crĂtica | literatura | artes
jangada ISSN 2317-4722
JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES
n.4, jul-dez, 2014
Literaturas Africanas e Afro-Brasileira African and Afro-Brazilian Literatures
Clock-t Edições e Artes Av. Fioravante Rossi, 3300 – Colatina – ES CEP 29.704-424 | Tel: (27) 9-9995-5853 contato@clock-t.com| www.clock-t.com
Editor Responsável Juan Filipe Stacul, PUC MG Editores Eduardo Ledesma, UIUC John Tofik Karam, UIUC Juan Filipe Stacul, PUC MG Raquel Castro Goebel, UIUC Conselho Editorial Andreia Donadon Leal, ALACIB Antonio Carlo Sotomayor, UIUC Cláudia Pereira, ALACIB Elisângela A. Lopes, IF Sul MG Fábio Figueiredo Camargo, UFU Gabriel Bicalho, ALACIB Gerson Luiz Roani, UFV Glen Goodman, UIUC Gracia Regina Gonçalves, UFV
Joelma Santana Siqueira, UFV José Benedito Donadon Leal, UFOP José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP Karla Baptista, FCB Maria N. Soares Fonseca, PUC MG Michelle Gabrielli, UFPB Murilo Araújo, UFRJ Rubem B. Teixeira Ramos, UFG Terezinha Cogo Venturim, FCB Thiago Ianez Carbonel, UNICEP Victor Rocha Monsalve, UDP Revisão e Diagramação: Clock-t Capa: Juan Filipe Stacul Pixabay.com
Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Literaturas Africanas e Afro-Brasileira N.4, jul-dez, 2014 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com
Sumário Editorial.............................................................................................................4 O jogo do texto em João Vêncio: os seus amores, de Luandino Vieira Franciane Conceição da Silva.........................................................................7 Motta Coqueiro ou a pena de morte: uma trama entre a memória social e a literatura Marcos Souza..................................................................................................18 O verso e o protesto: a poesia contemporânea como reivindicação sócio-política Juliana Cristina Costa....................................................................................38 Pasárgada enegrecida: encruzilhando as poéticas brasileiras e caboverdianas Ricardo Silva Ramos de Souza.....................................................................60 À luz do rio: uma leitura da passagem entre As duas sombras do Rio, de João Paulo Borges Coelho Bruno Santos Pereira, Daviane da Silva Ribeiro, Ivanete França Galvão de Carvalho.....................................................................................................87 As narrativas dos contos afro-brasileiros de Mestre Didi como patrimônio imaterial Antonio Marcos dos Santos Cajé...............................................................108 Prosa e Poesia...............................................................................................124 Artes...............................................................................................................134
Editorial Nesta edição, debruçamo-nos sobre um tema que se torna cada vez mais relevante para a crítica literária e para as discussões de ordem cultural como um todo: o importante legado das culturas africanas e afro-brasileiras nas artes e nas letras. Nesse sentido, os artigos ora selecionados pretendem apresentar veios ricos de reflexão teórico-crítica consistente, assim como leituras do texto literário que priorizem sua face dialógica, multicultural e sociopolítica. Para tanto, foram elegidas como objeto de estudo as literaturas africanas de língua portuguesa, assim como a produção afro-brasileira. Sob essa perspectiva, no texto O jogo do texto em João Vêncio: os seus amores, de Luandino Vieira, Franciane Conceição da Silva apresenta um debate sobre a obra do escritor angolano, analisando o jogo enunciativo empreendido pelo seu narrador, que prende o leitor em uma armadilha de difícil escape. Na obra, somos colocados no cruzamento de diversas vozes em conflito, que diluem as fronteiras entre realidade e ficção. Aprisionados nas amarras da voz narrativa, somos conduzidos a uma reflexão sobre a condição do protagonista, ao mesmo tempo que mergulhamos profundamente em questões de ordem social que envolvem o contexto de produção da literatura de José Luandino Vieira. Partindo para o cenário brasileiro, em Motta Coqueiro ou a pena de morte: uma trama entre a memória social e a literatura, de Marcos Teixeira de Souza, nos deparamos com um outro embate discursivo e político-ideológico: a polêmica história de Motta Coqueiro, suposto mandante de um crime ocorrido no norte fluminense, em 1852. A partir de uma análise minuciosa do romance de José do Patrocínio, Souza nos convida a lançar novos olhares sobre a situação do negro no brasil escravocrata, as relações de poder e, sobretudo, as múltiplas verdades em perspectiva, que se tencionam a todo instante. Antes de Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 4
chegarmos a uma conclusão sobre a inocência ou não de Motta Coqueiro, colocamo-nos em uma posição desconfortável, na qual um jogo complexo e (como em Luandino Vieira) repleto de armadilhas, diz tanto sobre o narrador do romance e seu lugar na sociedade oitocentista quanto sobre o fato histórico que almeja narrar. O debate até então desenvolvido desdobra-se para outros contextos e possibilidade analíticas no texto O verso e o protesto: a poesia contemporânea como reivindicação sócio-política, de Juliana Cristina Costa. Ao nos apresentar a poética de duas escritoras negras contemporâneas, a saber, Cristiane Sobral e Miriam Alves, Costa evidencia como é impossível separar a escrita feminina e negra das lutas sociais e das conquistas políticas com as quais se articula ao longo de nossa história. Assim, verificamos que, no eulírico dessas duas poetisas, a subjetividade está em constante luta contra os eixos basilares de uma episteme machista, racista e misógina. Ao mesmo tempo, desnuda-se o lugar da mulher negra na sociedade contemporânea e, inclusive, no mercado editorial e no universo acadêmico. Lugar este muitas vezes marcado por processos de exclusão, segregação e preconceito. Sob uma perspectiva comparatista, as questões referentes à literatura negra no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa são exploradas também em Pasárgada enegrecida: encruzilhando as poéticas brasileiras e cabo-verdianas. Neste texto, Ricardo Silva Ramos de Souza mostra como foi profundo o diálogo entre o modernismo brasileiro e a produção literária do movimento Claridade, em Cabo Verde. Na tentativa de buscar um modelo estético que auxiliasse na composição de uma proposta artística e política, os intelectuais cabo-verdianos encontraram em nossos autores um profícuo eixo de diálogo. Assim, construiu-se uma poética voltada para a realidade social do país, centrada na imagem da Pasárgada e do imaginário utópico que ali se engendra. Por fim, outras questões referentes à produção literária africana e afro-brasileira são colocadas em perspectiva nos textos À luz do rio: uma leitura da passagem entre As duas sombras do Rio, de Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 5
João Paulo Borges Coelho, de Bruno Santos Pereira (et al) e As narrativas dos contos afro-brasileiros de Mestre Didi como patrimônio imaterial, de Antonio Marcos dos Santos Cajé. Nestes, somos conduzidos a revisitar múltiplas vozes da literatura negra produzida no Brasil e nos países africanos de Língua Portuguesa, ao mesmo tempo que refletimos sobre a importância histórica destas produções e o legado que deixam para os estudos literários contemporâneos. Acreditamos que os debates aqui suscitados poderão ser extremamente enriquecedores para o público acadêmico, ao colocarem em pauta discussões importantíssimas que se mostram cada vez mais urgentes no cenário brasileiro. Descortinam-se, assim, diálogos enriquecedores à crítica literária, assim como cruciais à transformação social e política de nosso país, contra um legado histórico de abjeção e exclusão social.
Juan Filipe Stacul Eduardo Ledesma Raquel Castro Goebel John Tofik Karam
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O jogo do texto em João Vêncio: os seus amores, de Luandino Vieira
Franciane Conceição da Silva
O presente trabalho analisa o jogo enunciativo presente no romance João Vêncio: os seus amores (1987), do escritor angolano Luandino Vieira. No texto, João Vêncio, personagem central e narrador, conta as suas aventuras e desventuras para o muadié , seu companheiro de cela. Em um relato feito com muita astúcia, João Vêncio fala dos seus vários amores que estão distribuídos nas pontas de sua estrela de três pontas. A história conduzida por João Vêncio se constitui como uma espécie de jogo, em que participam dois jogadores, o narrador e o narratário. No entanto, mesmo que haja uma ilusão de que ambos os jogadores conduzam o jogo juntos, é o narrador quem determina as regras.
Discente do Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa da PUC Minas Palavras-chave: Literatura Angolana; Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 7 e bolsista CAPES. Luandino Vieira; Narrador; Enunciação.
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o romance João Vêncio: os seus amores (1987), do escritor angolano Luandino Vieira, João Vêncio, personagem central e narrador, conta as suas aventuras e desventuras para o muadié1, seu companheiro de cela. Em um relato feito com muita astúcia, João Vêncio fala dos seus vários amores que estão distribuídos nas pontas de sua estrela de três pontas. Esses amores são: Màristrêla, a filha do vizinho cabo-verdiano e primeira ponta da estrela; a menina-órfã, Tila, “a segunda ponta da estrela-detrês, que é também a primeira” (VIEIRA, 1987, p. 32); e o seu amigo Mimi, que é “a terceira ponta da estrela" (VIEIRA, 1987, p.20) e o grande amor da sua vida. Nas palavras do narrador, Mimi “é a mais inútil de minha vida. Xamavíssimo amigo”. (VIEIRA, 1987, p. 37). Além de Màrtistrêla, a menina Tila e Mimi, os três amores que formam a estrela de três pontas, João Vêncio teve outro grande amor, a meretriz Florinha, o centro da estrela. Além desses quatro amores, vividos na infância, João Vêncio fala de um dos seus amores da vida adulta, Biju Supimpa, a “baronesa”. No entanto, Biju Supimpa não é um amor como os outros, “eu nunca mais que amei ninguém depois da estrela da manhã de três pontas. Minha bailundinha é um caso às partes” (VIEIRA, 1987, p. 39). João Vêncio declara-se um escravo dos seus afetos, todos os seus atos, mesmo os considerados mais terríveis, são justificados pelo seu excesso de amor. E é por causa de um dos seus amores que o narrador-personagem vai para a prisão. Ao flagrar Biju Supimpa com outro homem, “o macaco quipanzéu” (VIEIRA, 1987, p.18), João Vêncio tenta matá-la, e acaba sendo preso por “tentativa de homicídio frustrado” (VIEIRA, 1987, p.17). João Vêncio: os seus amores é uma narrativa cheias de idas e vindas. João Vêncio rememora as suas vivências desde a sua mais tenra infância, quando tinha oito anos de idade, até a vida adulta. Assim, temos uma narrativa em que vários fios se encontram, formando um verdadeiro novelo. Por isso, para compreender a saga de Juvêncio, o leitor necessita de muita atenção, pois, caso se Muadié significa senhor, em quimbundo, uma das muitas línguas faladas em Moçambique. 1
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distraia, pode acabar se perdendo entre os muitos fios do engenhoso enredo. O romance João Vêncio: os seus amores é iniciado com um travessão. Isso ocorre porque o muadié, interlocutor de João Vêncio, havia lhe feito uma pergunta: - Este muadié tem cada pergunta!... Porquê eu ando na quionga?... Meus amores, meus azares, miondona... Minhas vadiices, rambóias de quilapanga. E vosoutro? A – mu-kuta... Aprendi com o senhor sô padre Vieira estre truco de responder pergunta. Simpatizo-me com o muadíe, sua questão não me ofende. [...] Eu queria pôr para o senhoro minhas alíneas. Necessito sua água, minha sede é ignorância. (VIEIRA, 1987, p. 13). Como podemos ver, no fragmento em destaque, a resposta de João Vêncio ao muadié demarca o início da narrativa. Porém, só sabemos da pergunta que foi feita pelo interlocutor porque João Vêncio a repete. A fala do narratário é assim reproduzida através do narrador. Isso ocorre durante toda a história. Em nenhum momento da narrativa ouvimos a voz do muadié em um discurso direto, só sabemos das coisas que foram faladas por ele, porque o narrador-personagem sempre repete as suas falas. Assim, toda a versão da história é contada a partir do ponto de vista de João Vêncio, que determina os rumos da narrativa e conduz o leitor pelos caminhos que mais lhe convêm. No entanto, é importante destacar que mesmo que não tenhamos um discurso direto do narratário, a história só se desenvolve a partir da pergunta que ele faz ao narrador. Dessa forma, mesmo que a voz do interlocutor só apareça através do enunciador, temos uma relação direta entre aquele que enuncia e o outro que escuta. Ao responder a pergunta do muadié, João Vêncio diz estar sedento, mas, ao contar a sua história poderá ter a sede saciada, a atenção do interlocutor é a água que ele precisa. Assim, ambos os personagens tornam-se fundamentais para o desenvolvimento da narrativa. De acordo com Benveniste (2006, p.87), Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 9
Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação. Nessa medida, consciente de que o desenvolvimento da sua narrativa necessita de um parceiro-ouvinte, João Vêncio estabelece uma espécie de pacto com o interlocutor, utilizando-se da imagem de um colar de missangas como representativa dessa relação: Tem a quianda, tem a missanga. Veja: solta, mistura-se; não posso arrumar a beleza que eu queria. Por isso aceito sua ajuda. Acamaradamos. Dou o fio, o camarada companheiro dá a missangaadiantamos fazer nosso colar de cores amigadas. Eu acho beleza é em libelo, alíneas em fila, com número e letra, nada de confusões de macas, falar de gentio à toa. Por isso pergunto depoimento de muadié: vida de pessoa não é assim a missanga sem seu fio dela, misturada na quindinha dos dias? (VIEIRA, 1987, p. 13 - 14). Podemos comparar o processo de feitura do colar de missangas ao processo de construção da própria história. Dessa forma, o fio do colar seria uma representação do narrador, as missangas seriam uma analogia ao narratário. O narrador dá o fio, o narratário coloca as missangas e assim constroem o colar, ou seja, a narrativa em si. Além disso, cabe ressaltar que a confecção de um colar de missangas é um trabalho artesanal, em que se faz necessário atentar-se aos detalhes, quanto mais minucioso o trabalho, mais bonito o colar fica. O mesmo ocorre com o processo de criação literária, quanto mais o autor se atenta aos detalhes, maior a possibilidade da sua obra apresentar uma boa qualidade estética e estilística. No decorrer da sua narrativa muito bem elaborada, João Vêncio se apresenta como um homem astuto e corajoso, porém, uma única coisa o amedronta: ficar só. O medo da solidão Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 10
aterroriza João Vêncio e ele fala ao muadié sobre esse fantasma que o atormenta: “Gosto de ser vizinho de senhora morte quiatumbandala, o que eu tenho medo no mundo, é só ficar só, disso confesso. Com morto eu me dou bem” (VIEIRA, 1987, p. 36). Em outros momentos da história, João Vêncio volta a falar sobre a sua maior inimiga: Com morte eu dou-me bem, afirmei e não regresso. A senhora tumbandala não me assusta. O meu medo só é o que o senhoro bem sabe - voz, cara e alma de gente não encontrar, o deserto desumano, solidão de sozinho. Eu chego dormir de luz acesa para fingir sol em meu quarto. (VIEIRA, 1987, p. 84). Além do medo da solidão, João Vêncio revela outra particularidade de sua personalidade fugidia, Vêncio se declara um grande apaixonado por mudanças. Essa sua paixão lhe acompanha desde a infância, quando começou a trocar de amores. Ao tornar-se adulto, o seu apego por mudanças tornou-se ainda mais forte, e dentre as muitas trocas que já fez, destacam-se as suas mudanças de nomes: Juvêncio – com u, xié ngana. João Vêncio, também – e outros... João Capitão, aliás, Francisco do Espírito Santo, aliás... O doutoro juiz chama-me é o <Aliás>. [...] Eu gosto muito de mudar de nome. Eu penso que gosto é de mudar a vida. Eu não posso viver muito tempo na mesma casa, na mesma rua, no mesmo sítio. Sempre mudo o meu quarto de dormir - cacimbo e chuva. Sempre mudo as mobílias na casa. Uso e desuso bigode. Mulher também. [...] E mudo a cor do cabelo [...] – mas nunca faço mudança sem acabar um serviço. [...] A vida é muito incompleta. Eu, se pudesse, era minha cruzada: cada dia, cada via; cada vida, cada lida. Gostava era inda ser outro novo cada vez. (VIEIRA, 1987, p.39-40). Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 11
Como podemos verificar no fragmento acima, João Vêncio é um amante assumido das mudanças. No decorrer do romance, ele nos revela outra paixão: o teatro. Gosto muito de teatro, muadié. Eu nunca vi, a sério. [...] Teatro, muadié? É o paraíso depois do juiz final, dizia o meu pai de tudo quanto era bonito e difícil para se arranjar. (VIEIRA, 1987, p. 66). Durante toda a narrativa, João Vêncio faz uma performance, encena para o muadié na tentativa de convencê-lo de que não é culpado pelos crimes que cometeu. Seu discurso, no entanto, é cheio de contradição. Acusado de ser herege, sádico, sexopata, o narrador tenta justificar as suas ações para o interlocutor: “O sádico, o herejes, sou eu? Malembe-malembe, muadié: os casos só, não falavam a verdade; é preciso as ideias”. (VIEIRA, 1987, p. 29). No decorrer do seu discurso, Vêncio volta a protestar contra as acusações: “doutoro juiz, delegado e outros maiores de leis, eles só vêem a linha recta, não sabem a porta estreita” (VIEIRA, 1987, p. 48). Ao analisarmos o discurso de João Vêncio, podemos perceber que ele é um homem de personalidade fugidia, isso leva o leitor a desconfiar da veracidade das histórias narradas por ele. Pois, se João Vêncio gosta tanto de mudanças e de teatro, nada o impede de estar agindo como um ator. Desse modo, não é absurdo pensar que toda a história contada por João Vêncio seja uma grande invenção. Numa leitura possível, podemos pensar que João Vêncio, esse narrador que tem tanto medo da solidão e que se diz apaixonado por teatro, talvez tenha inventado o seu ouvinte. Nesse sentido, o muadié pode ser uma invenção do narrador, que, com medo de ser consumido pela solidão da cela, fantasia esse personagem para não se sentir só. Essa suspeita torna-se ainda mais forte quando analisamos a quantidade de vezes em que João Vêncio evoca o seu interlocutor. Em uma narrativa de oitenta e nove páginas, a palavra “muadié”, a qual o narrador utiliza para chamar a atenção do seu suposto ouvinte, é utilizada por mais de 80 vezes. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 12
Essa insistência em utilizar uma expressão que demarca a presença do narratário no espaço em que acontece a ação, talvez implique a ausência desse. E na tentativa de manter a ilusão de sua presença, o narrador o interpela diversas vezes. Ao fazer isso, não apenas mantém a presença-ausente do seu interlocutor, como faz com que o leitor também acredite na presença desse. Desse modo, é possível dizer que a narrativa de João Vêncio constitui-se como um jogo que tem como participantes o narrador-personagem e o narratário, que seria uma espécie de representação do leitor empírico. No entanto, há que se dizer que as coordenadas do jogo são dadas por João Vêncio, que encontra no muadié um ouvinte-jogador ideal. Essa relação harmônica entre locutor e interlocutor pode ser confirmada com trechos da narrativa: “O muadié é a água da minha sanga” (VIEIRA, 1987, p. 17). E ainda: “Ah! O muadié topou? E adivinha? O senhoro é a minha felicidade” (VIEIRA, 1987, p. 23). E mais adiante: “O muadié é minha sombra de mandioqueira - refresca-me seu xaxualho de cabeça” (VIEIRA, 1987, p. 39). Os fragmentos do texto destacados nos mostram que o narratário se constitui como um ouvinte perfeito: João Vêncio conta e o muadié ouve. No entanto, o muadié não escuta apenas, ele opina quando tem um juízo formado e silencia quando não tem o que dizer ou quando não tem um julgamento adequado a respeito de alguma questão: “O senhoro não diz nada? Nadinha? Palavra, muadié, não lisonjo: eu gosto de suas poses, apreceio, gostava de ser assim. Que não fala do que não sabe – isso é a sabedoria sages” (VIEIRA, 1987, p. 72). Esse comportamento do narratário, que faz o jogo do narrador, deixando-o conduzir as jogadas, se assemelha ao comportamento do leitor ideal de Iser que, de acordo com Antoine Compagnon, se mostra como “um espírito aberto, liberal, generoso, disposto a fazer o jogo do texto (COMPAGNON, 2001, p. 154). Inicialmente, quando avaliamos a imagem do colar de missangas, em que o fio sugere um narrador e as missangas um narratário, a ideia que nos vem à cabeça é de que a condução do texto é feita pelo par narrador e narratário. No entanto, quando Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 13
analisamos a narrativa com um olhar mais minucioso, observarmos que essa imagem pode ser questionada. Pois, mesmo que o narratário seja um elemento importante na construção do enredo, é o narrador quem determina as regras do jogo. Nesse sentido, é possível afirmar que: O jogo do texto, portanto, é uma performance para um suposto auditório e, como tal, não é idêntico a um jogo cumprido na vida comum, mas, na verdade, um jogo que encena para o leitor, a quem é dado um papel que o habilita a realizar o cenário apresentado. O jogo encenado do texto não se desdobra, portanto, como um espetáculo que o leitor meramente observa, mas é tanto um evento em processo como um acontecimento para o leitor, provocando seu envolvimento direto nos procedimentos e na encenação. (ISER, 2002, p. 116). De acordo com o fragmento destacado, no jogo do texto o leitor não se comporta como um mero espectador, mas como alguém que participa diretamente da encenação. No entanto, ao analisarmos o romance João Vêncio: os seus amores, podemos observar que mesmo que o leitor tenha uma suposta liberdade de decidir sobre os caminhos do texto, todas as coordenadas são dadas pelo narrador. Isso pode ser comprovado com o seguinte trecho da narrativa: “O sádico, o herejes sou eu. Que mão me dá sapiência de cabelo branco em cabeça de monauisso? O muadié está agora no kibiri-kibinji2! Arrasca!... Eu dou o cão – vamos na mata”. (VIEIRA, 1987, p. 28). No excerto destacado, ao perceber que o muadié está na dúvida a respeito da sua narrativa, pois não sabe se, ele, João Vêncio, é mesmo um sádico, hereges, ou se tudo não passa de invenção, Vêncio determina “eu dou o cão – vamos na mata”, desse modo, deixa claro que se o muadié está perdido, ele dará o cão, ou seja, é ele quem determinará as coordenadas para que o narratário encontre o caminho. 2
Kibiri-kibinji significa dilema, em quimbundo. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 14
No decorrer da narrativa, João Vêncio dá outros sinais de que mesmo que o narratário, figura representativa do leitor, participe de todas as jogadas, é o narrador quem domina o jogo. Podemos exemplificar essa afirmativa com mais um trecho do romance: “O senhoro é que informa, aceito. Mas duvido” (VIEIRA, 1987, p. 43). O trecho em evidência nos mostra que no momento em que o narratário tenta assumir a condução do jogo, dando uma informação ao narrador, João Vêncio não aceita a intervenção feita, ou melhor, aceita, mas duvida. Pois, sendo o dono do jogo, é ele quem toma as decisões e determina todas as regras, inclusive, o momento em que o seu interlocutor se tornará apto para julgá-lo: “Agora o muadié está apurado para o meu juiz” (VIEIRA, 1987, p. 49). Mesmo conduzindo a narrativa à sua maneira, sem dar muito espaço ao narratário, em alguns momentos, João Vêncio utiliza um discurso que passa a ideia de que o jogo está aberto e de que ambos conduzem a história juntos. Isso acontece quando usa a metáfora do colar de missangas, sobre a qual já falamos e, mais adiante, depois de concluir que o muadié já está preparado para ser o seu juiz. João Vêncio, então, mais uma vez, utiliza uma metáfora para tentar convencer o narratário e também ao leitor de que ambos participam diretamente da condução da narrativa. O excerto que segue comprova essa afirmativa: “Com o muadié eu estou na mata, usamos o mesmo cachorro, camaradas companheiros. O senhoro tem um coração de monandengue, seus cabelos adiantaram, é a prova digital...” (VIEIRA, 1987, p. 52). Assim, em toda a narrativa, João Vêncio vai jogando com o seu interlocutor. Vai encenando um espetáculo em que ele é o ator principal. Configurando-se como um exímio contador de histórias, Vêncio consegue entreter o seu interlocutor, fazendo com que esse tenha a ilusão de que tem o controle do desenrolar dos acontecimentos, quando, na verdade, é a todo tempo “manipulado” pelo narrador, que define os caminhos que a história deve tomar e indica as trilhas que o interlocutor deve seguir. Nesse caminho pelos bosques da narrativa, narrador e narratário podem até dividir o mesmo cachorro, no entanto, é o Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 15
narrador-personagem quem conduz o animal pela coleira. Dessa forma, podemos afirmar que A liberdade concedida ao leitor está na verdade restrita aos pontos de indeterminação do texto, entre os lugares plenos que o autor determinou. Assim, o autor continua, apesar da aparência, dono efetivo do jogo: ele continua a determinar o que é determinado e o que não é. (COMPAGNON, 2001, p. 155). Conforme já dissemos, João Vêncio: os seus amores é um romance que parte de um diálogo, porém ouvimos apenas uma voz. O muadié, narratário, faz os questionamentos e a sua fala é reproduzida pela voz do narrador. Nesse diálogo com o muadié, João Vêncio responde às suas perguntas, mas também lhe faz muitos questionamentos, que nunca são respondidos pelo interlocutor, pois, o próprio narrador responde. Mesmo que o muadié não responda as perguntas de João Vêncio, essas questões são muito importantes para chamar a atenção do leitor, porque a cada vez que João Vêncio chama a atenção do muadié, é como se tivesse chamando a atenção do próprio leitor: “Por isso pergunto depoimento do muadié: vida de pessoa não é assim a missanga sem seu fio dela, misturada na quindinha dos dias?” (VIEIRA, 1987, p. 14). Nessa medida, ao questionar o muadié, é como se João Vêncio quisesse fazer com que o leitor reflita sobre a história que está sendo contada. E ao estimular o leitor a refletir sobre as ações cometidos por ele, algumas que podem ser consideradas bem cruéis, como ter furado os olhos dos pássaros com agulhas, João Vêncio talvez queira mostrar que nem tudo é o que parece. Preso por tentativa de homicídio, ele tenta mostrar que tudo não passa de um exagero da justiça: “Tentativa de homicídio frustrado – o muadié é a água de minha sanga. Porquê mais palavras feias na justiça são mais, no amor são menores?” (VIEIRA, 1987, p. 17). Contudo, algumas vezes, é o muadié quem faz as perguntas que obrigam o narrador a refletir sobre os seus atos: “A dor purifica a beleza? Muadié, tem cada pergunta! Solte meus passarinhos, não Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 16
cresce outra vez o capim rõim do meu coração remorsificado” (VIEIRA, 1987, p. 50). Diante do exposto, podemos apreender que o romance João Vêncio: os seus amores é um emaranhado de fios e missangas, fios que se entrelaçam e se confundem. A história conduzida por João Vêncio se constitui como uma espécie de jogo, em que participam dois jogadores, o narrador e o narratário. No entanto, mesmo que haja uma ilusão de que ambos os jogadores conduzam o jogo juntos, é o narrador quem determina as regras. Desse modo, em um primeiro momento, podemos pensar que toda a história do personagem-narrador é uma invenção, afinal de contas, ele pode estar agindo como um ator em cena. Entretanto, tudo isso pode, simplesmente, fazer parte da estratégia do jogo de João Vêncio, que tenta confundir o seu interlocutor, fazendo o imaginar que os fatos narrados sejam fantasiados, evitando assim de ser julgado de maneira severa pelos seus atos. Pois, se tudo não passa de fingimento, não há porque condená-lo. Assim, se a história contada por João Vêncio é imaginada ou verdadeira, talvez nunca possamos responder. Parece que estamos diante de um jogo onde não há ganhadores ou perdedores, apenas indeterminações e incertezas.
Referências BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes Editores, 2006. COMPAGNON, Antoine. O leitor. In: O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. ISER, Wolfang. O jogo do texto. In: A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. VIEIRA, Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1987.
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Motta Coqueiro ou a pena de morte Uma trama entre a memória social e a literatura
Marcos Teixeira de Souza Doutorando em Sociologia (IUPERJ/UCAM), membro pesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos — CEAA e professor da Universidade Estácio de Sá (UNESA).
Motta Coqueiro ou a pena de morte, escrito em 1877, por José do Patrocínio, rememora o caso real do último enforcamento no Brasil, o do fazendeiro Motta Coqueiro, suposto mandante de um violento crime ocorrido no norte fluminense em 1852, controverso até a presente data, contra uma família de agregados, que vivia nas terras do citado fazendeiro. Porém, não restrito ao evento trágico, o romancista leva perspicazmente o leitor para uma narrativa, que ressalta o drama dos negros, dos agregados e do fazendeiro na estrutura colonial; que desnuda os critérios de cor e classe social no Brasil colônia; que evidencia o papel da Memória como uma ferramenta manipulável, ativa e estratégica nas relações sociais.
Palavras-chaves: José do Patrocínio; Motta ou a- ISSN pena2317-4722 de Morte; romance; Jangada: Colatina/Urbana, n. Coqueiro 4, jul-dez, 2014 – Pág. 18 Memória Social.
Introdução
O
romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, escrito em 1877, por José do Patrocínio, um dos maiores abolicionistas e jornalistas do século XIX, narra a história de Motta Coqueiro, influente fazendeiro do norte-fluminense, que é acusado pelo bárbaro homicídio, com requintes de crueldade, contra uma família de agregados que vivia em suas terras. A família de agregados, formada por Francisco Benedito, sua esposa e três filhas moças, o filho moço Juca e mais duas crianças, viera de outras terras, e, num primeiro momento, conquistara a simpatia da família de Coqueiro, excetuando somente o vício de Francisco Benedito pela bebida. No enredo, as três filhas do casal de agregados – Antonica, Mariquinhas e Chiquinhas – despertaram, por serem lindas, a atenção masculina da localidade, sobretudo o interesse de três homens – Oliveira Viana, Manuel João e Sebastião, os quais, ao longo do romance, procurarão, cada um a seu modo, conquistar uma das filhas do agregado. Dentre os três referidos rapazes, um deles se destaca na narrativa de Patrocínio: Manuel João, que questionava a si mesmo, por ser mestiço, a respeito da possibilidade de uma moça branca, como Mariquinhas, desejá-lo. No íntimo, Manuel João desconfiava de uma suposta afronta de Motta Coqueiro contra a virgindade da moça. Esta suspeita é também alimentada pelos dois companheiros de Manuel João, que veem muita liberdade entre as filhas do agregado com o fazendeiro, que em sua propriedade mantinha escravos. Uma das escravas, chamada Balbina, é singular no romance. Após ser expulsa da Casa grande, onde cuidava do filho do patrão, e ser lançada à senzala e ao trabalho no eito, esta se torna uma pessoa consciente, na própria pele, da aflição e condição imposta à etnia negra, sendo uma voz dissonante diante do status quo colonial. O trágico assassinato da família de agregados e suspeita da autoria de Motta Coqueiro e de outras personagens, entre elas, a esposa de Coqueiro, que Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 19
desconfia da fidelidade do marido, criam uma atenção propícia ao romance, além de outras tensões secundárias ao longo da obra. Fora das páginas do folhetim, o ato bárbaro de assassinar a machadadas, a mando de um fazendeiro rico, uma família trabalhadora e indefesa e, em seguida, de a queimar, causou muita revolta na sociedade do norte fluminense, bem como em todo o Brasil, a ponto de não obter a graça do perdão do Imperador, que poderia alterar a sentença judicial proferida pelo juiz em Macaé. O fim trágico do fazendeiro Motta Coqueiro era um assunto que, desde a infância, Patrocínio acostumara a ouvir. Era um fato popular. Segundo matéria da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, edições 428 e 429 (2005, p. 299), sobre a tragédia em Macabu: “O caso tendeu para quase uma lenda”. Decerto era presente na memória individual de Patrocínio, que viu na revelação de uma nova versão para o acontecido, um material farto para empreender um romance. Até então, a Gazeta de Notícias não publicava romances de autores brasileiros, somente a tradução de folhetinistas estrangeiros. Segundo diz o biógrafo Uelinton Farias Alves (2009, p. 94), a Gazeta de Notícias, jornal fundado em agosto de 1875, por Ferreira de Araújo,), foi uma das principais arenas em que Patrocínio empreendeu sua causa abolicionista, valendo-se principalmente do pseudônimo Proudhomme, uma alusão ao pensador francês Pierre-Joseph Proudhon. Nesta gazeta, Patrocínio, pouco a pouco, consolida seu nome como colunista na Semana Política, coluna na qual aborda com muita desenvoltura temas políticos, sobretudo aqueles relacionados à escravidão, às elites contrárias à Abolição, etc. A partir de um dos casos chegados à redação do Gazeta de Notícias, retomando, com uma nova versão, um evento de mais de vinte anos sobre um enforcamento de um rico fazendeiro do norte fluminense, Patrocínio escreve um romance. De acordo com Alves (2009): Desse fato corriqueiro surgiu a oportunidade que Patrocínio esperava para lançar um folhetim de grande circulação para o momento sob o título “Motta Coqueiro ou a pena de morte”, Quando Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 20
encetou a publicação dos capítulos iniciais do romance, sempre aos sábados, no rodapé do jornal, o fez de maneira anônima, provavelmente com o receio de não poder levar adiante tão difícil empreitada, que lhe exigia trabalho redobrado. (ALVES, 2009, p. 102) Expressa ainda Alves (2009) sobre este romance de Patrocínio publicado na Gazeta de Notícias: “Publicado inicialmente em fins de 1877, o material saiu em livro no início do ano seguinte, com muito reclame por parte da imprensa, sendo oferecido até na redação do jornal”. (ALVES, 2009, p. 102) Com a ideia em mente, Patrocínio via consigo a oportunidade de alcançar, pelo menos, dois feitos: ser o primeiro brasileiro a publicar na Gazeta de Notícias, e ser o primeiro a propagar em maior dimensão uma nova versão a um fato que era presente na memória coletiva brasileira, sobretudo na corte, na província de Campos dos Goytacazes e nas circunvizinhanças. Como se sabe por meio de muitos artigos escritos pelo jovem campista, a obra de Patrocínio composta em poesia, até então exposta nos jornais, anterior ao romance, em razoável parcela, estava calcada em memórias individuais. Subentende-se que a utilização de memórias individuais era um procedimento literário com o qual Patrocínio se sentia à vontade e/ou era mais propenso a fazer. Nas duas extremidades do romance, ou seja, no primeiro e no último capítulos, o foco se dirige para o suplício de Motta Coqueiro e para a discussão sobre a pena de morte, que alçam importância. Os capítulos que se situam internamente a estas duas extremidades agrupam temas e situações mais ligados ao cotidiano dos personagens primários e secundários, descentralizando nestes capítulos qualquer vestígio da pena capital. O primeiro e o segundo capítulo encabeçam a discussão sobre a memória que, como se verá, estará em disputa consigo mesma, ou seja, entre a memória popular e a memória arquitetada pelo narrador concernente à inocência ou à culpa de Motta Coqueiro. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 21
A animalização, a humanização e a cristianização da memória de Motta Coqueiro Nos capítulos intermediários de sua obra, sem perder a necessidade de encadeamento com o primeiro e o último capítulo, Patrocínio constrói ou tem um espaço no qual discorreria sobre a estrutura rural vigente à época, os papéis sociais e raciais presentes nesta estrutura social, o dilema da escravidão, o amor submisso ao dilema de classe social e de raça. Há neste espaço intermediário do romance, um comprometimento de Patrocínio em descrever a sociedade rural, seu povo, as peculiaridades da estrutura social, pondo à margem, ou seja, nos capítulos primeiro e último, o drama de Motta Coqueiro. Patrocínio poderia ter escrito um romance centralizando só o caso de Motta Coqueiro, mas não quis fazê-lo. O tigre da Abolição via a necessidade de trazer para o seu texto temas relevantes como a escravidão, o amor em meio a dilemas de classe, cor, etc. Efetivamente a escrita do seu primeiro romance não está dissociada de sua experiência pessoal, de uma memória. Ao contrário, esta experiência, intencional ou não, e, por extensão, a memória desta experiência, mostram-se no papel, ainda que não de forma exata, literal e linear - mas presente, consonante com o que Bergson (2006) afirma: Na verdade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que ele irá juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora. (BERGSON, 2006, p. 47) Partindo da afirmação de Bersgon (2006), é concebível que a experiência pessoal de Patrocínio tenha sido um material considerável para a realização do romance. Desde a infância, quando viu a estrutura escravocrata de perto, por anos, a olhos nus, por meio da vivência na fazenda do Imbé; desde a sua Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 22
chegada à corte, quando viu também de perto, a olhos nus, as dinâmicas de cor e classe social no âmbito profissional e, em especial, em sua tentativa de conquista do amor de Bibi e do apreço da família da moça; desde os primeiros anos de juventude, ao escrever sobre política, percebia como o jogo político é perverso; etc. todo esse passado, acumulado, se moveria para a escrita de seu primeiro romance, não somente pela concepção supracitada de Bergson (2006), mas também pela própria inclinação de Patrocínio com estas temáticas. Logo, dizer que o romance se ocupa apenas em tratar da questão da eficiência ou não da pena capital como uma paga social de um crime seria um equívoco, assim como afirmar que a obra despende sua força em tratar de um erro judiciário. Ocorre, na verdade, um preenchimento de outras temáticas que se apresentam ao leitor ao longo do romance, e, que inclusive, em alguns momentos desta prosa, ofuscam a sina da pena capital para Motta Coqueiro, ou dela se distanciam. Tão-somente no primeiro e no último capítulo do romance é que se concentra o debate de ideias sobre a aplicabilidade da pena capital. É um debate, a bem da verdade, que se faz de modo praticamente unilateral, em que o autor, na função de narrador, constrói uma defesa argumentativa, às vezes em tom emotivo e grandiloquente, contra a pena de morte, rivalizando-se dos personagens defensores e da população macaense de modo geral, que se comportam de modo impiedoso contra o protagonista. No primeiro e no último capítulo, Patrocínio retira do protagonista Motta Coqueiro – ou esconde do leitor – o papel social de mantenedor de um sistema escravocrata, ao deslocar a figura do fazendeiro para uma caracterização nova, em prol da construção de uma memória para Motta Coqueiro. O papel social de fazendeiro, diante da revolta popular, só avulta mais ainda o ódio da população contra Coqueiro, que o via como alguém que poderia mandar e desmandar na sociedade por meio da corrupção e do tráfico de influência. Logo, é preciso despir Coqueiro deste papel social, e colocá-lo mais próximo da sina de uma pessoa vitimada por um erro judiciário, ou ainda, por causa de uma Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 23
disputa política. Despido do papel social de fazendeiro, já que não consta qualquer referência do termo fazendeiro no primeiro capítulo, em que se dão os últimos lances de vida para Coqueiro, este avança para o patíbulo desprendido da figura de um membro usurpador na estrutura escravocrata. À medida que se delineia a tragédia vindoura para Motta Coqueiro, Patrocínio tenta remodelar o protagonista para duas caracterizações sucessivas. A primeira tentativa é a de humanizar Motta Coqueiro, que no capítulo anterior fora desumanizado pelo título de fera de Macabu, a este conferido pela imprensa local e influente: No Cruzeiro, sob a rubrica de alto efeito: Caso horroroso; no Monitor, sob três vezes mais comprometedora: A fera de Macabu, o submisso dicionário foi explorado pelos publicistas, impelidos pela sede vesana de adjetivos, ora sentimentais como um livro de Lamartine e que eram consagrados em nênias aos assassinados, ora infamantes como um baraço e estes oferecidos, dedicados e consagrados a Motta Coqueiro. (PATROCÍNIO, 1977, p.223) O título de fera de Macabu, além de outros, tomara as consciências do povo local e da nação como um todo, e transformara Motta Coqueiro num alvo frágil, pois se construía com estes dizeres veiculados pela imprensa local não só uma adjetivação, ou um ataque, mas, sobretudo uma memória, que teria um alcance social, e, portanto, passível de se tornar uma memória coletiva. É oportuno lembrar que o crime se deu em Macabu (atual município de Conceição de Macabu – RJ) que, à época, era um pequeno povoado pertencente à cidade de Macaé. Sendo a imprensa uma das forças locais, a formação de uma memória coletiva de uma suposta ferocidade de Motta Coqueiro se disseminou com facilidade, embalada um por adjetivo vesano (insensato), fera de Macabu, que punha Motta Coqueiro na condição de desumano. Mais ainda, na condição de animalizar o fazendeiro, que não tinha a seu alcance um mecanismo à altura da imprensa local para contrapor a suposta Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 24
infâmia atribuída a ele. A animalização do humano Motta Coqueiro inspirava ainda mais o repúdio da população local e nacional, que aspirava ao réu uma pena exemplar, a forca. Defensor de Coqueiro, Patrocínio tenta retirar este peso de animalização sobre o fazendeiro, transferindo-o para o algoz, isto é, para o carrasco, que passa a ser caracterizado como uma fera: “Fuzilava-lhe nas feições o garbo bestial do crime. (...) Pelas narinas carnudas e achatadas a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos seus instintos de fera”. (PATROCÍNIO, 1977, p. 33). O mesmo ocorre, também, entre outras menções contidas no texto, por exemplo, em: “Revolvendo nas mãos o gorro vermelho iludia porventura a impaciência que lhe causava a demora da execução. Negaças de tigre antes de dar o bote à presa”. (PATROCÍNIO, 1977, p.36) Caracterizar o carrasco sob este prisma de um ser animalizado simboliza mais do que um mero revide de Patrocínio. É prioritariamente uma crítica que formula para atacar a sociedade de modo geral e as instituições sociais que brutalizam o ser humano, que formam no interior dela(s) um carrasco, em outras palavras, um animal. Patrocínio desvia o leitor da memória coletiva sobre a fera de Macabu, e advoga em favor de Motta Coqueiro, transferindo, como se viu, a animalização para o carrasco. Patrocínio afirmará tal como o representante das instituições sociais e da sociedade; e paralelamente humanizando o fazendeiro, diante do leitor. Assim, quanto à animalização do representante da sociedade (o carrasco), dentre outras, observa-se: A religião no seu painel mostra que possui para as supremas desgraças o supremo perdão; a sociedade com o seu carrasco, alimentado com a lama das enxovias, diz-nos que para as acusações formidáveis ela só conhece o castigo iníquo e irreparável. (PATROCÍNIO, 1977, p. 32) E ainda: Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 25
Havia, porém, um homem em quem a solenidade singela do ofício divino não produzia a menor impressão. Era o carrasco, o monstro negro, que brincava distraidamente com o seu barrete, revolvendo-o entre as mãos. Estátua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asfalto do calabouço, argamassado com o sangue que os açoutes lhe tiraram do corpo, o desgraçado folgava talvez na sua brutalidade de fera. Os brancos fizeram dele uma vítima; proibiram-lhe que afinasse os sentimentos pela compreensão exata da família, da religião e da pátria; devia serlhe grato poder vingar-se de um dos seus opressores. (PATROCÍNIO, 1977, p. 36) Estas duas citações, que se localizam na narração, ou seja, que remetem a posicionamentos do narrador, expressam nitidamente o desejo de Patrocínio de fazer críticas diretas à sociedade pela postura que ela detém contra um refém da estrutura social, especialmente da judiciária e da política. Caracterizando-a como uma sociedade desumana ou animalizada, Patrocínio ataca-a, impondo a ela um status de perversa não só contra o negro, o agregado, o mestiço, mas contra quem quer que seja, inclusive contra um homem branco pertencente à classe dominante, que, embora pertença a esta classe, vê-se em disputa contra outro membro da classe dominante. A sociedade é vista como uma opressora, e parte desta opressão advém pela busca de poder sobre outros membros a qualquer custo, pela busca sobre a posse da terra, ranços da colonialidade. A humanização de Coqueiro, em face à desumanização que sofrera no interior da memória coletiva macaense, é uma tática de Patrocínio para construir a inocência de Coqueiro. Esta construção da inocência se dá também pela tentativa de injetar uma memória de vitimização de um inocente, frágil presa da sociedade e das instituições políticas e judiciárias. O importante Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 26
nesta etapa é conduzir o leitor a sua própria memória individual sobre a inocência do suposto culpado, para que, à medida que o leitor interaja com a trama, tenha compaixão por Coqueiro, e lhe tire da posição de culpado para a de vítima de um sistema social ardiloso. As descrições acerca de Coqueiro no primeiro e no último capítulo, que encenam um Coqueiro fragilizado, contrastam muito com a força que o protagonista tinha nos capítulos intermediários. Semelhantemente ao intento de animalização do carrasco, escamoteando a de Coqueiro neste aspecto, ocorrem diversas passagens que constroem no leitor uma memória individual de vitimização e de fragilização de Coqueiro, e não de uma fera, tal como se tem na memória coletiva da sociedade macaense. Naquela hora, esse homem severo, completamente vestido de preto, e com o semblante embaciado pela mais sincera tristeza, parecia o latente remorso de uma população inteira, que vinha assistir à tragédia judiciária para mais tarde lavar a nódoa que manchava as vítimas da lei. (PATROCÍNIO, 1977, p. 27) Outro exemplo: Os juízes chegam ao tribunal com os estômagos cheios e os corações afagados pelos carinhos da família; riram ao almoço satisfeitos com a graciosidade dos brincos dos seus caçulas; riram à entrada do tribunal, alegrados pela jocosidade dos amigos; aplaudiram os tropos ardentes da acusação e da defesa e entusiasmaram-se com a arte revelada pelos juristas na elaboração do libelo e do contralibelo, e depois retirados para a sala secreta, submetem os quesitos, não ao critério formado pela sensata apreciação do entrecho do processo, mas aos preconceitos que em suas mentes de burgueses honestos foram arraigados pelos comentários e legendas abortados da ignorância popular, tão oficiosa em cooperar para o mal do Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 27
próximo, quanto remissa para fazer-lhe bem. (PATROCÍNIO, 1977, p. 38) A desenvoltura em argumentar nestes dois campos – a animalização do representante da sociedade e das instituições sociais e a humanização de Coqueiro – seduz o leitor para a tese de Patrocínio, que sente uma repulsa pela injustiça praticada pela sociedade macaense e pelas instituições locais que participam direta ou indiretamente na condenação de Coqueiro. Como não se bastasse o argumento de humanização e vitimização de Coqueiro, Patrocínio aprofunda o grau de argumentação e, neste ponto, de emotividade em torno da construção de uma memória individual (do leitor) no tocante à inocência de Coqueiro, ao apelar para a construção de uma memória de um mártir. Não podendo intervir nos rumos da história, sob pena de fugir ao objetivo de ser fidedigno a ela, eis a solução possivelmente máxima encontrada para tonificar o papel de vítima para Coqueiro e angariar o leitor à sua tese: Patrocínio traça o caminho de Coqueiro ao enforcamento e à morte numa perspectiva memorativa a Cristo. Ocorre, assim, a tentativa de cristianização da memória da morte de Coqueiro. Segundo Jacques Le Goff (1990), o Cristianismo constituiuse na Idade Média – e ainda o é – uma religião calcada muito na construção, na preservação e no reconhecimento da memória como parte de sua liturgia. Citando Oexle (1976), Le Goff (1990) menciona também que o Cristianismo se caracteriza como uma religião de recordação. A memória, no Cristianismo, teve uma relevância expressiva e um desenvolvimento substancial na Idade Média com base em: Cristianização da memória e da mnemotecnia, repartição da memória coletiva entre uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de fraca penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, aparecimento Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 28
enfim de tratados de memória (artes memoriae), tais são os traços mais característicos das metamorfoses da memória na Idade Média. (LE GOFF, 1990, p. 443) Patrocínio se vale do princípio da memória do desenvolvimento dos mortos como um ponto de partida e, sobretudo, de chegada para convencer ao leitor sobre a inocência de Coqueiro. Ponto de partida no que concerne a descrever Coqueiro, desde o início de sua prisão até a chegada ao patíbulo, sob uma feição martirizada e cristianizada; e ponto de chegada no que se refere à execução de Coqueiro e à infâmia à memória do morto. A construção de uma memória cristianizada de Coqueiro não se limitava a moldar o protagonista semelhante a Cristo ou a um mártir cristão. Segundo Pollak (1992), existem elementos constitutivos da memória que atuam sobre uma pessoa ou grupo social (ou Nação) e que se inter-relacionam: Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. (...). Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas, personagens. (...) Além dos acontecimentos e das personagens, podemos finalmente arrolar os lugares. (POLLAK, 1992, p. 02) Percebe-se, no drama de Coqueiro, que ocorre a cristianização da memória na esfera do lugar, do acontecimento e da pessoa. Patrocínio engendra um quadro descritivo, com forte apelo emocional, em que os elementos constitutivos da memória propostos por Pollak (1992) são introduzidos no texto ficcional para assemelhar Coqueiro a Cristo ou a um mártir cristão. Assim, em relação à transfiguração de Coqueiro na pessoa de Cristo ou de mártir cristão: Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 29
Se se pode traçar paralelo a semelhante sofrimento, era como o do Cristo diante do cálix de amargura na tremenda noite do Horto. Ambos, porém, acabaram pela resignação, e tiveram a serenidade heróica de encarar, caminhar e subir ao patíbulo, dando de esmola à atroz perseguição o perdão sincero dos seus espíritos calmos. (PATROCÍNIO, 1977, p. 251) A aproximação da memória do sofrimento de Cristo com a memória do suplício de Coqueiro se alinha de tal maneira que Patrocínio se utiliza do termo ambos, para fundir em uma só memória, e assim empreender seu objetivo de inocentar diante do leitor, na memória, Motta Coqueiro. Não só este termo, as atitudes narradas a respeito de Coqueiro ante a condenação validam a sensação de uma memória cristianizada de Coqueiro. O elemento constitutivo da memória Pessoa assoma-se a outro elemento fundamental neste processo de construção de uma memória cristianização para Coqueiro: o lugar. A rua, na sina de Coqueiro até o patíbulo, torna-se a via-crúcis. Ora envolvido no rufo rouco dos tambores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das cornetas, o préstito seguiu vagarosamente pelas ruas mais concorridas da cidade, até parar em frente à igreja, onde o pregoeiro em alta voz leu ainda uma vez a sentença irrevogável, que devia manchar na cabeça de um homem o nome de toda a sua família. (PATROCÍNIO, 1977, p. 34) O acontecimento, um dos três elementos constitutivos da memória na concepção pollakiana, em si mesmo, é dirigido para uma interpretação de uma memória cristianizada de Coqueiro: a aflição inicial, a forma resignada, praticamente muda ante a subida ao patíbulo, os insultos e a hostilidade da população, a conspiração articulada contra o réu, a morte injusta, entre outros aspectos, figuram um acontecimento semelhante ao da crucificação de Cristo. É pertinente frisar que a articulação destes Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 30
aspectos no texto prima por um sentimento de aproximação da redenção do protagonista. Alguns dias depois da sua chegada a Macaé, cuja população recebeu-o com as mais hostis e ruidosas manifestações, aumentadas de odiosidade dia por dia, graças aos libelos dos homens de influência, e muito particularmente do Dr. Velho da Silva, por esse tempo delegado de polícia e juiz municipal, Motta Coqueiro foi mandado para Macabu a fim de ser interrogado. (PATROCÍNIO, 1977, p. 229) Assim, ocorre não só a construção de uma memória coletiva de mártir para Motta Coqueiro. Pode-se paralelamente observar o apagamento, a produção do esquecimento de uma memória coletiva de um Motta Coqueiro fazendeiro e capitão. No último capítulo, Patrocínio descreve várias vezes Coqueiro como fazendeiro, no entanto, nenhuma como capitão. No primeiro capítulo, cujo personagem já se encontrava na condição de sentenciado, os termos fazendeiro e capitão não aparecem na trama, motivado certamente pela necessidade de caracterizar o personagem com uma identidade mais cristianizada e, consequentemente, lograr no intento de montar uma memória para Coqueiro numa versão de mártir, renegando assim a pôr neste primeiro capítulo, que o derradeiro da vida de Coqueiro, os termos fazendeiro ou capitão. Como expressa Pollak (1992:08), o não-dito também assume relevância, porque evidencia uma intencionalidade, um objetivo que leva aquele que propõe a criar ou contar uma memória a manipulá-la segundo interesses próprios. Além da imprensa, existe outro lugar produtor e/ou disseminador da memória coletiva sobre a fera de Macabu: a rua. Esta também era um espaço de formação e propagação desta memória coletiva, sobretudo numa cidade interiorana que não dispunha de muitos meios de comunicação à época. É nela – na rua – que se dá a movimentação das notícias, das falas, das hipérboles que cercam o nome de Motta Coqueiro, e que tornam a memória coletiva uma memória viva e ativa na sociedade Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 31
descrita por Patrocínio. Roberto DaMatta, em O que faz o Brasil, Brasil? (1986), analisando o povo brasileiro sob um prisma que contempla as particularidades da identidade e cultura brasileira, cita a rua como um espaço social do movimento em paralelo à casa: É claro que a rua serve também como o espaço típico do lazer. Mas ela, como um conceito inclusivo e básico da vida social — como “rua” —, é o lugar do movimento, em contraste com a calma e a tranquilidade da casa, o lar e a morada. (DAMATTA, 1986, p. 19) Tal distinção estabelecida por DaMatta (1986) colabora em muito para o que se pretende inferir sobre a ação da memória (tanto individual quanto coletiva) na estrutura social da localidade descrita por Patrocínio, inclusive na brasileira. A memória coletiva sobre a fera de Macabu é vivenciada, alimentada na rua, ainda que seja obviamente possível que também o seja na casa. Mas é na rua que esta memória coletiva tem um peso maior, porque neste espaço ocorre o fortalecimento dela, a socialização do evento, o sentimento de que o que está na memória de um é a memória coesa de um grupo social, que deseja a pena capital para Motta Coqueiro. Pollak (1992) entende que existem três elementos constitutivos da memória, um deles é o lugar: Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cronológico. (...) Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver lugares de apoio da memória, que são os lugares de comemoração. (POLLAK, 1992, p. 02) No caso da trama do romance, a rua se afirma como um lugar da memória pela circulação de falas e memórias que nela habitam. É um lugar no qual a voz do cidadão (e de sua memória individual sobre Motta Coqueiro) se exibe, bem como é influenciada pelo coletivo, formando uma “compacta massa de Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 32
povo” (PATROCÍNIO, 1977, p. 26). A rua, como define DaMatta (1986), é o lugar do movimento, portanto, é o lugar onde a memória coletiva irá circular, irá ter peso como evento social, e não como algo pessoal. A circulação da memória coletiva aviva a trama de Patrocínio, que pinta o quadro com vivacidade, levando o leitor para as ruas de Macaé, para se misturar ao pensamento da multidão. Porém, o ideário de Patrocínio, diante da correnteza da multidão que abrigou na mente uma memória coletiva anti-Motta Coqueiro, é dirigir o leitor para a tese da inocência de Motta Coqueiro. Uma das tentativas, até promissora, é a de desfigurar a multidão da condição de julgamento imparcial. Mais do que desdizer a multidão sobre a inocência ou não de Motta Coqueiro, a estratégia é desqualificá-la de racionalidade para o debate. A multidão descrita por Patrocínio está fragilizada por uma sentimentalização excessiva sobre o crime, está envolta às vesânias da imprensa, o que a faz refém do posto de julgadora. Outra estratégia é a de escalar dois personagens, Sr. Martins e Sr. João Seberg, para contrapor à memória coletiva sobre a fera de Macabu: Desanimado e entristecido por não encontrar na compacta massa de povo uma pessoa só que concordasse consigo, plenamente, na inocentação de Coqueiro, Martins atravessava rapidamente o beco do Caneca, quando foi detido por uma vigorosa mão. (PATROCÍNIO, 1977, p. 26) Infere-se da expressão “compacta massa de povo” que a memória coletiva do povo macaense estava construída em torno do desejo de condenação de Motta Coqueiro. Ou seja, a memória coletiva já tinha uma força social expressiva, que se retroalimentava principalmente na rua. A fala do narrador não se ocupa de um espaço definido, de um lócus fixo, cabendo, porém, aos personagens Sr. Martins e Sr. João Seberg a inserção de um pensamento oposicionista à massa compacta na rua. As falas destes dois personagens, ancoradas em parte na memória individual destes sobre Motta Coqueiro não conseguem rivalizarse com a força da memória coletiva na trama, pois esta memória Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 33
costuma sobrepor-se àquela. Contudo, criam, no leitor, um quadro de ligeira dúvida sobre a culpabilidade de Coqueiro. Isto porque as falas e memórias individuais sobre Motta Coqueiro carregam um tom de intimidade com a vítima e consideração por ela, proporcionando aos dois personagens razoável credibilidade. Com a presença da memória individual lida nas falas de Sr. Martins e Sr. João Seberg, Patrocínio reinventa a rua como um espaço intimista, e faz um contraponto à massa. Se em DaMatta (1986): Assim, conforme tive que repetir inúmeras vezes, somos uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no outro mundo. Mudamos nesses espaços de modo obrigatório porque em cada um deles somos submetidos a valores e visões de mundo diferenciados que permitem uma leitura especial do Brasil como um todo. A esfera de casa inventa uma leitura pessoal; a da rua, uma leitura universal. (DAMATTA, 1986, p. 19) Neste romance de Patrocínio, a rua assume também a condição de ser um espaço circulante da memória individual, de leitura do pessoal, ainda que seja na perspectiva do personagem para o leitor. A rua, com esta nova característica, ganha um contorno de dualidade: ser uma esfera pública e privada na qual circulam memórias individuais e coletivas, de ser, metaforicamente, a casa da memória, seja esta individual ou coletiva, em razão de acolher as diversas expressões e impressões memorativas relacionadas a Motta Coqueiro. A mutabilidade de comportamento (e identidade) do brasileiro entre os espaços a que se refere Damatta (1986) sugere pensar que a massa compacta era composta por indivíduos de comportamentos e personalidades diversos, mas que se uniformizam em torno da memória coletiva, a fim de atender a uma solicitação da memória coletiva recém-organizada ou estimulada que parece ser socialmente relevante, por envolver a segurança de todos os membros da sociedade. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 34
O embate entre a memória individual dos dois personagens e a memória coletiva do povo macaense se configurava desigual, haja vista a dramatização que o cerca, em passagens como: “O nome de Motta Coqueiro era proferido com horror e bem assim os dos seus cúmplices, e as mães, ao veremnos passar, ensinavam às criancinhas a maldizê-los”. (PATROCÍNIO, 1977, p. 25) O clima de insegurança, patrocinado pela memória coletiva, que se fizera principalmente da imprensa para o povo, mostrava que as posições de Sr. Martins e de Sr. Seberg seriam facilmente desprezadas ou combalidas pela multidão. Ambos sabem que se tratava de uma luta desigual – de duas memórias individuais contra uma memória coletiva arraigada na população macaense e brasileira – tanto que já entraram em cena na obra como figuras a caminho praticamente da derrota em relação à tentativa de absolvição de Coqueiro, embora façam esforços para tentar livrar o amigo da forca. Ao escrever o romance, diante da fidelidade de Patrocínio ao fato histórico, não restaria a ele outra opção a não ser a forca para Coqueiro. Entretanto, não impedia a ele a construção e fortalecimento de sua tese a favor da inocência de Coqueiro. Condicionar o episódio da condenação de Coqueiro a um erro judiciário, a uma luta política, a um forte clamor popular, entre outras ações, colabora para dar um tom de inocência a Coqueiro.
Considerações finais Sabe-se que Patrocínio, desde sua infância em Campos, conhecia a história trágica do enforcamento de Motta Coqueiro, bem como as diversas versões sobre a mesma. Por certo, ouvira a versão do pai, da mãe, de vizinhos da Fazenda do Imbé, de outros moradores de Campos, etc. as quais por certo continham visões diferenciadas sobre a culpabilidade de Motta Coqueiro. Uma vez crescendo e ouvindo variadas versões sobre a culpabilidade ou
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não de Coqueiro, o certo é que ele adquiriu uma memória individual e coletiva (esta última, variadas) sobre o fato. A ideia de escrever uma versão para o enforcamento de Coqueiro vem, segundo Magalhães Junior (1969, p. 48), em razão de uma nova versão, chegada por telegrama, em 1877, à redação da Gazeta de Notícias, revelando a autoria de outrem no que concerne ao massacre na fazenda de Macabu. Não se sabe, porém, qual era a versão que dominava a mente de Patrocínio, o certo é dispunha de uma memória individual e coletiva, herdadas na infância em Campos, que não se constituía irrelevante tanto para si, quanto para o povo, levando-o a escrever o romance. Além disso, Patrocínio reunia consigo condições de escrever esta obra. Fazia parte de suas memórias e tinha um apelo popular. A memória coletiva no tocante à fera de Macabu constitui um exemplo, entre tantos, de que a memória coletiva não nasce ao acaso. Pollak (1992) postula que a memória é passível de disputa entre os diversos grupos presentes numa sociedade. A Memória constitui-se como um instrumento de poder e, por isso, é alvo de interesse na sociedade. Tal disputa exibe as forças dos grupos heterogêneos na sociedade e demonstra que caminhos são direcionados para a sociedade. Neste sentido, esconder, enaltecer ou mitigar uma memória entre outras ações que envolvam o posicionamento dela dada pelos grupos constituídos em uma sociedade, atentando para sua natureza que traspassa o passado, atinge o presente, e ousa a querer dizer o que uma sociedade deve lembrar no futuro, não por vontade própria desta, mas pela ação planejada por um grupo notadamente hegemônico, que deseja manter seu poder de coerção, de dominação. A forma como é posta e articulada uma memória social, em Motta Coqueiro ou a pena de morte (1977), é um oportuno exemplo de como a literatura está para além de um jogo de palavras e ideias.
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O verso e o protesto A poesia contemporânea como reivindicação sóciopolítica
Juliana Cristina Costa Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrante do NEAB Viçosa (Núcleo de Estudos Afro-brasileiros).
O objetivo desse artigo é analisar poemas das escritoras afro-brasileiras contemporâneas: Cristiane Sobral e Miriam Alves, para observar como ocorre a representação linguístico-discursiva do “protesto”, aqui compreendido como um ato de denúncia e reivindicação, ideologicamente orientado. Nesse sentido, busca-se identificar as marcas linguísticas que possibilitam a identificação do ato de protesto nos textos das autoras em estudo. Para tanto, foram usadas discussões e reflexões de pesquisas desenvolvidas nos âmbitos da literatura e dos estudos discursivos, no intuito de enriquecer o debate sobre os textos literários, a fim de reconhecer as suas funções na vida social para além do entretenimento e fruição.
Palavras-chave: Literatura Afro-brasileira; resistência. Jangada: Colatina/Urbana, n. poesia; 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 38
1 Introdução 1.1 As faces da poesia: Sociedade e Literatura O poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido Carolina Maria de Jesus (1983, p. 38)
A
poesia pode ser vista como uma prática discursiva (processo de produção e consumo de texto), que se constitui como parte da prática social. Enquanto gênero literário, podemos observá-la como modalidade do discurso literário, conceituado por Maingueneau (2006, p. 61) como um discurso constituinte, caracterizado como aquele que é capaz de conferir “sentido aos atos da coletividade”. Para Fairclough (2001), a literatura seria considerada um tipo de Ordem do Discurso, pois tem convenções, formações discursivas e ideológicas próprias que a permitem construir o conhecimento (saber) sobre a vida social, cultural e política, por meio de práticas sócio-discursivas próprias. Então, nesta orientação epistemológica discursiva-crítica, a poesia é um tipo de prática literária, que se realiza por meio de gêneros discursivos situados, como, por exemplo, a poesia de protesto, que são formas de agir e interagir por meio de propósitos comunicativos específicos: lutar, resistir, gritar e que também tem características estilísticas, textuais e linguísticas bem singulares, o que a faz diferir de outros tipos de poesia, como, por exemplo, a poesia lírica e a poesia épica. O termo poesia designa geralmente o conteúdo lírico de uma estrutura denominada poema, estrutura textual, que, através de características específicas, configura o gênero. Normalmente, há uma confusão em relação ao emprego dos termos poesia e poema, sendo que o primeiro é utilizado para se referir ao segundo. Partimos da premissa de que a poesia é o discurso
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presente na estrutura poema. Nuno Júdice (2009, p.155) 3 informa que: A poesia é uma forma construída a partir da deslocação – passagem de um objecto a outro, de uma imagem a outra, de uma ideia a outra. É por isso no poema que a linguagem encontra a sua realização mais completa no jogo de pensamento que é o exercício analógico. O que é característico deste raciocínio é a leitura “prospectiva”, em que o significado é diferido para além da palavra literal – saber que a imagem dita no poema é a que está para além do que é expresso; e isso conduz a essa leitura diferida que é simultânea com a leitura actual, ou seja, o poema contém em si o mesmo e o outro da imagem. Como apresenta o teórico português, a poesia consiste em um plano das ideias que perpassa ou consolida a estrutura linguística poema, é o plano ideológico. Edward Lopes (1999) considera a literatura como uma produção ideológica, assim como outros teóricos anteriores a ele como, por exemplo, Bakhtin, para quem o uso da linguagem é sócio historicamente construída. No entanto, a poesia é considerada, na perspectiva formalista, como um espaço de neutralidade ideológica, ou seja, não é capaz de reproduzir valores e/ou ideologias provenientes dos indivíduos ou grupos. Diferentemente da perspectiva sociológica e de outras vertentes de estudos que dela se utilizam e direcionam um olhar para as condições extraverbais de produção do texto literário, como é caso dos Estudos Culturais. Regina Dalcastagnè, em Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (2012, p.18), esboça como as “barreiras simbólicas determinam o lugar de cada um”, o que permite refletir sobre as questões políticas e sociais que circundam o fazer literário. O território literário na contemporaneidade é repleto de ABRIL - Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, novembro de 2009. 3
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vozes que buscam a oportunidade de trazer para o espaço literário e social perspectivas e reflexões que tratam do seu cotidiano e das relações sociais que os inferiorizam enquanto sujeitos e de inscrevê-las no domínio dos sistemas simbólicos, definido por Bourdieu (2001)4 como “instrumentos de conhecimento e comunicação” (p.90), constituindo assim um ato de protesto e resistência. Esses instrumentos por muito tempo na história humana foram (e ainda continuam sendo) relegados a um grupo dominante. Observemos a fala de Dalcastagnè sobre isso: Quando entendemos a literatura como uma forma de representação, espaço onde os interesses e perspectivas sociais interagem e se entrechocam, não podemos deixar indagar quem é, afinal, esse outro, que posição lhe é reservada na sociedade, e o que seu silêncio esconde. Por isso, cada vez os estudos literários (e o próprio fazer literário) se preocupam com o problema do acesso à voz e à representação dos múltiplos grupos sociais (DALCASTAGNÈ, 2012, p.17) A pesquisadora chama a atenção para o lugar de fala do autor, que é também um lugar social, em que a fala poética emerge e faz transparecer interesses e perspectivas sociais, que podem estar relacionadas com a questão sociopolítica como, por exemplo, a permanência de uma ordem hegemônica e seus valores culturais. Nesse sentido, ao pensar a literatura como uma ferramenta sociopolítica, o grande teórico Antônio Cândido, no ensaio “Literatura e sociedade”, a partir de arcabouços teóricos da sociologia moderna, debate a questão da arte, ressaltando a sua função social. Segundo Cândido: O poeta e escritor transformam tudo que passa por eles, combinando a realidade que absorvem com a própria percepção, devolvendo assim ao mundo BOURDIEU, Pierre. Poder, Derecho y Classes Sociales.2.ed. trad. Mª José Bernuz Bencitez e cia. Desclée de Brower, Bilbao: 2001 4
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uma interpretação própria e subjetiva, longe de ser um mero espelho refletor. Assim, deve-se pensar a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte, assim como a influência que a própria obra exerce sobre o meio. A arte pode então, ser uma expressão da sociedade, não deixando de se considerar o teor de seu aspecto social, ou seja, o quanto ela está interessada nos problemas sociais. A partir do século XVIII, a literatura passa a ser também um produto social, já que expressa condições de cada civilização em que se forma. (CÂNDIDO, 2006, p.30). De acordo com o fragmento em destaque, ainda que alguns escritores reneguem essa ligação, se torna impossível separar arte da sociedade. Em alguma medida, as produções artísticas são influenciadas pelo meio no qual são produzidas, assim como estas influenciam o meio. Desse modo, mesmo que, de maneira inconsciente, ao entrarem em contato com uma obra de arte, os indivíduos, em maior ou menor grau, poderão sofrer um efeito prático de mudança de conduta e concepção de mundo. No entanto, mesmo afirmando uma relação da arte com o seu contexto de produção e também com o indivíduo, Cândido considera que a natureza da obra artística é social, uma representação estética da sociedade sem a possibilidade, no entanto, de o discurso promover mudanças sociais. Tal qual Antônio Cândido, Alfredo Bosi, outro importante crítico literário brasileiro, destaca essa relação entre arte e sociedade, sobretudo a relação entre literatura e sociedade. Para Bosi, “o poeta é o doador de sentido” (1977, p.141), isto é, ele pode ser difusor de ideologias através do ato de escrita. Ainda, de acordo com Bosi, Diante da pseudototalidade forjada pela ideologia, a poesia deverá "ser feita por todos, não por um". [...] . Este "ser feita por todos" não pôde realizar-se materialmente, na forma da criação grupal, já que as relações sociais não são comunitárias; mas Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 42
acabou fazendo-se, de algum modo, como produção de sentido contra-ideológico válida para muitos. [...] Uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes (BOSI, 1977, p.144). No excerto acima, podemos observar que Bosi considera o fazer literário como um meio de alcançar de fato uma totalidade de representações e de vozes. Nesse sentido, a literatura funcionaria também como uma arma alegórica que “atira” contra os discursos hegemônicos e excludentes. Nessa luta contra o status quo, torna-se necessária a participação de autores e leitores, um complementando e refletindo sobre o trabalho do outro. Dessa forma, para que o “tiro” seja realmente certeiro, é necessário que ambos estejam juntos no campo de batalha. Além disso, a reflexão permite que os indivíduos participem da construção do campo simbólico da literatura. Em consonância com as ideias de Dalcastagnè, Cândido e Bosi, podemos afirmar que a literatura é considerada como um espaço social em que ecoam várias vozes. A partir do momento em que essas diferentes vozes buscam o seu espaço de fala, os distintos valores entram em choque. Nesse sentido, as vozes, que foram historicamente silenciadas, ao conseguirem um espaço de fala, denunciam a ordem hegemônica que busca, na interiorização de suas ideologias, legitimar-se como única possibilidade. A maioria de nossos escritores reconhecidos se enquadra em um perfil social que faz com tenhamos em nossa mente um ethos 5 de como seria um escritor ou escritora, como, por exemplo, os que apresentam as seguintes características: classe média ou a elite, com curso superior, domínio da norma linguística padrão, entre outros. Sobre a natureza da relação estrutura social e ação, Giddens (1990 apud IÑIGUEZ [2004]) nos afirma que: O Ethos discursivo é a imagem construída por meio do discurso, é a representação ou percepção acerca do outro. Maingueneau (2006, p.70) considera que “o investimento de um ethos dá ao discurso uma voz que ativa o imaginário estereotípico de um corpo de enunciante socialmente avaliado.” 5
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O discurso afeta as estruturas sociais, e ao mesmo tempo está determinado por elas. Por conseguinte, o discurso contribui tanto para a manutenção como para mudança social. (p.150) Podemos compreender, então, que as práticas literárias de protesto, por exemplo, podem afetar e tentar transformar os discursos hegemônicos das estruturas sociais, mas também as práticas literárias mais conservadoras e tradicionais podem manter as hegemonias como estão, como se colocam para a vida social. Maingueneau (2006), em perspectiva teórica diferente da nossa, alinha-se a tais ideias ao afirmar que a literatura é um discurso constituinte, um espaço que delimita um território “correlato de uma identidade discursiva, aquele no qual se instalam os diversos posicionamentos concorrentes” (2006, p.68). Ou seja, em um mesmo espaço tem-se posicionamentos discursivos distintos que se conflitam. Podemos até dizer que dentro de uma mesma hegemonia temos vozes dissonantes. 1.2 Escrita Feminina: Mais que um teto todo seu, uma escrita toda delas Buscamos, com esse trabalho, analisar poemas das escritoras Miriam Alves e Cristiane Sobral, ambas escritoras afrobrasileiras. No âmbito literário brasileiro, as temáticas apresentadas pelas escritoras afro-brasileiras em suas produções apresentam especificidades, como, por exemplo, a tematização da dor. Sendo um tema muitas vezes ignorado por escritoras nãonegras, a representação da dor aparece com recorrência em textos ficcionais ou poéticos das escritoras afrodescendentes. Constância Lima Duarte (2009), uma das maiores estudiosas das produções literárias de mulheres no Brasil, em um dos seus estudos, argumenta sobre essa questão. Para a estudiosa, ao falarem sobre esse assunto em seus textos, essas escritoras trazem o testemunho de suas vivências para o campo da criação estética verbal. Todavia, cabe ressaltar que cada escritora, independente Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 44
da etnia a que pertence, consolida em sua escrita estilos próprios do gênero literário ou específicos de seu modo de escrever. A teórica feminista francesa Simone de Beauvoir (1970) afirma que: O homem define a mulher em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem. Ela não é senão o que homem decide que seja; daí dizer ‘sexo’ para dizer que ela se apresenta diante do macho como ser sexuado: para ele fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não em relação a ela, a fêmea é o essencial perante o essencial. (BEAUVOIR, 1970, p.10) Neste excerto, Beauvoir fornece sua análise acerca das relações de gênero nas sociedades patriarcais, chamando a nossa atenção para o fato de que a existência da mulher está (e é) associada à do homem, porém, confirma Beauvoir, o inverso não ocorre. As escritoras são, no âmbito literário, menos reconhecidas do que os escritores e isso pode ser facilmente identificado pelo número de produções de mulheres que encontramos nas livrarias, números muito inferiores às obras produzidas por homens, e também pela quantidade de obras literárias escritas por mulheres que são estudadas nas escolas e universidades. Sabemos que às mulheres, em uma atmosfera social de ideologia androcêntrica e patriarcal, foram incumbidas algumas funções sociais. Das funções que lhes foram encarregadas, excluiu-se, por muito tempo, a possibilidade de sua formação e desenvolvimento no âmbito literário. bell hooks, respeitada pesquisadora afro-americana que escolheu grafar o seu nome em letras minúsculas, pois acredita que mais importante que o seu nome são as suas ideias, aponta que “dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir a sua vida da mente” (HOOKS, 1995, p. 468). Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 45
Como afirmou bell hooks (1995), para que as mulheres consigam chegar a obter reconhecimento de sua produção intelectual em um espaço dominado por homens, como o espaço da literatura, o processo é longo e desgastante. Todavia, mesmo que todas as mulheres tenham dificuldades de ascenderem nesses espaços de poder, para as mulheres negras, esse percurso é ainda mais difícil, pois enquanto as mulheres brancas sofrem opressão de gênero, por exemplo, as negras, em sua maioria, sofrem opressão tripla, sendo discriminadas por serem mulheres, negras e pertencentes, geralmente, às classes sociais menos favorecidas. De acordo com Silva (2014, p.35) É fato de que muitas mulheres negras lutaram com as mulheres brancas pelos direitos em comum aos dois grupos. Todavia o feminismo praticado por umas, na maioria das vezes, não contemplou as necessidades das demais. Quando estas feministas brancas e de classe média exigiam o direito de trabalhar, muito antes disso, as mulheres brancas e pobres e, principalmente as mulheres negras, já trabalhavam para sustentar a família, que, em sua maioria esmagadora pertenciam às classes inferiores. Quando em um sujeito convergem mais de uma “seccionalidade social”, sabemos que muitas serão as lutas pela legitimação de sua identidade. Em nossa sociedade, a questão racial sobrepõe-se às outras questões, classe e sexo. Esse fato se confirma a partir de estudos censitários do IPEA e IBGE, que, anualmente, estabelecem o mapeamento da desigualdade na esfera social brasileira através de levantamentos acerca da presença de mulheres, negros ou outras seccionalidades nos espaços sociais, como, por exemplo, o acesso ao curso superior e à igualdade de remuneração trabalhista. No que tange à desigualdade de gênero, o que ocorre no meio social tem consequências, também, no âmbito literário. As escritoras existem e são reconhecidas de maneira desigual em relação aos homens. Observemos o excerto do livro Um teto todo Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 46
seu (1929), de Virgínia Woolf, que mesmo depois de tantos anos, ainda se mostra bastante atual: A mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção; e isso, como vocês irão ver, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção. (WOOLF, 1929, p.8). Em consonância com o trecho em destaque, é mister a necessidade de se criar condições no âmbito sociopolítico para a escrita produzida por mulheres no campo do trabalho estético. É imprescindível a elas a igualdade de condições para que possam dedicar-se à produção literária. Sabemos, porém, para serem inseridas nesse espaço e ganhar visibilidade, há que se enfrentar um mercado editorial concorrido e problemático. Nesse território, mesmo nos dias de hoje, as mulheres ainda são minorias, sobretudo, as mulheres negras. É notório que cada mulher que exerce a produção literária trará em sua escrita marcas de reivindicações específicas. Na amostra discursiva deste trabalho, irei considerar as especificidades de cada escritora enquanto indivíduos sociais que tem perspectivas sociais díspares sobre as relações socioculturais; e também a forma pela qual juntas constroem um universo da manifestação feminina na literatura brasileira contemporânea.
2 Análise literária 2.1 Miriam Alves e Cristiane Sobral: o arché da escrita feminina negra Miriam Alves é poeta, dramaturga e prosadora paulista. O marco inicial de sua trajetória é a publicação de alguns de seus poemas e contos na série Cadernos Negros, de 1982, no volume cinco, até 2011, no volume 34. O seu primeiro livro surge em 1983, intitulado Momento de Busca feito de maneira artesanal com parceria da irmã Vera Alves e pelos escritores Márcio Barbosa e Oswaldo de Camargo. Em seguida, publica o livro Estrelas nos Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 47
Dedos, poemas, em 1985; Terramara, peça teatral, em 1988, em coautoria com Arnaldo Xavier, e Cuti (Luiz Silva); Brasilafro autorrevelado, ensaios, em 2010; Mulher Mat (r) iz, em 2011, contos. O poema escolhido para a análise nesse estudo é “Pés atados corpo alado” que integra o livro Momentos de Busca (1983). O referido poema chama atenção pela força poética, composto por seis estrofes, apresenta reflexões acerca do ser humano e das sensações e angústia que a vida social provoca nele. Na primeira e segunda estrofes, nos deparamos com a repetição da modalidade de negação “Não”, sugerindo a veemência da negação do sujeito lírico em relação ao que lhe prende, um prender simbólico que vai repercutindo-se fisicamente: Não... Não... Não Mãos atadas Pés acorrentados Sinto todas as vontades Todas Humanas Desumanas Morais Iguais Desiguais Adversas ou não. (ALVES, 1983, p.17) Nesta primeira estrofe, o sujeito lírico demonstra a contradição de suas vontades, que é própria do ser humano, porém encontra-se preso, “mãos e pés”, “atadas e acorrentados”, estas condições são metáforas da impossibilidade do agir e de poder seguir outros caminhos. Talvez seja uma representação literária dos efeitos da violência simbólica a que o indivíduo sofre no viver em sociedade. Embora Bourdieu (1999) afirme que o agente desta violência é um “poder não nomeado”, concordo com o que diz Constância Duarte (2009) em Gênero e violência na literatura afro-brasileira: é possível nomear este poder em suas diversas formas de manifestação, como racismo, machismo, ou qualquer outra opressão. É o poder que age socialmente, mas que é omitido pelos seus agentes como forma de impedir o Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 48
questionamento acerca do que ele é e de como foi consolidado. Um poder tão bem estruturado em suas ações que consegue fazer com que a vítima seja vista como aquela que se permite ser vitimada, uma lógica naturalizada, que esconde as forças do controle social hegemônico. Na segunda estrofe do referido poema, podemos observar o uso da primeira pessoa, que possibilita ao texto um teor mais humanístico e intimista, pois nos permite compreender que o sujeito lírico se manifesta como indivíduo, a partir das sensações que lhe são provocadas pela sociedade: Não, Não Não posso agir Pés atados Correr? Não, Não Não é permitido (ALVES, 1983, p.17) A impossibilidade da ação, a metonímia dos “pés atados”, e a indagação do sujeito acerca do que se pode realizar, faz com que pensemos sobre as barreiras que são apresentadas ao indivíduo na vida cotidiana. Negação das liberdades (credo, expressão, locomoção, etc.). A ideia de movimento e deslocamento própria do ato de agir é recorrentemente negada. Observe ainda que a estrutura do poema é dialogada, como se o sujeito estivesse refletindo e conversando com ele mesmo, mas uma reflexão com tom de protesto, de indignação pela impossibilidade de agir, de ser agente de sua própria vida. A metáfora da negação da liberdade, do impedimento de ser e agir na vida social, é recorrente, como se observa na estrofe abaixo: Mãos algemadas Gesticular Acariciar Fazer gestos obscenos? Não posso Não podem Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 49
Estão presas Estou preso [...] (ALVES,1983, p.17) As informações “pés atados” e “mãos algemadas” parecem construir no poema uma naturalização causal dos pés e mãos por meio das construções adjetivas: atados e algemados. Digo naturalização causal, pois os pés não ESTÃO atados, ou as mãos ESTÃO algemadas, gerando um tipo de atribuição circunstancial, mas as construções atributivas transformam uma condição local num estado permanente, numa propriedade, reforçada ainda pelo uso das reticências em: “estou preso (...)”. O campo semântico da prisão é reforçado pelos itens lexicais: atados, algemados, presas, não permitido. Percebe-se que às mãos são negadas desde o ato mais humano (gesticular) e afetuoso que é a carícia até a obscenidade. Além disso, não são atribuídas as responsabilidades àquele ou àquela que prendeu, algemou ou que proibiu, ou não permitiu; essa omissão do agente parece construir uma evidência em si mesmo, de que é a sociedade quem está algemando e prendendo, ou seja, as ações hegemônicas cristalizadas e naturalizadas. No entanto, tanto na primeira estrofe quanto na segunda, a negação é representada pelas condições físicas, diferentemente da estrofe abaixo: Posso pensar? Posso pensar! Deixaram livre Minha cabeça Minha mente Estou solto Estou livre (ALVES,1983, p.18)
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O questionamento “posso pensar?” Sugere-nos uma reação espantosa já que um On6 imputava a ele um estado inerente de prisão, de negação e impedimento físico de agir. Essa reação é seguida de uma construção exclamativa de certeza/convicção de que pode, sim, pensar, agir mentalmente embora ainda esteja fisicamente impedido. A oração “Deixaram livre/ minha cabeça/ minha mente” demonstra que o sujeito responsável pela opressão do sujeito lírico é indeterminado. Talvez a escolha estilística da autora pela indeterminação tenha uma motivação políticoideológica: opta-se por não nomear quem oprime socialmente, pelo fato de ser complexa a questão social do opressor e de sua relação com o oprimido e o ato de oprimir alguém. No decorrer do poema percebe-se o fluxo da liberdade, isto é, a tomada de consciência do sujeito e de sua posição social e a possibilidade de pensar e refletir sem as amarras da vida social. Percebe-se, através das constantes negações do sujeito lírico, o questionamento da própria situação, e sabemos que, para cada negação, há uma possibilidade contrária, um discurso contrário. É, na quarta estrofe, que o fluxo de liberdade é mais claramente expressado, como um “sair do próprio corpo”, um rompimento com as questões físicas que aprisionam os movimentos, por meio das construções metafóricas “estou alado/pássaro alado/humano alado”, “poderosas asas”. O sujeito aprisionado, inerte, torna-se agente de suas próprias experiências com metas e objetivos bem reativos e positivos: saem do meu corpo; batem vigorosas; alçam voo, rompem barreiras. A partir do uso de vocábulos de ideias contrárias como moral/amoral e igual/desigual, podemos considerar expressa no poema a questão do paradoxo existente na sociedade. A liberdade do sujeito o possibilita romper com a realidade social. Os termos “Inquérito”, “Fichas”, “muros”, “estatísticas” compõem o “É um enunciador genérico, representante da sabedoria popular, da opinião pública. Trata-se de “enunciações-eco” de um número ilimitado de enunciações anteriores, avalizadas por esse enunciador genérico [...]” KOCH, I.V; BENTES, A.C; CAVALCANTE, M.M. Intertextualidade. Diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. p.33. 6
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ambiente prisional, sugerindo que talvez a liberdade tão almejada e a possibilidade de existir como um ser “humano” não passa de uma ilusão, pois na vida social não passa de uma estatística, números que castram a vida pulsional. A expressão “sem registro de nascimento” pode expressar o deslocamento do sujeito diante do viver em sociedade, que desconsidera a sua existência e necessidades. Na penúltima estrofe, encontramos: E a mente livre Continua Voando Conhecendo Espaços novos Até soltar-se Realmente Verdadeiramente Dos parâmetros Das normas Das regras Das normalidades dos seres normais Sem vida Sem nome (ALVES, 1983, p.19) Nos versos acima pode-se observar que a liberdade da mente permite uma tomada de consciência dos instrumentos que visam estabelecer um controle social sobre os indivíduos. Ao se libertar mentalmente, o sujeito consegue romper com alguns paradigmas sociais que resultam na alienação. No final desta estrofe, há o questionamento dos valores relativos à normalidade, “das normalidades dos seres anormais”, que pode ser vista como algo que não é próprio do ser humano e sim estipulado socialmente, homogeneizando os sujeitos sociais, fazendo-os ser “Sem vida/ Sem nome”, sem considerá-los a partir de sua diversidade cultural e de sua individualidade. Pelo viés do protesto, o poema apresenta uma crítica aos valores sociais e às prisões impostas por certos paradigmas morais, questiona ainda a ideologia da normalidade e a coloca Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 52
como instrumento de poder para o controle mental dos sujeitos sociais. Embora diante disso, o sujeito lírico manifesta sua resistência para se tornar um ser pensante, livre. Isso pode ser percebido nas últimas estrofes do poema. Voando rompe barreiras Livrando-se dos muros Das amarras Caindo solta No mundo Na vida (ALVES, 1983, p.19) Nesta última estrofe do poema, podemos ver que o sujeito lírico considera que a liberdade do pensamento, diante do conhecer e refletir sobre o mundo e a vida, permite-lhe alcançar a “verdadeira” liberdade. Outra escritora afro-brasileira que traz a temática do protesto em sua poética é Cristiane Sobral. Assim como Miriam Alves, a poeta de Brasília denomina a sua escrita como literatura negra, sem o eufemismo da palavra “afro-brasileira”. Além de poeta, Sobral é atriz e professora; começou a sua carreira com a obra teatral Uma boneca no lixo (1999). Sobral considera o protesto como “uma das manifestações expressivas do tecido literário da escrita negra. ”7 Começaremos a análise do texto de Sobral através do poema “Não vou mais lavar os pratos”, do livro lançado em 2011 e que leva o mesmo nome, observemos: Não vou mais lavar os pratos Nem vou limpar a poeira dos móveis Sinto muito. Comecei a ler (SOBRAL,2011, p.23) O sujeito lírico neste poema é feminino. Pelas pistas textuais, podemos observar que há um ato subversivo nestes versos, já que uma mulher decidiu não realizar o que socialmente fora-lhe imposto como uma de suas funções. Como em Miriam Alves, percebemos aqui a liberdade construída por meio da 7
Entrevista concedida por e-mail no dia 25 de maio de 2015. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 53
aquisição de conhecimento e de consciência: “comecei a ler”. A leitura surge como uma prática social de empoderamento. Ela se torna agente transformativa de uma ação que parecia ser permanente, uma propriedade: “não vou mais lavar; nem vou limpar”; tais implicações são sugeridas pelo uso da modalidade de negação somada à pressuposição de que sempre fazia aquilo (não vou mais; nem vou). Nos versos abaixo, o ator social (ela) torna-se agente de uma ação transformativa (abri outro dia um livro) que a faz experiencialmente agir cognitiva e reflexivamente tomando decisões. A construção macrosemântica ‘antes e depois’ nos leva a compreender que a prática de leitura (ou o letramento) a permitiu perceber outros fenômenos: estética dos pratos, a estética dos traços e a ética: Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi Não levo mais o lixo na lixeira Nem arrumou a bagunça das folhas que caem no quintal Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos, A estética dos traços, a ética (...) (grifo meu) (SOBRAL,2011, p.23) Pelo viés da reivindicação social e da denúncia, no poema são expressos a questão da subalternidade e do acesso aos bens do conhecimento, como livro e possibilidade de leitura do mesmo. Ainda é permitido lembrar uma máxima da teoria gramsciana de que “todos nós somos intelectuais”. Observemos o que Edward Said, em Representações do intelectual, diz acerca do status do intelectual na sociedade, citando o filósofo italiano: Gramsci acreditava que os intelectuais orgânicos estão ativamente envolvidos nas sociedades, isto é, eles lutam constantemente para mudar mentalidades e expandir mercados. (SAID, 2005, p.20) Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 54
Percebe-se ainda a utilização de termos lexicais de campo científico: Estética, Estática; além da questão do trabalho braçal e intelectual, e a escolha deste último tipo de trabalho para o desenvolvimento humano do sujeito lírico. Depois da aquisição da leitura, uma leitura profunda das coisas, do mundo, reforça a crítica à questão do analfabetismo funcional: “Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler” (SOBRAL,2011, p.23), e reforça a necessidade de se pensar no letramento social e nas práticas de empoderamento cultural e político por meio de práticas de leitura. Observe que o poema apresenta uma estrutura dialogada, uma conversa “sincera e transparente” entre a atora social (e seus novos anseios e práticas sociais) e o perfil de um interlocutor masculino (talvez, seu companheiro/marido, considerando a relação afetiva entre homem e mulher) sobre a nova postura dela diante do novo ethos criado: letrada, resolvida, reflexiva e ativa/agente. Ela se constrói em uma relação agora não mais de submissão ou de sujeição, mas de agência, de empoderada. O que irá marcar este novo ethos é novamente a pressuposição “não vou mais” e as orações mentais desiderativas: resolvi ficar; resolvi ler; além das construções modais negativas: “você nem me espere. Você nem me chame. Não vou”. Ah, Esqueci de dizer. Não vou mais Resolvi ficar um tempo comigo Resolvi ler sobre o que se passa conosco Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi Você foi o que passou Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto. (SOBRAL,2011, p.24) O sujeito lírico feminino questiona, assim, sua relação com o companheiro e faz uma análise deste relacionamento: “De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi/ Você foi o que passou/ Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto”. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 55
Reforça o ethos da independência, da emancipação, por meio do tom firme e forte e reflexivo, por meio da modalidade “jamais”, sobre as possíveis ações patriarcais e machistas do companheiro: passou do limite, da medida e do alfabeto. As poesias de Miriam Alves e de Cristiane Sobral têm em comum a negação da situação imposta e a busca pelo direito à consciência social, a reflexão interior que o sujeito faz do próprio lugar social e da sua capacidade de ser e estar na sociedade em igualdade de direitos e oportunidades. Arché é o termo grego que se refere a princípio, fonte ou poder, que se assemelha em termos sonoros e fonéticos ao termo ioruba asè (ler-se axé), dois conceitos que permitem-nos compreender na escrita feminina negra a presença de um princípio ou força que visa o direito e/ou revalorização identitária do sujeito negro. Maingueneau (2006) chama a atenção para a existência de um archeion, um arquivo coletivo, lugar de memória, vinculado a um conjunto de locutores consagrados. O cânone literário seja um tipo de archeion, conjunto limitado de vozes e de caráter elitizado, onde apenas os indivíduos autorizados podem pertencer. A literatura negra enquanto movimento estético e político se apropria de archeion ancestral, de uma cultura mais oral do que letrada para se constituir enquanto enunciação. Será que existe este archeion universal, onde todos os indivíduos fornecem a sua contribuição para memória coletiva? Talvez exista, mas seria um archeion fragmentado, já que não estariam nele as memórias dos locutores não-consagrados. O archeion nunca é fechado; ele se consolida a partir de cada manifestação literária que surge na sociedade, talvez pudesse ser um espaço rico em diversidade de perspectivas que harmoniosamente constrói o material simbólico social.
3 Considerações finais O protesto não é um ato uniforme, nem explicito. No campo semântico das pressuposições encontradas no discurso Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 56
literário, podemos encontrar a negação de outros discursos e reafirmação de outros. A modalidade de negação presente nos poemas de Sobral e Alves permite ao leitor visualizar a existência daquilo que se nega, o “não vou mais lavar os pratos”, o “não posso” podem ser compreendidos como funções estereotipadas do feminino, como também a ideia da incapacidade que lhe é atribuída. O interlocutor é diferente nos poemas analisados. Em Miriam Alves há a construção de um sujeito indeterminado que exerce uma força coercitiva sobre o sujeito lírico, por isso a reivindicação pela liberdade, pelo pensar. Nos poemas analisados de Cristiane Sobral, o interlocutor ora poder ser homem, como pode ser as mulheres da elite que visam subalternizar os indivíduos oriundos de outros espaço e classe social. A consciência de si é manifestada no decorrer do poema. Estas escritoras e outras, mulheres, através da escrita, podem construir um archeion feminino contemporâneo que busca ressignificá-las enquanto mulheres, negras ou não, empoderadas, transgressoras, críticas e independentes. Ao invés de serem mulheres apenas porque uma ordem social assim as definiu, elas assumem a frase de Beauvoir se construindo discursivamente: uma mulher não nasce mulher, ela se torna mulher. Podemos assumir junto aos estudos de gêneros e do Feminismo que as mulheres podem se construir todos os dias historicamente, politicamente como femininas, protetoras, maternais sem que deixem de lado a capacidade crítica, empreendedora, questionadora e letrada. Analisar as produções contemporâneas exige que se tenha noção de continuidade para prosseguir nos estudos das manifestações literárias que constituem este momento literário. Esse trabalho visa colaborar com a discussão das faces da escrita feminina brasileira e das questões sociopolíticas que elas incitam à reflexão.
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Pasárgada enegrecida Encruzilhando as poéticas brasileiras e cabo-verdianas
Ricardo Silva Ramos de Souza Mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ). Professor do UNIAFRO (NEABI/UFOP).
O presente artigo propõe um estudo comparativo a partir da exposição de pontos de vista das autorias negras nas literaturas brasileira e cabo-verdiana, apresentando nos poemas dos brasileiros Cuti e Éle Semog e dos cabo-verdianos, José Luis Hopffer C. Almada e Abraão Vicente, temáticas que valorizem os negros, sinalizem problemas do cânone literário, revisem a história oficial, critiquem a memória coletiva e o projeto de identidade homogênea dos seus países, e como a discriminação racial atua na subjetividade dos corpos negros. O suporte teórico é formado, dentre outros, por Carlos Moore, Kabengele Munanga, Stuart Hall, Cuti, Jesus Chucho García, Jurandir Freire Costa, Michael Pollak e Frantz Fanon.
Palavras-chave: Literaturas Africanas de Portuguesa; Literatura Jangada: Colatina/Urbana, n. Língua 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 60Caboverdiana; Literatura Negro-brasileira.
A
ntigas são as relações das literaturas do Brasil e de Cabo Verde, fato consagrado nas literaturas africanas de língua portuguesa por críticos renomados dessas literaturas (GOMES, 2008; FERREIRA, 1975) tendo como principal momento a influência do Modernismo brasileiro naquele que é considerado o grande marco da literatura cabo-verdiana, a geração da Revista Claridade8. O romance regional nordestino, caso, por exemplo, de “Vidas Secas” (1938), de Graciliano Ramos, na prosa, inspira diferentes textos literários em razão das semelhanças climáticas, do drama da seca e da condição de miserabilidade de parte da população caboverdiana, estimulando textos como “Chiquinho” (1947), de Baltasar Lopes, e “Flagelados do vento leste” (1960), de Manuel Lopes. Já a poesia de Manuel Bandeira com o poema “Vou-me embora para Pasárgada” torna-se um macrotema na literatura do arquipélago (GOMES, 2008), sendo conhecido como pasargadismo que passa a ser utilizado como um elemento motivador para afirmação de uma expressão literária caboverdiana em língua portuguesa, tendo como poetas referenciais Jorge Barbosa e Osvaldo Alcântara (pseudônimo de Baltasar Lopes da Silva). No pasargadismo encontraremos questões essenciais para os literatos cabo-verdianos como a evasão/emigração diante de condições climáticas, políticas, econômicas e sociais difíceis. Entretanto, o pasargadismo sofrerá críticas intensas das gerações futuras, principalmente com a emergência das guerras coloniais e independências dos países africanos, em razão da sua postura evasionista. No decorrer dos anos essas características de evasão terão momentos de exaltação e de crises gerando o antipasargadismo, uma resposta das gerações posteriores ao movimento literário claridoso, em razão Estreia em 1936, na cidade do Mindelo, Ilha de São Vicente. Com ela, uma nova geração de intelectuais desponta no panorama cultural do arquipélago expondo e disputando uma reconfiguração identitária frente à metrópole portuguesa. Dentre os autores de destaque estão Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Osvaldo Alcântara (pseudônimo poético de Baltasar Lopes). A Claridade durou de 1936 a 1960, com nove números publicados. 8
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da postura pouca combativa desse evasionismo frente ao colonialismo português. A relação com o modernismo brasileiro apresenta outras características ao projeto claridoso: havia toda uma preocupação com a afirmação identitária cabo-verdiana, busca-se referenciais distante da Europa e da África para caracterizar um pensamento emancipatório ao colonialismo português. Sendo assim, o Brasil, com o suposto projeto bem-sucedido de mestiçagem, passa a ser o modelo inspirador da especificidade cultural cabo-verdiana, por conseguinte, elevando a cultura ao protagonismo da negociação política (SOUZA, 2014). Nessa perspectiva, o Modernismo e o lusotropicalismo9 funcionam como o suporte ideal para a literatura e a etnologia (FERNANDES, 2002). Para ilustrar essa relação com o modernismo, a passagem do escritor e principal ideólogo da revista Claridade, Baltasar Lopes, afirma que: Precisávamos de certezas sistemáticas que só nos podiam vir, como auxílio metodológico e como investigação, de outras latitudes. Ora aconteceu que por aquelas alturas nos caíram nas mãos fraternalmente juntas, em sistema de empréstimo, alguns livros que consideramos essenciais pro doma nostra. Na ficção o José Lins do Rego d’O menino Em conferência lida em Goa, em novembro de 1951, Gilberto Freyre define o lusotropicalismo: “(...) Ele próprio [o português], porém, em vez de rigidamente europeu ou imperialmente ibérico, extraeuropeizou-se e tropicalizou-se desde o início de suas aventuras ultramarinas, amorenando-se sob o sol dos trópicos ou sob a ação ou o requeime da mestiçagem tropical. Confraternizou com os povos de cor em vez de procurar dominá-los do alto de torres como que profiláticas onde raça e cultura imperialmente europeias se mantivessem misticamente puras. Assimilou desses povos valores que salpicaram de orientalismos, americanismos, africanismos, o próprio Portugal, dando à cultura e, em certas áreas, à própria gente lusitana, uma espécie de vigor híbrido, de que o estilo manuelino e a arte indo-portuguesa são exemplos expressivos. Criou um mundo de valores aparentemente contraditórios, mas na verdade harmônicos. Um mundo novo, uma civilização nova, uma cultura nova a que por antecipação pertenceram portugueses dos séculos XVI a XVIII para os quais nos voltamos hoje como para pioneiros do que pode, ou deve, chamar-se civilização ou cultura lusotropical (...)” (FREYRE, 2010, p. 131). 9
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de Engenho e do Banguê, o Jorge Amado do Jubiabá e Mar Morto; o Amândio Fontes d’Os Corumbas; o Marques Rabelo d’O caso da Mentira, que conhecemos por Ribeiro Couto. Em poesia foi um “alumbramento” a “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, que, salvo um ou outro pormenor, eu visualizava com as suas figuras dramáticas, na minha vila da Ribeira Brava (FERREIRA, 1989, p. 259, grifos do autor). Segundo Souza (2014), apreendemos que ter o Brasil como referencial distinto de Portugal e de África permanece, por um lado, atenuando a subalternidade ao primeiro, por outro lado, continua afastando o ideal de identidade cabo-verdiana deste, uma vez que a literatura brasileira lida pelos claridosos reflete as relações de subalternidade dos negros na sociedade. Com isso, chega-se à segunda parte do “alumbramento” dos claridosos com o Brasil na sociologia de Gilberto Freyre, mais precisamente no livro Casa Grande & Senzala, e nos textos de Artur Ramos, Nina Rodrigues e Silvio Romero em menor escala (ALMADA, 2013). Ou seja, influência direta da construção ideológica racista brasileira no pensamento dessa geração de intelectuais. Segundo Souza (2014), o lusotropicalismo oriundo do Brasil será utilizado no campo teórico e político tanto pelos caboverdianos quanto pelos representantes da metrópole. O mundo que o português criou “não passava de alargamento de uma ensaiada primeiramente no microambiente arquipelágico” (FERNANDES, 2002, p. 101). A geração claridosa percebe no ruralismo e na harmonia das relações raciais do nordeste descritas por Freyre aproximações da sociedade mestiça brasileira com a cabo-verdiana. Freyre diferencia-se dos teóricos anteriores a ele por apresentar a mestiçagem brasileira como um valor positivo, porém a contribuição africana permanece menorizada, o negro permanece como objeto, enquanto o branco continua intocável nos altos escalões da sociedade. Inicia-se uma “apologia à miscigenação, não na prática, mas na teoria, na qual ela é reconhecida como elemento básico da composição do povo Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 63
brasileiro” (SANTOS, G., 2002, p. 150). Contudo, se há valorização da cultura africana na formação brasileira, ela somente surge com a mitificação do mestiço e a ilusão de pensar que no Brasil haveria uma harmonia (democracia) que permitiria um tratamento igual entre brancos e negros (SANTOS, G., 2002, p. 150-151). Entretanto, uma visita do sociólogo brasileiro pelo arquipélago contrariará todas as expectativas dos claridosos, pois Freyre apontará para a necessidade da “estabilização cultural de uma gente que, procurando ser europeia, repudia as suas origens africanas e encontra-se, em grande número, em estado ou situação precária de instabilidade cultural e não apenas econômica” (FREYRE, 2006, p. 250). Tais dificuldades também aparecem no texto literário cabo-verdiano, visto que as diversas revoltas contra o sistema escravocrata ocorridas no século XIX surgem de forma tímida na literatura do arquipélago, pois “raramente aqueles escritores (‘da geração claridosa’) se debruçam sobre as grandes revoltas camponesas da ilha de Santiago. Mas descrevem repetidamente as revoltas urbanas do Mindelo ao qual se sentem associados” (ANJOS, 2006, p. 139). Entretanto, as bases de matrizes africanas componentes na sociedade são reivindicadas por T. T. Tiofe que assevera no "Prefácio" ao Primeiro Livro de Notcha: o destino político do arquipélago é inconcebível fora do contexto africano. A África da segunda metade deste século é uma realidade política, económica e (brevemente) cultural de que os filhos mais modestos, os insulares, não se podem excluir; pelo contrário, nela se devem integrar naturalmente, ciosamente. No caso particular de Cabo Verde, dir-se-ia que essa integração se assemelha a um regresso de filho pródigo, regresso após andanças, por desvario, imprudência, ou falso orgulho, longe da casa paterna, longe dessa África, que é sua (TIOFE, 2001, p. 13). Aprofundando esse distanciamento, Tiofe afirma que: Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 64
Cabo Verde tem estado afastado da África por várias razões, entre as quais a perda ocorrida, há muito, de parte das raízes ou tradições africanas dos escravos que povoaram as ilhas, como se tem dito. (...) Isto, com menos ênfase ou mais nuance, tem sido dito de variada maneira ao cabo-verdiano, o que o tem levado a olhar sobretudo para a contribuição europeia na sua formação. Trata-se de um facto que não deve de forma alguma fazer esquecer que temos raízes africanas que importa investigar, sopesar e compreender, porque são ponto de partida, talvez a mais larga base" (TIOFE, 2001, p. 173-74). Já no caso da literatura brasileira, temos, no nosso cânone, a personagem negra de forma estereotipada, tanto da personagem masculina quanto da feminina, principalmente esta, em diferentes tipos de subalternidade, ainda assim quando estes aparecem nos romances, contos ou poemas. Para Regina Dalcastagnè, “a literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira” (DALCASTAGNÈ, 2011, p. 309). Uma das características marcantes é a ausência de escritorxs negrxs10 entre os lugares de maiores destaques na literatura brasileira. Eles existem, até são canonizados, mas sofrem com uma leitura crítica que desmerece e esvazia a sua condição racial, muitas vezes embranquecendo-os, casos de Cruz e Sousa, Machado de Assis e Lima Barreto. Para as questões de gênero utilizamos o sinal de rasura (X) conforme explicitado por Stuart Hall: “a perspectiva desconstrutiva coloca certos conceitos-chave ‘sob rasura’. O sinal de ‘rasura’ (X) indica que eles não servem mais – ‘não são bons para pensar’ – em sua forma original, não reconstruída. Mas uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a se pensar com eles – embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados” (HALL, 2000, p. 104, grifos do autor). 10
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A literatura produzida por negrxs e tendo negrxs como tema atinge diretamente o cânone – no qual gênero (masculino) e raça (branco) estão vinculados à hegemonia social – que relega à subalternidade essas representações e expõe a tensão do lugar da fala, de quem fala. Portanto, torna-se fundamental questionar a homogeneização do cânone, “ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e hierarquização social, deixando de lado as suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 12), pois a partir do momento que se questiona “o processo de canonização de obras literárias é, em última instância, colocar em xeque os mecanismos de poder a ele subjacentes” (REIS, 1992, p. 68). Uma observação profunda da estrutura do cânone dominante leva à percepção da manipulação ideológica das obras que o compõe. Para Kohte, isto se dá com a projeção de forças dominantes do presente, a buscarem, em sua seleção e interpretação de textos do passado, uma legitimação para estruturas ideológicas, sociais, políticas e econômicas atuais que as favoreçam, a fim de se manterem basicamente intactas no futuro. (...) confere-se autoridade a certos autores, introduzindo-os e cultivando-os no cânone, para que legitimem as políticas vigentes e as autoridades que as exercem (KOHTE, 1997, p. 13). Destacamos que o texto literário canônico ilustra uma sociedade seguidora dos padrões europeus brancocêntricos na medida em que o cânone exclui o negro ou o trata de forma caricata, superficial, infantilizada, inerte frente aos problemas do seu tempo e do seu meio, sem família ou manifestação de afetividade, com quase nenhum envolvimento na narrativa, sendo o negro quase um objeto que pode ser descartado a qualquer momento (SOUZA, 2014). Assim, a personagem negra é apresentada nos espaços de subalternidade desde os tempos do Romantismo aos textos contemporâneos. Isso retrata uma visão enraizada do negro como escravo, mantido no que há de pior na Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 66
sociedade, a qual o narrador branco é incapaz de subverter (CUTI, 2010). A denominação dessa vertente literária é de suma importância, pois está enquadrada no processo de afirmação das lutas do movimento social negro contemporâneo. Literatura negra, literatura negro-brasileira, literatura afrodescendente, literatura afro-brasileira ou literatura marginal/periférica são alguns dos exemplos da complexidade dessa discussão11. Por serem tantas denominações, nosso posicionamento acompanha o crítico literário Cuti que justifica a sua predileção pelo uso da palavra “negro” por ela ser muito mais polissêmica e contundente do que “afro-brasileiro”, já que este, por ser um “termo apaziguado de conflitos, lembra forjado em gabinete. (...) No Brasil, a ideologia da democracia racial prefere palavras mais amenas, que não tragam uma conotação conflituosa” (CUTI, 2011, p. 60). Para Cuti, a literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestação reivindicatória apoia-se na palavra ‘negra’ (CUTI, 2010, p. 44-45, grifos do autor). Há um intenso debate entre escritorxs, críticxs e professorxs universitárixs acerca da terminologia para designar essa vertente literária, tais como negra, negro-brasileira, afrodescendente, afro-brasileira, e mais recentemente, marginal, periférica, marginal-periférica e divergente. Dentre outros, consultar Duarte (2011), Cuti (2010), Bernd (2011), Pereira (2010). 11
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Dessa maneira, pela autonomia da nossa voz não precisamos aceitar denominações que não incluam a palavra “negro” para essa literatura produzida por negros ou tendo um eu enunciador negro, assim como não podemos desmerecer todo um passado de lutas e identificação que tragam a palavra “negro”, principalmente na história do movimento social negro durante o Brasil republicano, tais como Imprensa Negra, Frente Negra Brasileira, Associação Cultural Negra, Cadernos Negros, Instituto de Pesquisa de Culturas Negras – IPCN, Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – MNUCDR, Congresso de Pesquisadores Negros – COPENE, Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN, Grupo de Escritores Negros de Salvador – GENS, Ogum‘s Toques Negros, Dia (mês) Nacional da Consciência Negra, entre tantos outros exemplos. Sendo assim, utilizamos o conceito de Cuti para denominar a vertente literária aqui tratada como literatura negro-brasileira, entendendo que ela seja composta por um substantivo (negro) e um adjetivo (brasileiro) (CUTI, 2011), por se tratar da condição de ser negro dentro de uma realidade social brasileira e, para além do exposto a respeito das denominações, nossa opção escora-se na história de lutas do movimento negro (assim expresso no singular, mas que se refere a uma pluralidade de movimentos), para além do esvaziamento e da tentativa de deslocamento da discriminação racial (SOUZA, 2014). Dessa maneira que, acompanhando a palavra “negro” com toda a sua potência e devir, o fazer literário para esses escritores incorpora uma linguagem contradiscursiva, para estremecer as certezas do cânone, a hipocrisia frente às desigualdades raciais e a insensibilidade perante a situação do negro brasileiro. Diante do que expomos até o momento, escoramo-nos, para contrapor essa diluição da África (FERNANDES, 2002), em uma perspectiva que questiona a ausência da autoria negra e das temáticas que tenham o negro como centro. Além disso, pretendemos tecer outros comparativos que vão para além do modernismo brasileiro e da Claridade. Nesse sentido, recorremos a outras epistemologias para fundamentar um posicionamento Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 68
crítico que valorize as autorias negras na literatura brasileira e na literatura cabo-verdiana. Por isso, temos na filosofia da afroperspectividade um suporte para os nossos propósitos, uma vez que esta filosofia procura incluir outras perspectivas teóricas de origens africanas, ameríndias, afrodiaspóricas para dialogar com as teorias hegemônicas do Ocidente. Trata-se de uma proposta de inclusão, não de exclusão (NOGUERA, 2014). Para tamanha tarefa, assumimos o desafio do venezuelano Jesus Chucho García que propõe os conceitos de afroepistemologias e afroepistemetódicas para pensarmos as situações dos negros na diáspora africana. As afroepistemologias expõem a urgência de construção de conhecimento produzido por negros, um rompimento do que foi ocultado das contribuições da população negra sequestrada e trazida para as Américas durante o comércio de negros africanos escravizados. Trata-se de uma perspectiva epistemológica que questione os conhecimentos universais do homem branco europeu, que definiu cientificamente o que é e o que não é conhecimento, o que é e o que não é ciência e, dessa maneira, argumentou que os negros não teriam filosofia, religião e demais saberes. As afroepistemetódicas incluem a criação de metodologias e construções de métodos. Os conceitos encontram-se no plural em razão do pluralismo na diáspora africana para alçarmos ao centro do debate a presença negra. (CHUCHO GARCÍA, 2012). Assim sendo, estimulados por Chucho García, temos os estudos encruzilhados (SANTOS, 2013) como forma de expor a urgência de reformulação dos estudos comparados, com vistas à ampliação de suas perspectivas teórico-metodológicas para inserção e visibilidade do texto e do corpo negro-brasileiro e africano, contribuindo, assim, para o não apagamento físico e simbólico nos textos literários, tensionando “as literaturas africanas no Brasil exatamente pela clivagem recusada por tradição crítica no país e por escritores luso-africanos, lusotropicalistas, mestiço-discursivos: a questão etnicorracial”. (SANTOS, 2013, p. 50). Os estudos encruzilhados são, para Santos: Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 69
(estudos comparados negros que se perfazem no conflito, tomando a incoerência, o paradoxo, a tensão como força motriz) apontam como potência para uma arqueo-genealogia do saber na literatura ainda a ser explorada (...) [de] escritorxs negrobrasileirxs [que] estão à nossa espera para pô-los em diálogo com a África Negra, investimento de toda uma vida de intelectuais como Joseph KiZerbo e Abdias do Nascimento. Os estudos encruzilhados propõem uma dinâmica constante de abalo à normalização do campo, já que a filosofia do paradoxo que rege Exu é o logos da encruzilhada (SANTOS, 2013, p. 51). Para nosso intuito e motivados pela filosofia da afroperspectividade, afroepistemologias e estudos encruzilhados, buscamos rasurar o campo ao apresentar um diálogo sul-sul que pode ser feito entre a literatura negro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa, no caso deste artigo visando a cabo-verdiana, valorizando não só o texto escrito por negrxs, mas também xs pensadorxs negrxs, dando visibilidade aos pensamentos articulados por esses agentes na África e na sua diáspora, ainda de propagação restrita entre nós. A partir da descolonização de mentes (FANON, 2008), percebemos as trocas incessantes dxs negrxs na diáspora propalada por teóricos como Stuart Hall, Paul Gilroy e Edouárd Glissant. Portanto, a nossa intenção fortalece-se com os afrorrizomas oriundos dessas partilhas e reconfigurações. A partir do conceito de rizoma de Deleuze e Guattari, Santos entende que: os afro-rizomas constituem como uma reversão da perspectiva que toma exclusivamente a influência colonial lusitana como determinante para a emergência das literaturas no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa, reconfigurando, desta forma, as relações em jogo. O termo afro, nesse contexto, é ressignificado pela perspectiva da diáspora, que, (...) não se refere apenas à dispersão Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 70
dos povos africanos pelo mundo, mas, principalmente, à construção de um novo espaço simbólico no qual a reversão da condição subalterna imposta pela escravização africana é realizada continuamente em campos como a música, a literatura e a produção cultural (SANTOS, J., 2013, p. 54-55). Segundo Souza (2014), nessa perspectiva, pensar África e sua diáspora e todas as relações vivenciadas por nós negrxs, nesse vasto mundo de trocas afrorrizomáticas, fez com que elaborássemos um conceito para nos auxiliar e abarcar as nossas necessidades. Dessa maneira, consideramos como literaturas negro-diaspóricas (RISO, 2014) as diferentes literaturas negras que trazem marcas da afirmação, inclusão e valorização do ser negro e da sua origem africana, do vínculo com as religiões de matrizes africanas, o uso da oralidade e de expressões africanas no texto literário, a revisão crítica da história, a denúncia incansável da discriminação racial em seus países, o olhar solidário e consciente para os problemas dxs negrxs na diáspora e na África em diálogos incessantes, trocas ininterruptas com os textos de negrxs desses países. As literaturas negro-diaspóricas encontram seus referenciais nos primeiros textos literários de negros durante a colonização nas Américas, na oralitura que o cânone ocidental desconsidera, tais como os cânticos dos escravizados, como nas spirituals songs, os orikis, os cantopoemas, assim como o grafite e o rap dos nossos dias; essas literaturas inspiram-se nos movimentos culturais das décadas de 1920-30, como o Harlem Renaissance, a Negritude, o Negrismo cubano, o Indigenismo Haitiano; no reggae jamaicano e demais movimentos negros na diáspora que, desde então, se relacionam de diferentes maneiras e intensidades. Dessa maneira, encontramos recursos estilísticos, estético-formais e temáticas que se assemelham, tendo na ininterrupta inventividade com a linguagem a forma para rasurar os cânones estabelecidos. As literaturas negro-diaspóricas buscam o diálogo enegrecido com propostas que descolonizam o pensamento, questionem e promovam a ruptura com a Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 71
colonialidade do saber e do poder, que ampliem, rasurem e desierarquizem o cânone brancocêntrico homogeneizante e excludente, tais como a escrevivência (Conceição Evaristo), a filosofia da afroperspectividade (Renato Noguera), os estudos encruzilhados e os afrorrizomas (Henrique Freitas). Nossa análise engloba quatro poemas de dois poetas brasileiros – Cuti12 e Éle Semog13 – e dois cabo-verdianos – Abraão Vicente14 e José Luis Hopffer C. Almada15 – em dois momentos distintos. O primeiro momento tece considerações acerca da participação negra na história dos dois países, propondo a revisão crítica da história a partir de um olhar desde dentro, valorizando a memória coletiva negra e rasurando as versões oficiais. Os poemas “Coisas dessa gente que sou”, de Éle Semog, e “MonteAgarro”, de José Luis Hopffer C. Almada sedimentam a nossa perspectiva. No segundo momento apresentamos as interdições oriundas de contextos sócio-raciais que discriminam os negros e como os comportamentos opressivos atuam na subjetividade desse grupo racial. “Quebranto”, poema de Cuti, e “Pele”, de Abraão Vicente pretendem ilustrar a nossa percepção. A ideia de homogeneizar a identidade, tratando-a como única, suprime múltiplas identidades que formam uma nação. O grupo dominante impõe, pela força, as suas referências, enquanto Escritor, crítico literário, dramaturgo, doutor em literatura comparada (UNICAMP). Cofundador da série Cadernos Negros e do coletivo literário Quilombhoje. Possui vários títulos publicados entre poesia, contos, teatro e ensaio com destaque para “Contos Crespos” e “Negroesia – antologia poética”. 13 Escritor e ensaísta, nome histórico da literatura negra brasileira com participação em diversas antologias nacionais e estrangeiras. Co-fundador do coletivo Negrícia – poesia e arte de crioulo. Dentre seus livros, destaque para “Atabaques”, em parceria com José Carlos Limeira, e “Tudo que está solto”. 14 É um jovem escritor e dos mais renomados artistas plásticos de Cabo Verde, atua na política também. Dentre seus livros de literatura, encontram-se “O Trampolim” e “Labirintos 1980”. 15 Atua na poesia, na crítica literária, no ensaio e na promoção da cultura de Cabo Verde. Com vários títulos de poesia publicados e ensaios de crítica literária caboverdiana, com destaque para a antologia “Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos” (1999) e “Praianas” (2009). 12
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os grupos subalternizados passam a questionar a identidade homogênea, já que não se encontram representados, gerando crises de identidade. Para Stuart Hall, citando Kobena Mercer, “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER, 1990, p. 43 apud HALL, 2006, p. 9). Hall compreende que as condições atuais da sociedade estão "fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais". (HALL, 2006, p. 9). O sujeito pós-moderno passa a não ter uma identidade fixa, a identidade apresenta-se variável, em aberto diante dos sistemas culturais que o representam. Isso quebra a tentativa de uma identidade unificada, uma vez que abre a possibilidade para o surgimento de novos sujeitos. A identidade cultural associa-se a sistemas de representação que são utilizados como forma de unificar uma identidade cultural nacional. A partir de um conjunto de significados para compor uma ideia de nação, há uma produção política de sentidos que define um sistema de representação cultural. Assim, as diferenças regionais e étnicas são subordinadas ao ideal de Estado-nação, cria-se uma “comunidade imaginada” para justificar uma identidade nacional que busca a formação de uma cultura nacional, de língua única para toda a nação, cultura homogênea e sistema educacional nacional. As culturas nacionais passam a produzir sentidos sobre a nação, investindo em memórias que conectam o presente ao passado (HALL, 2006). A memória passa a ser, com a identidade, basilar para a formação desse projeto. Para Michael Pollak, “a memória é um elemento constituinte da identidade”, pois “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (POLLAK, p. 204-205, grifos do autor). A manipulação da memória pelo grupo dominante passa a ser condição essencial para a manutenção do poder, o que interfere Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 73
diretamente na memória coletiva, pois, como já vimos, há o comprometimento, por parte do grupo hegemônico, de manter a identidade como fixa e homogênea. Dessa forma, não podemos desconsiderar o fato de a mestiçagem ter sido alçada como a identidade nacional do Brasil e de Cabo Verde no decorrer do século XX, forçando o esquecimento da memória coletiva negra de suas narrativas oficiais. Por isso, a necessidade de reconstruir as narrativas negras em conflitos com a ordem hegemônica e de reconhecer o pertencimento negro integra as poéticas de Éle Semog e de José Luis Hopffer C. Almada, autores que procuram reconstruir e chamar a atenção do leitor para as manipulações do passado e do presente (SOUZA, 2014). Almada, ao refletir sobre Cabo Verde, preocupa-se com o resgate da memória coletiva do arquipélago, principalmente da Ilha de Santiago. Assim, considera: importante empreender algum labor de resgate do passado histórico de Cabo Verde e, especialmente, de Santiago, ilha particularmente vituperada durante grande parte do período colonial e do período pós-Independência. Tem-se por vezes a impressão de que alguns se especializaram na ocultação da história da ilha, das suas populações, das suas elites, das suas manifestações culturais mais características... (ALMADA, 2009, p. 5). Problematizar a passagem de Almada remete a questionar o projeto identitário da geração da revista Claridade, que buscava a aproximação de Portugal e o afastamento das outras colônias africanas. A ilha de Santiago, a que possuiu maior influência negro-africana em razão do passado escravocrata, foi a que mais sofreu apagamentos. Intelectuais claridosos como Baltasar Lopes da Silva e Manuel Lopes eram taxativos ao falar dos badios16, pois Badio em língua materna, vadio em português, o termo pejorativo “passou a designar os habitantes da ilha de Santiago, fossem quais fossem seu estatuto sociocultural e inserção econômica”, assim como da parte dos claridosos na 16
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não conseguiram absorver as “consequências da miscigenação e da interpenetração de culturas que marcaram a ação do colonizador português” (LOPES, 1936, p. 9 apud FERNANDES, 2002, p. 67). Como forma de ressignificar esse passado, Almada procura resgatar cenários, protagonistas e revoltas antiescravocratas, principalmente da ilha de Santiago. Frisamos que há um contexto histórico no século XIX de contestação à ordem colonial, da falência do sistema, da fome, dos ciclos de seca que motiva as revoltas dos Engenhos (1822), Monte Agarro (1835) e Achada Falcão (1842). Com esta perspectiva, Almada procura desvelar o passado colonial cabo-verdiano nos poemas de seu heterônimo NZé dy Sant‘Y‘Águ, tal como aparece no excerto do poema “MonteAgarro”, incluído no livro “Praianas”: Não sabias/ Gervásio/ que a morte/ é simplesmente uma corda/ enlaçada à neblina do cativeiro// Não sabias/ Narciso/ que a morte/ é um gume/ uma faca de sisal/ um nó abrupto e súbito/ ou o espectro da traição/ abraçados ao teu corpo/ e à sua derradeira verticalidade// (...) Não sabias/ Domingos/ que noites haveria/ mais o seu breu/ e o temor de todos/ relinchando/ rente ao silêncio/ a sibilante oralidade/ do delírio das pedras// ajaezadas/ ao crepitar das balas dos arcabuzes/ e ao decrépito simulacro/ da sobrevivência/ e da névoa da morte/ a que se chama escravatura// Tu o que sabias/ Gervásio/ Tu o que sabias/ Narciso/ Tu o que sabias/Domingos// é que deve haver um limite/ entre o mar e o medo/ entre a amnésia e a miséria dos sentidos/ entre o musgo lacrado à memória/ e “insistência em traçar, reforçar e substancializar as fronteiras que separariam os badios e os naturais das chamadas ilhas do Barlavento” (FERNANDES, 2002, p. 92). Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 75
o cuspo rente ao abismo do olvido// e que era esse o destino/ de monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho… (ALMADA, 2009, p. 95-96). Este poema retrata a malograda insurreição antiescravocrata protagonizada por Gervásio, Narciso e Domingos, em 1835, que pretendiam extinguir o sistema escravista, matar os senhores brancos e tomar a ilha de Santiago, tornando-a um Haiti cabo-verdiano. Entretanto, a rebelião foi sufocada através de uma denúncia, seus líderes presos e a repressão fora ser exemplar, assassinando-os. Com o insucesso desta rebelião, as metáforas virulentas demonstram a crueldade que os escravos enfrentariam: “Não sabias/ Gervásio/ que a morte/ é simplesmente uma corda/ enlaçada à neblina do cativeiro// Não sabias/ Narciso/ que a morte/ é um gume/ uma faca de sisal/ um nó abrupto e súbito/ ou o espectro da traição/ abraçados ao teu corpo/ e à sua dura verticalidade”. Logo em seguida, o questionamento angustiado do sujeito lírico acerca das reais possibilidades de vitória aumenta com a anáfora, a ausência da pontuação e a brevidade dos versos: “Tu o que sabias/ Gervásio// Tu o que sabias/ Narciso// Tu o que sabias/ Domingos”. A partir da indagação, o poema encerrase recordando outras revoltas malogradas: “era esse o destino/ de monte-agarro fonteana/ julangue serra-malagueta/ e dos cavalos da sua noite exausta/ resfolegando contra os próceres/ do morgadio e do pelourinho...”. Também propenso à revisão histórica por um olhar afroperspectivo insere-se o poema “Coisas dessa gente que sou”, de Éle Semog, que demonstra os embates pela narrativa da memória: Pertenço a uma História que existe/ na memória dos tempos,/ suturada no útero desse povo,/ ao modo de ferro e fogo,/ que o próprio tempo pariu./ E pelo tempo que há de vir/ se expandirá Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 76
sem fronteira/ tal qual a gênese de um orixá./ Não me curvo ao silêncio/ dessa versão perversa e lúcida,/ que torna invisível tudo que estou,/ como se o que penso pudesse ser/ desconstruído, pela expressão estúpida/ desses alcoviteiros cheios de estórias,/ que roubam detalhes, fingem fatos,/ e inumanos desfiguram vidas e verdades./ Busco no tempo um tempo/ maior que ele mesmo,/ que se abra em inevitável caos,/ e deixe florir a fúria da História,/ e deixe fluir toda a insurreição do silêncio/ como uma eufórica sangria na memória./ Pertenço a uma História/ feita pelo meu povo/ e penso como o meu povo,/ que pertence e perturba/ a estória dos donos e seus danos,/ e que por isso está muito além/ de seu próprio construirse./ Sou um negro como tantos outros/ negros e negras que esbanjam respeito/ mas que também atiçam o seu medo./ E é melhor assim” (SEMOG, 2010, p. 77-78). O poema de Éle Semog procura intervir e subverter a versão oficial da história brasileira, “tornar visível o invisível” (HALL, 2011), quebrando o “silêncio/ dessa versão perversa e lúcida” dos esquecimentos da história, por isso o sujeito lírico está em primeira pessoa do singular, mas que fala por um nós; ele é coletivo e sabe do poder da linguagem para desconstruir a história criada pelos grupos dominantes “que roubam detalhes, fingem fatos,/ e inumanos desfiguram vidas e verdades”. O poema busca o caos que “deixe florir a fúria da História,/ e deixe fluir toda a insurreição do silêncio”, escancara a tensão das relações raciais brasileiras, os recursos da linguagem mostram o que há de vir, o verbo “deixar” sinaliza o devir negro, a assonância e aliteração de florir/fluir aponta para um interessante jogo de fruição, leveza do elemento ar e da beleza do visual com a objetividade dos versos, indicativos da mudança necessária para uma narrativa contempladora do pertencimento negro na sociedade brasileira em “a fúria da história” e Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 77
“insurreição do silêncio”. Dessa maneira, o sujeito lírico expõe o seu posicionamento, “que pertence e perturba/ a estória dos donos e seus danos” revolvendo a história, valendo-se da ironia ao utilizar o vocábulo “estória” como farsa das versões oficiais. Nessa perspectiva, revisar a história negra implica lutar contra o esquecimento das diferenças a partir da emergência de novos atores sociais que procuram reconstruir uma história esquecida pelo discurso hegemônico. Para o crítico literário Hugo Achugar, essa disputa se dá pela negociação que, ao mesmo tempo, “implica a releitura ou a análise da nação e do nacional, (...) uma batalha pelo discurso e pela representação (...), uma batalha por ocupar a posição do que tem/possui a história, do que sabe e do que escolhe” (ACHUGAR, 2006, p. 162-163). Uma disputa que precisa ser negociada, exigida pelos grupos subalternizados contra o autoritarismo dos discursos nacionais hegemônicos e homogêneos (SOUZA, 2014). A extensão dessas disputas e suas consequências atua nos corpos negros, infligem limites e interdições fundamentados no fenótipo, na forma como opera a hierarquia da ordem pigmentocrática nos campos do simbólico e do imaginário. Com isso, o sujeito lírico negro faz do poema o espaço para exercitar seu contradiscurso, traz suas vivências para refletir acerca dos estereótipos aos negros na sociedade, recusa a posição subalternizada e denuncia o racismo. O poema “Quebranto”, do escritor Cuti, contribui para desvelar as encruzilhadas as quais os negros são colocados diariamente: às vezes sou o policial que me suspeito/ me peço documentos/ e mesmo de posse deles/ me prendo/ e me dou porrada// às vezes sou o porteiro/ não me deixando entrar em mim mesmo/ a não ser/ pela porta de serviço// às vezes sou o meu próprio delito/ o corpo de jurados/ a punição que vem com o veredicto// (...) às vezes faço questão de não me ver/ e entupido com a visão deles/ sinto-me a miséria concebida como um eterno começo// fecho-me o cerco/ Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 78
sendo o gesto que me nego/ a pinga que me bebo e me embebedo/ o dedo que me aponto/ e denuncio/ o ponto que me entrego// às vezes... (CUTI, 2007, p. 53-54) A locução adverbial de tempo “às vezes” traduz a tensão do sujeito lírico, desse corpo negro com a indeterminação de quando o racismo agirá sobre si ou de quando será necessária a autocensura para evitar problemas. Evidencia-se a reflexão acerca desse corpo negro tratado como o corpo da suspeita, o corpo sujeito a todo tipo de violência. Desvela-se, também, a força do ideal de branqueamento17 e o embate com o corpo e a consciência do negro em “às vezes faço questão de não me ver”, alimentando a ilusão de que não será discriminado, esquecendo de que a determinação da prática racista se dá pelo fenótipo do outro. É esse ideal que contribui para a falta de solidariedade entre nós negros (MUNANGA, 2008). Por outro lado, o encerramento do poema com estrofe de verso único contendo a locução adverbial de tempo “às vezes” seguido de reticências, assinala uma recusa irônica ao branqueamento de um sujeito negro que busca sua afirmação identitária no tenso embate das relações raciais brasileiras. Já Abraão Vicente, no poema “Pele” (s.d., p. 13-14), procura revisitar a presença negra durante a escravidão no arquipélago frisando a permanência da condição subalterna nos tempos atuais associada ao passado/presente africano: Pele e esquecimento.// Séculos de costas curvadas/ E olhar servil.// Séculos de lama e lodo,/ Séculos na sombra/ E trabalho inglório/ Em nome de quem/ Nos manteve de/ Costas curvadas/ E olhar servil.// Séculos em/ Cada O ideal de branqueamento é “perseguido individualmente pelos negros e seus descendentes mestiços para escapar aos efeitos da discriminação racial, o que teve como consequência a falta de unidade, de solidariedade e de tomada de uma consciência coletiva, enquanto segmentos politicamente excluídos da participação política e da distribuição equitativa do produto social.” (MUNANGA, 2008, p. 95). 17
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sílaba/ Da palavra/ “Senhor”.// Séculos/ Até a liberdade./ Afinal a liberdade, mas/ Os cabelos desfrisados e/ A pele aclarada,/ As tuas origens/ Escamoteadas/ Em mil fábulas sem sentido,/ Em estranhos labirintos/ De mágoa e vergonha.// Séculos e afinal o/ Silêncio e a penitência/ Continua pelos males/ Que te infligiram.// Séculos e mesmo/ Assim a culpa./ As costas curvadas/ O olhar servil.// Séculos e mesmo assim/ O Silêncio absurdo quando/ Pronuncias a palavra:/ África. (VICENTE, s.d., p. 13-14) O vocábulo “pele” direciona para a questão da subjetividade dos negros, o sentir na pele, o poema opera com habilidade a linguagem para desvelar a longa duração (“séculos”), a condição de subalternidade recorrente (“olhar servil e costas curvadas”), as narrativas desabonadoras (“origens escamoteadas”, “mil fábulas sem sentido”, “estranhos labirintos”), e a questão do “silêncio”, daquilo que não se quer falar, do posicionamento que não se quer rever, isto é, o silêncio ao que é relacionado à África. Vários são os silenciamentos da matriz negro-africana dos cabo-verdianos, por isso a importância dessa poesia de afro-crioulitude18, assim referenciada por Almada (2013). Outro problema quanto à identificação negro-africana do cabo-verdiano acontece na relação com os estrangeiros africanos que chegam ao arquipélago apresentando o fenótipo negro, pois Segundo Almada (2013) é “aquela que referencia de forma positiva, inclusiva e, até, afirmativa, a contribuição da matriz afro-negra na formação da crioulidade caboverdiana, evidencia a presença étnico-cultural e/ou étnico-racial do homem negro ou negro-mestiçado na sociedade caboverdiana e, sem desvalorizar a ocidentalidade da nossa cultura, implícita na construção simbólica e na vivência da nossa crioulidade (enquanto afro-latinidade), considera-a também inserida no vasto “mundo negro”, isto é, naquele espaço cultural onde se situam, em coexistência, em fusão ou em conflito com outras culturas, mormente as de origem europeia, as culturas negro-africanas, afro-negras e afro-europeias da África, das Américas e, cada vez mais, da Europa” (ALMADA, 2013, p. 374). 18
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são pejorativamente chamados de mandjakus, etnia negro-africana de Guiné-Bissau, como bem aponta Eufémia Vicente Rocha (2009) que percebe na generalização do negro africano como mandjaku19 uma categoria que estigmatiza, discrimina e evidencia preconceitos ao estabelecer uma distinção entre “nós” e “eles” (ROCHA, 2009, p. 28), que “desliza da xenofobia à crença na inferioridade cultural ou biológica do outro” (ROCHA, 2009, p. 31): Na vanguarda temos uma identidade unificadora relativamente ao negro provindo da África, dando origem ao mandjaku versus uma outra identidade, igualmente unificadora, que embora também africana, se percebe essencialmente distinta de todo o resto. Desta feita, uma identidade supostamente mestiça, a do cabo-verdiano que busca a unidade nacional, a legitimação e conservação do status quo. Prontamente, estamos perante uma forma de delimitação de fronteiras entre os cabo-verdianos e os imigrantes africanos” (ROCHA, 2009, p. 31, grifos da autora). O estudo de Rocha demonstra a aversão de parte da sociedade cabo-verdiana aos negros africanos, seu posicionamento como não pertencente à África, e de busca por aproximação à Europa e aos brancos, algo que Rocha considera como paradoxal, pois no exterior não se distingue cabo-verdianos de africanos, todos são africanos e vistos como negros. Ainda mais estranho para Rocha é a “possibilidade de um racismo, em um país de africanos e de imigrantes que na Europa, por exemplo, são vítimas do mesmo jogo perverso que praticam em casa com seus vizinhos” (ROCHA, 2009, p. 36). A propalada crioulização de Cabo Verde é questionada no poema de Vicente, pois a crioulização pressupõe que “os elementos culturais colocados em presença uns dos outros devam Mandjaku foi uma das etnias escravizadas e enviadas para o povoamento de Cabo Verde. 19
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ser obrigatoriamente ‘equivalentes em valor’ para que essa crioulização se efetue realmente” (GLISSANT, 2005, p. 21, grifos do autor), uma vez que a “crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação ‘se intervalorizem’, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura, seja internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente, de fora para dentro (GLISSANT, 2005, p. 22, grifos do autor), sem inferiorização. Nessa perspectiva, o poema de Vicente revela um avanço em relação a pensamentos hegemônicos em Cabo Verde, tais como o de Baltasar Lopes e a sua submissão à cultura portuguesa e completa rejeição a qualquer herança africana do cabo-verdiano; avança também quando pensamos nas ideias de Gabriel Mariano que ainda que alçasse o mestiço à principal componente identitário cabo-verdiano, ainda assim teríamos esse mestiço subalternizado a um ideário de cultura portuguesa, para além de que esse mestiço identificado por ele apresentasse total harmonia com o seu meio, não questionando a sua condição de colonizado (FERNANDES, 2002). Nesses dois poemas de Cuti e Vicente, vemos os confrontos internos e seus efeitos intrapsíquicos nos negros em um contexto de violência racista, de como isto influi nas suas subjetividades, pois, recordamos Fanon, “onde quer que vá, um preto permanece um preto” (FANON, 2008, p. 149). Essa violência racista imposta, segundo Jurandir Freire Costa, atua como três traços sobre os negros. Costa (1990, p. 1-16) percebe como primeiro traço da violência a maneira como atua na força intrapsíquica para destruir a identidade do sujeito negro, procurando encarnar os ideais do Ego do sujeito branco, identificando-se com o fetiche branco, tido como o sujeito universal e essencial. Nessa perspectiva, o negro, ao negar-se, busca, no futuro, deixar de existir. Essa formulação da ideologia da cor procura, na verdade, ocultar a ideologia do corpo, pois, ao repudiar a cor, repudia o corpo. O segundo traço da violência racista é a relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo. A partir da consciência do racismo, sua subjetividade faz opor-se ao seu Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 82
próprio corpo, uma vez que foi coagido a desejar a identidade branca. É nesse momento de busca da igualdade perante a sociedade que ele começa a perceber o seu corpo como intruso. Para se livrar desse “mal”, tenta metamorfosear o corpo presente em vãs tentativas de alterar os seus traços fenotípicos. Posteriormente, procura aniquilar o futuro desse corpo rebelde através da união inter-racial e a procriação de uma prole mestiça, pois, como o ideal é o desejável pelo branco o pensamento fará com que desapareça enquanto representação física e mental (COSTA, 1990). Sendo assim, a violência racista apresenta o seu terceiro traço: a amputação do prazer do corpo negro, assim como a privação do pensamento de prazer do sujeito negro. Sem o princípio do prazer, sua economia psíquica gravita em torno da dor. Diante da dor, interessa ao aparelho psíquico recompor a integridade esgarçada pelo estímulo excessivo. Diferente da experiência da satisfação, a experiência da dor ativa a rigidez do movimento psíquico, pois esta deve fazer desaparecer a excitação dolorosa. Nesse caso, a dor não nasce da frustração, nem é análoga ao desprazer. A dor é provocada por um trauma específico produzido pela violência. Diante do ideal branco, o sujeito negro tenta cicatrizar o que sangra, ou seja, a sua imagem corporal, mas sua tentativa é inglória. Com isso, o sujeito negro que nega a sua identidade é obrigado a conviver com a insatisfação de prazer sobre a sua identidade. A força do racismo procura expulsar da vida psíquica do negro todo prazer de pensar e todo pensamento de prazer. Dessa forma, pensar sobre a identidade negra resulta em sofrimento, a violência racista força o sujeito negro ao pensamento de autorrestrição. Ele chega à conclusão de que a autodestruição do corpo negro seria o seu fim, contenta-se em renegar o ‘estereótipo do corpo negro’, copiando e assumindo um estereótipo de comportamento que pensa ser exclusivo do branco para finalmente atingir o que a democracia racial almeja, isto é, o “negro de alma branca”. Assim, o sujeito negro completa o ciclo de consagração do racismo quando aceita os estereótipos que assinalam a sua cor, tais como parar de pensar autonomamente e Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 83
se submeter ao discurso do branco, delegando o poder de determinar o que ele pode e deve pensar sobre si mesmo. Com vistas às considerações de Costa (1990), a partir da exposição dos poemas dos brasileiros Cuti e Éle Semog e dos caboverdianos José Luis Hopffer C. Almada e Abraão Vicente, vimos as subversões criativas realizadas com a linguagem poética e as possibilidades para ampliar os estudos comparativos entre Brasil e Cabo Verde, tendo como principal perspectiva a autoria negra e as temáticas que privilegiem esse pertencimento racial. Os dois países são devedores de leituras que abordem o pertencimento negro em suas literaturas. Dessa forma, assinalamos a importância da diversidade e do pluralismo racial para enriquecer a fortuna crítica das literaturas desses países no sentido de contribuição para os estudos negros no Brasil, em Cabo Verde e nas relações negro-diaspóricas. A ideia aqui proposta de Pasárgada enegrecida integra o nosso compromisso com a afroperspectividade, explorando as relações afrorrizomáticas que as autorias negras podem estimular e nos fazer aprender, sendo essencial para a expansão do campo das literaturas africanas de língua portuguesa.
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À luz do rio Uma leitura da passagem entre As duas sombras do Rio, de João Paulo Borges Coelho
Bruno Santos Pereira Daviane da Silva Ribeiro Ivanete França Galvão de Carvalho Pós-graduandos Lato Sensu em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Tomando como horizonte As duas sombras do rio, romance do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, este artigo busca explorar as linhas e entrelinhas da narrativa em questão, a fim de absorver da própria obra os elementos que a interpretam, seu projeto construtivo, entendendo que a operação do texto passa por uma reflexão detida sobre o seu trabalho com a forma, analisando o narrador, os personagens, as tramas e elos, atentando-se, também, às questões históricas, culturais, míticas e espirituais que permeiam a obra, a fim de levar o leitor à luz deste rio. Palavras-chave: João Paulo Borges Coelho; As duas sombras do rio; Moçambique; Narrador; História.
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O
romance As duas sombras do rio, o primeiro do historiador João Paulo Borges Coelho, vem mostrar heranças deixadas pelo colonizador português. Esta narrativa faz uma releitura da guerra civil moçambicana, utilizando-se das imagens e observações das aldeias que circundam o rio Zambeze. Nesse projeto, notam-se as transformações que deixaram rastros dos traumas da guerra e do período pós-independência. O romance, dividido em quarenta em três capítulos, passase nas margens do rio Zambeze, na tripla fronteira entre Zâmbia, Zimbabwe e Moçambique, transitando entre a história, os espaços da região, demarcando as fronteiras internacionais e as internas – norte e sul , e também o além-mundo. João Paulo Borges Coelho, no seu processo de escritor de fazer e refazer(-se), paralelamente ao cunho histórico-geográfico, explorou a dor mais profunda que é a morte e a invasão do seu povo; caminhou por caminhos obscuros para vivenciar o pathós na sua dupla acepção: ora como dor e sofrer, ora como sentir. O projeto construtivo do romance As duas sombras do rio se dá pela orquestração e o encadeamento dos personagens, o título da obra, os elementos que a fazem, o labor constante de linguagem, a composição das entrelinhas, a fotoplastia e a visão cinematográfica da geografia da narrativa, que é a própria geografia do país. Assim, João Paulo Borges Coelho, além de historiador por formação, insere-se na categoria de poeta. A palavra poeta tem seu radical proveniente no grego poiesis, que significa criar, moldar, fazer; fazer passar do não ser para o ser. Logo, o poeta é aquele que faz, que está fazendo, no gerúndio, pela ideia de estar se fazendo e sendo feito no ato da escrita, mas sempre nesse contínuo, nessa ideia de movimento. O significado da palavra poeta, etimologicamente, engloba um sentido de criação, de existência, de origem. A partir disso, pois, é observado que tanto a prosa quanto a poesia partem de um mesmo ponto, já que ambos são escritos pelos poetas e quando aqui se diz poeta, diz-se criador. Prosa e poesia florescem, portanto, de uma mesma essência: a essência poética. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 88
O trabalho com a linguagem estrutura a narrativa em questão como um todo elaborado, minuciosamente crítico e descritivo nas suas linhas e, principalmente, entrelinhas, que busca sua própria forma e construção, pois a poética é sobretudo a criação de um espaçotemporalidade que convida à habitação que é passível de ser habitada por quem por ela for tomado. Não haveria crítica artística (literária, musical ou outra) sem a imersão na obra, mas o que provoca essa imersão é sempre o obrar da obra. (JARDIM, 2012) A priori, nota-se que o romance conta a história e a guerra civil de Moçambique, na tripla região Zâmbia, Zimbabwe e Moçambique. Pelos quarenta e três capítulos da narrativa, poderão ser observadas várias referências geográficas já previamente marcadas no mapa que antecede o início do romance, deixando claro ao leitor que a narrativa caminha e que é preciso caminhar junto. Mais: que a narrativa é o caminho, construindo e sendo construído, para se chegar ao entendimento e à história. Já em seu título, Borges Coelho traz para o leitor as dimensões, as extremidades e as polaridades de um mesmo rio: o norte, com influências mulçumanas, e o sul, com a católica; a cobra e o leão, a água e o fogo; a mulher e o homem. É essa dualidade a formadora da narrativa em questão. Embora venha de muito longe a divisão das terras em Moçambique, em seu romance o autor traz nas entrelinhas exemplos da divisão em aldeias, retomando a história e a memória de um tempo, como se lê em: Ultrapassam o emaranhado de casas atravessando fronteiras que só os donos conhecem mais os vizinhos, e que os distantes adivinham pela intuição de quem tem as suas próprias fronteiras demarcadas e, portanto, consegue imaginar as dos outros. Atravessam quase sem pedir licença porque numa aflição todos baixam as imaginárias cercas e não a requerem, levantando-se mesmo Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 89
alguns das esteiras para acompanhar aquela preocupação. (COELHO, 2006, p. 29-30). Borges Coelho revisita o passado quando imprime em seus personagens recordações de fatos que foram extremamente importantes e marcantes no processo da Guerra Civil. Destaca-se, por exemplo, o fato de que a FRELIMO, partido fundado para lutar pela independência de Moçambique, mais tarde, veio a trazer um sentimento de desilusão por não cumprir as promessas feitas de real libertação e causou “descontentamentos com a majoritária administração das elites urbanas do sul do país, em detrimento das populações rurais do norte” (SECCO, 2011). Moçambique tornou-se independente em junho de 1975, mas, passada a euforia da libertação, o povo, consciente de que aquela liberdade não era de todo suficiente para que os problemas do país chegassem ao fim, pois as promessas feitas durante as lutas não foram cumpridas pelos “ditos” revolucionários, inicia uma guerra de desestabilização em 1980, que durou até outubro de 1992, destruindo o país. No romance, é possível verificar que os personagens secundários tecem, a partir do movimento de Leónidas Ntsato, suas defesas às feridas ainda abertas pelos males sofridos, como que num jogo de justificativa de cada ato tomado. O autor trabalha com a memória, revisitando, mais uma vez, tempos passados, quando a exploração do humano transformava a terra em deserto de pessoas e almas penadas, denunciando a comercialização do marfim e o abuso sob a população rural, investigando os traumas e como as personagens se relacionam com eles. As personagens representam a fragilidade humana, apesar de não transparecerem heróis trágicos que não indicam os caminhos, não têm voz. Utiliza-se, também, da natureza, para expressar o trauma sofrido pelas criaturas que vivem sobre aquelas terras num discurso que nos parece tanto poético quanto verossímil, já que “intrigante é como a natureza permite que aves tão belas e de voo de tão extraordinário alcance possam continuar a sê-lo alimentando-se das criaturas mais feias que há à face da terra” (COELHO, 2003, p. 42). Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 90
Através de Leónidas Ntsato, que é um observador do cotidiano, é possível caminhar pela imaginação e intuição de João Paulo Borges Coelho, apesar de, talvez por ser historiador, mostrar traços mais ampliados, mais estruturados no que tange a geografia ou espaço-tempo e, assim, cause um maior aspecto de verossimilhança. Vários trechos vão revelando as ruínas e as fragilidades do indivíduo. As personagens de Borges Coelho não são didáticas, porque representam essa fragilidade e, sempre na solidão, parecem não estar inseridas naquele contexto. As metáforas usadas pelo narrador para a construção do romance acentuam o imaginário, o espaço-temporal, o cultural e o místicoreligioso. Ao discorrer sobre qualquer obra literária de João Paulo Borges Coelho, não se pode fugir do panorama histórico em que suas narrativas se inserem tão naturalmente, capacidade que deve ser atribuída ao seu conhecimento profissional como historiador, fruto de suas inúmeras pesquisas ou, arrisca-se dizer, de uma possível intuição ancestral – porventura, a fonte de seu talento literário. Talvez ambos. Os historiadores ocupam-se de acontecimentos que podem ser localizados num tempo e num espaço específicos, acontecimentos que em princípio são (ou foram) observáveis ou perceptíveis, enquanto que os escritores de ficção – poetas, romancistas, dramaturgos – tanto se ocupam destes dois tipos de acontecimentos como de acontecimentos imaginados, hipotéticos ou inventados (WHITE, 2005, p. 43 apud FRANCO, 2008, p. 2). O fato é que este autor descreve com uma sutileza irônica as mazelas físicas e psíquicas vividas pelas suas personagens, transformando-as em um único corpo vivo, um continente de emoções – a África , em que a dor lateja incessantemente até os dias de hoje, pela perda da liberdade de outrora, pelo sangue derramado, pelo território arrasado, pela fome, pela exclusão educacional, pelo desmantelamento da cultura, enfim, por tantas Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 91
injustiças impostas aos africanos que experimentaram o colonialismo, independente do seu país de origem. O escritor utiliza uma linguagem culta, sem meandros, mas consegue alcançar as particularidades da realidade moçambicana sem fugir ao seu propósito, pois defende que os moçambicanos podem escrever um português padrão, a fim de que deixem de ser vistos como exóticos. Nota-se uma evidente proximidade entre a realidade e a ficção no trabalho do autor. Essas peculiaridades acerca da sua formação profissional geram na obra em questão um narrador que transita entre a margem historiográfica e literária, recontando a guerra civil moçambicana e os aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos decorrentes dela, constituindo o foco da narrativa. Tomando por fio condutor o raciocínio de Gérard Genette, crítico literário e teórico da literatura, a narrativa seria clarificada como a “sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objeto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição, etc.” (GENETTE, 1995, p. 24), evidenciando a forma dialógica como a obra é construída, marcada pelas dualidades, primeiramente no título e na problemática carregada pelo protagonista, que se vê dividido entre dois mundos antagônicos, remetendo-nos às disputas políticas entre a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) e a Frente Libertadora de Moçambique (FRELIMO), e às discrepâncias decorrentes dessas guerras civis, bem como às características recorrentes no andamento do texto, que se tece em meio às contradições. Adotando a postura de Genette, diferencia-se, portanto, os elementos presentes na narrativa, tendo como “história o significado ou conteúdo narrativo [...], narrativa propriamente dita o significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si, e narração o acto narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar.” (GENETTE, 1995, p. 25), sendo a narração e por consequência seu narrador o enfoque de análise literária vindoura, que se pretende realizar por meio da divisão das características da narrativa em categorias que são, Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 92
segundo Todorov (1966 apud Genette, 1995), “a do tempo, onde se exprime a relação entre o tempo da história e o do discurso; a do aspecto, ou a maneira pela qual a história é percebida pelo narrador; a do modo, isto é, o tipo de discurso utilizado pelo narrador”. Contudo, seguiremos o modelo de Genette inspirado em Todorov, em que mantém a categoria tempo, embora tenha efetuado a junção das duas outras categorias restantes, aspecto e modo, em uma única denominada “modalidades de representação”. Retomando à narrativa, que tem por início a descrição do espaço onde o protagonista é encontrado, na ilha de Cacessemo, compreende-se a intenção do autor em relação a Leónidas Ntsato, que carrega consigo a cobra e o leão tanto no nome quanto na alma, dualidade que permeia inclusive toda a narrativa. Acreditase, portanto, que a escolha desse ambiente teria sido premeditada, pois segundo Leite (1998, p. 73), a ilha “é a metáfora maior de reunião e harmonização da diversidade regional, cultural e linguística. Na ilha, os rios reúnem-se ao mar, o interior ao litoral, e instaura-se um novo cosmos”. Acompanhando o raciocínio da autora, não é mera coincidência que o protagonista só se sente bem no espaço ocupado pelo rio, em que as águas divisam, mas unem ao mesmo tempo as duas margens, pois necessita recuperar sua identidade perdida; vislumbra-se ainda uma alegoria à identidade de Moçambique que se foi desfazendo com o colonialismo e as guerras civis. O romance ambienta-se na parte norte de Moçambique e todo o seu entorno, abrangendo a zona rural, tendo como destaque o rio Zambeze, grande divisor da geografia entre o norte e o sul. Este rio sinaliza, também, certa temporalidade entre o passado – por onde eram traficados escravos e o presente – por onde atravessam os refugiados das guerras civis. Walter Benjamin (1987, p. 205) afirma que “os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir”; nada mais adequado, pois o projeto literário do autor foi iniciado ocasionalmente durante sua viagem ao Zumbo, Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 93
pesquisando, extraindo e interpretando as diferenças culturais entre as diversidades étnico-raciais existentes naquelas regiões, propiciando o processo de criação de suas personagens. A exploração desse espaço possibilita o desenvolvimento da narrativa, pois, conforme esclarece Hamon, “uma descrição resulta frequentemente da conjunção de uma (ou várias) personagens com um cenário, um meio, uma paisagem, uma colecção de objectos”, abrindo lugar, portanto, para a inserção temporal no texto, diferenciado por Genette entre “o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante)”. No romance, essa caracterização se mostra fragmentada, dividida, marcada por anacronias narrativas, delineadas como “as diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa” (GENETTE, 1995, p. 34). Essas anacronias são percebidas pela inversão da ordem dos acontecimentos no discurso narrativo e podem ser exemplificadas pelos aspectos místico-religioso (espírito de Kanyemba) e histórico (guerra colonial e conflitos civis) que caracterizam o hibridismo temporal dentro da narrativa, pois nota-se a preocupação do narrador tanto com o presente quanto com o passado, seja ele remoto, seja recente e por vezes com a premeditação de ocorrências futuras. Com a introdução dos aspectos espaciais e temporais, permite-se averiguar as modalidades de representação, ou seja, o ponto de vista em que é contada a história. Além disso, o discurso narrativo apresenta atributos como o distanciamento - verificado na abertura do romance, pela presença de um narrador viajante que se coloca como testemunha dos fatos, de fora da narrativa. O narrador, nesse caso, não é uma das personagens, mas tem a capacidade de enxergar o que se passa em seus íntimos, denotando as características de um narrador onisciente. Genette caracteriza esse tipo de narrador, ausente da história, como heterodiegético. Essas propriedades contidas na personalidade do narrador, aliadas às suas descrições, que levantam traumas, dores Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 94
e medos, atuam concomitante ao enaltecimento da cultura e da memória moçambicana, por meio da introdução de juízos, ponderações e comentários, por vezes implícitos, acerca do contexto narrativo. Promove-se, assim, o que Genette (1995, p. 255) nomeia de função ideológica do narrador, caracterizada pelas “intervenções, directas ou indirectas, do narrador a respeito da história”. O narrador viaja na atmosfera rural, destacando os regionalismos, entremeando histórias ligadas pelos fragmentos da guerra, intermediadas pela violência do colonizador, pela consequente escravidão, pelas fundações das Missões, entre tantas outras dores infligidas, provocando a memória dos moçambicanos por meio de símbolos e mitos, de fronteiras balizadas entre o passado e o presente, estabelecidas na realidade e no imaginário moçambicano: Míticas – cobra e leão: Por vezes revela a força do leão e fala como se fosse o verdadeiro m’phondoro, com os olhos vermelhos a faiscar de cólera e toda a força da terra. Mas logo em seguida esse discurso de macho irreflectido do sul se acalma e ele torna-se sereno e azul como as águas profundas. Revela então uma grande sabedoria que é apanágio das mulheres e da grande cobra do norte (COELHO, 2003, p. 37); Históricas – perda da liberdade: O Zambeze é uma larga e majestosa fita de prata que separa a terra do céu. Uma grande cobra que vem de Angola e corre para o mar, para o fim do mundo. Da boca dessa cobra gerações e gerações de antepassados se despediram desta vida e penetraram nas brumas do além amarrados uns aos outros, e ainda bem, porque desta forma, muito juntos nos porões escuros dos barcos, ficava pouco espaço para os seus medos e terrores. (COELHO, 2003, p. 258); Culturais – confronto entre tradição e modernidade: Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 95
Seis meses mais tarde, este último permitiu-se ambições mais largas e trouxe para casa um aparelho de cassetes de seis pilhas, verdadeiro fenômeno da tecnologia, redondo e brilhante, que alterou profundamente os sons de Bawa, afastando o piar dos pássaros mais para o interior do mato e tornando ainda mais periférico o lamento das quizumbas. Bawa viveu então algumas semanas de ajuntamentos nocturnos e curiosas danças, outras que as dos tambores da terra [...] (COELHO, 2003, p. 120). Através da varredura desses espaços africanos assolados por confrontos civis e da utilização de recuos no tempo tão recorrentes na narrativa, em que é tirado o foco do protagonista. Com isso, permite-se ao narrador apresentar personagens de diferentes gêneros, idades e esferas sociais, conferindo personalidades e condutas que não podem ser classificadas de modo conclusivo, prevalecendo uma eterna dúvida sobre suas atitudes. Por serem preenchidas com um caráter multifacetado, inconstante, causam impactos e surpresas no decorrer da narrativa, pois assim como o protagonista, apresentam comportamentos ambivalentes. Não se percebe um cuidado do autor em internalizar uma postura moralizante em suas personagens, elas representam o que deveriam ser – humanos, e, portanto, passíveis de falhas e acertos. Consegue-se apontar essas imprevisibilidades comportamentais em várias personagens, como em Mama Mère, que, de acordo com a necessidade, retira seu disfarce de comerciante competitiva para deixar transparecer seu lado obscuro: Por detrás dele estava Mama Mère. Confrontou-a com o caso e ela respondeu-lhe com doces e meigos queixumes, acabando depois, face à evidência, por atirar com os lençóis e saltar da cama, no semblante uma arrogância que nunca antes lhe vira. Million ainda tentou bater-lhe para pôr as coisas no seu Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 96
devido lugar, mas apesar de estar nua nasceu na mão da mulata um punhal que ela encostou ao pescoço já anafado do superintendente (COELHO, 2003, p. 53-54); E em outras ocasiões, porém, mostra-se uma mulher capaz de praticar atos de caridade: Foram, os que chegaram àquela nova terra, levados para a varanda da loja de Mama Mère. E para o terreiro em frente, debaixo das árvores, os que não cabiam. Por todos a generosa mulher ordenou que fosse distribuído chá quente, que pouco mais poderia dar sem a ajuda do governo (COELHO, 2003, p. 83). Ao que parece, essa dualidade também marca o autor – divido entre fatos históricos (reais) e literários (imaginários) e seu narrador, que pode ser caracterizado como do tipo “viajante”, por transitar em todo o texto. Nesse trânsito, retrata diferentes personagens e espaços no vai e vem do tempo, carregando consigo muito das suas raízes, dos seus laços culturais. Mostra, inclusive, sua outra face: a do homem da terra, que valoriza sua origem e a reconta, salvaguardando a memória de seu povo. Isso pode ser elucidado, novamente, pelo que apresenta Walter Benjamin (1987, p. 198-199), ao explicar que: entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 97
No seguinte trecho, pode-se detectar o narrador que tem por sombra o historiador: Enganavam-se, porém, os que pensavam ser aquele o seu destino. Porque não há um só destino, há sempre um destino atrás do outro, todos os dias, sucedendo-se ou correndo como a água do rio, e a sucessão de todos os destinos principais e paralelos é a história. (COELHO, 2003, p. 100) No excerto, verifica-se que o autor está preso às amarras tecidas em suas pesquisas históricas e as deposita no narrador mesmo que inconscientemente, o que pode ser evidenciado pela fala do autor, ao descrever sua ligação com a história de Moçambique: Sendo eu historiador, talvez a diferença esteja em que eles procurem ir ao encontro da história e eu tente libertar-me dela, sem, até a data, o conseguir. Às vezes tenho a sensação de que a história nos esmaga, nos impede de fazer uma literatura mais atenta ao quotidiano. (COELHO, 2010) Parece plausível acreditar que as inúmeras descrições narradas no texto (marcadas pelo uso de vírgulas, o que sugere uma posição de aposto explicativo) têm a finalidade de demonstrar a situação em que vivem os moçambicanos. Tenta-se, com isso, incutir-lhes um pensamento crítico sobre a realidade do seu país, com o propósito de entendê-la para, finalmente, administrá-la, na tentativa de se reerguerem. Pretende-se, ainda, relembrar aos velhos e ensinar aos jovens sobre a cultura, suas tradições, seus mitos e, ao mesmo tempo, resgatar a identidade desta terra corroída pela colonização e pela natureza que reage implacavelmente, diante de tantas interferências causadas pela ganância humana. Por fim, são trazidos à tona vários elementos que permeiam o universo social de Moçambique, clarificando a situação de completo atraso e esquecimento a qual foi submetida a região norte do país. Retomando o raciocínio de Benjamin (1987, p. 209): “o historiador é obrigado a explicar de uma ou de outra maneira os Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 98
episódios com os quais lida, e não pode absolutamente contentarse em representá-los como modelos da história do mundo.” Apreendendo esta fala, pode-se relacioná-la à posição de João Paulo Borges Coelho, sobre os limites entre a ficção e a história: De facto, para mim, é este o limite último da ficção, a única coisa que não lhe é permitida, a linha que jamais pode ser transposta: confundir-se deliberadamente com a verdade. Numa das suas aulas de literatura na Universidade de Cornell, o escritor Vladimir Nabokov afirmava que A literatura é invenção. A ficção é ficção. Chamar a uma história uma história verdadeira é um insulto tanto para a arte como para a verdade. Em suma, há uma definição muito conhecida de ficção que a apresenta como uma espécie de contrato em que o escritor finge dizer a verdade e o leitor finge acreditar. Trata-se de um contrato que não pode em circunstância alguma, repito, ser quebrado. Sob pena de anular irremediavelmente a magia (a verdade) da literatura. Dito isto, não quer dizer que a ficção não aspire a uma certa verdade dentro dela, a “sua” verdade. Ou seja, ela deve desempenhar a sua parte do contrato com competência, buscando a verossimilhança, aquilo a que António Cândido chamou o sentimento de verdade. Mas não é uma verdade literal, objectiva. É, antes, a verdade que cada leitor retira privadamente da leitura. (COELHO, 2010) Na percepção que se desenvolve, embora autor e narrador se relacionem de maneira tênue, não podem ser vistos como um só, pois a narrativa, conquanto reconstitua a história, não retrata fielmente a verdade em si, ou seja, a história contada oficialmente. O autor, por meio da voz do narrador, utiliza a história como pano de fundo para desenrolar uma gama de acontecimentos propiciados pela guerra civil em Moçambique, através de conflitos individuais e coletivos das personagens nessa trama. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 99
Ao usar o narrador como porta-voz dessas experiências, o autor se mascara, se exime, se resguarda quanto à sua posição ideológica, interpretativa dos fatos, sejam eles históricos, fictícios, sejam místicos, pois, segundo Leite (1998, p. 43), “as vozes condensam-se, amalgamam-se numa só, refeita em escrita, que transporta no seu tecido a memória da multiplicidade, arquétipo e arquitectura reposta num novo corpo linguístico”. Compreende-se que em As duas sombras do rio, o autor fez uma espécie de releitura e, consequentemente, uma reescrita da história de Moçambique, privilegiando o lado literário, o que pode ser exemplificado por meio do uso marcante da palavra “sombra” em diversos trechos na narrativa. Esta, tem por definição o inconsciente e o espírito - e seu emprego fundamentase pelo que diz Secco (2011, p. 121), quando esclarece que o autor “utiliza de algumas alegorias e metáforas para refletir acerca da relação espaço-temporal, do imaginário cultural e do universo mítico-religioso que permeiam a sociedade moçambicana”. As figuras míticas estão presentes em toda obra, pois são importantes instrumentos de salvaguarda da memória de Moçambique, além de um recurso eficaz para ilustrar aquilo que não se pode explicar, pelo menos racionalmente: Harkiriwa responde-lhe com uma crítica aos tempos modernos e à arrogância humana de tudo querer explicar, de querer banalizar todos os porquês. Este caminho, Gomanhundo tem que reconhecer, é inútil, uma vez que não podemos avançar se os porquês forem esgotados (se o inexplicado deixou de existir então não temos porque avançar, já avançamos tudo) (COELHO, 2003, p. 255). Há, na narrativa, muitos cenários de paz e de guerra; figuras da mais bela natureza, exaltando os animais e as paisagens, mas igualmente a morte e a destruição. Efetivamente, é um romance que diretamente está ligado à história de mais uma das colônias portuguesas em África, Moçambique. Mas também, pode-se observar nas linhas de Borges Coelho um grau Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 100
desmedido de poeticidade. A narrativa em questão parece dividida entre uma “narrativa histórica” e uma “narrativa literária ou poética”. Contudo, não são duas narrativas isoladas e apartadas. Como uma mise an abyme, uma dá passagem à outra. A mise an abyme é traduzida como narrativa em abismo, ou seja, narrativas que contém outras narrativas dentro de si, histórias que desaguam em outras histórias. Aqui, Moçambique histórica desaguando em Moçambique literária. A obra que conta a história de Moçambique dá espaço para histórias do além-mundo. O romance é fragmentando. Seus capítulos, em geral, não apresentam linearidade dos fatos. Há, ainda, o desaparecimento do personagem-chave, Leónidas Ntsato, durante grande parte da obra. O protagonista é visto até o capítulo sete e só retorna às linhas no capítulo trinta e um e, depois disso, é visto apenas no trinta e cinco e no capítulo final. Por além-mundo quer-se dizer o não palpável, aquilo que não se pode tocar, o não visto, mas intensamente sentido, o superno. Para desentranhar da própria obra seu projeto construtivo é preciso olhar, também, para os caminhos da espiritualidade e/ou misticismo que a narrativa de Borges Coelho nos apresenta: “é muitas vezes nos antepassados e nas suas complicadas relações com os vivos que se descobre o fio do enredo” (COELHO, 2003, p. 36). O romance de João Paulo Borges Coelho se inicia com o pescador Leónidas Ntsato desmaiado na pequena ilha de Cacessemo, no meio do rio Zambeze, entre a margem norte e sul. “Com a face na areia”, literalmente, como é intitulado o primeiro capítulo, o pescador é salvo por outro remador. A surpresa, porém, acontece quando Leónidas acorda, pois não se encontra em seu estado são de consciência. Sua família, então, decide leválo ao feiticeiro Nganga Gomanhundo, que logo descobre o problema do pescador: O problema é muito grave. O teu marido está entre o norte e o sul – começou ele. – Diz coisas com algum nexo mas que todas juntas não fazer sentido. Entre o norte e o sul. Por vezes revela a força do Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 101
leão e fala como se fosse um verdadeiro m’phondoro, com os olhos vermelhos a faiscar de cólera e toda a força da terra. Mas logo em seguida esse discurso de macho irreflectido do sul se acalma e ele torna-se sereno e azul como as águas profundas. Revela então uma grande sabedoria que é apanágio das mulheres e da grande cobra do norte. (COELHO, 2003, p. 36-37) A primeira ideia mística-espiritual nasce no curandeiro que, além de um médico-feiticeiro, nesta justaposição, é a “reencarnação” do Frei Pedro da Santíssima Trindade, conhecido como Gomanhundo, que também foi grande curandeiro nos anos de 1820. Apesar de sua espiritualidade elevada, Nganga Gomanhundo não tinha a solução para o problema de Leónidas. Como sempre relacionado ao mundo espiritual, o tempo é outro, aquele que não se convenciona e nem se pode medir; era preciso esperar com paciência para evoluir e, consequentemente, para encontrar a resposta. Leónidas retorna para casa com sua família, tentando resgatar a normalidade de outrora. Mas “não pode fingir a normalidade quem nunca a teve de verdade” (COELHO, 2003, p. 114). De fato, o pescador e sua família não conseguiriam encontrar mais o ponto de equilíbrio. Leónidas vagava sempre, por dias e noites, afetado pelo combate furioso entre os dois espíritos – a cobra e o leão – que o acompanhavam. O atormentado pescador tornara-se um morto-vivo; as pessoas não davam mais importância às suas sandices, à sua caminhada, à sua existência. Certo dia, Leónidas, influenciado pelos espíritos (mvula), foi ao edifício da Administração do Zumbo, porque, cansado de ser invisível, queria falar e, principalmente, ser visto. O administrador o recebe, contra a vontade, e, mesmo sem escutar, deixa o pescador desabafar. Leónidas explica sua condição de médium, de portador das vozes dos espíritos da cobra e do leão, de confuso e sobrecarregado por aquele excesso de voz(es) dentro dele querendo dizer o que talvez ninguém poderia compreender. O administrador, já cansado, ordena que o pescador saia de sua Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 102
sala, tratando-o como louco, como um ser digno de afastamento e de punições. Ntsato é retirado brutalmente pelos funcionários da repartição, sendo atirado no chão sujo da praça, tão sujo que agora o era. Tomado por ira, Leónidas proferiu o m’fiti a profecia, a praga de que a Administração, no dia seguinte, conjuntamente com toda a cidade, sofreria com “chuvas de pedras”. As pessoas escutam o bravejar de Leónidas em forma de riso; alguns poucos se calam perante a possível verdade do louco. Não tinha jeito: as nuvens se preparariam para o amanhã. Nos sete primeiros capítulos do romance de João Paulo Borges Coelho, o ar é envolto pela ideia místico-religiosa, pois conta o surgimento e a perturbação do personagem motivados pela mediunidade aflorada. Pode-se pensar, também, que a história descrita apenas nos sete capítulos iniciais – e depois retomada apenas no final do livro – carrega um significado mais amplo: o número sete é, segundo a numerologia, o sagrado, perfeito e poderoso; é o número místico por excelência, pois combina o três, representado por um triângulo (o Espírito) e o quatro, representado por um quadrado (a matéria); é o número que, portanto, integra os dois mundos; é o número da transformação. Subitamente, a narrativa poética-espiritualista é suprimida e dá lugar à narrativa histórica. O espírito dá o seu recado e orientação, e logo retorna ao seu plano, deixando aqui seu ensinamento para ser absorvido ou não pelos encarnados, respeitando o livre-arbítrio de cada um. O protagonista desaparece no sétimo capítulo e retoma somente na divisão trinta e um, intitulada, inteligentemente, de “homens e deuses”. Já no título do capítulo, o narrador aproxima Leónidas do divino, do além-matéria. Contudo, é no trigésimo quinto capítulo que o antigo pescador busca a si mesmo no mais esconso de si e vai ao encontro, tempos depois, de Nganga Gomanhundo. Os dois conversam, procuram o tempo perdido, o que aconteceu, os caminhos percorridos, a distância, sem muitas respostas, crenças ou esperanças. Ntsato já se acomodara na sua posição e talvez já soubesse de seu destino, afinal “ninguém se importa com isso dos Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 103
pequenos homens enquanto o destino é secreto desígnio dos espíritos e sempre se consuma, de uma maneira ou da oposta” (COELHO, 2003, p. 93). Em mais um salto de capítulo, Leónidas Ntsato reaparece no fechamento do romance. Na margem norte, o personagem inspira e expira serenidade; reflete sobre seu passado, sobre seus filhos e sua companheira; pensa (n)a vida. O mistério, o místico e o encantamento revisitam o romance. Leónidas se vê chamado pelas águas lisas do rio e, lentamente, vai se misturando a elas até sumir por completo no Zambeze, que desembocaria no mar e levaria para o mundo todo a história, a cultura e o povo moçambicano inteiro. Uma dor é tão intensa quanto o conjunto de todas as dores. Apagar cada dor individual, cada pequena fogueira, é a única forma de apagar a grande dor colectiva, a grande queimada que nos consome a terra e as suas árvores, os animais grandes e pequenos, os homens. E isso só pode ser feito com a água e a sua milenar sabedoria (COELHO, 2003, p. 229). Esse herói trágico, perdido em seus ambíguos pensamentos, refugiado – entre as duas margens do rio, pois não se sente preso ao velho mundo que conhecia e nem ao novo que se inicia , prefere adentrar nas águas do Zambeze, talvez na esperança de renovar a si, e por analogia, a seu país. Eliade (1998, p. 154, apud Barros, 2015, p. 85) demonstra que “qualquer que seja o conjunto religioso de que façam parte as águas, sua função é sempre a mesma: elas desintegram, extinguem as formas, ‘lavam os pecados’, purificando e regenerando ao mesmo tempo”. O passar do tempo é demonstrado pela mesmice da terra castigada, pela observação do narrador ao olhar curioso das crianças diante dos complicados movimentos dos adultos: “o povo intrigado com aquele esforço vão para apressar o tempo, quando é sabido até pelas crianças que são os homens que cabem no tempo e não o contrário.” (COELHO, 2003, p. 38). Esse retrato do tempo estagnado e esmagado é retomado com as idas e vindas Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 104
do personagem Leónidas Ntsato, a observar o rio Zambeze. Leónidas, que é a prova viva das duas faces da guerra, que em sua calmaria atual contrasta com as tensões passadas, enquanto pescador via as águas represadas, os peixes que sofriam e sumiam da região, a falta do que comer. O rio traz reflexões passadas, de quando os homens sabiam conviver com seus caprichos. E o rio passeia pela vida dos personagens. Em busca de respostas que nunca chegam, Leónidas o abraça. Talvez tivesse o leitor sido contagiado pelo desejo de cura de Ntsato, mas, talvez, enfim, agora o encontro de rio e homem tenha sido a melhor saída, uma metáfora da cobra que protegerá para sempre a região do Zambeze. Na verdade, apesar de o narrador do romance levantar a questão mística de que muitos ficariam órfãos por não terem espíritos protetores, o que se vê durante o percurso é a busca de Leónidas Ntsato, seu fascínio diante do rio, e talvez ele se tornando um destes protetores. Não se sabe o quanto do rio Léonidas levou consigo; os sofrimentos dos que por ele navegam; as dores trazidas de muitas gerações, como descreve o narrador, de antepassados que se despediram desta vida. O que fica é a essência deste personagem, que é o próprio Moçambique, com suas querências de águas tranquilas, paciente em sua calmaria, sem a novidade do terror da carga humana que os homens brancos enviavam rio acima. Leónidas de certo está a vigiar o Zambeze que “é uma larga e majestosa fita de prata que separa a terra do céu. Uma grande cobra que vem de Angola e corre para o mar, para o fim do mundo” (COELHO, 2003, p. 258). O romance, num movimento cíclico, retoma ao seu início. O rio simboliza o fluir das águas e das formas, a fertilidade, a renovação, a mudança constante; é o curso com a sucessão dos desejos, intenções e sentimentos. A narrativa é fluída como rio. A narrativa é o rio. Leônidas, no primeiro capítulo, é encontrado desacordado na ilha de Cacessemo, no meio do rio Zambeze. No último capítulo, ele volta para o ponto em que (re)nasceu para ali morrer e, portanto, ser eternizado. O romance se inicia pela água Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 105
doce do rio e lá acaba, mas não termina nas suas entrelinhas, porque deságua no mar, no infinito, no horizonte e no além.
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As narrativas dos contos afrobrasileiros de Mestre Didi como patrimônio imaterial
Antonio Marcos dos Santos Cajé
Este trabalho tem como objetivo principal analisar os contos afro-brasileiros de Mestre Didi através de uma reflexão epistemológica. Para tanto, pretende-se traçar uma leitura sobre a junção da Literatura com a História, presente nos contos, entendendo como os contos afro-brasileiros possuem um conhecimento carregado de saberes e fazeres cognitivos que não podem ser perdidos ou ignorados. A metodologia utilizada é a teórica, com vistas a uma melhor explicitação do referencial epistemológico; revisão da literatura que tematiza a cultura afrobrasileira e a análise de conteúdo literário.
Mestrando em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas – UFRB. Bolsista da Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) e colaborador da SECNEB – Sociedade de Estudos da Cultura e História; Jangada: Colatina/Urbana, n. 4,Palavras-chave: jul-dez, 2014 - ISSNLiteratura 2317-4722 – Pág. 108 Negra no Brasil. literatura afro-brasileira; contos; oralidade.
A
literatura e a história dos contos afro-brasileiros articulam-se e ganham forma quando a consciência desperta com o impulso da cultura. A procedência dessa literatura surge com bases históricas e é homogeneizada aos poucos, sendo alicerçada pelo sistema dinâmico da oralidade, criando corpo e forma na escrita através da história mítica e do sagrado dos contos. Sendo a mesma fonte deste artigo, essa literatura é transmitida através da oralidade, construindo uma transmissão contínua, sendo, portanto, um sistema dinâmico no qual se encontram símbolos do sistema oral para além das escritas, envolvendo um mecanismo cultural que cria e recria-se. Dessa forma, a literatura dos contos afro-brasileiros e a literatura negra compõem um sistema dinâmico que se faz acontecer, seja na escrita ou na oralidade, transitando e representando-se por um povo negro, construindo leitores orgânicos e críticos, para um povo historicamente oprimido que busca a igualdade. Importante citar que a literatura negra, na sua concepção brasileira, não rompe com a literatura canônica nacional, exemplos disso são autores como Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa, já que, através das suas obras literárias passamos a conhecer e compreender a história brasileira. Vale ressaltar que o objeto da literatura dos contos e literatura negra é o homem negro, dentro de um sistema dinâmico cultural. Problematizando: só é literatura negra, quando a obra literária é criada por um autor negro? No presente artigo, a literatura dos contos abarca um sistema dinâmico dentro da cultura, ou seja: o mundo social, artístico, político, ficcional fantástico, sagrado, estético. Como a literatura dos contos é ampla possuidora de uma cosmovisão, neste artigo, temos como objetivo observar a ocorrência da literatura em compasso com a história, através da análise dos contos afro-brasileiros, que tornam esses dois polos uma possibilidade de reflexão crítica da cultura em relação com o indivíduo nos espaços sociais. Diante disto, destacase: Uma história da literatura é, pois, uma história das diferentes modalidades da apropriação dos textos. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 109
Ela deve considerar que o ‘mundo do texto’, usando os termos de Ricoeur, é um mundo de objetos e de perfomances cujos dispositivos e regras permitem e restringem a produção do sentido. Deve considerar paralelamente que ‘o mundo do leitor’ é sempre aquele da ‘comunidade de interpretação’ (segundo a expressão de Stanley Fish) à qual ele pertence e que é definida por um mesmo conjunto de competências, de normas, de usos e de interesses. O porquê da necessidade de uma dupla atenção: à materialidade dos textos, à corporalidade dos leitores. (CHARTIER, 2002, p. 255-257). Haja vista que a literatura constitui-se por variadas ramificações, nosso trabalho ficará restrito ao viés dos contos literários. Para que a oralidade manifeste-se por um conto e preencha a suas funções como processo de memória e acervo histórico, temos que compreender que a oralidade é construída e ressignificada há séculos no continente africano, incluindo elementos políticos e sagrados. O poder da oralidade é tão forte, que os sons manifestam-se em todos os níveis culturais, sendo um processo educacional, ético e moral e do senso comum (em rodas de conversas entre amigos, familiares). Segundo Juana Elbein Santos, a transmissão do conhecimento é veiculada através de complexa trama simbólica em que o oral constitui um dos elementos. O princípio básico da comunicação é constituído pela relação interpessoal. Essa relação realiza-se em todos os níveis possíveis, assegurada por rica combinação de representações e de veículos. Parafraseando Lévi-Strauss que assinala que a passagem da oralidade para escrita “retirou da humanidade qualquer coisa de essencial...” diríamos que continua a escamotear esse “qualquer coisa de Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 110
essencial” da cultura Nagô quando se pretende classificá-la apenas como oral. (SANTOS, 2008, p.51). Nessa concepção, entender a oralidade como literatura e história é se desprender das amarras contemporâneas, em que muitos pensam que somente a escrita é importante; e que só pelos documentos tocáveis podemos compreender a história. Nesse sentido é que os contos se tornam um bônus para conhecer nossa ancestralidade, nossa essência e memória cultural; seja pela diáspora ou pelas várias influências que essa literatura dos contos afro-brasileiros sofreu. E pode, mesmo assim, refletir para organizar a consciência social do povo negro, uma vez que a literatura no viés dos contos expressa a seguinte relação histórica, conforme pode-se observar no texto literário: O negrinho escravo Um pobre e pequeno negrinho era escravo de um rico e avaro fazendeiro. Este fazendeiro tinha um filho que era tão malvado quanto ele, porque maltratavam muito o negrinho; davam trabalhos que só um homem podia fazer e deixavam o pobre negrinho com fome, martirizando-o bastante. Um dia encarregaram o negrinho de vaquear umas novilhas. O negrinho, cansado de tanto trabalhar, adormeceu no campo enquanto as novilhas pastavam. Os ladrões aproveitaram, fazendo estourar a boiada, e o pequeno vaqueiro se perdeu do gado. Por isso ele foi pisado e espancado pelo fazendeiro, e mandado a procurar o perdido. Sua madrinha Nossa Senhora foi quem lhe valeu, restituindo-lhe todo o gado. Mas o filho do fazendeiro, perverso, enxotou de novo as novilhas para bem longe, e o negrinho perdeu novamente o guardado. O fazendeiro, quando procurou saber do negrinho pelas novilhas, ele disse que não sabia onde estavam. O fazendeiro, louco de raiva, retalhou o Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 111
negrinho com um chicote, e jogou-o como uma posta do sangue dentro de um formigueiro. Passaram-se dois dias e duas noites. Na manhã do terceiro dia, o ordinário do fazendeiro, passando por perto do formigueiro onde tinha jogado o negrinho, foi dar uma espiada para ver como ele estava. Quase desmaiou quando viu o pobre negrinho vivo, de pé, lindo e sereno saindo de dentro do formigueiro e se encaminhando para a mata com sua madrinha Nossa Senhora, que o abençoava. Diz o povo que esse negrinho até hoje ainda existe por ai, pelos campos e caatingas. Uns dizem que ele se transformou no Saci, outros dizem que é a Caipora, e ainda tem muitas pessoas que julgam ser ele um anjo bom e generoso, porque é quem ajuda a achar e descobrir os animais e objetos perdidos nas matas. E assim o pobre negrinho paga depois de morto, beneficiando aos outros, o que sofre durante toda sua vida. (SANTOS, 2004, p.78). O conto acima evidencia a face da criação literária como ferramenta documental historiográfica, tendo como missão divulgar e promover o intercâmbio ideológico social, num determinado momento do cenário brasileiro. Deoscóredes M. dos Santos, Mestre Didi, foi o Alapini, supremo sacerdote do culto aos ancestrais africanos e afro-brasileiros. Ao longo de sua vida, aprofundou com dignidade e sabedoria a intrínseca relação entre a ancestralidade e a cultura. Esta, deve ser apreendida como uma marca da representação das relações interpessoais, que cria uma consciência do indivíduo através desses contos. A junção entre literatura (cânone/produção coletiva), história e conto (narrativa oral/individual) constitui uma tríade, em que a história de um determinado indivíduo possui uma representatividade relevante para a compreensão das ações deste homem ou mulher como construtor/a da História. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 112
Vamos compreender através de Muniz Sodré uma definição do que é a literatura através dos contos: Não há nenhuma “verdade profunda” nesse relato, nenhum significado “recalcado” que possa ser trazido à luz por quaisquer sutilezas de interpretação. Ele se limita a contar a visão de um grupo específico sobre a causa de suas vicissitudes históricas. Na imediatez do texto, na aparência da narração, essa historiada conta de dois elementos cruciais: (a) as relações de poder do europeu com africano; (b) o descuido das obrigações, origem do infortúnio negro. Na realidade, ao falar da supremacia (pela força, pela ideologia) de um campo de poder “branco” – fato por demais conhecido na História do Brasil -, o conto reitera a persistência de uma cultura negra – fato insuficientemente avaliado na História do Brasil – mediante o apelo a uma de suas regras fundamentais, a obrigação. (SODRÉ, 2005, p.89). Nessa representação, os contos semeiam um pensar particular para o coletivo e vice-versa; reverberam personagens, passagens e situações da história, que se constituem como retratos da escravidão e do período pós-abolição.
O que se diz e o que se ouve Ao pensarmos no conceito de conto, imaginamos imediatamente uma fabulação maravilhosa - e não estamos totalmente errados. No entanto, os contos afro-brasileiros possuem uma dinâmica histórica particular. Assim, à busca de compreender estes textos como uma literatura de consciência social dentro da negritude, compreendemos que, nas palavras de Octavio Ianni, uma inspiração básica, na formação da literatura negra, é o movimento social negro. Compreendido Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 113
em sentido lato, ele transcende o presente, resgata o passado, desvenda as relações entre a colônia, o império e a República, lança raízes na África, busca o quilombo e Zumbi, manifesta-se no protesto e na revolta. Nesse vasto cenário, atravessando épocas e continentes, emergem o negro, a negritude, a negrícia, o ethos cultural, a comunidade, a nacionalidade afro-brasileira (DUARTE, 2011, p. 194). O historiador Nicolau Sevcenko elucidou, com clareza, a importância da junção da história com a literatura. Diante disso, pode-se analisar como somos mutáveis e plenos. Em sua obra “Literatura como Missão”, em que o diálogo da literatura com a história é possível e plausível e pode proporcionar ao indivíduo um entendimento acerca de sua história; não só dos fatos históricos, como também da própria mentalidade de uma determinada época. Um exemplo disso são os textos de Machado de Assis, que ultrapassam a linha romanceada, passando a ter um papel fundamental na política e nos movimentos sociais, situando o escritor como um crítico de uma sociedade que pleiteia uma modernidade em meio ao vigor rígido de um pensamento colonizador e colonial; tais características estão presentes em seus personagens e crônicas. A tentativa deste artigo é mostrar que a literatura e a história coexistem e dialogam transversalmente nos contos afro-brasileiros, de maneira peculiar. Neste caso, a contística machadiana, por exemplo, pode ser vista como universalmente historiográfica, passando pelas relações de poder inerentes à sociedade oitocentista e seus “personagens”. Assim, história e literatura complementam-se quando se pretende construir uma representação do passado. Pela relação da história com o imaginário, em especial, nos contos afro-brasileiros de Mestre Didi, Reginaldo Prandi e Mãe Beata de Yemonjá, verifica-se que os contistas lidam igualmente com fato e ficção, a partir de suas realidades, seja no campo do sagrado ou das relações interpessoais. Aproximam, então, realidade e literatura, Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 114
em uma produção onde encontramos elementos vastos da historicidade. Em seus estudos, Chartier (2002) ressalta que “Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados”. Os textos escritos ou orais dos contos que nascem tanto do real quanto do imaginário fantástico, contribuem consideravelmente na busca das raízes ancestrais, sejam africanas ou afro-brasileiras, quando acontecem esses encontros. Surge, assim, memória e história através da literatura, organizando-se a consciência do povo negro e das demais raças no Brasil. No universo dos contos como bens culturais, essa expressão literária passa a construir uma forma sociocultural, sendo um fato histórico que representa as mais variadas experiências, hábitos, gestos e costumes, projetando composições de valores e regras. Essa forma de ler o mundo pelos contos possibilita o registro do que pode ser ou do que foi: aponta para uma historicidade de uma sociedade com alicerce simbólico. Roger Chartier se mostra contrário à distinção objetiva e precisa entre a história e a ficção. Um exemplo dessa impossibilidade distintiva seria a apropriação de um fato verídico em um conto, como ocorre na obra de Mestre Didi, na história do engenho abandonado – caso verídico acontecido em Santo Amaro da Purificação, Estado da Bahia: Em Santo Amaro da Purificação, existiu há muitos anos uma senhora, que ficou viúva com a filha e que, não tendo onde morar resolveu residir em um pedaço de engenho, que existia numa fazenda distante. A parte do engenho que ainda existia era justamente o lugar da antiga capela, onde se conservavam ainda algumas imagens estragadas. Durante o dia, a mãe e filha faziam os trabalhos domésticos e costuravam rendas. À noite, tinham por costume rezar o terço até a hora de dormir. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 115
Certa vez, elas se distraíram rezando e ficaram até mais tarde do que de costume; quando se lembraram de dormir, ouviram vozes de pessoas que encaminhavam para aquele lugar. Notaram também que carregavam um corpo dentro de uma rede, conforme era de costume da época. Chegaram bem no meio delas, botaram a rede no chão e começaram a rezar justamente com elas. Daí a pouco, ouviram o canto do galo, e uma das pessoas que tinha vindo com a rede disse para os outros: — Quem ajudou a rezar, fica com o defunto para enterrar —, desaparecendo todos de uma só vez. A viúva e a filha correram com medo e foram dormir. Amanhecendo o dia, ficaram pensando como enterrar o defunto, pois não tinham dinheiro para comprar a sepultura. No momento, lembraram de pedir ajuda ao vigário da freguesia para fazer o enterro, e a filha perguntou: — Mamãe, como podemos fazer isso? Nem sabemos se o defunto é homem ou mulher... Então, resolveram fazer um furo na rede para poder certificar e ficaram assombradas ao verificarem que dentro da rede só existia dinheiro. Ficaram tão rica que nunca mais foram vistas em Santo Amaro, até a data presente. (SANTOS, 2003, p.25). Nesse caso, não dá para questionar se esse conto foi real ou é ficção. O fato é que esse conto já passa a ser um documento histórico literário, a partir do momento em que retrata a passagem de uma região e os costumes das duas mulheres. Sendo assim, a literatura apropria-se não só do passado, como também dos documentos e das evidências da história. Ao utilizarmos a literatura dos contos como documentos para a produção Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 116
epistemológica da história, necessitamos compreender que tipo de conto está “a dizer e a ouvir”, são contos cosmogônicos, etiológicos, clanísticos: Cosmogônicos — São construções cognitivas acerca das perspectivas mitológicas, onde os deuses interagem com os homens e mulheres. Os contos cosmogônicos entrelaçados com os mitos buscam explicar o mundo e o universo através de um imaginário para uma realidade. Etiológicos — Contos de características etiológicas, onde as concepções concebidas para explicar e justificar a criação e os fenômenos de origem da natureza e definições do ser e do lugar e dos seus costumes e hábitos tornando assim uma ação contínua do agir através dos diversos exemplares da vida. Clanísticos — Os contos com aspectos clanísticos são muito presentes na literatura afro-brasileira dos contos, pois explicam determinados procedimentos de uns grupos, clã, tribos, esses contos foram de inteira significância para os homens e mulheres. (CAJÉ, 2014, p. 17-23). Nesse caso, através do reconhecimento da tipologia dos contos afro-brasileiros, é possível que o historiador recorra às fontes que mais achar propícias, com o intuito de analisar os contos como ferramentas historiográficas. Acredito que a maior pertinência da literatura e da história pelos contos reside no âmbito da cultura afro-brasileira que lida com variadas questões historiográficas, políticas e estéticas. Funcionando, assim, de maneira conscientizadora; nesse caso a história resgata a memória do povo negro, entre a diáspora Brasil/África, possibilitando a essa literatura amplas formas de análises e reflexões pelas diversidades culturais: seja pela religião; pela política; pela estética, música; essas presenças são constantes na nossa história contemporânea, que procura conduzir o leitor pelas tramas que ocorrem nesse país colossal que é o Brasil, com Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 117
suas multifaces culturais, sejam plurais ou singulares, que englobam autores como Machado de Assis, José Lins do Rego, Bernardo Guimarães, Mestre Didi, Mãe Beata de Iyemonjá, Abdias Nascimento, Muniz Sodré, Marco Aurélio Luz, Pierre Verger, que marcam com integridade, em seus textos, a história e nuanças dos povos brasileiros. A partir da leitura de tais textos, podemos encontrar as favelas, a luta por justiça social, a imagética, o branqueamento, a riqueza e a pobreza. Essa literatura vinculada à história ganha uma dimensão entre o passado e o presente, quando é lida e ressignificada pelos leitores, pois corresponde à construção de uma oralidade e escrita para um sistema dinâmico. Deste modo, a literatura negra ou afrobrasileira é parte constitutiva da literatura brasileira, sem isolamento. A literatura dos contos, enquanto depoimento histórico, passa pelo crivo de uma série de processos sociais que a elucidam como ferramenta específica do particular ao universal, que neste caso necessita ser investigado e refletido como qualquer outra forma de documento. Há de se convir que o pesquisador observe atentamente sobre a produção estudada e qual a relação dos contos, seja como ficção fantástica ou contos baseados em relatos populares do real; ou seja, do cotidiano das relações pessoais. Essa literatura dos contos afro-brasileiros construída em uma esfera cultural produz uma composição de variações da história com bases populares, possibilitando duas formas de investigação histórica: pela oralidade; ou pela escrita. Diante da primeira, já foi relatado. E na escrita também ocorreu o mesmo, através dos livros: um exemplo a ser citado são os Cadernos Negros que foram criados em 1978, lançando uma série de contos, situados no âmbito da consciência e símbolos da cultura negra; cujo relançamento ocorreu em março de 2015 – Cadernos Negros – volume 37, com a mesma proposta de valorização do povo negro, refletindo sobre sua imagética e sua estética. A literatura dos contos afro-brasileiros, assim como outros documentos e arquivos, preserva as características de um determinado povo, bem como seu espaço, dialogando com as Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 118
várias vertentes e tradições das diásporas. Os contos, como ferramenta histórica, podem ser apresentados pela esfera da micro-história de Ginzburg, que permite a abordagem do cotidiano de comunidades determinadas, explanando suas atividades e complementando, assim, as características da realidade, utilizando suas fontes populares e construindo sua identidade etnográfica pelas narrativas, sendo um mecanismo literário que enriquece a pesquisa histórica do povo negro. Em nenhum caso a micro-história poderá limitar-se a verificar, na escala que lhe é própria, regras macro-históricas (ou macro-antropológicas) elaboradas noutro campo. Uma das primeiras experiências do estudioso de micro-história diz realmente respeito à escassa e por vezes nula relevância das mutações de ritmo (a começar pelas cronológicas) elaboradas em escala macrohistórica. Daí a importância decisiva que assume a comparação. (GINZBURG, 1989, p.178). Na citação acima podemos observar que os contos, como processos de entendimento historiográfico, podem indicar situações históricas e de suas relações. Em outra análise de Ginzburg sobre o papel da literatura e da história, podemos refletir: Até apouco tempo a grande maioria dos historiadores via uma nítida incompatibilidade entre acentuação do caráter científico da historiografia (tendência assinalada às ciências sociais) e reconhecimento da sua dimensão literária. Hoje, no entanto, este reconhecimento torna-se cada vez mais extensivo também a obras da antropologia ou sociologia sem que isso implique necessariamente um juízo negativo da parte de quem o formula. Aquilo que em geral é sublinhado, porém, não é núcleo o cognitivo que se pode encontrar nas narrações de ficção (por exemplo, as romanescas) mas sim o núcleo Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 119
fabulatório que se pode encontrar nas narrações que se pretendem cientificas — a começar pelas historiográficas. (GINZBURG, 1989, p.194). A relação entre o contexto da literatura e a história resulta numa simbiose que testemunha os costumes, registra-se como depoimento da historicidade e, nesse sentido, podemos analisar na alegoria da história contada ações e reações do nosso cotidiano e passamos a repensar os nossos hábitos e nossas crenças. Portanto, a literatura através dos contos afro-brasileiros apresenta-se como um aspecto que intensifica a escala do imaginário ao real, como acervo memorial histórico e cultural para a nossa sociedade. Fechou os olhos tentando dormir. Não conseguia. O balanço do navio negreiro a enjoava, o corpo doía, o corte no pé latejava. Adetutu não tinha forças para nada, a não ser chorar. Onde estariam seus pequenos Taió e Caiandê? Talvez nunca mais os visse, nunca mais os abraçasse nem lhes desse o leite que agora escorria dos seios inchados e doloridos. Adetutu sentiu nos lábios ressequidos o sal de suas lágrimas; soluçava. No escuro do porão apertado e fétido do navio negreiro, que se arrastava pelo oceano na noite sem estrelas, a mulher deitada ao lado fez um esforço para vencer o peso das correntes que uniam e apertou o braço de Adetutu num gesto de conforto. E de dor compartilhada pelo destino comum dos que haviam sido caçados para ser escravos em terras estrangeiras. Adormeceu e sonhou com seu mundo e sua gente, dos quais fora arrancada para sempre. Sonhou com os dias em que, no templo, cuidava de seu deus Xangô talvez a tivesse abandonado se desvaneceu no sonho. Teve a impressão de ouvir, através das paredes do navio, palavras de encorajamento Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 120
vindas de Xangô no soar de um trovão. (PRANDI, 2007, p. 08) De acordo com o autor citado acima, a construção da história pela evidencia da diáspora narrada por essa história à produção literária pode oferecer elementos próprios de uma cultura pelos contos afro-brasileiros podemos compreender a riqueza e as abordagens da historicidade de um povo. O desenvolvimento deste artigo se estruturou inicialmente no estudo teórico que permite aos investigadores um entrelaçamento da literatura e da história como mecanismo de compreensão dos fatos históricos através dos contos afrobrasileiros que contribuíram e contribuem para o acervo da cultura do povo negro, do povo afrodescendentes. Quanto aos instrumentos de pesquisa optei pela observação que acontece nos contextos naturais, possibilitando uma relação entre o objeto de estudo os contos e as fontes teóricas. As etapas metodológicas que viabiliza analisar os contos afro-brasileiros pela ótica da historiografia são: a) Levantamento completo e leitura da bibliografia, específica do corpus da pesquisa; b) Teórica, com vistas a uma melhor explicitação do referencial epistemológico; c) Revisão da literatura que tematiza a cultura afrobrasileira a partir das referências dos textos tomados para análise. Ressaltando que este artigo é uma produção em andamento, estando aberto a novas revisões e pesquisas.
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Prosa A dança dos meninos Yvisson Gomes dos Santos A Foucault (in memorian)
uando criança fui avisado que dançar com meninos fosse algo perigoso. Talvez não houvesse encaixe. E a alegria acabou em questão de segundos. Por que não o encaixe? Por que não o fêmur junto a outro fêmur? Os gregos dilatavam suas práticas eróticas nesse sentido: o interfemural. Havia a permissão desse enlace de carne e osso na acrópole helênica. Mas o enlace era proibitivo, a cultura pequena. A cidade menor ainda. A eugenia circundante. E o erotismo femural sumiu as mãos e delas nunca mais saiu. Das mãos restou a dança dos movimentos eletrizados e finalizados em um urro solitário. E desde então tem sido assim: as mãos bailam em memória do desejo interfemural emulado.
Q
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O narrador e a história inacabada Sérgio Ferreira da Silva
C
onta-se que, em um dia de beleza indescritível, um narrador foi abandonado nas páginas de uma história inacabada. O autor que o concebera, vitimado por um bloqueio criativo, havia mudado diversas vezes o enredo, o desenvolvimento, o espaço e a ambientação, mas não via consistência nas personagens (tanto as personagens planas, aquelas descritas superficialmente, que desempenham papéis específicos na história - como o carteiro que traz a carta que revela um segredo importante; quanto as personagens esféricas, descritas com riqueza de detalhes e que desempenham função determinante na trama - como são o vilão e o herói). A lógica interna, então, pecava no quesito fundamental, a verossimilhança, a aparência de verdade, que fundamentalmente é o que faz o leitor acreditar no que é contado. “Ora! - pensou o autor - Talvez seja por isto que eu seja um perfeito fracasso!” - engraçado: “perfeito fracasso”, se é “perfeito” não é “fracasso”. Um fracasso perfeito é um sucesso, em termos de fracasso. Viajei. Melhor continuar... Convenceu-se de tal sorte de sua própria irrelevância e incompetência, que abandonou por completo a escrita criativa e passou a publicar ensaios e críticas literárias. Resultado: fez um sucesso estrondoso! Sua natural e minuciosa disposição crítica (que, até então, operava contra o seu próprio trabalho) fez prosperarem seus artigos e resenhas. Seu sucesso ocasionou a destruição de diversas carreiras promissoras e foi, assim, muito feliz, até o resto de seus dias. Morreu assassinado, como era de se esperar e seu executor, um “ghost writer”, permanece desconhecido. Voltando à narrativa inicial, viu-se o narrador sozinho, tendo à sua frente um enorme espaço em branco, impresso em Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 125
suas retinas narrativas, única imagem possível, dada a abrupta interrupção da história. Só lhe restara aquele dia de beleza indescritível... Ele, então, olhou para as reticências, logo após a palavra “indescritível” e pensou: “O que fazer agora?”. Tentou até reelaborar: “Como posso resolver esta situação inusitada?”. Olhou para trás, para reler suas reflexões, mas elas, por falta de um autor, não foram grafadas. Nem lembrava mais delas. Concluiu que sua existência estava limitada, apenas, ao que estava registrado no papel. Refletiu: “Eu sou muito bom em descrever as coisas, em ordenar os acontecimentos, contar com riqueza de detalhes o que se passa na mente das personagens... Mas fui abandonado, feito um fantoche, justamente, em meio a um dia de ‘beleza indescritível’!” Ele era o que os teóricos chamam de narradorpersonagem, mas não sabia disto. Tinha plena consciência de que, como estava pensando, o conteúdo de seus devaneios, obrigatoriamente, deveria estar entre aspas duplas e que a expressão “beleza indescritível”, no contexto de sua última manifestação, só poderia ser disposta entre aspas simples. “Intrigante” - ruminou. Mas, nada disto foi eternizado na folha em branco. Pensou em retornar, voltar alguns parágrafos e, desta forma, entender as motivações do autor. Mas, isto levaria a uma confusão maior ainda, porque envolveria as personagens e ele mesmo, em suas manifestações anteriores. Um verdadeiro paradoxo, que não ajudaria em nada, afinal, espera-se que toda história caminhe para algum desfecho. “Foda-se!” - pensou, mas arrependeu-se em seguida, porque imaginou que sua história, com um palavrão inserido no contexto, seria barrada em qualquer livro didático de língua portuguesa. Uma pena, porque o texto em si trabalhava elementos importantes para a compreensão da estrutura narrativa e da teoria literária em geral. “Foda-se! Já pensei, tá pensado!” - pensou. Decidiu, então, retornar ao início da história, mas... Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 126
“Epa, opa, epa!” - pensou, aqui, em uma linguagem mais coloquial - “Nas narrativas primordiais, aquelas que serviram de base para a elaboração de clássicos da literatura infantil, o herói percorre um caminho muito parecido com o meu: uma vida que, a princípio transcorre sem maiores atribulações, cujo equilíbrio é quebrado por algum evento danoso, após o que o herói perde algum objeto mágico, ou uma condição pessoal (vira um sapo, é expulso do reino, perde os pais etc.). Na sequência, é obrigado a fazer uma viagem que, na maioria das vezes o leva a conhecer novos aspectos da vida, ou de sua própria condição. Ao final, o herói vence os obstáculos, torna-se uma pessoa melhor e recupera algum objeto ou condição inicial, que o torna feliz para sempre. Na maioria das vezes, as histórias primordiais serviam para complementar a educação dos jovens e incutir-lhes conceitos da moral média de uma determinada população ou classe social.” “Fodeu de vez!” - agora, seu pensamento não tinha mais censura - “Se eu fizer o caminho de volta, estarei fazendo o mesmo caminho dos heróis clássicos, mas eu já conheço este esqueminha! Entendi, agora, porque o Ítalo Calvino disse algo como ‘A primeira leitura de um clássico é, sempre, uma releitura’. Filho da puta! Não tenho como escapar: se eu voltar, faço o percurso do herói e chego ao mesmo lugar a que todos os heróis chegaram: ao início! Uma armadilha, que me faria legitimar tudo que venho questionando, ou seja, uma história inacabada, que, na verdade, não é inacabada coisa nenhuma. O que parecia perdido era exatamente o que me faria iniciar uma jornada de reconquista, rumo a um começo que, na verdade, seria o final, para minha redenção, narrador onisciente, transformado em personagem esférica”. “Não vou fazer porra nenhuma. Vou ficar aqui.” - pensou isto e, disposto a aceitar sua condição e existência meramente ficcional, sentou-se no último ponto que compunha as reticências daquele dia de beleza indescritível...
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Sinceramente nem sei o que é! Andreia Gaspar
N
ão precisava de ser o mais bonito, o mais inteligente, o mais simpático, o mais parecido contigo. Na realidade, estava bem longe de tudo isso. Mas tinha qualquer coisa que me inquietava. Quantas vezes eu desejei beijar-te. Imaginei, imaginei muitas vezes. Criei na minha cabeça representações de afeto, de amor. Era isso que eu cria. Atenção tua. No fundo, sempre me enganei a mim própria dizendo que era uma mera questão física. Na realidade, a culpa é minha. Eu deixei que a minha inocência cegasse todos os meus pensamentos. Eu fui fraca, porque mesmo deduzindo o que iria acontecer não consegui domar as minhas vontades, não consegui controlar o desejo de te ter perto de mim. Às vezes gostava de saber o que me levou a apaixonar-me por ti. Juro que gostava. Tu não prestas, tu és egoísta, tu és nojento, tu és arrogante, tu és mentiroso, tu és um inculto desprezível. Tu és irresistível. E agora uma enorme vontade de chorar voltou. Ainda doí. Tu sabias como eu era ingénua, sabias que eu te estava a mentir para me proteger, toda a gente te contou. Tu gozaste, e continuaste. Eu odeio-te, mas amo-te muito mais. Eu quero–te longe de mim, dá-me uma sensação de controle, quase de paz. Mas igualmente te quero, sinto rapidamente saudade da euforia de estar perto de mim queria sentir de novo o teu cheiro, o teu calor. Mas sei que agora pouca ou nenhuma diferença faço. Logo, não quero estar perto de ti, a minha raiva desvia o olhar para outro lado, mirar-te nos olhos requer coragem, como se fosse algo extremamente difícil de sustentar. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 128
Fazes-me perder o controlo dos movimentos do meu corpo, denunciando assim o meu nervosismo, a minha inquietação. Eu quero-te beijar, porque queria matar este desejo que me consome diariamente, mas provavelmente nunca o conseguiria fazer já que eu não consigo ler o que dizem os teus olhos. Mas sei que não passa nem perto do que sinto por ti, e é por isso. Detesto, pois esta ausência de reciprocidade retira a pouca consciência que ainda me resta, enlouquece-me. Eu quero deixar de sentir isto, mas ao mesmo tempo sintome ligada. Eu sei que este sentimento me está destruindo aos poucos, está corrompendo todos os meus valores, todos os conceitos idealizados e os meus objetivos posteriores. Está consumindo a minha alma aos poucos, está gastando o meu tempo em pensamentos inúteis. Sinceramente não sei o que isto é. Mas não passa. Tudo aquilo que senti por ti, sentimento este que foi crescendo inconscientemente, que se intensificou de tal forma que te apoderaste não só do meu corpo, como da minha mente, mesmo antes de te conhecer devidamente. Não sei que sentimento é este, amor-ódio está sempre a mudar. O que não muda é o facto de constantemente em ti pensar, mesmo que tenha já passado tanto tempo, mesmo que não te importes nem um bocadinho, mesmo que toda a gente me diga que não prestas, mesmo que eu não goste do que andas a fazer. Toda a gente tem aquela pessoa que se tornou no seu ponto fraco. Aquela que te faz desvalorizar inconscientemente o que está acontecendo, o mundo que te rodeia. Aquele que te fez estremecer, aquela que te fez explodir por dentro, aquela que tem a capacidade de te fazer perder o raciocínio só com um mísero toque. É aquela que te fazia sentir um milhão de coisas e ao mesmo reduzia-te a nada. É aquela que mesmo à distância te perturbava e perto te matava. Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 129
Porque existem pessoas que apesar das qualidades são insuportáveis, e ele apesar dos mil e um defeitos fazia parte das irresistíveis. A verdade é que somos todos uns orgulhosos. Negamos tudo a toda a gente. Mas nunca reparam que quanto mais negamos um sentimento mais ele se intensifica? Era incapaz de admitir algo que para mim não fazia sentido. Nunca te disse diretamente apesar de ter revelado os meus sentimentos pelos meus comportamentos de miudinha apaixonada. Conheci-te estupidamente, apaixonei-me estupidamente, pensei estupidamente e reagi estupidamente. Admito. Eu sei que o meu mal não está em chorar e sofrer, sou uma pessoa e as pessoas fazem isso. O meu mal está em não ter coragem suficiente para te dizer definitivamente adeus.
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Poesia Cantigas de amor & maldizer Jovino Machado cheiro de lua eu não gosto de você porque o seu sorriso tem o calor do inferno eu não gosto de você porque o seu cabelo tem a maciez do colo de deus eu não gosto de você porque o seu olhar tem o brilho da primeira manhã do paraíso eu gosto é do seu cheiro de lua
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camisa 10 eu não te conhecia eu não sabia quem você era você veio do interior jogou nas divisões de base você entrou no segundo tempo eu estava perdendo de zero eu sofria com a falta de sorte eu sofria com as bolas na trave você se aqueceu discretamente aguardou a permissão do juiz ignorou a torcida adversária e entrou de cabeça erguida você dominou um cruzamento na área deu um lindo drible em seu marcador driblou o meio de campo e os zagueiros mandou um chute rasteiro e preciso no único lugar onde a bola poderia entrar você está na primeira divisão do campeonato da minha existência você está no primeiro escalão do meu sofrido e vermelho coração
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anjo caído
exu de oratório
asas ruídas unhas quebradas espírito em queda
cobra cínica música sinistra ossos cruzados
mau agouro terra maldita regressão e desordem
cova funda caveiras cruas corvo pestilento
foice da morte não brilha no céu arde no subterrâneo
rio escuro filme de terror hospício florido
insulta minhas lágrimas nunca falta o disfarce só ama a própria sombra
depressão cíclica dor no estômago monstro na escuridão
quer matar o meu sorriso
seu silêncio é áspero sua delicadeza tem crateras
cruz credo não ouse chegar perto não olhe, nem de longe trago no bolso esquerdo um crucifixo de prata que foi de minha avó tenho sal grosso no alforge galho de arruda na orelha uma espada de são jorge
e uma réstia de alho na porta
vade retro, pé de bode “praga de urubu magro não mata cavalo gordo” o credo está na ponta da língua
Jangada: Colatina/Urbana, n. 4, jul-dez, 2014 - ISSN 2317-4722 – Pág. 133
Artes Muro pequeno Murilo Araújo
Neste canal, o youtuber Murilo Araújo apresenta discussões sobre corpo, identidade, questões de gênero e vários assuntos referentes à cultura contemporânea. Assista aos vídeos em: https://goo.gl/9T8Bi6
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