (LINS, 1997, p. 176, grifos nossos)

A forma como o futuro fotógrafo respondeu às ações da máquina, que figura como a violência, destruidora da inocência e do belo, aponta para a característica desse personagem ─ que o acompanha mesmo quando finda a inocência infantil ─ de buscar meios de se encantar pela vida apesar do que lhe falta. Na adolescência, essa característica se sustenta pelo sonho de ser fotógrafo e pela linguagem como recurso contra às ameaças de desligamento da inserção cultural: Busca-Pé chegou em casa com medo do vento, da rua, da chuva, do seu skate, do mais simples objeto, tudo lhe parecia perigoso. Ajoelhou-se diante da cama, jogou a cabeça no colchão, as mãos sobre ela, e numa súplica infinita pediu a Exu que fosse lá avisar a Oxalá que um de seus filhos tinha a sensação de estar desesperado para sempre. (LINS, 1997, p.15)

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Aí, a ação do personagem de enunciar o seu desespero, contrasta com a forma como os outros heróis lidavam com seus medos e frustrações, e evidência a importância que é atribuída à linguagem pelo autor. A serviço desse traço metalinguageiro da obra está também o gosto do personagem pela música e a forma como ele se vale dela para lidar com o que lhe fere o existir: “Dirigiu-se a sala, talvez escutando uma música o desespero passasse. Revirou sua pequena discoteca, Pepeu Gomes no brilho da Malacacheta.” (LINS, 1997, p. 178). Até mesmo quando vê fracassado o seu plano de conseguir dinheiro, a partir da garantia dos seus direitos trabalhistas provenientes de uma demissão, para comprar sua primeira máquina fotográfica e, por isso, decide cometer um assalto junto com um amigo, é por se identificar com o gosto musical e a simpatia das vítimas em potencial, que desiste de se valer da violência como saída para a sua frustação. Esse amor pela linguagem em sua apropriação artística o destaca inclusive dos cocotas de quem era amigo, os quais, apesar de sustentarem suas inserções culturais, não tinham a habilidade linguageira de Busca-Pé: Papo bobo, não tinham sensibilidade para entender as metáforas das canções, não sabiam nem o que era metáfora. Uma vez, lhe disseram que Caetano beijava boca de homem. Imediatamente Busca-Pé respondeu que aquilo era quebra de Tabu. Um dos cocotas revidou, na mais pura picardia, afirmando que tabu era pau no cu. (LINS, 1997, p. 179-180)

Com sua capacidade de sustentar seu querer dentro das leis da sociedade, por meio do estudo e da arte, Busca-Pé conseguiu um vida melhor para si: cursou o ensino superior, tornou-se fotógrafo, saiu da favela e casou-se, sem contudo, abdicar-se da convivência com sua mãe e os amigos de Cidade de Deus.

Considerações finais

Ao longo de nossa análise, concebendo o narrador como uma estratégia enunciativa de Paulo Lins, construída por meio do ato ficcional, vimos como o forte traço metalinguageiro de Cidade de Deus, fruto da perspectiva do autor acerca da linguagem e sua relação com a vida, se anuncia em todo o romance. Pela organização discursiva do narrador, que instaura no enunciado de personagens a voz autoral, além

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de trazê-la em si, e pelo jogo de semelhanças e diferenças entre as personalidades de Cabeleira, Zé Pequeno, Bené e Busca-Pé, o autor faz de seu romance ─ marginal na temática por levar à tona o modo como a parcela marginalizada da sociedade experiencia o desenvolvimento econômico do país ─ uma obra cara ao sistema literário brasileiro, já que estabelece, com astúcia, uma relação de complementaridade entre a apreciação estética e a crítica social.

Referências BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 ed.Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, (Obras escolhidas, v.1) p.197-211. BENVENISTE, Émile. A linguagem e a experiência humana. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. 4 ed. Tradução de Eduardo Guimarães; Marco Antônio Escobar; Rosa Attié Figueira; Vandersi Sant'Ana Castro; João Wanderlei Geraldi; e Ingedore G. Villaça Koch. Campinas: Pontes. 1989 a. p. 69-80. BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. 4 ed. Tradução de Eduardo Guimarães; Marco Antônio Escobar; Rosa Attié Figueira; Vandersi Sant'Ana Castro; João Wanderlei Geraldi; e Ingedore G. Villaça Koch. Campinas: Pontes. 1989 b. p. 81-90. BENVENISTE, Émile. A natureza dos pronomes. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4 ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes. 1995 a. p. 227-283. BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4 ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes. 1995 b. p. 285-293. ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz (org.) Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v.2. p. 955-987. LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 550p.

Aceito em 30/09/2014.

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Montechios, Capuletos e nós: quando a adaptação expande a noção de comunidade Erika Viviane Costa Vieira1

Resumo: Descreve-se uma iniciativa pedagógica brasileira que não poderia passar desapercebida: estudantes de nível médio de uma área de vulnerabilidade social do Morro do Cruzeiro, RJ, decidiu formar um grupo de teatro ensaiando na laje de suas casas inacabadas, sem qualquer recurso financeiro. Assim surgiu a trupe teatral “Teatro da Laje”. Com a ajuda do professor de teatro Antônio Veríssimo Santos Jr., o Morro do Cruzeiro começou a se tornar conhecido não pela violência e o tráfico de drogas, mas por esta iniciativa educativa e cultural. O objetivo deste artigo, assim, é discutir as articulações e as estratégias que a adaptação de uma peça canônica, Romeu e Julieta, impinge sobre o potencial de transformação social em uma comunidade em situação de vulnerabilidade social e marginalizada, além de refletir sobre o conceito de "comunidade". Palavras-chave: Shakespeare, comunidade, violência, adaptação.

Abstract: It is described a Brazilian educational initiative that could not go unnoticed: high school

students from an area of social vulnerability of Morro do Cruzeiro, RJ decided to form a theater group rehearsing in the slab of their unfinished homes without any financial resources. So the theatrical troupe "Theatre of Stone" emerged. With the help of the acting tutor, Anthony Verissimo Santos Jr., Morro do Cruzeiro began to become known not by violence and drug trafficking, but for this educational and cultural initiative. The purpose of this article therefore is to discuss the articulations and the strategies of the adaptation of a canonical play, Romeo and Juliet, which influences the potential for social transformation in a socially marginalized and vulnerable community, as well as reflecting on the concept of "community." Keywords: Shakespeare, community, violence, adaptation.

Professora Doutora de Literatura Inglesa, Língua Inglesa e Ensino da UFVJM – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. 1

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ontechios, Capuletos e Nós é mais sobre "nós" do que propriamente sobre o Romeu e Julieta de Shakespeare. Esta adaptação surgiu de uma comunidade em vulnerabilidade social, cujo principal objetivo foi o de

proporcionar aos alunos do ensino médio de uma escola pública a reflexão e a prática teatral que pudessem articular estética e política. Seu teatro, uma combinação de intervenção cultural com o protesto social, tinha como objetivo capacitar culturalmente esses alunos e, por extensão, a comunidade a que pertenciam. A comunidade da Vila Cruzeiro, uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro na época, desejava transformar a imagem desse lugar como um local negativo da violência em um lugar positivo de grande potencial humano. Ao estudar Romeu e Julieta e a adaptação do texto de seu contexto, vinte e cinco alunos recuperaram a sua autoconfiança. O objetivo deste artigo, assim, é discutir as articulações e as estratégias que a adaptação de uma peça canônica impinge sobre o potencial de transformação social em uma comunidade em situação de vulnerabilidade social e marginalizada, além de refletir sobre o conceito de "comunidade". Esta análise também será iluminada pela Pedagogia da Autonomia (1996) de Paulo Freire, além de usar a noção de Agamben de comunidade (1993) oposto ao que é comumente usado no Brasil para se referir às favelas.

1. Questões de adaptação

No que se refere aos conceitos controversos de apropriação e adaptação, Linda Hutcheon (2006) coloca em evidência todos os tipos de adaptação, oferecendo uma tentativa de teorização coerente com o fenômeno. Hutcheon é propositadamente inclusiva, ao expor a extensão da prática nos tempos atuais em todos os segmentos artísticos, abrangendo uma ampla gama de gêneros e mídias e utilizando exemplos de vários países, línguas e culturas. Hutcheon insiste em ir além do que com frequência discutimos como adaptação, que se resume, muitas vezes, à relação entre romances e

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filmes, para examinarmos também videogames, parques temáticos, websites, graphic novels, capas de CD, óperas, musicais, balés e atos performáticos. Sem seguir o modelo dos estudos de caso (estudos de obras adaptadas como exemplo de como a teoria pode ser aplicada), Hutcheon nos oferece um estudo da adaptação per se, defendendo a idéia de que a adaptação deve ser experimentada em sua autonomia, desafiando a possibilidade de uma autoridade primeira. Assim, sua proposição teórica está centrada nos atos da adaptação em si mesmo, tais como as revisitações deliberadas, anunciadas ou extendidas de obras que lhe são anteriores. A definição de Hutcheon é elucidativa porque trata a adaptação não apenas como uma entidade formal, mas como um processo que sofre interferências de natureza humana e, conseqüentemente, de subjetividades em diferentes contextos. Dessa forma, sua principal contribuição para o debate é a evidência da contextualização. “Nenhuma adaptação ou processo de adaptação existe num vácuo: todas elas têm um contexto – um tempo e um espaço, uma sociedade e uma cultura” – afirma Hutcheon (2006, xvi). Esta concepção torna-se uma contribuição importante para a investigação da adaptação teatral da comunidade da Vila Cruzeiro, pois os adaptadores contemporâneos em questão não se apropriam do Romeu e Julieta de Shakespeare despropositadamente. Elege-se quem se quer copiar por algum motivo ulterior à mera afinidade afetiva. Dessa maneira, o leitor da obra atualizada precisa conhecer, de alguma forma, o enredo do texto canônico com o qual dialoga. Adrienne Rich (1979) afirma que a perspectiva revisionista é um ato de sobrevivência, o que pode ser definido como lançar um olhar para o passado com os olhos do presente, o que possibilita penetrar o texto antigo com um novo direcionamento crítico de forma a construir um capítulo diferente na história cultural. Como a arte é constantemente recriada, numa espécie de fórmula em que “arte cria arte” e “literatura faz literatura”, para Julie Sanders (2006) em Adaptation and appropriation, faz-se necessário definir os diversos instrumentos da prática intertextual. Dessa forma, Sanders recupera o conceito de intertextualidade como proposto por Barthes (1981), “todo texto é um intertexto”, e por Kristeva (1980) “todo texto é uma permutação de textos, uma intertextualidade” e expõe a variabilidade do empréstimo entre os intertextos. Assim, uma obra pode estabelecer

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ou não relações mais ou menos explícitas com uma determinada fonte. O que é inevitável, no entanto, é o fato de que uma releitura, uma volta ao texto canônico, está condicionada a um novo sentido político e ideológico que se quer dar, de forma a atualizar o texto. A decisão de se re-interpretar um determinado texto é influenciada, portanto, pelo engajamento político, ético ou ideológico do escritor, diretor ou performer que se compromete a adaptar um texto. O que chamamos de adaptação refere-se ao ato de transposição de textos canônicos, pois esta prática é conservadora por excelência e sua intenção é a de preservar a existência do cânone (cf. p. 8-9), apesar de contribuir para sua constante reformulação e expansão. A adaptação é um termo amplo para caracterizar as relações intertextuais, mas pressupõe o engajamento a um único texto ou fonte e supera a mera alusão ou citação. A noção de apropriação também carrega em si o engajamento a um texto fonte, mas adota, freqüentemente, uma postura crítica (cf. SANDERS, 2006, p. 4). Apropriação é um termo que denota uma relação intertextual menos explícita, mas mais hostil ou até mesmo de caráter mais subversivo devido, principalmente, à postura crítica que adota. Enquanto a adaptação presta uma homenagem, a apropriação desafia o texto fonte, evocando, assim, uma ruptura com a tradição, seus valores e sua hierarquia. Daniel Fischlin e Mark Fortier (2000), editores de uma coleção de peças que adaptam ou dialogam com o teatro Shakespeariano, acreditam que a apropriação seja um termo de conotação mais negativa que deve ser usado com cautela, porque pode vir a sugerir “apossar-se” ou “tomar o lugar” da autoridade, do original (cf. p. 3). Apesar de o vocabulário para os termos usados para a adaptação ser extremamente amplo, alguns deles são comuns entre os autores que os empregam. As operações de adaptação e apropriação, contudo, mantêm distinções que são cruciais para seu entendimento. Sanders (2006) chama a atenção para o fato de que é preciso diferenciar citação direta de atos de citação. Na citação direta empregam-se as palavras do autor em um outro contexto e a nova relação que se estabelece depende desse mesmo contexto, podendo ser de reverência, crítica, questionamento ou apoio. Nos atos de citação, diferentemente, há uma postura de reverência ao cânone, cujos textos são culturalmente reconhecidos e validados, sendo, assim, usados como autoridade.

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Quando uma referência ocorre de maneira implícita, que requer maior esforço do leitor para identificar a fonte, tem-se, então, a alusão. Porém, há outros procedimentos que estabelecem relações mais fragmentadas com o texto fonte. Na bricolagem, por exemplo, há uma assemblage, uma montagem feita de várias citações diretas, alusões ou empréstimos. Já no pastiche, há uma tentativa de imitação do estilo de um artista ou escritor, cujo produto final acaba apresentando um tom satírico ou uma intenção paródica em sua pretensão imitadora. Uma proposta de revisão ou a releitura é definida por Sanders como o ato de retorno ao passado com o olhar da atualidade, fazendo emergir do texto de partida, geralmente canônico, um novo texto sob uma outra perspectiva crítica. A re-escrita em forma de romance, peça teatral, poema ou filme, por outro lado, transcende a mera imitação, e age como um “adicional” à produção literária em geral em forma de suplemento, improvisação, inovação ou expansão. O importante dessa prática é o fator multiplicador e proliferador de determinada obra ou autor. Como se vê, a capacidade reprodutora da adaptação e da apropriação não pode ser subestimada, pois parte do prazer da leitura dependente dessa tensão que se cria entre o similar e o diferente, entre o familiar e o novo. O diálogo estabelecido entre a obra fonte e a sua releitura representa uma complexa prática textual da contemporaneidade firmada no recorte e na colagem, que alterna a presença e a ausência de Shakespeare (cf. COMPAGNON, 1996). Adaptação, assim, pode ser muitas coisas. Sempre que esta questão for levantada aqui, a adaptação será considerada como adaptação teatral, estreitando o escopo deste termo tanto quanto possível, mesmo que a adaptação teatral pode ser mal interpretado como produção teatral (ver KIDNIE, 2009, p. 7). Margaret Kidnie (2009) questiona a validade e a autenticidade que os freqüentadores de teatro procuram em produções shakespearianas. De acordo com ela, é difícil distinguir "adaptação" de "produção teatral", porque o trabalho de adaptação da produção teatral está situado no cruzamento entre texto e performance, em uma batalha entre algo que supostamente dura (o texto) e algo que é provisória (a produção). E a performance, como resultado, é o resultado de um processo de interpretação particular, que leva em conta a cultura e a região geográfica de onde surgiram. Nestes termos, cada produção é uma adaptação

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da mesma forma que cada adaptação goza de um potencial temporário que implica uma obra canónica instável em um desenvolvimento contínuo, em que o texto se modifica ao longo do tempo, sem necessariamente mudar a si mesmo.

2. Shakespeare local

A adaptação em questão é um trabalho de muito potencial crítico de um professor da educação básica, Antonio Verissimo Santos Jr.. Seu trabalho começou em 1999, como ele relata com precisão em sua tese de mestrado. Neste trabalho, ele descreve sua experiência e os desafios que enfrentou no início do projeto, quando os alunos passaram a ter aulas de teatro, como parte de seu currículo obrigatório na Escola Municipal Leonor Coelho Pereira. Esta escola está localizada na entrada da Favela Vila Cruzeiro. Assim, como é de se esperar, o público jovem desta escola enfrentou diferentes desafios que limitaram sua experiência escolar e diminuíram as possibilidades de sucesso educacional, entre eles a pobreza, a discriminação racial e de gênero, o limitado acesso à vida cultural, e a exposição à violência do tráfico de drogas. Era necessário “chacoalhar” esses alunos e responder com consciência crítica a essa realidade. Seus alunos estavam desmotivados no início, mas à medida que o projeto se desenvolveu, eles expressaram intenso desejo de participar. Esse cenário foi agravado quando, em junho de 2002, o jornalista Tim Lopes foi brutalmente assassinado, e toda a comunidade de Vila Cruzeiro sofreu com o estigma da vergonha de viver em um lugar tão violento. Na época, muitos habitantes da Vila Cruzeiro mentiram sobre os seus próprios endereços quando se candidataram a um emprego ou a cartas de crédito. As pessoas tinham medo das pessoas que viviam lá e as pessoas que viviam ali temiam represálias de facções do tráfico. As pessoas tinham urgência por um novo projeto em que essa comunidade já não precisasse figurar na secção criminal do jornal, mas pela sua arte e vida cultural. A vontade de ter visibilidade positiva foi o ponto de partida do projeto. O grupo teatral foi formado como conseqüência das aulas de teatro na escola. O Professor Verissimo pode ser visto como um facilitador catalítico e mediador de todo o processo ao guiar os primeiros passos de todo o projeto que levou

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ao surgimento do grupo Teatro na Laje. Sua produção estudantil foi investida de instâncias contextuais específicas que injeta ação à história de amor de Romeu e Julieta ao reforçar o aspecto da violência que permeia a rivalidade entre as duas casas. Influenciado por Peter Brook, que mencionou que Romeu e Julieta foi mais do que uma história de amor pedante e sentimental, a abordagem de Verissimo queria recuperar a violência, a paixão, a efervescência dos pobres, a intriga e, ao fazê-lo, descobrir a beleza e a poesia que emerge a partir da Verona de Shakespeare, em que o final trágico dos jovens amantes é meramente um incidente (cf. BROOK, 1988). Dito isto, o grupo Teatro na Laje foi criado com a participação efetiva de vinte e cinco estudantes do ensino médio em 2003. O nome refere-se aos lugares onde eles se reuniam para os ensaios, geralmente em uma laje de um galpão da comunidade. Shakespeare foi apropriado por essa comunidade marginalizada e o reinventou como um meio de intervenção social e cultural que combina drama com a ação social, a estética com o pragmatismo. De Shakespeare, eles estudaram e executado Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth e 2001-2003 na escola. A premissa básica do grupo está na pesquisa artística em que seus problemas e desafios cotidianos servem de base para a inspiração teatral. Depois de quatro anos de existência, o grupo foi capaz de ampliar o horizonte de possibilidades dos seus membros e romper com a cadeia de violência do tráfico de drogas e isolamento cultural que impediu sua juventude para capacitar-se. Esse projeto ganhou muitos prêmios, sendo um deles um prêmio nacional do Ministério da Cultura. Agora, o grupo existe como uma organização sem fins lucrativos que oferece oficinas e aulas particulares para a comunidade Vila Cruzeiro, além de produzir os seus próprios roteiros. Uma das perguntas de Verissimo foi relacionado ao uso de clássicos. Ele corria o risco de "empobrecer" Shakespeare, ao permitir que seus alunos o adaptassem. No entanto, ele admitiu que seu desejo não era exatamente de reproduzir textos de Shakespeare, mas permitir que seus alunos refletissem sobre seus temas e imprimissem sua leitura nas performances subseqüentes. Embora Verissimo não mencione a Pedagogia da Autonomia (1996) de Paulo Freire, sua práxis é altamente fundamentada na valorização do conhecimento prévio de seus alunos. Enfim, Verísssimo se move para longe do esteticismo ascético da fidelidade a Shakespeare e é paradoxalmente

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enriquecido pelas interpretações políticas e contextuais das peças, o que fez com que seus alunos sentissem liberdade e facilidade para se conectar com a própria realidade. Além disso, em cada uma de suas adaptações que foi produzido um texto teatral provisório em que o autêntico Shakespeare deu lugar à voz política local. Sonia Massai (2005) nos lembra que Shakespeare se tornou um ícone global através do qual os mercados culturais se ocidentalizam. No entanto, sua característica global não pode servir de desculpa para o empobrecimento e apagamento da cultural local. A crítica póscolonial nos adverte que é preciso subvertê-lo. Durante o processo adaptativo os estudantes se engajaram na construção de uma voz própria e promoveu a sua própria visão das histórias de Shakepeare. Pode-se dizer que os alunos de Verissimo foram envolvidos em uma dinâmica de visão dialética e política do cânone como uma forma de localizar o seu próprio Shakespeare. Este ponto de vista do cânone foi possível, devido à influência que Verissimo sofreu do teatro do oprimido de Boal, do teatro épico de Brecht, e do teatro pobre de Grotowiski, como ele menciona em seu relatório o contato que teve com esses textos. Conforme Sonia Massai (2005), entende-se por “local” a qualidade que remete àquilo que pertence a uma posição no espaço, àquilo que pertence a um lugar em particular dentro de um sistema (p. 3). Dessa maneira, a produção Shakespeariana como uma realização prática de uma apropriação como um modo intercultural de produção nada mais é senão local, apesar de em sua base estar um ícone do cânone global. Sendo assim, Romeu e Julieta foi apropriado pelos alunos de Veríssimo para o contexto local das favelas cariocas. A dimensão trágica da história de amor de Shakespeare dá lugar a uma reflexão crítica da violência quando, em 2001, Verissimo propôs a seus alunos trabalhar com esta peça para introduzir princípios teatrais básicos. Para apresentar Shakespeare a seus alunos, ele usou filmes, novelas, desenhos animados, filmes de animação. Ao sugerir a peça, Verissimo propôs substituir as famílias rivais por facções criminosas rivais: Morro do Montechios contra o Morro dos Capuletos. Os alunos aprovaram e o resultado foi uma performance híbrida, misturando a linguagem politizada do RAP e a música do balé de Prokofiev. Os próprios alunos escolheram a seqüência do texto da performance, que era bastante fragmentada, e introduziram elementos de seu cotidiano para o palco. A direção foi

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feita pela aluna Katiucha Cristina. No final da apresentação, Verissimo convidou seu público para um debate, perguntando-lhes o que mudaria na apresentação e por quê. Dependendo das respostas desses alunos, Verissimo iria convidá-lo(a) para executar essa parte. Com tantas mudanças, Romeu e Julieta foi transformada em uma experiência teatral que somou ação e reflexão. Uma de suas últimas versões, "oficiais" de Romeu e Julieta tornou-se o chamado Montechios, Capuletos e Nós, apresentação que dura cerca de meia hora e foi gravada em vídeo. Romeu e Julieta são adolescentes que vivem em favelas rivais: Favela dos Capuletos e Favela dos Montechios, controladas por facções rivais. O meio de comunicação é uma estação de rádio local, em que notícias, entretenimento e publicidade são oferecidos para cada comunidade. No entanto, uma Capuleto não estava autorizada a falar com um Montechio. À medida que as ações se desenvolvem, percebe-se que uma menina do morro dos Montechio liga para o número errado para pedir uma música no rádio dos Capuleto. Ela fica ameaçada e a tensão aumenta. Os Capuleto querem retaliar a pichação de um dos muros feita por um Montechio. Como resultado, as mensagens ameaçadoras dos Capuleto e dos Montechios são interpretadas como um sinal de desafio e há tiroteio. O final é uma história que já sabemos: não há final feliz. A prática pedagógica por trás dessa experiência tem muitas semelhanças com a concepção de Paulo Freire de autonomia, cuja pedagogia se baseia na defesa da ética, da dignidade e da autonomia de seus alunos, mesmo que Verissimo não tenha tratado abertamente desses temas. Freire prega contra as práticas de negação e desumanização, os quais devem ser afrontados e modificados. Freire também é contra a adaptação a uma realidade que não pode ser alterada. Neste caso, a realidade significa a violência gratuita promovida pelo tráfico de drogas no Rio, que aliena os habitantes nas colinas e silencia-os. Verissimo envolveu seus alunos em uma prática em que eles tiveram que se esforçar para compreender o texto de Shakespeare por conta própria, adaptá-lo criticamente, e, além disso, eles se comprometem a experimentações com diferentes linguagens teatrais e improvisos. Estes alunos foram provocados a assumir-se como sujeitos sócio-histórico-culturais com um problema: o excesso de violência promovido pelo tráfico de drogas. Isto é expresso através do uso da linguagem “do morro” no

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palco, o que não é Shakespeare, mas que representa uma comunidade oprimida pelo tráfico. Outra coisa que eles questionaram foi o isolamento cultural da favela. Para ver uma peça de teatro no Rio, tiveram que atravessar a cidade e ir para a cidade, o centro, a um local predominantemente habitado pela classe média. Montechios, Capuletos e Nós desafia a divisão de classes brasileira e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, onde o acesso à vida cultural parece ser democrática, mas há uma linha invisível que separa aqueles que vivem nas favelas e aqueles que vivem em áreas centrais e sul. Esta experiência pedagógica traz, assim, Shakespeare para a periferia com uma reflexão crítica: se as pessoas que estão no centro do Rio quiserem ver uma peça de Shakespeare, elas devem dirigir-se para a periferia, para a favela da Vila Cruzeiro, onde eles terão o prazer de apresentar sua versão. No Rio de Janeiro, “comunidade” remete a um lugar periférico da cidade a que os pobres pertencem. “Comunidade” normalmente se refere às favelas, onde seus habitantes dependem uns dos outros para sobreviver. Com essa concepção em mente, corre-se o risco de romantizar a periferia por causa do essencialismo político do “coitadismo” tão presente nos discursos que tendem à afirmação de identidade. A intervenção pedagógica de Verissimo está ligada a uma certa tendência a reafirmar a comunidade como um lugar que abriga, onde que os alunos devem reproduzir a sua maneira de ser como uma expressão de orgulho. No entanto, esta experiência teatral vai além dos limites das favelas, pois denuncia a alienação e o isolamento da pobreza e usa o cânone para questionar as diversas formas de poder. Reconsiderando a noção de comunidade, como é constituído e as implicações do que representa esse conceito em suas adaptações teatrais, a direção de Verissimo tem como desafio o de promover e gerar uma noção de comunidade que não está vinculado à identidade. Agamben concebe a comunidade como uma idéia que tenta evitar essencialismos (1993, p. 1). Ele pergunta: o que significa "comunidade"? Isso quer dizer "um conceito, por exemplo: ser vermelho, ser francês, sendo muçulmano"? Para Agamben: "nessa concepção, o ser é recuperado a partir do seu ter esta ou aquela propriedade, que o identifica como pertencente a este ou aquele conjunto, a esta ou aquela classe (...) e que ele seja recuperado não para outra categoria, nem para ausência simples genérica de

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qualquer pertencimento, mas para que seja assim, por pertencer a si mesmo "(p. 1). A este respeito, esta noção de comunidade que reproduz uma coletividade deve ser desafiada, pois promove uma sensação de fechamento, unidade e continuidade. A noção de comunidade que se sugere evidenciar parece ser aquela que motiva o protagonistmo social e que promove a autonomia do sujeito no local em que vive. Os alunos de Veríssimo são capazes de identificar seus pontos fortes e, através de sua própria leitura de Shakespeare, re-interpretar sua realidade para o mundo. A intenção política de Verissimo, tão presente no subtexto de sua adaptação, aborda o fato de que é hora de a voz da comunidade ir além dos morros do Rio: "para todo o mundo nós somos da Vila Cruzeiro", diz o lema do grupo Teatro da Laje. No entanto, ainda é necessário quebrar as complexas relações de poder que limitam o acesso das pessoas das favelas a locais periféricos da cultura, silenciando as diferenças, e que reproduzem uma idéia enganosa de que a comunidade é ou deveria ser um local harmonioso, um verdadeiro abrigo sem conflitos. A comunidade é uma idéia ativa que de alguma forma se recusa a ser sinônimo de "homogeneidade." Por enquanto, Verissimo e seus alunos parecem ter obtido sucesso em sua iniciativa.

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Aceito em 05/10/2014.

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A literatura como resistência política: traços neorrealistas na produção literária do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Caroline Alves Pereira1

Resumo: Este trabalho busca analisar as relações existentes entre as produções literárias do inicio do século XX, com o surgimento da corrente neo-realista, e a literatura produzida pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), como manifestação de resistência à cultura elitista, no que tange ao espaço das criações artísticas. Para tanto, discute-se a característica do neo-realismo como expressão literária definidora dos aspectos sociais e políticos representados nas obras da época. Analisa-se, também, o conceito de resistência como determinante para a definição da literatura marginalizada do movimento campesino (MAB). Por fim, a seguinte pesquisa ratifica a importância da literatura e das artes produzida para além das universidades e dos cânones habituais. Palavras-chave: Literatura de resistência, Neorrealismo, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Abstract: This paper analyzes the relationship between the literary productions of the early twentieth

century, with the rise of neo-realist current, and the literature produced by the Brazilian social group called Movimento do Atingidos por Barragens (MAB) as a manifestation of resistance to elitist culture in terms the space of artistic creations. To this aim, I discuss the characteristic of neorealism as the defining literary expression of social and political represented in the works of the time aspects. In addition, I analyze the concept of resistance as a determinant for defining the literature of marginalized campesino movement (MAB). Finally, the following research confirms the importance of literature and the arts produced in excess of the usual canons and universities. Keywords: Literature of Resistance, Neorealism, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

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Graduada em Letras - Universidade Federal de Viçosa – MG.

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1. Literatura e Resistência Política: Um perfil do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

N

os últimos 20 anos, o Brasil presenciou o gênesis de uma movimentação social que teve origem na transformação econômica do país, a partir do processo de privatização do setor elétrico brasileiro, intensificado nos

anos de 1990. A grande onda de privatizações estimulou, ainda mais, a competição entre empresas privadas pelas concessões de empreendimentos na produção e transmissão de energia no país. O Estado de Minas Gerais atraiu inúmeras empresas de capital estrangeiro devido à tamanha riqueza fluvial preservada, como pela capacidade de gerar cada vez mais lucro através de financiamentos do BNDES2 e de contratações de mão de obra barata e provisória. De um lado, as empresas passaram a controlar parte dos recursos naturais (água, minério, terra para produção de alimentos), na construção de pequenas e grandes usinas hidrelétricas, na implementação de grandes latifúndios, na monocultura e nas atividades de mineração; de outro, a população, principalmente a do campo, passa a ser obrigada a vender suas terras, a subordinar-se às condições subumanas tendo seus direitos violados3 em prol do desenvolvimento4, colocando em cheque a soberania do país. A insatisfação popular e o sentimento de impotência que limitava as ações dos atingidos eram os principais sintomas deste momento. No entanto, à medida que crescia a repressão através do investimento pesado em treinamento militar e outros métodos coercitivos, crescia também a revolta de trabalhadores e trabalhadoras que viam seus direitos sendo usurpados. O Movimento dos Atingidos por Barragens

2BNDES

– O banco nacional do desenvolvimento O CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – órgão do Estado brasileiro criado pela lei federal 4. 319, de 16 de março de 1964, e tem competência para promover inquéritos, investigações e estudos para avaliar a eficácia das normas que assegurem os direitos da pessoa humana, inscrito na Constituição Federal), aprovou no ano de 2010, o relatório da Comissão Especial que contém denúncias de violação de direitos humanos no processo de implantação de centrais hidrelétricas. A comissão identificou 16 direitos humanos violados. 4 O conceito de desenvolvimento deste sistema social e econômico é, inúmeras vezes, questionado pelos membros do Movimento dos Atingidos por Barragens. Muitos encarregados ou psicólogos enviados pelas empresas tentam, segundo os trabalhadores e trabalhadoras, convencê-los a vender seus lotes com a assertiva de que estarão colaborando com o desenvolvimento do país, no entanto, com o fim das negociações, muitos ficam sem casa e sem indenização.CORRÊA, Sergio Roberto Moraes. O movimento dos atingidos por Barragens na Amazônia: Um movimento popular Nascente de “vidas Inundadas”. Revista Nera– ano 12, nº. 15 – Julho/Dezembro de 2009. p. 38. 3

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(MAB) surge neste contexto de reivindicação e de busca pelo resgate da vida e das histórias de muitas famílias. A organização toma corpo e forma, desde o norte ao sul do Estado de Minas Gerais. As empresas avançam, usinas são construídas e direitos são cada vez mais violados, no entanto, homens e mulheres, adultos, jovens, idosos e até mesmo crianças se organizam nas comunidades para resistir às ameaças e ofensivas que vinham tanto do lado das empresas privadas estrangeiras quanto por parte do Estado. Não havendo repercussão, mediante o posicionamento da mídia5, a história de muitas famílias ribeirinhas é, por pouco, desprezada e lançada à indiferença. Muitos documentos foram e são até os dias atuais conservados e produzidos; são fotografias, documentários e uma infinidade de registros construídos através da arte, da literatura e da memória, como formas de fomentar o despertar da sociedade para a necessidade da emancipação humana. Assim surgiram quadros, pinturas simples, com pouca tinta e um punhado de terra; poesias que trazem à realidade de hoje o registro de um passado oculto, narrado com perfeição de detalhes por mãos que escreveram não somente sobre a vida de um povo esquecido e marginalizado como sua própria história. Neste sentido, pode-se visualizar uma semelhança entre a conjuntura atual, com suas manifestações culturais e artísticas, e a configuração de um novo realismo marxista do século XX a serviço da “consciencialização das classes trabalhadoras6”. Longe dos parâmetros e moldes da literatura clássica ou das produções artísticas fomentadas pelas grandes academias, a literatura produzida pelos movimentos sociais do campo agrega valor devido a sua capacidade de denunciar e enriquecer a história desse povo esquecido que vive às margens da sociedade. Os romances, poesias, pinturas e músicas produzidas no núcleo dos movimentos organizados são heranças pertencentes á apenas uma parcela da classe trabalhadora que, por se tornar cada vez mais marginalizada, cultiva sua cultura local e cria artes

A história dos atingidos por barragens se repete muitas vezes, em outros estados e até em outros países; não é uma excepcionalidade. No entanto, a mídia torna-se conivente ao julgar trivial a cobertura jornalística dos fatos que se seguem. Com isso a sociedade não obtém informações sobre essa realidade, senão, sobre as que a grande mídia opta por evidenciar. 5 VIÇOSO,Vitor. A Narrativa no Movimento Neorrealista. As Vozes Sociais e o Universo das Ficções; Realismo e Novos realismos. MG; Editora UFMG, 2012. 302 p. 5

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responsáveis por “despertar a alma coletiva das massas7” com a finalidade de alcançar a verdadeira transformação social. A análise do neo-realismo na presente pesquisa contribui para a investigação e possível constatação da literatura do movimento campesino (MAB), como expressão de uma cultura de resistência no âmbito das produções estético-ideológicas. Destacar e tornar a “literatura marginal8”cada vez mais notável à sociedade torna-se conditio sine qua non, tanto para os atingidos (as) quanto para os seguimentos que exploram e analisam a literatura como manifestação subjetivo-objetiva, visto que a literatura de resistência é o fruto dos anseios e denúncias da população que integra o Movimento dos Atingidos por Barragens do Estado de Minas Gerais, sendo também, submergida e sufocada em nome da excelência de outros elementos artísticos que compartilham valores distantes da realidade concreta e desconsideram a vida humana como ponto fundamental na contemplação e intervenção da realidade através da arte. É sobre esta ótica que a presente pesquisa busca analisar a produção literária proveniente do Movimento dos Atingidos por Barragens e sua relação com aspectos do neo-realismo de forma a identificar pontos em comum no que tange a literatura marginal e a cultura de resistência, assim como debater sobre a importância de estimular a criação literária para além do “corredor editorial”

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e dos modelos já

estabelecidos. Para atingir os objetivos propostos, será utilizado o método de pesquisa bibliográfica e a abordagem teórica de investigação dos fenômenos examinados. Ou seja, o conteúdo observado será submetido ao exame considerando seus aspectos materiais e concretos, como dados e registros apreendidos, relacionando-os aos elementos da obra contemporânea analisada. O trabalho será dividido em duas partes: pressupostos teóricos, divididos em três sub-tópicos e a análise da obra “Viagens de Sophia”, que será apresentada a seguir. Serão analisadas outras fontes teóricas e literárias como 7Conceito

utilizado por Karl Marx para designar a classe antagônica á classe capitalista, isto é, aos proletários. 7VIÇOSO,Vitor. A Narrativa no Movimento Neo- Realista. As Vozes Sociais e o Universo das Ficções; Realismo e Novos realismos. MG; Editora UFMG, 2012. 302 p. 8 NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

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artigos científicos, dissertações e a críticas literárias, a fim de legitimar o estudo realizado.

2. A expressão das vozes marginalizadas na década de 30 no Brasil

A primeira manifestação regionalista no Brasil surgiu no ano de 1928, com a publicação de A Bagaceira, obra de José Américo de Almeida, que inaugura o período de relatos e engrandecimentos do nordeste. Inspirado pelo realismo e sobre considerável influência do modernismo, através da liberdade linguística, da valorização dos aspectos regionais ou pela aproximação dos fenômenos freudianos, o romance de 30 surge como inovação e resistência, fomentando no homem do sertão nordestino e em toda a população não só a angústia e a inquietação, mas a compreensão do mundo industrializado e seus efeitos, como a anulação do homem atinente ao individuo, questão fundiária e a problemática social. A atribuição do termo “marginalizadas”, acentuado na introdução deste tópico e referente à literatura produzida pelos autores do nordeste, pode provocar algum espanto devido à carga semântica assumida pelo léxico escolhido, isto é, denominar uma produção artística como marginal é inferir que esta não se enquadra nos moldes tão apreciados pela sociedade intelectual e acadêmica, e não se enquadrando, é ignorada e considerada como não literatura. Tudo que contradiz ou questiona um modelo dado e imposto é passível de espanto e em muitos casos de distanciamento por partes dos leitores; no entanto, a literatura de 30 no Brasil foi a retomada ou o surgimento de uma expectativa extremamente necessária, que rompeu com o ideal da estética burguesa, da substância abstrusa embutida no movimento da Arte pela Arte cujos valores direcionavam a essência do indivíduo e não na valorização da coletividade. Gilberto Freire, escritor brasileiro, nascido em Recife no ano de 1900, foi considerado por diversos nomes influentes como um dos grandes fomentadores do romance de 30 no Brasil. Elaborou o manifesto regionalista, obra de grande valor que promoveu um sentimento de encarecimento e admiração pelos costumes, cor local e

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características do homem e da mulher sertaneja. De acordo com Maria de Fátima Vaz de Medeiros (1997), foi Freire quem influenciou para que o romance regionalista assumisse, antes de tudo, caráter autêntico, rompendo com o distanciamento da narrativa com o verossímil. Segundo Afrânio Coutinho: Há, porém, uma diferença essencial entre o regionalismo tal como era visto pelos românticos e o que foi posto em prática pelas gerações realistas. Em José de Alencar, Gonçalves Dias, Bernardo Guimarães, o regionalismo é uma forma de escape do presente para o passado, um passado idealizado pelo sentimento e artificializado pela transposição de um desejo de compensação e representação por assim dizer onírico. Essa modalidade de regionalismo incorre numa contradição ao supervalorizar o pitoresco e a côr-local do tipo, ao mesmo tempo em que procura encobri-lo, atribuindo-lhe qualidades, sentimentos valores que não lhe pertencem, mas à cultura que se lhe sobrepõe. Já se assinalou que o índio de Alencar era um europeu de tanga e tacape. (Afrânio Coutinho, 1964, p. 201).

E acrescenta: [...] o Realismo deu prosseguimento àquela marcha introspectiva proveniente do Romantismo, mergulhando no magma nacional à procura da compreensão de seus valores e motivos de vida e, ao mesmo tempo, buscando nêle as fontes de nutrição e inspiração intelectual. Desvestiu-se, porém, a mentalidade do país, sob o influxo realista, daquele saudosismo e escapismo romântico, para considerar a existência contemporânea e o ambiente vizinho. (Afrânio Coutinho, 1964, p. 201).

Ou seja, a arte regionalista extrapola os limites do romantismo e do realismo, introduzindo uma nova noção de mundo, espaço e identidade que posteriormente dará vazão as análises existencialistas no reconhecimento das reflexões sobre o lugar e o sentido do homem no mundo, que incorrem no fazer literário, na produção artística ou ainda, no pensar a sociedade. A necessidade de provocar na sociedade a manifestação das insatisfações e, em consequência disso, a elevação da consciência, deu-se através de um mecanismo conhecido por verossimilhança no ato de relatar a sociedade; no entanto, para tal feito, é necessário um conhecimento da realidade, um domínio ou pelo menos a capacidade de avaliar e perceber as condições dadas que cercam o povo trabalhador, e a essa

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capacidade cognitiva dá-se o nome de análise de conjuntura9. A análise conjuntural, realizada pelo autor, favorece a aproximação da narrativa com o verossímil, alcançando assim, um dos objetivos do autor neorrealista: trabalhar a consciência através da arte. Alguns estudiosos, como Lisiane Pinto, citada nas proposições anteriores, consideram a análise de conjuntura como uma síntese da realidade pautada e dirigida pela ideologia de quem a concebe. Não podemos negar tal constatação, ao mesmo tempo não podemos considerá-la como objeto danoso ao produto de sua concepção. Diante da situação estabelecida para os autores da década de 30, em plena mudança econômica, social e de transplantação cultural, difícil seria analisar e propor estratégias de mudança para a sociedade considerando trivial o posicionamento político e ideológico dos autores engajados nos partidos e organizações sociais. Em suma, a análise de conjuntura propicia a construção do retrato direto da realidade, aproximando-se da vida do sertanejo e considerando os valores e as peculiaridades da região, como defende Lisiane Pinto (2008) ao mencionar Lukács e suas análises em torno da autenticidade dos elementos traçados pelasartes literárias: O legado de Lukács consiste numa leitura política e social da sociedade, estabelecendo uma ligação entre época histórica e gênero literário, colocando a arte como retrato da sociedade. Ora, se arte reflete a sociedade, logo ela é realista, sendo assim o teórico, que se ligou à corrente marxista, percebia na obra literária a possibilidade de desmascarar o social para que houvesse uma tomada de consciência do leitor. Ciente então da realidade, o leitor procederia a uma mudança na sociedade, tornando-a mais justa e mais humana. (PINTO, 2008)

O poeta assim o faz, dispõe a arte como a fotografia fiel da realidade, desmascara, ou tenta desmascarar, o que persiste como sistema vigente e assim, colabora para a tomada de consciência do leitor. Para muitos escritores da época a literatura deveria servir a este novo Humanismo, contra toda antinomia social que emana do sistema capitalista defendendo assim, a coletividade e a centralidade no homem, frente à estética literária por si só. Nesse tipo de proposta estética é que podemos localizar a obra de Claret, a qual analisaremos no próximo capítulo, a partir

Termo comumente citado por intelectuais de economia política enfocada por Emílio Gennari, sociólogo, autor da obra EZLN: passos de uma rebeldia. 9

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da compreensão dos traços neo-realistas e do caráter de resistência social e política da obra produzida pelo movimento campesino.

3. Viagens de Sofia: Literatura e Resistência Publicada no ano de 2008, Viagens de Sofia, emerge da luta e admiração do autor, pela força e determinação dos que compõe e fortalecem, diariamente, o Movimento dos Atingidos por Barragens. Antônio Claret Fernandes, além de escritor, padre e militante orgânico, isto é, lutador de grande proatividade, dedica sua vida, desde o ano de 1990, às organizações sociais, fomentando em cada atingido, a esperança e a confiança na construção de uma nova sociedade, mais solidária e popular. Por se reportar à vida social e estigmatizada de indivíduos marginais à sociedade burguesa, aproximando dos aspectos morais, religiosos e cotidianos da vida simples do homem do campo, Viagens de Sofia, conquista seu espaço nas prateleiras e escrivaninhas de diversas personalidades, pertencentes ou não aos movimentos sociais, que consideram a obra como documento histórico de cunho literário, caracterizada por seu grandioso valor político–social de denúncia das opressões e contradições vividas pelos atingidos por barragens e pela classe operária como um todo. Compreendemos que todo processo artístico nasce, primeiramente, da vontade de se exprimir algo, intimo, subjetivo ou comum a todos, como uma confluência de elementos provenientes da memória, da percepção de realidade, como também da imaginação e da intuição. A literatura de resistência, por sua vez, bebe, principalmente, da fonte da memória e da percepção do real, a partir das experiências das personagens e do próprio autor, submetendo-nos, aos constantes questionamentos sobre, segundo (Bosi, 2002, p.254) a dialética do “indivíduo e sociedade, escrita e cultura, imaginação e memória social, invenção e convenção” as quais somos frequentemente subjugados; porém é importante frisar que, a narrativa dos excluídos não é uma atividade inovadora ou mecanismo recém - descoberto de contemplação social. A trajetória de formação literária no Brasil assevera a presença de personagens em condições de marginalidade em diversos momentos históricos, analisados e

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representados durante o fomento da produção cultural no país. O Romantismo do século XIX, influenciado pelas expressões europeias, pela transição política, decorrente da prematura independência e consequentemente, da valorização do nacionalismo e da liberdade apresenta, como “objeto da escrita” (Bosi, 2002, p. 257), personagens e circunstâncias em situação de exclusão, uma vez que o sentimento de liberdade ressoava como necessidade de ruptura com a supervalorização dos modelos europeus e da inferiorização das produções nacionais, pois, sendo o Brasil recém-independente, os elementos que constituíam e integravam a riqueza do país, como “as manifestações simbólicas que traduziam uma identidade étnica ou nacional” (BOSI, 2002, p. 259), como os jogos e danças, ritos e mitos, eram secundarizados, em muitos casos desvalorizados para dar a vez aos costumes provenientes da Europa. O indianismo incitou o nacionalismo a partir do esboço do indígena, recaindo sobre este, a representação do povo brasileiro, seus hábitos, sua cor-local e principalmente o papel do herói; no entanto, um índio excluído da realidade do homem branco, sendo exaltado por sua valentia e capacidade heroica. Assim como nas representações que compõem as obras realistas e naturalistas, sendo a última, grande apreciadora das personagens excluídas inerente ao pathos. No entanto, poucas são as obras que vão além da denúncia da contradição e da exposição dos sujeitos excluídos. Os três contos analisados, referentes à obra Viagens de Sofia, se “inserem num ambiente de generalizada falta de perspectiva, de piora nas condições de vida da classe trabalhadora e de perseguição aos que se levantam contra o sistema” (CLARET, 2008), no entanto, trata-se, ao mesmo tempo, de narrativas cujo intuito maior reside na popularização da luta social, na agitação da bandeira popular marxista e principalmente, no fomento à resistência. De acordo com Alfredo Bosi (2002, p.118): Resistência é um conceito originariamente ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela para a força de vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir.

O termo resistência foi pensado em relação à luta contra os governos fascistas na década de 30 a 50. Este foi um período de consolidação da aliança entre as forças

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contrarias à ditadura que se instalava por toda a Europa e também no Brasil, ao mesmo tempo, momento decisivo e propicio ao fortalecimento da arte engajada, do neorealismo e da literatura de resistência. Mais que uma literatura aguerrida de cunho marxista, de acordo com Bosi (2002, p. 127), o neo-realismo passava também a significar a libertação de uma “prática de escrita que estaria, por sua própria ancianidade estética, vinculada a ideias e valores já ultrapassados”, aproximando a escrita ficcional do cotidiano popular, da resistência através da arte da narrativa e de um novo tipo de humanismo, com base nos fundamentos existencialistas. Sobre esse período de luta contra as ditaduras, podemos dizer que: Era como se o espírito inquieto das vanguardas do começo do século voltasse a soprar na cabeça dos escritores, mas agora, depois da experiência da Segunda Guerra Mundial, exigisse uma escolha sóbria, lúcida, sem ilusões literárias, sem individualismos extremados, e comprometida tão-só com o que libera o homem junto com o semelhante. (BOSI, 2002, p. 128).

Não tão diferente da manifestação artística do romance de 30, a literatura contemporânea, produzida pelos movimentos sociais do campo, como o MAB, pode ser definida como um aparelho ideológico de disseminação das contradições do sistema capitalista, comprometida com a emancipação humana e com o avanço da consciência dos mesmos, como expôs Bosi, no trecho citado a cima. Podemos considerar a arte militante, produzida no seio dos movimentos populares, como o veículo de divulgação e fomento da resistência coletiva, instalado a partir do referencial do oprimido e não do conjunto de elementos que formam um sistema referencial militar de coerção das milícias nazi-fascistas da década de 30. O poeta da literatura de resistência sabe, antes de tudo, como impulsionar a organização popular conduzindo a apropriação cultural e artística à auto reflexão e à aliança entre os trabalhadores organizados, de modo a avivar a identidade de classe, pois, sua atenção volta-se para o povo, para a verificação da realidade, dos detalhes que muito contam sobre determinados momentos de enfrentamento ou de construção do movimento, enfim, encontramos a centralidade no coletivo e não na preocupação estética das personagens, do lugar ou da obra, como podemos observar no trecho seguinte, do conto Viagens de Sofia:

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Filomeno fazia a análise de conjuntura: O Capitalismo, na sua fase imperialista, avança de forma devastadora sobre os recursos naturais. Nós, do movimento, estamos bem no “olho do furacão” por causa da água e da energia. Os interesses são enormes! Ou os movimentos populares e as entidades combativas se unem ou seremos todos esmagados. (CLARET, 2008, p. 103).

Vilma, penúltimo conto da obra de Claret, discorre sobre, os desafios encontrados durante uma ocupação do canteiro de obras na construção da barragem de Fumaça. Nos primeiros instantes da narrativa o autor discorre sobre o espírito de cooperação dos militantes nas atividades relacionadas à organização do espaço ocupado, cada qual com sua tarefa, executando-a da melhor maneira. O Andarilho trovador aproxima-se, com maior ênfase entre os contos analisados, dos valores místicos e religiosos, pois, trata-se da história de um ex-seminarista, que depois de ser expulso do seminário torna-se andarilho, encantando a todos com suas trovas, até reencontrar um antigo amigo missionário que o ajuda a se instalar na cidade e a encontrar o pai que há muito não via. O ultimo conto da obra, Viagens de Sofia, narra a viajem de quatro militantes e as reflexões de Sofia, sobre o sistema social e econômico vigente, assim como suas consequências. São contos repletos de questionamentos a cerca da vida moderna, da necessidade de mudança e da possibilidade de ruptura com o projeto capitalista de sociedade.

Considerações finais Os artistas, militantes orgânicos dos movimentos populares, valorizam e estimulam a produção artística em todos os espaços de resistência, seja no momento de confronto, nas reuniões ou nas formações políticas, através das místicas, ocasião em que são retomados todos os mártires da luta popular, assim como seus legados, por intermédio das musicas, poesias e cenas teatrais. Podemos avaliar que a arte de resistência exerce considerável influência no imaginário e na percepção de mundo da sociedade, propiciando, ao leitor, o contato imediato com o lado vivo, resistente e ao mesmo tempo, abstruso dos marginalizados, pelos veículos de disseminação dos preceitos capitalistas.

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Os escritores do neo-realismo assim como os do romance de 30 no Brasil, e todos os seus elementos históricos e tipificações sociais, assumem posição de vanguarda na elaboração de uma literatura de resistência do século XIX, que reivindica a cima de tudo o direito à cultura, à expressão artística e, principalmente, à vida, atribuindo ao escritor, como disse Viçoso (2011), a tarefa de, através da sua práxis, contribuir para a conscientização da classe trabalhadora visualizando, sempre, a revolução.

Referências AGAMBEN, Giorgio. The coming community. Transl. by Michael Hardt. Minneapolis/ London: University of Minnesota Press, 1993. BROOK, Peter. The shifting point: forty years of theatrical exploration, 1946-1987. London: Methuen, 1988. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. HUTCHEON, Linda. A theory of adaptation. London & New York: Routledge, 2006. KIDNIE, Margaret. Shakespeare and the problem of adaptation. New York: Routledge, 2009. KRISTEVA, Julia. “The bounded text”. In.: Desire in language: a semiotic approach to literature and art. Trans. Thomas Gora, Alice Jardine, and Leon S. Roudiez (ed.). Oxford: Blackwell, 1980. MASSAI, Sonia. Defining local Shakespeares. In: _____. (Ed.) World-wide Shakespeares: local appropriations in film and performances. London and New York: Routledge, 2005. .pp. 312. RICH, Adrienne. When we dead awaken: writing as re-vision. In: ____. On lies, secrets, and silence. New York: Norton, 1979. pp. 33-49. SANDERS, Julie. Adaptation and appropriation. London & New York: Routledge, 2006. SANTOS JR., Antonio Veríssimo. Shakespeare e a Reinvenção da Escola ou a Escola e a Reinvenção de Shakespeare. 2004. 130f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.

Aceito em 07/10/2014.

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O que é Literatura? Natalícia Aparecida Máximo 1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo trazer considerações de alguns estudiosos sobre o que é literatura. A partir disso far-se-á uma análise de um texto contemporâneo de modo a criticar e dialogar o conteúdo com o que a literatura realmente nos proporciona. A revisão de literatura de Eagleton, Hegel e outros, proporcionou-nos o conceito de literatura juntamente com a leitura de um texto literário. Palavras-chave: Literatura, Social, Texto.

Abstract: This work aims to bring considerations of some scholars about what is literature. From this analysis of a contemporary text in order to criticize and talk content with what the literature actually provides us with far-will-be. A literature review of Eagleton, Hegel and others, gave us the concept of literature with the reading of a literary text. Keywords: Literature, Social, Text.

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Graduada em Letras - Universidade Federal de Viçosa – MG.

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1. O que é literatura? Revisitando conceitos

N

o capítulo “O que é Literatura?”, o autor Terry Eagleton (2003) se utiliza de diversas abordagens que buscam definir o que é Literatura. Para o autor não existe uma noção do que seja Literário. Depende de como o texto vai ser recebido, do fator ideológico e do processo de leitura e recepção.

Mostrarei aqui os principais argumentos utilizados no texto a respeito do que ‘é Literatura’ e em seguida ditarei considerações a cerca de outros estudos sobre o mesmo assunto. O capítulo inicia mostrando a visão de que muitos têm a Literatura como escrita imaginativa, escrita que não é totalmente verídica, e isto não procede: a própria distinção entre ‘verdade’ e ficção é questionável. Se a Literatura inclui muito da escrita factual, também exclui boa margem de ficção. A Literatura já foi definida por Jacobson como uma “violência organizada contra a fala comum”, afastando-se da fala cotidiana. Para Eagleton, até mesmo a fala comum é composta por uma linguagem que às vezes chama a atenção em sua existência material e não é considerada Literatura. Os Formalistas transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si. O Literário teria suas leis específicas, estruturas e mecanismos estudados por si próprios. A obra não era um veículo de idéias e sim um fato material, eram palavras e não objetos ou sentimentos. Tais estudiosos aplicaram a lingüística ao estudo da Literatura, estudando não mais o conteúdo, mas a forma literária, o conteúdo seria um pretexto para exercitar a forma. “Literário seria deformar a linguagem de várias maneiras”. A Literatura seria um tipo especial da linguagem em contraste com a linguagem comum, é o que causaria ‘estranhamento’ ao leitor. Para Eagleton, há problemas ao pensar ‘em estranhamento’ já que todos os tipos de escrita podem ser estranhos. Literatura pode ser tanto uma questão do que as pessoas fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas. Alguns textos nascem literários e outros vão se tornar Literários com o tempo. Poder-se-ia considerar Literatura também como um discurso não pragmático, que une uma espécie de linguagem que fala de si mesma.

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E mesmo com todas estas afirmações e questionamentos, Eagleton conclui que a Literatura não é definida objetivamente, tal definição vai depender da maneira pela qual a pessoa resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido. Ocorre-me uma percepção de que a recepção é quem vai determinar o que é Literário. As várias Correntes Críticas mostram que há vários pontos de vista que vão determinar da sua maneira, o que é arte, o que é literário. Cito, a título de exemplo, um trecho de um trabalho sobre Vidas Secas de Graciliano Ramos, sobre a vertente dos Estudos Culturais: “Assim, o que fica para os leitores e espectadores de Vidas secas é o lugar social, ou melhor, o não-lugar ocupado pelos retirantes, seres sem pousada fixa no mundo, seja ela geográfica, social, política, cultural.” (PEREIRA, 2009, p. 10). Esse trecho corrobora um pensamento apresentado por Hall (1980), segundo o qual os Estudos Culturais não configuram uma “disciplina”, mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade [...] É um campo de estudos em que diversas disciplinas se interseccionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea, constituindo um trabalho historicamente determinado. (STUART HALL, 1980, p. 07 apud ESCOSTEGUI, 2001, p. 28)

Nesse sentido, acredito que algumas obras vão denunciar algo social, como a obra já citada e outras que vão apenas modificar a linguagem comum sem ter o intuito de denunciar algo. Porém, mesmo que uma obra não denuncie algo ou que o autor não tenha esta intenção, a obra vai tratar sobre um aspecto social, de uma forma ou de outra, pois um artista está inserido em um contexto que o leva a demonstrar algo típico do mesmo. E o leitor crítico é quem vai tomar as decisões frente a o que a obra lhe proporcionou. Portanto, o texto, para ser literário, teria que ser eficaz. A produção Literária tem uma eficácia válida mesmo que a obra não seja um cânone (tem-se com este pensamento uma abertura do conceito do que seja Literário). Toda literatura é social, depende de como será o impacto da obra com o leitor, uma obra Literária pode ter uma eficácia estética, social ou política. Cabe ao leitor adquirir a obra ou como deleite, ou como denúncia, ou às vezes como um simples livro que não lhe causará estranhamento. Para um segundo leitor, no entanto, o que é Literário em uma época pode não ser em outra. É um fator historicamente variável, se as pessoas decidirem

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que se trata de literatura, então, o texto será Literatura, independente do que seu autor tenha pensado. Contudo, o fator social influenciará tanto a obra, no momento de sua criação, quanto a sua recepção - como já mostrado acima, toda Literatura é social. As distintas Correntes mostram pontos de vistas diferentes no que tange ao que a obra tenha proporcionado tanto a Formalistas, Marxisistas, Estruturalistas e Culturalistas, etc. para considerarem a obra sobre seus moldes teóricos. Vai depender do que mais lhe chamam atenção, se é a forma, o conteúdo e como as mesmas se relacionam reproduzindo ou não uma realidade. E assim, surgem também necessidades de estudar a obra sobre teorias distintas. Com a industrialização surgiram os Estudos culturais, ou seja, a própria condição social exige novos pontos de vista para a crítica (os mesmos podem adquiri-los ou não). Como forma de enriquecer este trabalho tentarei expor aqui aproximações frente ao que Raymond Williams, que reflete sobre cultura e, também, ao que Hegel pensa da arte. Em seguida, haverá algumas considerações sobre o conto “Televisão”, de João Antônio. Inicialmente colocarei pontos importantes ao conceito de arte para Hegel e o modo de estudar a cultura de Williams, ambos tratados com suportes teóricos referenciados ao final deste. Ressalta-se que o texto de Williams é posterior à obra de Hegel e que, logo, Williams foi herdeiro dos pensamentos deste. Considerase, ainda, que Williams entende que a cultura seria um modo de conhecer aspecto sócio-históricos; enquanto Hegel entende a arte em progresso, que ocorre de acordo com formas distintas de se conceber a ideia. Ao ler o texto ‘Arte e autonomia: a contribuição decisiva da modernidade’, de Eduardo Cardoso Braga, entendemos que Friedrich Hegel tem a arte como parte importante na sua filosofia. O mesmo combateu a arte como um produto da imaginação intensa, dita dos românticos; para ele a arte transmite a verdade e é passível de ser pensada com a razão. No cotidiano, a aparência esconde uma essência, enquanto na arte a mesma lhe faz parte, fornecendo uma realidade autônoma e verídica. Com a autonomia da arte, o pensamento é capaz de estabelecer critérios para o julgamento estético da “qualidade”.

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No capítulo IV, do volume I, das Preleções sobre a estética de Friedrich Hegel, tem-se que a ideia representada numa forma concreta e sensível constitui o conteúdo da arte. A função da arte seria conciliar, em sua totalidade, a ideia e a representação sensível. Sendo assim, o conteúdo deve se prestar à representação da arte: nenhum conteúdo será representado se o mesmo não for concreto. A qualidade da arte e a conformação da realidade representada com o conceito dependerão da união entre idéia e forma; a obra é ainda mais perfeita quanto mais corresponder a uma verdade. Dialogo, aqui, ainda, com as colocações de Cevasco, sobre a obra ‘Cultura e Sociedade’, de Raymond Williams (1921-1989). Para Cevasco, o argumento da obra modifica a tradição existente “a partir do processo de industrialização no final do século XVIII, onde o modo de pensar a cultura se contrapunha à sociedade, considerando a primeira como um espaço autônomo a salvo dos conflitos da vida real”. Havia uma preocupação na expansão dos meios de comunicação e o que isto refletia para os detentores da alta cultura. Nesse contexto, para Eagleton, havia uma maneira natural de estudar Literatura e Cultura, que era disseminar entre os menores sua visão do que seriam as realizações do espírito, as que continham os valores humanos ameaçado pela cultura de massa. A obra passa a ser vista como um fim em si mesma e acima dos conflitos sociais. Williams construiu uma nova tradição tendo a cultura como um ‘símbolo’ de significados e valores de uma sociedade. Para o autor, fazer crítica é mais do que avaliar obras, é um instrumento de descoberta e interpretação da realidade sócio-histórica inscrita na produção cultural. A ideia é a de que a Literatura não só reproduz os sentidos criados socialmente, mas o produz contribuindo para transformá-los. Sendo assim, surge uma nova disciplina no campo universitário: os ‘Estudos Culturais’. O interesse era enfocar os novos produtos culturais que invadiram a sociedade, as práticas da vida cotidiana começaram a ser estudadas. Nesse ínterim, a obra de Williams é importante, pois se trata de uma abordagem materialista da cultura: a obra de arte tem relação com a sociedade, existe o mundo e a obra é uma forma, assim, o crítico mergulha no interno e externo para a análise de uma

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obra. A tradição olhava os objetos separados da formação social, este era o pano de fundo e as obras eram como ilustrações da vida real. A invenção da teoria dos Estudos Culturais embute a idéia de trabalhar com a linguagem tradicional, arte e sociedade como interconstituídas, com propósitos comuns. A obra Literária seria uma forma de conhecer e saber sobre o funcionamento social. Entender a arte nos faria entender o social, podendo então transformá-lo. Hegel trata de falar da arte enquanto Williams discute sobre a cultura, mas ambos tratam as mesmas como ‘objetos de estudos que se relacionam’. Em Hegel a arte figura, com seus próprios meios, a realidade da vida cotidiana. A arte é tida como um objeto de contínuo enriquecimento espiritual da consciência da humanidade. É como se a arte em sua unidade sensível trouxesse o concreto da vida real, dando liberdade ao receptor de adquirir ruptura e retorno ao cotidiano, daí a autonomia da arte. Em Williams, estudar a arte nos permitiria entender o social para então transformá-lo, a Literatura reproduziria os sentidos criados socialmente. Para Hegel, quanto mais perto da verdade, mais belo - e o Belo é o ser da arte. Tanto Hegel como Williams entendem a arte como um ‘objeto’ de enriquecimento do ‘pensar’.

2. “Televisão”, de João Antônio, e o estatuto do literário

No Conto “Televisão”, da obra ‘Abraçados ao meu rancor’, de João Antônio, percebe-se um conteúdo social contemporâneo que é apresentado com uma linguagem prática e dinâmica, não há um descritivismo do narrador. Do foco na mulher passa-se a focar no personagem homem como numa ‘troca de canal’. Identifica-se uma economia de dados própria do narrador contemporâneo, que ora trata o homem como ‘herói, poeta ou Jacarandá’. Há no desfecho uma violência banalizada, e que não reflete nenhuma transformação, não ocorre por um desgaste no âmbito social, mas por uma briga familiar. Alguns pontos chamam atenção no que tange à construção desta narrativa:

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Só o homem possui uma referência maior sendo nomeado de formas distintas, enquanto a mulher era apenas mulher e esposa e os filhos eram ‘os maiores e os menores’.

A violência no desfecho esvazia o discurso político, discurso este que a própria televisão transmite à sociedade. O conto inicia-se com o personagem Jacarandá tendo uma idéia fixa de plantar

menta, logo plantar arroz, feijão, milho ou trigo não seria boa coisa, seu ideal era plantar menta. Porém, percebe-se que para tal idealização precisava-se conseguir um empréstimo do banco, e o mesmo não consegue: O herói empacara com a idéia da menta. Mas os gerentes que há dez anos o recebiam com honrarias agora o despediam, incomodados, um riso amarelo. Os agiotas encolhiam-se ou lhe exigiam juros altos. Antigos amigos e conhecidos, que antes lhe estendiam camaradagens, assim que o viam cortavam sérios e rápidos para o outro lado da rua. Se o pinta não levantasse um empréstimo seria tarde para tudo. (FERREIRA FILHO, 2001, p. 63)

Notamos que no conto há uma crítica à televisão e ao consumismo presente na sociedade, o ‘herói’ quando não consegue o empréstimo começa a vestir-se com roupas nunca usadas que estavam no guarda-roupa, enquanto sua esposa desconfiava de traição (afinal, a boa aparência é ‘essencial’ para se conseguir algo na sociedade, mas quando se é pobre, ainda assim não se consegue). O homem tem vergonha de sua situação e não conta sobre seus fracassos em sua tentativa de arrumar dinheiro. Enquanto isso a televisão mostra a ‘perfeição’, e Jacarandá assiste-a acreditando nunca ter visto aquilo em lugar nenhum: Todos os gerentes de bancos prometiam facilidade, jovens, bem vestidos e melhor falantes, bons cidadãos em dia com o imposto de renda, e insistiam em esclarecer que os estabelecimentos bancários eram uma espécie de segundo lar. Estendiam sua proteção a todas as criaturas desvalidas. (FERREIRA FILHO, 2001, p. 66)

João Antônio escreve o conto com uma linguagem bem próxima da linguagem tradicional e cotidiana das pessoas, fazendo com que o leitor seja projetado à realidade de Jacarandá. A arte serve aqui como um retorno ao nosso cotidiano e tomada de consciência. O desfecho é inesperado, porém serve de crítica a uma política pregada pela televisão, mas que não acontece de verdade. Ao atirar na televisão mostra-se que Jacarandá não é alienado, ou seja, o discurso midiático não o atingiu, mas infelizmente

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a realidade é quem lhe fez pensar diferente. A escrita do mesmo tem veracidade ao mostrar uma cultura de poucos, o personagem chega à conclusão que os bancos emprestam para quem já tem dinheiro de sobra, grande contradição, e em meio a tantas dificuldades, a televisão se mantém num discurso de perfeição, na verdade, inexistente. Contrapondo aqui os trabalhos de Williams e Hegel percebe-se que no conto de João Antônio, os conteúdos sociais se dão na forma e os nossos sentidos vão perceber esta forma. Hegel entende arte em progresso, que parte da arte menor para uma arte maior, sendo as formas: Simbólica (Arquitetura – seria uma arte abstrata), Clássica (Escultura- seria uma arte corpórea) e Romântica (Pintura, música e poesia – caracterizada pela subjetividade) todas são formas gerais da idéia do Belo em desenvolvimento. A arte Romântica é a mais próxima do nosso contemporâneo, e Hegel propõe que se pense a arte em sua evolução, mas então, como é possível pensar a arte de hoje a partir do conto já citado? Como os conteúdos sociais se dão na forma nos dias de hoje? No

conto

“Televisão”

podemos

perceber

características

da

arte

contemporânea, o mesmo tem visualidade, objetividade e mostra a rapidez do nosso mundo (como já analisado acima). As várias identidades como a de Jacarandá são características do homem moderno, que precisa ser pai, herói e trabalhador ao mesmo tempo. O conteúdo do conto não se dá independente da forma, só podemos analisálo diante da forma, o próprio conteúdo requer aspectos formais. Hegel pensa a arte do ponto de vista da evolução, a forma e o conteúdo são históricos e depende da história do pensamento. A objetividade presente no conto não é a mesma objetividade do Realismo de Machado, por exemplo. Pensar que a objetividade não é a mesma é entender que não se perdeu a relação entre idéia e forma, mas sim que houve uma evolução do pensamento. Poderia outro autor conceber o conto de João Antônio de outra forma. A evolução das representações artísticas dependerá das diferentes maneiras de conceber a ideia. No conto “Televisão”, o social é o concreto representado no abstrato sensível da arte, portanto a forma não é uma abstração sem conteúdo. Na arte contemporânea a linguagem se próxima ainda mais da linguagem tradicional e da agilidade do mundo

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moderno, característicos do conto de João Antônio. Seria uma abordagem culturalista no pensar a influência/cultura da televisão representada na arte, ou seja, os nossos sentidos reconhecem a ‘televisão’ com significados e valores dentro da nossa sociedade a partir da leitura do conto.

Referências BRAGA, Eduardo Cardoso. Arte e autonomia: a contribuição decisiva da modernidade. Disponível em: http://www.edubraga.pro.br/estetica-aesthetics/arte-e-autonomia-acontribuicao-decisiva-da-modernidade/. Acesso: 15/06/2014. DUARTE, Rodrigo (org). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. p. 149 – 171 EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 01-22. FERREIRA FILHO, João Antônio. Televisão. In: Abraçado ao meu rancor. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 62- 66. PEREIRA, Maria do Rosário Alves. Literatura e cinema: Vidas Secas. In: Darandina Revista eletrônica. UFJF, volume 2, número 3, 2009. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina/anteriores/v2n3/art/. Acesso: 15/06/2014. WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo – contra os novos conformistas. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

Aceito em 13/10/2014.

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Narrativa – uma fantasia J. B. Donadon-Leal 1

H

á muito vejo a narrativa não como gênero discursivo ou tipo de texto, tomado que fui pela reflexão semiótica como opção de estudos, a partir da qual meu olhar percebeu na narrativa uma superestrutura que se faz

esqueleto de todo e qualquer tipo de texto. Se o Formalismo Russo aludia a uma possível esquematização universal da narrativa, enunciando um problema que se lança em uma trama ou um conflito levado até a exaustão na busca de uma resolução do problema inicial, arrisco, ancorado na Semiótica greimasiana e na Linguística Textual, um palpite de que esse esquema narrativo acha-se presente em todo e qualquer tipo de texto; daí, a narrativa ser constitutiva da textualização, atribuindo a este caráter, personalidade. Sem problema um tema não se apresenta para a enunciação. Uma vez instaurado um problema, ou um tema, este é delimitado e posto em conflito, expandido, discutido, instigado, argumentado levemente ou até a exaustão. Feito isso, uma solução se apresenta que, ou resolve o problema ou leva a resolução para uma nova disputa enunciativa. Essa transferência de espaço a ser ocupado pela narrativa torna-a desafiadora, para além das fronteiras de um possível tipo de texto, o de relato, seja na ficção, seja na história, seja no jornalismo, e alcança o texto, seja ele que texto for. Dessa forma, narrar é mais do que simplesmente relatar. Eis que um problema da vida social e cultural da contemporaneidade brasileira advém dessa esquematização – a estratégia do conflito. Assim, toda possível resolução de conflitos em uma narrativa revela o sentido global dessa narrativa. Não me parece mais possível qualquer empreendimento discursivo ser pautado no consenso; tudo se dá no conflito, que se mostra na necessidade social de réplica. – Êta, juventude respondona!, dizem os mais velhos. A replicação como forma de instalação do conflito, Doutor em Semiótica pela USP, Pós-doutor em Análise do Discurso pela UFMG. Professor do Curso de Comunicação Social da UFOP. Membro da comissão editorial do Jornal Aldrava Cultural. 1

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seja com base numa experimentação flexível, dessas derivadas da descrição ficcional, exercício de espírito, seja numa experimentação institucionalizada, presa a um suporte científico, por exemplo, revela o ficcional, exercício de espírito, seja numa experimentação institucionalizada, presa a um suporte científico, por exemplo, revela o Sujeito em suas reivindicações discursivas. Por outro lado, a ideia de conscientização que se estendeu pela política sul-americana, também não é mais possível no discurso contemporâneo. Toda e qualquer força modeladora, seja a do consenso, seja a do trauma da conscientização, ou do enquadramento a modelos, não se pode ver tolerada nos discursos brasileiros contemporâneos, pois se houve construído o poder de decidir, como resultado do sonho de espontaneidade, de autodeterminação, de autogestão e de criatividade desenvolvidos pela educação brasileira desde a abertura política, como indício de livre expressão democrática numa espécie de desordenação da ordem autoritária. Nesse movimento entre a desordem do sonho e a ordem institucional está o paradoxo da vida contemporânea – instalar-se no limiar do Sujeito: livre, mas institucionalizado. Esse Sujeito paradoxal só se instaura no conflito. Por um lado observa e armazena dados da realidade mascarada ou reforçada pelas instituições, em forma de conceitos e valores. Por outro lado, como resultado dos conceitos e valores recebidos, processa a fantasia, imagem de realidade que o cerca, a partir das exigências comportamentais erigidas pela educação oficial, institucionalizada, que são as de pôr todos os valores vigentes em xeque. Como manter o funcionamento das instituições modificando-as? O sonho de vida em estabilidade parece cada vez mais distante da vista do homem contemporâneo. A solidez das instituições dá lugar para espaços de conflito. O dirigente intransigente dá lugar ao flexível, de olho na economia de mercado e à divisão social do trabalho. Aquele que decidia sozinho percebe agora que os outros também têm o poder de decidir. Nem um, nem os outros, no entanto, podem se deixar dominados pela vertigem de uma liberdade selvagem, pois todos se devem inventados pela liberdade civil, numa reinvenção do Contrato Social de Rousseau jogada no artigo quinto da constituição brasileira. Se a instauração discursiva depende da problematização, ou do conflito, mesmo nos relatos banais da vida cotidiana, tais como “você viu hoje na TV que...?”;

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“ouvi na rádio que...”; “fulano me contou que...”; “um amigo do meu filho disse que...”; “li no jornal que...”, numa espécie de transferência da responsabilidade de ter dito ou de ter visto alguma coisa, transferida como grave para aquele momento da vida social. A gravidade da questão é a fantasia do fato, uma imagem reconstruída pelo espírito, ou uma dramatização do fato que se faz, não mais um simples fato, mas um evento social, com repercussão e reflexo em algum aspecto da rotina, ameaça ou iminência de perigo. Após instalado o conflito e o alerta ao iminente perigo, com a exposição ou apresentação do problema, o narrador se vê autorizado a emitir uma opinião sobre o problema. Mais que isso, ele se vê cobrado no jogo enunciativo como aquele que deve opinar. Não se trata de exercício intelectual definido por uma metodologia, mas um exercício social do discurso em suas situações banais e descontraídas. São as intervenções tais como: “o que você acha disso?”; “você concorda com isso?”; “você não vai dizer nada?”. Trata-se da expressão do poder de decidir dado a todo e qualquer enunciador, em seu exercício de liberdade civil. O convívio social não tolera a existência do indivíduo sem opinião. Somente o Sujeito, aquele que tem o poder de decidir, aquele que opina e interfere, percebe a ameaça ao estabelecido ou preconiza uma mudança. Embora pareça banal a ideia de o Sujeito tomar do outro a informação inicial para a exposição do problema e de ser, posteriormente, impelido à opinião, esse exercício não representa a simplicidade. Trata-se de um fazer automático, portanto de algo não percebido, pois irrefletido. No entanto, a opinião é recortada por uma espécie de parástema, termo filosófico que designa alguma coisa que está aí para ser descrita, mas que só se permite indiretamente, não pela descrição do fato ou da coisa, mas da imagem que se tem dela, pela fantasia, conforme disposição do espírito. O Sujeito se predispõe a opinar em função daquilo que se apresenta como bom. Uma má notícia leva o Sujeito a buscar uma opinião direcionada para o conforto àqueles que se prejudicaram com o fato, para o caminho de uma resolução, para que aquilo não mais ocorra e, assim, não cause novos prejuízos a outrem. Há nos discursos sociais uma negação explícita ao ruim, ao mal. As virtudes sociais, consórcio de discursos estatais

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e religiosos, produzem sujeitos em busca do que é bom, ou do bem, não daquele bem individual, mas do social. A construção do conflito, base da narrativa, se dá, portanto, no choque de opiniões. O direito de opinar, ou o poder de decidir se dá na mesma medida a todos os participantes do jogo enunciativo. Embora os participantes cubram a opinião e, por consequência todos passem a ter o dever de opinar, cada um é livre para opinar. Essa liberdade derivada da obrigação de opinar é dada no próprio jogo, a saber: “você é contra ou a favor?”; “você concorda ou discorda?”; “você vê o que eu vejo?”; “o que foi que você viu?”. Nesse paradoxo, ser obrigado a opinar, mas ser livre para opinar, o conflito da opinião como resposta se instala como fundação do discurso e estruturação da narrativa. Universos discursivos atuam como constrangimento ao Sujeito livre para opinar. A experiência discursiva vai orientar a expressão da opinião de acordo com o que o senso comum chama de prudência. Entre governistas é prudente que não se fale mal do governo; entre oposicionistas é prudente que não se defenda explicitamente o governo. Para os governistas o opositor está com inveja, despeitado; para os oposicionistas o defensor do governo é puxa saco, pelego. É o Universo Discursivo (UD) do fanatismo por um clube de futebol que proíbe a presença, por exemplo, de um torcedor no Mineirão, para assistir ao clássico mineiro, com a camisa do Cruzeiro entre a torcida do Atlético. Opinar pressupõe assumir um UD determinado, uma religião, uma tendência política, um time de futebol, uma corrente científica, uma marca de sabão em pó, uma tipologia alimentar, uma forma de vestir. A sustentação e a afirmação de um UD significa notadamente a desqualificação do outro. Daí a experiência discursiva conclamar a prudência como mediadora do Por outro lado, uma vez constituído esse Sujeito que se afirma conforme as vozes de UDs específicos, capaz de desqualificar os diferentes, seu olhar passa a focar toda e qualquer paisagem sob a vigilância desses UDs. A expansão da parástema ao que é bom para o Sujeito instala a seleção dos valores das coisas. Aquilo que pertence ao UD do Sujeito tem mais valor do que aquilo que não pertence. Seu partido político é melhor, sua religião é melhor, seu time é melhor, sua alimentação é melhor, seus hábitos são melhores, sua mãe é a melhor. Escolares adolescentes toleram

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provocações, mas não toleram que a mãe seja ofendida. Quando a mãe é citada, por regra, a agressão física se instala. A punição ao árbitro de futebol, já que não é permitida a invasão ao campo para agredi-lo fisicamente, é a torcida em coro gritando: “filho da puta”. A defesa de interesses específicos gerados por UDs específicas instala o conflito discursivo pela ininterrupta construção de narrativas mantenedoras desses jogos discursivos. É nesse contexto de conflito de UDs que nasce a discussão acadêmica sobre as divergências e as convergências entre as narrativas ficcionais e as históricas. Se de um lado toda e qualquer manifestação discursiva faz-se na exposição de um problema a partir da fantasia de um evento, em que a imagem que se descreve não é exatamente a do objeto ou a do evento físico, mas a do sentimento percebido pelo espírito diante desse objeto ou evento, este que é construído por UDs específicos, indiferentemente, então, um evento pode ser narrado por livre exercício do espírito, como o faz o cidadão comum e o ficcionista, ou por exercício metodologicamente determinado por uma instituição acadêmica, como o faz o cientista, o historiador ou o jornalista. O fato de o cidadão comum e o ficcionista terem o relato e todo o conflito nele inscrito como livre exercício do espírito faz com que eles sejam personagens privilegiados da história, uma vez que seus relatos e seus conflitos criam fantasias, imagens capazes de interferirem no rumo da história, pois processam as opiniões que circulam em grande escala e sem delimitações ou fronteiras. Esse descompromisso com a verdade a formula e reformula a todo instante, pois toma as virtudes circulantes na sociedade e as confronta com os males que se tematizam e se querem transformados em fontes do bem. Essa tematização emana-se do fluxo descontínuo da linguagem, com todos os seus lapsos, ruídos, divagações, retomadas, equívocos, hesitações, perda do fio narrativo, interrupções, mudança brusca de tema... Assim, o cidadão comum é Sujeito da história, ao ser o Sujeito da fantasia em seus relatos, igual ao ficcionista, que, embora envolvido por textos institucionalizados (poesia, conto, crônica, romance e suas variantes estilísticas), aqueles que caracterizam a tipologia de textos constituintes da literatura, é Sujeito dessa mesma fantasia, emoldurada pelo descompromisso com a verdade, mas Sujeito de confrontação das virtudes circulantes e em transformação. Se há uma fundação para todo e qualquer

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discurso, essa fundação é o exercício descritivo do espírito, capaz de compor a fantasia que tematiza todos os conflitos discursivos em uma sociedade. Esse exercício próprio das enunciações do cidadão comum é instaurador da enunciação ficcional, ou seja, do conflito próprio na narrativa. Por outro lado, há no debate desta novel revista uma narrativa formalmente comprometida com alguma instituição. Trata-se da narrativa do historiador, a dos documentos cartoriais, a do jornalismo, a dos tribunais. Enquanto o cidadão comum e o ficcionista deixam-se livres a relatar conforme o fluxo da fantasia jorra, a narrativa do historiador é presa a um exercício de método intelectual sob vigilância. Enunciadores cerceiam e controlam o andamento discursivo. Esses enunciadores são as vozes institucionais que emergem dos conceitos científicos, das teorias, do próprio método. Já que o itinerário a ser percorrido pelo narrador historiador é similar ao do cidadão comum e o ficcionista, o que o caracterizará como historiador é o controle que o método dará ao próprio relato do evento problematizado e à formulação da opinião. Esses não serão mero resultado do jogo discursivo do poder de decidir, ou o de ser livre para opinar. O vetor a ser seguido é o do relato que considere as diversas fantasias disponíveis nos relatos remanescentes do livre exercício do espírito, arquivos das reclamações do cidadão comum, das narrativas ficcionais em confronto com os arquivos das narrativas institucionais – científicas, jornalísticas, jurídicas, cartoriais, etc., como forma de constituição de uma descrição de eventos capaz de gerar novas fantasias. Claro que nenhum método da investigação histórica vai garantir a reconstituição do evento. A não ser o intento da polícia técnica e de alguns métodos positivos, os demais investigadores da história reconhecem suas limitações e perdas derivadas do tempo. Há, no entanto, algo aparentemente claro, que é o fato de um relato do cidadão comum ou do ficcionista ser fantasia derivada de fantasia, enquanto o do historiador é uma narrativa que se pretende tão próxima quanto possível do evento em si, respeitadas as reconhecidas perdas temporais e espaciais e as do próprio relato, para que ele seja referência para novas fantasias. Se de um lado o cidadão comum e o ficcionista lançam-se a citações de ditos populares, de matérias jornalísticas,

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do ouvir dizer que, ou de outros relatos de qualquer origem, o científico, ou histórico, prende-se a citações justificadas pelo método. O recurso da citação atribui autoridade ao que se diz. Se as conversas banais se autorizam pelos: “você viu hoje na TV que...?”; “ouvi na rádio que...”; “fulano me contou que...”; “um amigo do meu filho disse que...”; “li no jornal que...”, aquilo que se diz na sequência é autorizado pelo prestígio da fonte. A narrativa histórica caminha pelo mesmo processo. A citação neste caso restringe-se àquela autorizada pelo recorte argumentativo de justificação do processo ou evento inventariado. A fonte da citação deixa de ser mero pretexto para o fluxo do exercício do espírito, para ser documento, prova, pista ou indício de evidenciação do evento narrado. Normalmente o historiador recorre a autoridades que justifiquem o método, portanto a Locutores, seres de prestígio que atestam, autorizam conceitos ou afirmações, credenciados teoricamente, para conferir ao tema a sua inscrição a uma corrente teórica, sua institucionalização discursiva e, em seguida, a Locutores que participaram do evento narrado, seja como protagonistas ou como relatores privilegiados. Deste segundo grupo de Locutores, os primeiros são os que têm voz nos eventos, cujas fotos, escritos, filmes, gravações sonoras tenham sido arquivados como prova e os segundos são os que têm voz como observadores; jornalistas, artistas, policiais, escrivães, juízes, depoentes... Trata-se de um exercício intelectual minuciosamente administrado por método criterioso. Tal a liberdade do exercício do espírito, que o ficcionista pode simular o fazer do narrador histórico. Aliás, antes que o Séc. XX consagrasse o olhar científico com seus discursos institucionalizados, inclusive o discurso da história, o relato dos eventos marcantes da vida social e dos grandes atos heróicos da humanidade, ou do arquivamento na memória dos grandes mitos, deu-se, em grande parte, na literatura. Tal a relevância da ficção na própria história que as citações mais comuns, sejam as dos cidadãos em suas falas cotidianas, dos ficcionistas em suas produções e parte considerável das citações na escrita histórica são derivadas de textos ficcionais. Mesmo com o prestígio acadêmico e refinamento dos métodos da investigação histórica e igual rigor e refinamento nos métodos da investigação jornalística e seus consequentes textos de divulgação, a ficção se mantém como olhar da liberdade sobre os eventos percebidos pelo grande público ou sequer notados por ele. Esse olhar de liberdade,

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exercício do espírito e relato que parte de uma parástema, constitui a verdade que o sentimento de alguém capta de um dado momento histórico. Ele revela a verdade, mas a verdade ditada pela fantasia. De qualquer forma, para o discurso da história, em função dos métodos, qualquer fonte única não será possível. A fantasia do relato ficcional pode e deve ser utilizada pelo historiador como fonte, óbvio, em consórcio com todas as outras fontes que se fizerem disponíveis na investigação do evento. Nesse sentido, parece necessário caminhar o debate sobre narrativas na direção das impropriedades constatadas nas novas formas de dizer o mundo, especialmente nas jogadas nos suportes tecnológicos das plataformas digitais. Os textos, sejam aqueles que discutem diretamente a questão das fronteiras e das imbricações das variadas formas de textualizar, sejam para darem suportes a mídias científicas, históricas ou jornalísticas, revelam a incompletude de qualquer linguagem que não considera a fantasia como possibilidade real na textualização de eventos ou de conceitos. A fantasia se dá nos aspectos captados pelos sentimentos e pela instantaneidade derivada do automatismo da fala livre do cidadão livre que encena o Locutor que lança mão de repertórios construídos na sua historicidade de vida, quando escreve para a ciência, para a história ou para o jornal; muito próxima dos relatos do imaginário cotidiano; embora aspectos determinados por projetos institucionais forjem métodos e recortes teóricos. Em qualquer caso, nos processos de construção textual apenas metonímias dos eventos serão reveladas, nunca a sua metáfora, nunca a sua completude. Por ser constitutiva da textualização, a narrativa carrega em si as marcas da personalidade do seu Locutor. Daí o prazer do ficcionista, do cientista da história ou do jornalista: há sempre um ponto ainda não revelado, há sempre uma metonímia escondida, a espera de um olhar capaz de capturar algo mais, aquilo que cada retina capta de forma específica, para além das convenções. Esse ponto específico promulga a fantasia de um conflito, motivo para a inicialização de uma narrativa, pela ligação desse ponto a outros pontos suspensos na memória das coisas não resolvidas nos nossos vastos Universos Discursivos.

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PROSA, POESIA E ARTES


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Água Marcos Vinícius Almeida

J

oão pedala o mais rápido que pode. Não quer ficar para trás. Mas é um menino de pernas curtas e os pés escapam ao giro dos pedais e encontram o vazio. Duas lascas amarelas de um galão de plástico presas ao garfo dianteiro da bicicleta. Barra-forte azul. Segunda mão. Câmbio de doze marchas adaptado e pneus aro vinte já apodrecidos nas

bordas. Batem contra as raias e entoam o som de um ventilador defeituoso. Mas pode ser também o som de uma turbina. No mundo de um menino um barulho pode ser qualquer coisa. A nuvem de pó cresce à frente e há os gritos e os pneus girando sobre o cascalho e ele tosse e respira e tosse. Quase vai ao chão sob a lambada de baques e solavancos de buracos e pedras e toras que brotam de repente do solo. Os olhos cheios d’água piscam – piscam – e piscam. Nada ajuda. Gritos e risadas se afastando. Correntes lubrificadas com óleo de cozinha logo embucham e depois estalam como mordidas de metal contra metal. A testa encardida do pó dessa terra cor de sangue. Limpa o suor com as costas da mão. Depois da descida a estrada corta a serra ao meio. Uma subida íngreme e cheia de pedras e com valas rasgadas por enxurradas e serpenteando o caminho de uma ponta a outra. Há uma paineira no sopé do morro e uma bica d’água entre os bambuzais. O ar parado e o estalar das moitas lutando contra o próprio peso. Bolas de paina caem lentas como se a gravidade as ignorasse e a paineira derrama seu branco até o meio da estrada. Uma depois da outra as bicicletas derrapam no cascalho e são arrastadas até a sombra e jogadas na grama. Os meninos descem e vão encher as garrafas d’água. Arrancam as camisas e batem contra o corpo e passam no rosto tentando arrancar a poeira. João chega por último. Pega sua garrafa e entra na fila. As painas caem na água e são arrastadas pela velocidade do pequeno córrego que desaparece sob a infestação de taiobas jurássicas. A nuvem de pó na estrada se dissipa sem pressa e os outros meninos já deitados na grama olham os galhos ressecados e cheios de espinhos lá no alto e pipocados de branco. Parece algodão, alguém diz.

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João molha o rosto e limpa a testa mais uma vez. Um bando de urubus voa em círculos no topo da serra. Alguns tão alto que parecem minúsculos fios de cabelo perdidos e escorregando no céu. O vapor que a terra exala distorce e tremula os morros próximos do rio. João enche sua garrafa até a borda e bebe dois goles afoitos e enche outra vez. A água é fria e há um bando de girinos nadando no córrego onde a bica deságua. Confere a corrente da bicicleta. Não devia ter usado óleo de cozinha. Cata um monte de paina e começa a limpar. Um homem surge no alto do morro. Vem caminhando na direção dos meninos e sem pressa. É uma figura miúda no canto da estrada. O sol das duas fervilha num azul pálido e sem nuvens. João olha para os outros meninos que olham de volta e olham uns para os outros. Ninguém diz nada. O homem continua avançando sem pressa. João se lembra de sua mãe dizer para tomar cuidado com viajantes e andarilhos. Homens sem lugar. Gente sem raiz é nada, ela sempre diz. O homem ainda está longe. João é o primeiro a se levantar e ficar de pé olhando o homem se aproximar. Todos se calam e já dá para ouvir o barulho dos passos no cascalho. O homem usa um boné amarelo com números desbotados de eleições imemoriais. Um tênis de cano alto com a língua caindo para fora e a calça sem cor definida tem um buraco no joelho direito. O semblante é amistoso. A barba cinzenta e desgrenhada e coberta de pó esconde a boca. Os olhos azuis lembram as chamas de um fogão a gás. Boa tarde, o homem diz. Os meninos respondem de forma descompassada, como se cada um tivesse um ritmo próprio para lidar com a situação. Posso encher minha garrafa? Claro, diz João. O homem tira a lona das costas e coloca na grama. Assovia. Parece feliz. Pega um litro descartável vazio e sujo de poeira. Há um leve cheiro de fezes misturado ao suor. Ele se agacha próximo da bica. Deixa o litro de lado e lava mãos. Tira o boné e joga um pouco d’água na cara e no cabelo e depois outra vez na cara e coloca o litro para encher. É água boa, diz. Olha a quantidade de girino aqui. Se a rã coloca os ovos aqui, é porque é vivo, não tem veneno, não tem perigo nenhum. Se fosse ruim, não tinha nada. O senhor é andarilho?, João pergunta. 60 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


Meu nome é Elias. Pega o litro e bebe quase a metade e limpa a boca com as costas da mão e coloca o litro outra vez para encher. Nosso corpo é pura água. Tem mais água do que terra no mundo. A gente acha que é terra porque os olhos enganam a gente. Mas a verdade é que tudo é feito de água. Você corta o dedo, o que sai? Sangue, alguém diz. Mas o sangue é água, só a cor que muda. Se você for lá no meio daquele pasto e pegar uma enxada e furar um buraco e for cavoucando a terra que é seca e puro pó fica molhada e cada vez mais molhada até virar água. Se cortar uma laranja no meio, é pura água por dentro. Até dentro da mulher quando a gente coloca o dedo é molhado. E quando a gente goza e gera um filho é na água que ele cresce. E quando vai nascer a água da bolsa escorre nas pernas da mulher e avisa. Já viu um defunto? Só na televisão, alguém diz. E como ele é? Ah, tem o olho afundado e é branco. É seco, diz o homem. O litro descartável está cheio. Ele levanta e senta-se na grama junto dos meninos. Bebe um gole d’água. Tira um baseado do bolso e risca o isqueiro e começa a fumar e tossir e traga outra vez. Alguém conhece São Paulo?, ele pergunta. Já viram como são os rios lá? Mortos. E as pessoas não se olham nos olhos e matam por mixaria. Medo e ódio. A água é boa, mas também é ruim quando precisa. A água se vinga. Quando chove é tudo revirado e carros são arrastados e as pessoas se desesperam tentando entender o que aconteceu. Não tá claro? De onde o senhor veio?, João pergunta. Da estrada. E vai pra onde? São Tomé das Letras. Talvez. Tenho um amigo lá. Faz dez anos que não vejo ele. Mas depende muito.

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Ele molha os dedos na ponta da língua e apaga o baseado e guarda no bolso. Então se levanta e olha para João. Você, menino. Eu conheço esse seu jeito. Conheço bem. O homem joga a lona nas costas e abana o boné e começa a andar. Os meninos se cutucam e riem risos abafados que logo aumentam à medida que homem se afasta. Alguns já o imitam. Mas João não para de olhar para o andarilho. Um caminhão três quartos surge na estrada e arrasta uma nuvem de pó que não tem pressa em se dissipar. Um menino do tamanho deles vem na carroceira sobre as latas de cinquenta litros que batem umas contra as outras e se misturam o som da madeira se vergando. O caminhão buzina quando passa por eles e os meninos respondem com gritos e assovios. E o menino na carroceira levanta o braço, mas logo abaixa, segue olhando para frente na estrada. O andarilho olha para trás e para na beira da estrada esperando o caminhão alcançálo. Parece tudo combinado ou aquele homem já sabe bem como esse mundo funciona. O caminhão reduz a marcha e o homem tira o chapéu e se aproxima. Enfia a cabeça pela janela e aponta para o alto da serra e faz curvas com as mãos e sinais com os braços e solta uma risada. É muita sorte. Coloca o boné na cabeça outra vez e joga sua trouxa na carroceria e sobe num golpe só. O caminhão acelera e aos poucos vai vencendo a serra. O barulho das latas rebatendo umas contras as outras diminui até sumir. Os meninos pegam as bicicletas e riem e começam a pedalar e a nuvem de pó sobe outra vez e outra vez João vai ficando para trás. Ele deixa a bicicleta à beira da cerca de arame farpado e corre atrás dos outros meninos, já do outro lado, correndo na direção da água. É verde e cinzenta sobre as pedras e quando chove tem cheiro de barro e os pés grudam no fundo – cheio de folhas – grudam feito um lençol coberto de lesmas. Margeando o rio há uma floresta de candeias e caviúnas – troncos retorcidos e esguios – como se tivessem crescido se esgueirando sob as frestas de um peso invisível. Vez ou outra aparece uma vaca. A língua é grande rosada e lambe o sal grudado no pelo e bebe um pouco d’água e desaparece abandonando só o rastro. E então aparece outra vaca e talvez seja a mesma e João continua junto dos outros meninos. Espera sua vez de subir. A correnteza é fraca mesmo quando chove e basta mergulhar de uma vez. Não é complicado. Suas braçadas são descoordenadas e sempre se esquece de bater as pernas, mas 62 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


a distância é curta e o próprio rio o conduz e seus pés tocam as folhas e então já está na areia outra vez. E ele espera e sempre espera a mesma coisa de sempre. As únicas embarcações nessas bandas são um bando de canoas de um bando de funcionários aposentadas da Prefeitura. Um monte delas. Afundadas. Correntes brotam do fundo do rio onde o rio é mais calmo e costuram as margens de fora a fora amarradas a árvores e pedras. E na cabeça de um menino de dezesseis anos a cena toda é de um punhado de âncoras cravadas até o talo e bem fundo onde os olhos nunca alcançam. Quando chove e depois faz sol como hoje esses dois caras magrelos e cabeludos com tatuagens verde azuladas de tribais borrados aparecem com uma mochila nas costas e uma sacolinha na mão cheia de cogumelos. Os caras de tatuagem não sabem muita coisa além de dois ou três canais de TV aberta, blogs anarcopunk’s, torrents de vídeos de cabeças decepadas com machado dos cartéis mexicanos, a discografia do AC/DC e a camiseta com o rosto de Peter Tosh pintado à mão. E a alegria da garrafa de cachaça debaixo do sol – morna feito café. Mas sabem que o fundo de um rio é um mundo e a areia é traiçoeira e sempre se move e nunca está no mesmo no lugar. Eles param na outra margem do rio e acendem um baseado e assistem os meninos desse lado pular. Veja só esse gordinho do cabelo loiro esfumaçado e franja caindo nos olhos e bermuda vermelha apertada e com as ancas cobertas de estrias e os joelhos apontados um para o outro. O nome dele é Rafael e ele precisa de ajuda para escalar a árvore. O resto dos meninos ri e os caras cabeludos de tatuagem na outra margem também. O gordinho também acha graça. Veste um riso cheio de resignação e tédio precoce de quem já viveu em uma quinzena de anos a frustação e aceitação total das forças obscuras do mundo tal como é. Mas o gordinho é também um sujeito enfezado e quer provar que é o bom e que ainda há esperança e salta com tudo e de ponta cabeça. No ar: uma grande rã albina e desengonçada rumo ao fracasso total. E todos ainda estão rindo quando a cabeça do gordinho bate com tudo – num banco de areia. O chiado das águas e os gemidos do gordinho são tudo. Os caras de tatuagem na outra margem do rio agora estão de pé e um deles coloca a mão sob a testa para afastar o sol e tentar descobrir o que aconteceu. O gordinho está no chão. Os meninos se movem dispersos e se aproximam e depois se afastam e rodeiam o corpo e se agacham hesitantes. Exatamente como um bando de meninos diante de um fato além da sua compreensão. Um dos meninos se levanta e olha para os caras de tatuagem e faz um sinal. Então os outros meninos também erguem os braços e chamam e gritam e alguns 63 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


até choram. Os dois caras de tatuagem saltam na água com roupa e tudo e avançam em lentas braçadas. Eles encontram o gordinho deitado, a cara suja de areia e os olhos recolhidos. As pálpebras se movem em espasmos e o pescoço descreve um ângulo estranho. A pele ao redor tem um tom roxo pretejado – roxo berinjela – como se tivesse sido apanhado de surpresa pelo golpe seco de uma forca. *** Dois meninos correm morro acima. Correm contra o capim que bate na cintura. Chilenos, camisetas amarradas na cabeça e as bermudas encharcadas. Correm em linha reta e os pés afundam tragados pela terra vermelha e porosa. Um atrás do outro e já ofegantes. O sol das três da tarde é um grande aro esbranquiçado chapado no fundo azul silencioso e o chiado do rio lá embaixo é agora um murmúrio quase inexistente. João vai à frente com o telefone na mão. O vale é íngreme demais e a linha de montanhas no horizonte encobre o sinal. Ele para e olha o visor. Constata o óbvio. Nada. Olha para trás – balança a cabeça – e voltar a correr. D. Ermínia sempre fala do anjo da guarda nas aulas de educação religiosa e a mãe de João fala para rezar para o anjo da guarda ao se deitar. João reza quando precisa resolver intrigas na escola ou precisa de dinheiro para comprar roupas novas para ir às festas no fundo da garagem na casa do Marcelo onde se toca música lenta e se bebe vinho escondido. Também reza para apaziguar uma dessas paixões repentinas de deixar o caboclo meio endoidado. Mas os critérios de seu anjo da guarda vão além de sua compreensão. Responde apenas as demandas sem importância, coisas insignificantes como espantar uma gripe – um prato de comida por dia – e deixa o principal de lado. E agora ele precisa que o anjo da guarda ajude o Rafael, porque o Rafael nunca faz nada de errado. Rafael é uma pessoa boa, não gosta de confusão, não faz mal a ninguém e nem mesmo revida as gozações que todo mundo faz o tempo todo. Rafael é uma pessoa boa, não é? E pessoas boas são recompensadas, não são? O anjo da guarda, Deus, todo mundo gosta das pessoas boas, não gosta? E as pessoas boas são boas porque ser bom garante que a vida será boa e nenhum mal vai derrubá-las. O senhor é meu pastor e nada me faltará. É isso que o padre diz e que a D. Ermínia diz e a sua mãe repete e aqueles homens de terno na TV também repetem à madrugada toda e aquelas pessoas com doenças incuráveis e radiografia na mão e dívidas impagáveis e depressão e viciados em crack e presidiários que mataram gente repetem e repetem. Gente ruim e que rezou bastante e se arrependeu. E o anjo da guarda, Deus, a D. 64 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


Ermínia e o padre e os caras de terno da TV e as meninas que bebem vinho na garagem da casa do Marcelo e as pessoas com doenças e os viciados em crack – todo mundo é feliz. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum. Porque o senhor é meu pastor e nada me faltará. João confere o celular, mas não há sinal. Gordinho era um cara engraçado e nunca fez mal a ninguém. João para e espera pelo outro menino. Não vai adiantar, diz Marcelo. Quando a gente conseguir ligar já vai ser muito tarte. Mas o que é que a gente vai fazer? Ombrar o cara e levar até a cidade? Não sei, João. Só acho que não vai dar certo. Tá vendo aquelas pedras lá em cima, perto daquela árvore redonda? Então. Lá eu tenho certeza que pega. Já foi lá? Já. Eu e o Augusto ficamos ali um dia ligando pra casa da Ariela. Pegou de boa. Eles passam a árvore e alcançam as pedras. O traçado do rio é ainda mais sinuoso e as árvores encobrem o local onde o gordinho está estirado. Nuvens negras se aproximam ao longe encobrindo lentamente as serras, avançando na direção do vale e da cidade. João confere o aparelho, mas não há sinal. Gira o telefone, retira a bateria e coloca outra vez. Todo o esforço é inútil. E talvez haja mesmo algum tipo de plano incompreensível em tudo que acontece. É isso que diz o padre, d. Ermínia e sua mãe. É o que dizem também os caras de terno na TV gritando como se estivessem um tanto quanto aborrecidos ao falar do amor de Deus. E também é isso que ele pensa quando ouve um barulho às suas costas e dá de frente com um homem de chapéu marrom em um cavalo magro. O homem a cavalo demora um pouco para entender os dois meninos falando ao mesmo tempo numa confusão de gestos e lágrimas nos olhos. Mas agora Marcelo já está na garupa do cavalo e ele o homem vão rompendo o pasto no rumo da estrada, desaparecendo no rumo da cidade. É difícil acreditar que um pangaré tão magro carregue duas pessoas no lombo. João senta-se na pedra e observa as nuvens avançarem. O tempo sempre muda sem avisar. Um estouro de maritacas surge de uma árvore como se as folhas tivessem ganhado vida. Elas voam contra o vento e se dispersam e depois se aglutinam escapando do vale e quanto mais se afastam mais aqueles gritos estridentes soam como lamentos. Não dá para entender. Começa a cair uma chuva rala e constante e as árvores se dobram e há esse chiado perene do vento e o rumor de carros se aproximando e o cheiro de madeira velha e podre 65 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


no ar. A água também é ruim quando precisa. A ambulância desce a estrada com a sirene desligada e desaparece sob as árvores e também a viatura de polícia apenas com as luzes piscando e o Chevette marrom do pai do gordinho surge na curva mais rápido que os outros e quase estoura no barranco. Os pneus giram em falso sobre o cascalho e o cascalho é lançado para trás e a traseira passa lambendo a cerca. Reduz a marcha. Acelera. O barulho do motor ressoa grave e o carro vence o pouco de estrada que resta. Tão logo desaparece sobrepujado pelo barulho da chuva.

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Entulhos Maria Beatriz Del Peloso Ramos

C

om os dezesseis assentos ocupados a van partiu lotada. O carro fechado, cheio de poeira e sem ar condicionado, fez com que a moça começasse a espirrar sem o cuidado de tampar a boca com a mão, para não jogar perdigotos nos

passageiros. O senhor de terno sentindo-se desconfortável na última cadeira do canto, apertado às ferragens da janela, reparou que o rapaz de tênis fosforescente sentado perto da porta, tinha a seu lado uma CPU e monitor apoiados num assento e, com certo tom indignado, perguntou-lhe se não queria trocar os aparelhos de lugar, colocando-os na última cadeira. O rapaz respondeu-lhe que havia pago pelos dois lugares juntos para segurar o computador, a fim de que não escorregasse durante a viagem. Na segunda fila, um fortão de boné e sandália de borracha roncava alto e caía, toda hora, em cima do ombro de uma senhora que o empurrava com um estratégico “sai pra lá”, desviando-se dele com crescente irritação. No banco da frente, o motorista falava simultaneamente no celular, beijava a namorada e ouvia as propostas que um pretenso sócio lhe fazia sobre as vantagens de abrirem um depósito de água mineral e gelo. Sexta-feira de tráfego parado e o cobrador da van, gordo de bermuda estampada, sentado num banquinho espremido entre a porta e a cadeira, reclamava do sufoco que sofria em todas as viagens. Devido ao calor abafado, o garoto com o skate entre as pernas, que havia entrado na van comendo coxinha de galinha, começou a enjoar e, depois de aceleradas e freadas, foi ficando pálido e, de repente, num jorro só, vomitou; quem conseguiu se entortar rápido, evitou receber respingos. - Dengue, gripe suína, febre aftosa, tudo se pega na van, até vômito desse desgraçado infeliz, - alguém blasfemou. -Deixa de ser ignorante, cara, febre aftosa só dá em vaca, e em vaca louca da Austrália. 67 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


O fortão de boné continuava roncando tranqüilo, e toda hora caía no ombro da senhora que reclamava: - não agüento mais este sujeito perto de mim, sou uma mulher de respeito, vê se te apruma, rapaz. Para distrair a senhora, já muito nervosa, o velho puxou conversa : - mora em Cordeirinho? Não? Eu moro; desde que aquilo lá era só matagal. A senhora não é parente dos Gonçalves não? Se parece muito com o pessoal deles. Pois é, naquele época, em Cordeirinho, quando alguém morria, a gente tinha que construir depressa o caixão de tábua, e carregar o defunto até a cidade para encomendar o corpo e enterrar. Mesmo quando o finado Zé Gonçalves, o agiota, morreu foi assim; e durante a procissão de enterro, enquanto a viúva chorava, só se ouvia o barulho de foguete e o pessoal rindo porque a dívida dos empréstimos estava indo com ele, no caixão; foi foguetório e cachaça a noite toda. Mas agora, Cordeirinho está muito bom de se morar, melhorou muito, tem de tudo, até oculista. A senhora precisa ir lá. De repente, um latido esganiçado dentro da van. A cabecinha da miniatura pincher sai de dentro da bolsa, e olha as dezesseis almas socadas no carro velho, indo para casa, no meio da noite. – Fica quietinha, Iscárlete, não late não,- disse a namorada do motorista para a cadelinha acomodando-a na mochila. Impaciente com o tráfego, o motorista tentando, na sua esperteza, ganhar tempo se desviou por um atalho para cortar caminho. Na frente, foi parado pela blitz da Polícia Militar com viaturas atravessadas na pista e metralhadoras em punho: - Qual é sua rota motorista?, perguntou o policial. -Rodovia Amaral Peixoto. -Positivo, então pode fazer o retorno, e pegar pela alameda novamente. Por aqui a via está interditada. O motorista deu meia volta, e retomou o trajeto seguindo o engarrafamento Quando alcançou a rodovia, afundou o pé no acelerador, começou a costurar, a ultrapassar o limite de velocidade até cortar, pela direita, uma Patrulha Rodoviária. Minutos depois, a sirene soou atrás da van, intimando-a a parar. Encostou o carro no acostamento, e os patrulheiros entraram para revistar os passageiros. A mulher com a sacola grande no colo pediu que não fosse revistada porque levava vários tupewears com comida congelada, sobras da casa da patroa, e não queria abrir as marmitas molhadas por causa do degelo. No retão, a van freou de súbito, numa sacudida violenta quando avistou um bode enorme atravessado na agulha da mureta divisória da estrada, entre uma pista e outra; o motorista buzinou insistentemente perto dele para que andasse e entrasse logo no mato. 68 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


- Bode é azar na certa, ainda mais na sexta-feira... - Que nada, toda semana faço uma fezinha no jogo do bicho, no 21, 23, 27, 28, tudo na cabeça, cabra, carneiro. -Pé de cabra fendido no casco, se for preto então, é pé do coisa ruim... Depois do trevo, um colega do motorista com uma gaiola na mão e suado fez sinal pedindo carona, e entrou ficando acocorado, posição que desagradou os passageiros pelo paredão que seu corpo fazia esbarrando em todos, o que provocou forte discussão. Quase na curva, o motor começou a ratear e só houve tempo da van sair da estrada e pegar o acostamento até parar enguiçada, num recuo que se abria para uma estradinha de terra. -É isso aí, pessoal, vamos dar uma descidinha, ajudar a empurrar um pouco mais para dentro e esperar por outra van; eu avisei na cooperativa que o carro precisava fazer revisão, não quiseram parar de rodar, agora está todo mundo ferrado. O chão era lama pura. A mulher da comida congelada olhou as poças enormes e disse que não sairia do carro; se quisessem que empurrassem com ela dentro; não podia pisar na lama porque a sandália era nova, não ia estragá-la no atoleiro. O homem, ao lado do dono do computador, também se recusou, dizendo que era aleijado de uma perna, encostado pelo INSS e não ia se arriscar fazendo esforço. Tarde da noite, a estrada envolta pela escuridão, e as vans passando lotadas. A mulher sem se levantar, abriu uma caixa de plástico com bolinhos de arroz, e ofereceu aos passageiros que, mortos de fome, aceitaram banqueteando-se. Da estradinha de terra, veio surgindo de longe, um foco de luz fraca, parecendo lanterna que alguém carregava, em direção à rodovia. Todos olharam e identificaram o farol baixo de uma Kombi velha, aberta na lateral sem uma porta, que tinha acabado de deixar sacos de entulho no alagado, lá para dentro. A Kombi parou, percebeu a situação e fez sua oferta: -Quem quiser ir comigo, tô cobrando dois real por saco. -Dois reais? -Dois real. -Dois reais!

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Dois real. De um a nove eu cobro real; só quando entra no dez, aí eu cobro reais. Carrego entulho e gente, é tudo igual. Vai?

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Eric, o menino Angela Fonseca

“Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar.” Carlos Drummond de Andrade, Igual-Desigual, in A paixão medida, 1980.

E

ric, o menino, desperta pontualmente às 08h30min. Veste-se, com ajuda, e toma seu desjejum, preparado por outra pessoa. Em seguida, esforça-se em arrumar a própria cama, brinca um pouco com LEGO e dirige-se para a área na parte da frente da casa. Toma assento em sua

cadeira alta, protegido por um guarda-sol, e, independente das condições climáticas, fica ali, no seu “observatório”, assim denominado por seus pais, durante um tempo considerável, mexendo com os passantes, geralmente gentis e responsivos, e olhando para um cenário quase sempre igual. A denominação mais recente para quem apresenta qualquer tipo de deficiência física, intelectual ou mental, é “pessoa com deficiência”, de acordo com a convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada com status de emenda constitucional em 2008. Aos 36 anos de idade, ele faz parte desta estatística de marginalidade Os números vêm crescendo, é verdade, mas tais dados quantitativos no Brasil têm pouco significado diante de uma população que cresce como um todo. De acordo com o relatório do Censo de 2010, a população brasileira soma um total de 190.755.799 indivíduos. Destes, 2.617.025 são pessoas com deficiência intelectual ou mental. Ou seja, 1,4%. Um universo considerado insignificante e pouco representativo num país em que as minorias são consideradas marginais, em especial aquelas que pouco ou nada agregam ao PIB – Produto Interno Bruto. Eric, o menino, cumpre, ritualisticamente, mais um dia de sua vida à margem. Hoje ele vai sair com seus amigos mais próximos, talvez os únicos no momento – seus pais -, para ir ao supermercado e dar uma volta de carro. Durante as compras, puxa conversa com as pessoas, sorri, brinca com um ou outro cliente, põe seus produtos preferidos dentro do carrinho e sai mostrando “suas compras” para todos. Geralmente alegre. Beija, com carinho e emoção, as pessoas de cabelos brancos. Lembram-no a avó, cujo falecimento abriu um 71 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


buraco, difícil de ser preenchido, em seu repertório afetivo. Caminha com certa desenvoltura naquele espaço familiar, ao contrário da dificuldade de locomoção que apresenta na rua. Continua sua conversa na fila e, em geral, é bem sucedido, por ser engraçado e muito sorridente. Carismático. No carro, adora a volta longa que o pai dá, provocando-o com a possibilidade de estarem “perdidos” pelo caminho. Dá boas gargalhadas. Tem ótimo senso de direção e, mesmo percorrendo, a cada vez, um local diferente, percebe quando o pai toma o caminho de volta a casa e tenta convencê-lo a prolongar um pouco mais o passeio. Possuidor de uma memória prodigiosa, acima da média e intocada pela deficiência, apresenta fala fluente, embora pontuada por temas recorrentes. O pensamento “mágico”, para além do mundo real, denota uma desorganização mental que sugere personalidade esquizóide. Diagnose apresentada em relatório médico. As opções de atividades sociais para pessoas adultas com deficiência mental severa são relativamente escassas nas grandes cidades. Na maioria dos casos, os pais, já aposentados, têm dificuldade de reintegrar-se ao mercado de trabalho, não apenas pelo avançar da idade, mas porque os cuidados com o filho deficiente ocupam-nos quase que integralmente. O Estado não oferece opções para deficientes maiores de 18 anos e os gastos com escolas especiais e clínicas são altos, mesmo para quem paga um plano de saúde. Cuidadores especializados significam um custo muito acima de suas possibilidades. O quadro diagnóstico de Eric, o menino, se agrava, a cada ano. Sua visão vem se deteriorando, porque a síndrome que apresenta – homocistinúria – inclui, em seu espectro, uma progressiva luxação do cristalino. Assim, Eric vê a realidade de forma distorcida. Duplamente. Sente saudade dos ex-colegas, seus iguais. Vez por outra tem vontade de voltar à escola que frequentava para encontrá-los, o que acontece em dias de festa, quando se lembram de convidá-lo. Ele, aliás, adora festas. E esta é a parte interessante: em certos aspectos, reage como uma pessoa dita “normal”. Deseja namorar, por exemplo, mas sua sexualidade, fisiológica, não está relacionada ao outro. É meramente hormonal e invariavelmente satisfeita de modo solitário. Desde 2004 se dispõe de um livro que contém tudo sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, este, aliás, o título da oportuna obra da Procuradora da República Dra. Eugênia Fávero. Trata dos aspectos jurídicos, aí incluídos os aspectos penais e processuais. A apresentação é didática, sob a forma de perguntas e respostas. A leitura do livro permite confrontar a letra da lei com a realidade da pessoa com deficiência no Brasil: na prática, há um abismo entre os direitos do deficiente e os deveres do Estado. Mais uma vez, esse abismo sugere a má-vontade do poder público em fazer cumprir legislação referente a cidadãos que não geram riqueza. Vejamos o caso da educação, por exemplo. O deficiente mental pode, 72 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


sim, frequentar escolas públicas e algumas delas até possuem espaço de atendimento quase individualizado para, supostamente, cumprir o protocolo de inclusão. Entretanto, nem todas as pessoas com deficiência são incluídas e as escolas alegam falta de formação especializada dos profissionais, bem como de outros recursos, para atender essa demanda. Restam as escolas privadas que, em razão da especialização, praticam valores mensais nem sempre compatíveis com a disponibilidade financeira da família. Muitas até aceitam alunos bolsistas das instituições público-privadas. Mas isso vem inviabilizando o trabalho, já que tais instituições atrasam pagamentos, mesmo sabendo que os custos de uma escola especializada são mais altos. Como resultado, algumas vêm recusando alunos bolsistas, o que torna a questão ainda mais dramática. A princípio era mais fácil lidar com Eric. Era, de fato, um menino, na estatura e na idade, e seus pais, mais jovens e com melhor disposição. Porém, sabiam que não haveria milagres. Seria a rotina, o alternar entre alegria e desânimo, entre vitórias e frustrações, desespero e esperança e tudo novamente. Dia após dia. As outras pessoas até se sensibilizam, tentam entender o que é viver com uma pessoa com déficit mental. Mas, jamais conhecerão, de fato, a dor da impotência diante da falta de perspectiva de uma mudança. Na verdade, o deficiente dependerá dos cuidados de alguém para o resto de seus dias. Mesmo diante da inevitabilidade da morte, pais que não dispõem de condição financeira elevada para deixarem um legado material, a garantir a sustentabilidade dessa pessoa, costumam ter pavor de morrer. Quem cuidará? Como cuidará? Terá afeto e compaixão? Usará o recurso financeiro, amealhado com esforço, para realmente, prover para a pessoa dependente? Perguntas sem resposta. Só angústia e incerteza. Eric, o menino, almoça bem, porque hoje veio à mesa a comida de que gosta muito, um macarrão instantâneo “rico”, como costuma dizer: sem o condimento do pacotinho, mas com muito tempero caseiro, verduras e alguma carne. Para beber, refrigerante de cola, a “pretinha”, que ele adora. Depois, sorvete de chocolate. Repete, sorrindo: “É festa, é festa!” Quem sabe o desejo de que algo de novo aconteça e quebre a rotina, acrescente novidade aos dias sempre iguais... À tarde, volta ao seu observatório, ou assiste um programa na TV, ou ainda um DVD. Anoitece, ele lancha, toma seus remédios, um banho e vai dormir. E é só. Pergunto: que será de Eric, o meu menino? O que terá a vida, ainda, a lhe oferecer?

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Tchidza e o Muzimo contra Marave

Geraldo Cebola João Lucas (Cebaskovic W. Ge. Corcunda) Mauro Cárter Hussein

D

os lundis e Undis só restava o nome que representava num só todo tudo o que um grandioso povo foi, àquele povo vindouro de lá, da outra orla oriental do Congo. Orla a quem o Zambeze presta respeito e obediência ao aceitar acomodar nas suas margens este historioso povo, cujo próprio nome não lhes identifica. O professor conhecera Tchidza na Escola de Preparação Ideológica da FRELIMO de Tchithatha, uma escola que se encontrava localizada na colina norte da actual cidade de Tete. Professor de Política; formado nas respeitadas escolas ideológicas cubanas. O professor, o senhor professor Marave Charles Nimbapha, era um homem com ares de imperador, arrogante, e posicionava-se como proprietário do saber. O que me marcara em Nimbapha, não foi o facto de apenas ele ser nosso (eu e Tchidza) professor, mas o facto de ele pretender dividir Tchidza em paixão comigo. O meu amor e o amor de Nimbapha por Tchidza goza um equilíbrio da guerra fria. A nossa visão sobre Tchidza era de geopolíticos, Tchidza era um planeta em disputa entre duas potências opostas (eu e Charles Nimbapha). Nossos músculos de bélicos não eram directamente proporcionais: Nimbapha gozava da vantagem de ser professor e autoridade educacional e, gozava das vantagens de ser colega directo e conterrâneo de Tchidza. Três anos depois de formação política intensiva. Tchidza e eu resolvemos pedir férias e viajamos para Mussacama, terra que nos viu a verdejar para a vida. A tarde estava morna e lenta com o sol interpelado no oriente pelo vento miúdo do horizonte, uma tarde que fazia estática a vida na vila e semeava uma lacunosa disposição no seio da gente. Nas palhotas organizadas em muralhas matrilineares, carimbadas com decorações indígenas e em toda aldeia em redor, a gente falava baixinho e espreguiçava-se por cada pequena palavra balbuciada enquanto a tarde mais pesada ainda, carregada em demasia dum calor intenso em quilos de peso pesado ia indo, ia indo sem parar em direcção ao seu habitual túmulo.

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Eu na minha cátedra com a palma da mão sobre o queixo telefonava ao Deus o redentor para lhe contar que a nossa pró-identidade que fez nascer heroísmo que sós os portugueses e outros europeus sabem explicar, e é também a mãe duma magicultura que o mundo exterior reconhece, está esfarrapada, enferrujada e lançada à poeira. Para lhe dizer que a guerra do Undi e Lundi foi herdade de geração em diante, obrigando o Zambeze escorrer sangue da nascente à foz. Obrigando a terra a devorar corpos abandonados a calha pelas almas que vagueiam pelo longo do Zambeze com altiva e feroz estupidez porque a guerra se alastrou se alastrou para o além Marave e envolve actualmente os Mutapas, os Changanas, os Macuas e Ajauas pela sedimentação duma nação multidireitosa. Telefonava com intenção de pedir um imperador imperial, um sem origem guerreira; que seja um Canhemba, um Cambuemba, um Macombe; porque estes já salvaram o povo duas vezes e meia e porque eles também guerrearam-se entre si. Da cátedra telefónica minha vista viajou por um feixe magunkheiro1 no telhado do palacete rez-do-chão-primeiro-andar de muito engenho de engenharia sem academia de onde me chegou sem agrado uma tão tanta tamanha surpresa que deixou-me sem energia para continuar o telefonema e me roubou a uma imunda soneca tentando em vão apaziguar àquela desgraciosa mitologia. Tchidza havia sido intimada a comparecer `a casa de Marave Nimbapha para assuntos escolares. Tchidza, em plena observação dos princípios básicos da educação que recebera, se fez presente ao professor. O que se soube depois, é que Marave Nimbapha (professor) tinha firçado Tchidza a se introduzir no seu gowero2. E foi do seu gowero que Marave Nimbapha – o professor. Eu vi e bem perplexo o apagar duma vida meu amor, ai meu Deus! Espetada e indefesa aí no quarto de Marave Nimbhapha o senhor professor, seu corpo semi-nu violentamente possuído; seus braços vigorosamente atracados; sua boca ensaiando no sossego perturbado gritos que se perdiam escoando pelo bocão do agressor. Tchidza com as pernas esticadas ao longo e largo; as costas expostas frontalmente; sua resistência dominada; estava trémula de ingenuidade; pálida de tanto satanhoco prazer primeiro e único; gatinhava a passo lento; uma prisão de doce sabor penumbral; seu corpo frenético e caloroso flutuando naquela elucidação emprestada. Depois duma luta esporádica, um sossego do sabor de veneno debaixo daquele corpo marcado por tatuagens que a estupidez talhara com agrado por esclavagistas de almas. Marave Nimbapha senhor professor, visitado pelo auge do prazer, tiritou, sacudiu um suspiro, mordeu os lábios, insultou a vida, largou os braços fazendo-os escorregar à largura do corpo, soltou a miúda sem um beijo violento e espremeu um alívio de peso montanhal.

Termo emprestado da língua ciNyúnguè (ci-uNyúnguè). De magunkha – fofoca. Magunkheiro – fofoqueiro. Gowero – pequena casa campestre, geralmente redonda, de estacas e maticada de barro que serve de quarto para os rapazes crescidos. O termo é um empréstimo da língua ciNyúnguè. 1 2

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Do outro ângulo da existência, a sua parceira obrigatória e esclavizada (Tchidza) galgou a profundeza da dor e do rancor, rompeu com a vida e desenhou sua sombra, sua sombra no lá da vida. Era como um drácula a tivesse castigado e mastigado a sua existência. Sua boca sem força para uma só palavra dizer; seus braços estavam erectos como se alguém me identificasse e me tivesse indicado acusando-se de ter sido um assistente covarde e macabro. Não aguentei tanto, tanto trauma, desmontei os ossos e caí sobre mim como cacho de pecados divorciando-me dos sentidos por uns instantes consecutivos tentando não recuperar os sentidos no tão imediato. Eu experimentava uma petição de morte. Mas logo que voltei para mim reuni as minhas trouxas, arrumei-as sem carinho e lá me evolando da humanidade queria ser uma sereia, uma coruja ou outra coisa selvagem, sei lá, queria viajar à largura do infinito talvez para divorciar-me das lembranças ou para me desperdiçar de vez na perdição, na solicitude bruxal das costas negras do lá da vida. Me perder, assim, como um ex futuro esposo pauperissimamente perde aquele tipo de beleza singular que Deus esculpe e a empresta a alguém. Tchidza estava esposada a um muzimo malvado da dinastia dos Bongas que sem piedade maltratava qualquer atrevido que nela trocasse. Mas pelo poder de sua beleza eu havia gasto umas quinhentas para arrancá-la em divórcio do muzimo e atravessá-la para a posição de minha musa. Que Tchidza estava estomacal e ventralmente quimicalizada com o muzimo Bonga eu o sabia, o sabia bem sabido. O que não sabia é que Marave Nimbapha senhor professor havia percorrido a mata dentro em busca de segredo místico para transcender ao cargo de director ou para alcançar o estatuto de Bwana3 e que para tal o vovó4 lhe receitara uma virgem para o descabaço sarcástico e que esta seria a fonte de sorte sua. Não sabia, também, porquê é que a escolha de tal santo princípio diabólico caíra sobre Tchidza, mulher de minha alma e ingrediente de minha sombra existencial. Eu, saboreando esta doce dor, perguntando o meu Eu o que era e o quer fazer; lançando gritos maçudos e choros de peso montanhal; soltando berros para as direcções de todos os astros do aquém do espaço ia esfriando `aquela tarde ardente e ia catalisando aquele mono-ambiente até ora vivido no dentro intestinal da vida. No estômago do seu quintal, debaixo duma frondosa e tridimensional macieira cumprindo o castigo dos muzimos se geograficava Marave Charles Nimbapha, o senhor professor, numa tolice extravagante que lhe dura a vida toda órfã de cura e viúva de remédio. Nu, se ria, rebolava, saltitava. Marave Nimbapha estava em diálogo com os fantasmas e com os invisíveis do seu plano falido de ser bwana por meio do sangue, da carne e do espírito de Tchidza, aquela que era o cacifo da minha vida. O cacifo aquém o muzimo cuidava e ensinava a sociedade com habilidade que: estudar não é tudo na vida, pois, Marave Nimbapha tinha tantos anos de académico e tantos outros de experiência, mais .... mas.

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Burguês; rico; abastado; empresário. No sentido de adivinho; curandeiro; feiticeiro.

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A notícia da tentativa de adultério choveu sobre a comunidade de Mussacama com estrondo. Nimbapha escoado para a praça e, teologicamente, o professor respondeu pelo crime e marginalizado da comunidade mussacamense. A guerra entre o marido espiritual de Tchidza e o espírito Marave do professor Nimbapha, embora tenha terminado com um vencedor claro, indicou dois vencedores tácitos e dois vencidos claros. Os vencedores foram o marido espiritual de Tchidza sobre o espírito marave de Nimbapha e a vitória da lógica do saber mágico-africano sobre o determinismo experimentalista da modernidade ocidental. Dentre os vencidos podem ser apontados Nimbapha o professor e Eu, pelo facto de nenhum de nós ter conseguido casar ou desposar Tchidza. E é assim que termino o conto, leve de espírito.

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E a tatuagem no pênis ereto daquela moça de vestido amarelo Douglas de Oliveira Tomaz Tomo banho de petróleo. Escovo meus dentes com sangue. Saio para a rua, visto saia e uma camiseta do Suede. Sou um homem. Paro em qualquer boteco encontro a decadência em sua forma humana: homens velhos, rotos, desdentados homens fedendo a cachaça e tédio. Vou para a cama com eles. Sou uma mulher. Nos meus longos cabelos crespos mulheres de pênis encravam seus dedos sujos de pedreiros. Dançamos ao som de tambores africanos após o sexo como caboclos, prostitutas, pretos velhos. Perdoem toda a sujeira do quarto - gozo, cinza, vela, uísque, tabaco mas não perdoem a sujeira do poema não há o que perdoar. Somos seres sincréticos, diz o refrão somos a conjunção, somos o sexo, 78 | E d i ç ã o 3 | J a n - J u n | 2 0 1 4


o abismo e o pulo. Suicida é quem se define, diz a tatuagem no corpo do sujeito-sem-definição. Somos a briga interminável, desritmada, sem controle entre a leoa e o leão. Saio do quarto apagado e te deixo sozinha morta esvaindo-se em goza. Uso salto quinze e tenho um braço entre minhas pernas. As pessoas me olham. A boca delas me dizem eu quero. E chove. Quando era criança eu era o x da questão minha mãe me dizia é homem meu pai me dizia é não. Somente meu gato de estimação me entendia: ele era preto com manchas brancas e apesar de macho era esguia miava alto fino gemia. Mas chove. E a água salgada - a chuva é doce retira minha maquiagem vermelha de homem,

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transformando-me em quem. Embaixo das camadas de base há quem? Quem é o meu próprio nome. Continuo andando pela cidade e já é noite e as luzes se acendendo enquanto cai a escuridão sempre me pareceu muito simbólico. Somos seres sincréticos, diz o refrão. E a tatuagem no pênis ereto daquela moça com vestido amarelo dizia: sou não.

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pavão cores somos cor a gente pinta borda e é es cor ro feito aquarela palavra serpavão pavãoser tocar na orelha som – tímpano instrumento desafogar do músculo da mão objeto sentir o cheiro do nariz se imagem nasce da retina gosto que é gosto vem de dentro pavão pavão não cabemos em formas sua cauda se abre para se ver mostra - se pavão pavão me pinte pinto você

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jangada crítica | literatura | artes ISSN: 2317-4722

Carpintaria de amor Cebaskovic W. Ge. Corcunda Meu amor, quero tocar-te com as minhas mãos inertes de frenesim Quero beijar-te nesta madrugada frígida para te esquentar Quero cobrir-te com o meu abraço e tapetar o teu epiderme macio e castanho, as outras mulheres para mim não passam de tomates a venda em mercadinhos: queimam com sol e escaldam-se. Meu amor, tu dignificas-me como esposa e mulher de vida Tens raça nos conceitos de lar que vomitas Tens raça nos pratos que providencias Tens raça no sorriso que emanas. As meninas que me deste são um verdadeiro símbolo do nosso inabalável amor. São tantas que gostariam de estar no teu lugar, mas eu não indico os caminhos São tantas que já piscaram olhos para mim, mas eu não vacilei, São tantas que já oraram para que eu as amasse, mas o meu deus foi mais forte que o deles; São tantas que abanam, abana, e esticam as ancas para ver se eu rebolo de saliva na boca, mas eu só tenho uma paixão: tu meu amor. O dia de hoje não é especial para mim e tu, mas é um desses dias singulares; O hoje é um dia único Dia escasso; Dia raro Dia isolado no deserto dos meses A prova do teu amor está maticada nos teus olhos Endereço-te um envelope selado de chocolate escorregadio; Um envelope gordo de munições de amor: beijos, abraços, carinhos, meiguices, etc. etc.

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Para acessar a seção de artes desta edição, visite: http://www.revistajangada.com.br/#!blank-2/c21gs

Os trabalhos publicados na Jangada: crítica, literatura, artes estão licenciados com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional. Arquivo formatado em fonte Garamond, tamanho 12, e publicado em formato pdf pela Clock-t Edições e Artes, em abril de 2016.


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