Jangada: crítica, literatura, artes

Page 1

crítica | literatura | artes

jangada ISSN 2317-4722

JOURNAL FOR BRAZILIAN STUDIES

n.5, jan-jun, 2015

Poesia Poetry


Clock-t Edições e Artes Av. Fioravante Rossi, 3300 – Colatina – ES CEP 29.704-424 | Tel: (27) 9-9995-5853 contato@clock-t.com| www.clock-t.com

Editor Responsável Juan Filipe Stacul, PUC MG Editores Eduardo Ledesma, UIUC John Tofik Karam, UIUC Juan Filipe Stacul, PUC MG Raquel Castro Goebel, UIUC Conselho Editorial Andreia Donadon Leal, ALACIB Antonio Carlo Sotomayor, UIUC Cláudia Pereira, ALACIB Elisângela A. Lopes, IF Sul MG Fábio Figueiredo Camargo, UFU Gabriel Bicalho, ALACIB Gerson Luiz Roani, UFV Glen Goodman, UIUC Gracia Regina Gonçalves, UFV

Joelma Santana Siqueira, UFV José Benedito Donadon Leal, UFOP José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP Karla Baptista, FCB Maria N. Soares Fonseca, PUC MG Michelle Gabrielli, UFPB Murilo Araújo, UFRJ Rubem B. Teixeira Ramos, UFG Terezinha Cogo Venturim, FCB Thiago Ianez Carbonel, UNICEP Victor Rocha Monsalve, UDP Revisão e Diagramação: Clock-t Capa: Alessandra Soares

Jangada: crítica, literatura, artes Dossiê: Poesia N.6, jul-dez, 2015 www.revistajangada.com.br www.brazilianstudies.com


Sumário Editorial................................................................................................. 3 Júlio César Vieira À minha terra: leitura do sentimento nativista na poesia de Maia Ferreira e Gonçalves Dias ................................................................... 5 Rafaela Cardeal O “desenho de arquiteto” de João Cabral de Melo Neto ............. 16 Cinthia Maritz dos Santos Ferraz Machado Entre a recriação e a renúncia, o ato de deixar falar: breve abordagem sobre produtividade poética brasileira e polifonia a partir de Chico Alvim e Carlos Nejar ............................................. 36 Ingrid da Silva Marinho A poesia pau-brasil: desconstruindo o Brasil de José de Alencar em Iracema ................................................................................................. 57 Ana Ligia Faria Teixeira O rap e o espaço.................................................................................. 73 Prosa e poesia ..................................................................................... 86


Editorial Neste número, apresentamos um dossiê dedicado à poesia, em sua face mais plural e camaleônica. Selecionamos, para tanto, artigos que estabelecem múltiplas conexões entre o texto poético e a realidade em que se insere, assim como outras realidades e mundos possíveis. Inevitavelmente, a questão da subjetividade e o lugar do eu-lírico tornam-se centrais e guiam boa parte das leituras aqui empreendidas. Nesse contexto, compreende-se não apenas o valor estético de cada texto, mas sua função social dentro de determinado momento sociocultural e político. Em muitos casos, afinal, a poesia também é uma forma de transgressão e de crítica ao status quo. Assim, no artigo À minha terra: leitura do sentimento nativista na poesia de Maia Ferreira e Gonçalves Dias, Júlio César Vieira analisa algumas conexões enriquecedoras entre a obra do autor brasileiro e a do angolano, que, contemporâneos entre si, “escrevem sob a égide do Romantismo e apresentam os temas comuns a este movimento literário”. No trabalho analítico que empreende, Vieira apresenta ao seu leitor pontos de aproximação e de distanciamento entre a produção dos poetas, focalizando com especial importância a forma como ambos lidam com o nacionalismo e a construção de um ideal nativista. Do romantismo para a poesia contemporânea, Rafaela Cardeal, em O "desenho de arquiteto" de João Cabral de Melo Neto, toma como eixo norteador de sua análise a metáfora “desenho de arquiteto” para discutir os aspectos arquitetônicos da produção poética de João Cabral de Melo Neto. Para tal, propõe uma leitura da obra do autor, especialmente o livro A educação pela pedra (1966). O trabalho de Cardeal apresenta ao leitor uma poesia que o provoca, convidando-o para o debate e para o embate, em um jogo desafiador e instigante. Outra faceta da produção atual é vislumbrada no texto Entre a recriação e a renúncia, o ato de deixar falar: breve abordagem sobre produtividade poética brasileira e polifonia a partir de Chico Alvim e Carlos Nejar, de Cinthia Maritz dos Santos Ferraz Machado. Neste, a Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 3


pesquisadora propõe uma leitura sobre a produtividade literária e a polifonia na escrita de Chico Alvim e Carlos Nejar. Com isso, demonstra que “processos de criação configuram as obras destes poetas que têm em comum a característica do ato de deixar falar: de conferir ou imprimir vozes às suas criações num processo de ânima”. Nesse ínterim, o leitor vivencia uma criação artística preocupada em desnudar o lugar do sujeito na sociedade contemporânea e, especialmente, o papel da poesia para a expressão e a profusão de vozes individuais e coletivas. O movimento de embate sócio-político presente na poesia de Alvim e Nejar, dá lugar a um questionamento de outra realidade, mas com contornos e objetivos similares em A poesia pau-brasil: desconstruindo o Brasil de José de Alencar em Iracema, de Ingrid da Silva Marinho. Neste, visualizamos uma leitura da Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade, como sendo “uma reescrita da genealogia da identidade brasileira, no sentido de desconstruir a ideia de Brasil no romance Iracema, de José de Alencar”. Assim, problematiza-se conceitos como identidade, nacionalismo e ufanismo, estabelecendose uma reflexão que enriquece o debate sobre a construção da subjetividade e o lugar do indivíduo no panorama em que se inserem as obras em análise. A reflexão sobre o papel social da criação poética expande-se para outros debates de ordem ética e estética em O rap e o espaço, de Ana Ligia Faria Teixeira. Aqui, colocam-se em pauta novos formatos artísticos e poéticos advindos com a contemporaneidade e a função dessas novas formas de expressão artística em uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo silenciamento das vozes consideradas marginais. O trabalho de Teixeira contribui imensamente para as discussões aqui levantadas, ao nos apresentar debates que questionam nossos paradigmas e visões de mundo – assim como o próprio conceito de poesia. Esperamos que esta edição seja uma fonte de leituras pertinentes e debates profícuos. Uma boa leitura!

Os Editores Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 4


À minha terra: leitura do sentimento nativista na poesia de Maia Ferreira e Gonçalves Dias Júlio César Vieira1

Resumo: Neste trabalho, analisaremos as configurações do nativismo em dois poetas de língua portuguesa: o brasileiro Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) e o angolano José da Silva Maia Ferreira (1827-1881). Contemporâneos entre si, ambos os poetas escrevem sob a égide do Romantismo e apresentam os temas comuns a este movimento literário. A leitura que propomos buscará compreender as aproximações e os distanciamentos possíveis da produção destes poetas com relação ao tratamento dado ao sentimento de nacionalidade, o qual se apresenta, principalmente em Canção do exílio e À minha terra, de Gonçalves Dias e Maia Ferreira, respectivamente. Palavras-Chave: Literatura brasileira, Literatura Angolana, Nativismo, Maia Ferreira, Gonçalves Dias.

Abstract: In this paper, we analyze the settings of nativism in two Portuguesespeaking poets: Brazilian Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) and Angolan José da Silva Maia Ferreira (1827-1881). Contemporary with each other, both poets write under the aegis of Romanticism and present the common themes of this literary movement. The reading we suggest you seek to understand the similarities and the possible distances of the production of these poets with respect to the treatment given to the feeling of nationality, which is presented mainly in “Canção do exílio” and “A minha terra”, by Maia Ferreira and Gonçalves Dias, respectively. Keywords: Brazilian Literature, Angolan Literature, Nativism, Maia Ferreira, Gonçalves Dias.

1Doutorando

em Literaturas de Língua Portuguesa – PUC Minas\Capes. Professor de Literatura e Língua Portuguesa – IFNMG – Campus Montes Claros.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 5


Além de compartilhar a língua em que escreveram e o tempo em que viveram, Gonçalves Dias e Maia Ferreira elaboraram sua obra sob a égide do Romantismo, cuja estética é notável na produção de ambos os poetas, marcados pela subjetividade no tratamento de temas como o amor, a religião, a natureza e a pátria, os dois últimos mais intimamente relacionados à análise proposta. Antes de abordarmos os aspectos formais e temáticos dos textos, é importante que se pense em um pequeno esboço da situação histórica de Angola e do Brasil e, consequentemente, da vida literária nos dois países. Enquanto o Brasil viveu, em 1822, a proclamação de sua independência; em Angola, a despeito das intenções de aproximação com o Brasil, manifestadas por setores coloniais descontentes com as limitações impostas pela metrópole, como o acesso dos filhos da terra a cargos administrativos, aumentava a repressão a qualquer possibilidade de separação em relação à metrópole ou adesão ao recém-criado Império Brasileiro. Com a proclamação e o reconhecimento da independência do Brasil, as antes frutíferas relações entre este e Angola se viram destinadas ao esfriamento. Isso porque, no ato de reconhecimento da independência e com o intuito de restabelecer o mais breve possível as relações comerciais com Portugal, D. Pedro I prometeu nunca levar em consideração propostas de adesão ao império brasileiro oriundas de colônias portuguesas. As relações culturais entre os dois países, entretanto, se mantiveram ainda fortes, principalmente pela presença de diversas famílias angolanas em território brasileiro. Há diferenças notáveis também com relação ao desenvolvimento da literatura nos dois países. No Brasil, caminhava-se rumo a uma “independência literária”. A história da literatura brasileira ganhava seu primeiro registro pelas mãos de Ferdinand Denis, com o lançamento de Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil, em que se reconhecia, ainda em constituição, a existência de uma literatura brasileira.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 6


Em se tratando dos dois poetas aqui analisados, Alfredo Bosi afirma, em sua História concisa da literatura brasileira, que Gonçalves Dias “foi o primeiro poeta autêntico a emergir em nosso Romantismo” (BOSI, 2006, p. 104). O que dizer, então, de Maia Ferreira em relação à até então incipiente poesia angolana? “Espontaneidades da minha alma” foi a primeira obra publicada em língua portuguesa por um autor africano. Mesmo assim, o primeiro estudo crítico da obra se deu apenas em 1967, por Gerald Moser, da Universidade Estadual de Pensilvânia, que o encontrou na coleção de livros raros da New York Public Library. Pode-se afirmar, portanto, que, pensando com Antônio Cândido, em literatura como sistema, a obra de Maia Ferreira se definiria como pré-história da literatura angolana, uma vez que se deu uma “manifestação literária”, mas não havia ainda os indicadores da existência de uma “literatura propriamente dita” (CANDIDO, 2013, p.25). O contato entre Maia Ferreira e o Brasil se dá ainda no contexto de afrouxamento de relações entre Brasil e Angola, à época da independência do Brasil. Seu pai mantinha segunda residência e negócios em Pernambuco, de onde vinham, provavelmente, os livros lidos pelo poeta. O poeta benguelense aporta pela primeira vez, no Rio de Janeiro, aos sete anos, acompanhando o pai, que precisara fugir de Angola com o fim da monarquia absoluta em Portugal. Por isso, Maia Ferreira foi educado no Brasil e frequentou os círculos literários aqui existentes. Em 1845, após a morte do pai, o poeta volta para angola, a fim de seguir carreira na administração pública, com uma breve nova passagem pelo Brasil nos anos seguintes. As Espontaneidades da minha alma datam de 1849, mesmo ano que aparece na datação do poema “A minha terra”, escrito no Rio de Janeiro. Apenas três anos antes, apareciam os Primeiros Cantos, de Gonçalves Dias, onde se encontra a “Canção do Exílio”. Nestes dois poemas - A minha terra e Canção do exílio – encontramos os traços definidores da abordagem que os poetas

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 7


mantêm em relação ao seu lugar de origem. A fim de perceber tais traços, procedamos a um breve comentário de ambos os poemas. Vejamos o poema de Gonçalves Dias, a primeira das chamadas “Poesias Americanas”: Canção do Exílio Kennst du das Land, wo die Citronen blühen, Im dunkeln die Gold-Orangen glühen, Kennst du es wohl? - Dahin, dahin! Möcht ich... ziehn. – Goethe Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas tem mais flores, Nossos bosques tem mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 8


Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Coimbra - Julho 1843. Desde a epígrafe de Goethe, já se manifesta a intenção de apresentar um país maravilhoso. Neste célebre poema, talvez o mais conhecido de Gonçalves Dias, o eu lírico se encontra afastado de sua terra, à qual exalta em comparação à terra estrangeira. Em bem construídas e ritmadas redondilhas, a comparação é baseada na oposição dos advérbios “cá” e “lá”, e manifesta a superioridade dos aspectos naturais da pátria. Tal natureza exuberante é que proporciona uma vida mais plena de amores e prazeres. As marcas do romantismo a que anteriormente nos referimos são notadas, por exemplo, pelo evasionismo, já que o eu lírico se refugia em sua terra ao “cismar – sozinho, à noite” e pela presença da religiosidade, na estrofe final em tom de oração “Não permita Deus que eu morra”. Do poema de Maia Ferreira, por ser muito longo, tomaremos algumas partes significativas, as quais acreditamos servirem para perceber a referência ao poeta brasileiro e serem suficientes para a análise do tema em tela. A leitura do poema, que abre a obra de Maia Ferreira, remete imediatamente ao poema de Gonçalves Dias. Percebemos, logo na primeira estrofe, o aspecto de comparação entre a natureza de dois lugares: No álbum do meu amigo João d'Aboim ...................................... Recevez donc mon hymne, ô mon pays natal, Et offrez-le de bom coeur à qui sut bien chanter La riante nature du beau Portugal (do autor) Minha terra não tem os cristais Dessas fontes do só Portugal Minha terra não tem salgueirais, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 9


Só tem ondas de branco areal. Em seus campos não brota o jasmim, Não matiza de flores seus prados, Não tem rosas de fino carmim, Só tem montes de barro escarpados. (...) Diferentemente do poema de Gonçalves Dias, o tom inicial do poema de Maia Ferreira é de humildade. A natureza a se exaltar é a da metrópole, Portugal, assim sua terra se define antes pelo que não tem, em oposição às belezas naturais lusitanas. Segundo Jacopo Corrado, o poema “resume perfeitamente o dilema dos assimilados, cuja formação cultural estritamente eurobrasileira tinha que ser adaptada à nova exigência de afirmar um sentimento de identificação com a terra natal africana.” (CORRADO, 2010). A relação com Gonçalves Dias neste trecho está, portanto, no fato de haver uma comparação, mas o tom de louvação à terra natal ainda se encontra apenas no poeta brasileiro. Em outro ponto do poema, entretanto, o poeta parece ufanar-se de certos aspectos da natureza e da gente de sua terra, como se pode ver nos versos seguintes: (...) Tem palmeiras de sombra copada Onde o Soba de tribo selvagem, Em c’ravana de gente cansada, Adormece sequioso de aragem. Empinando alcantil dos desertos Lá se aninha sedento leão Em covis de espinhais entr’abertos, Onde altivo repousa no chão.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 10


Nesses montes percorre afanoso, A zagaia com força vibrando, O africano guerreiro e famoso A seus pés a pantera prostrando (...) Aqui a natureza assume um aspecto mais grandioso que, se ainda não é a natureza dócil e bela das fontes e salgueirais de Portugal, dá demonstrações de força pela copa das palmeiras, a nobreza do leão e a força do homem natural africano. A exaltação do nativo é outro dado comum entre os dois poetas. Se não o faz na “Canção do exílio”, Gonçalves Dias se voltará à idealização do nativo brasileiro em diversos outros poemas, entre os quais podemos citar o “Canto do Piaga”, o “Canto do Guerreiro”, o “Canto do Índio” etc. Mais à frente, Maia Ferreira manifesta saudades de sua terra, com algo equivalente ao cismar do poeta brasileiro: Mesmo assim rude, sem primores de arte, Nem da natura os mimos e belezas, Que em campos mil a mil vicejam sempre, É minha pátria! Minha pátria por quem sinto saudades, Saudades tantas que o peito ralam, E com tão viva força qual sentiste, Quando no cume da Tijuca altiva Meditando escreveste em versos tristes, Versos que tanto amei, e que amo ainda, As saudades dos lares teus mimosos! É minha pátria ufanoso o digo! Deu-me o berço, e nela vi primeiro A luz do sol embora ardente e forte. Os meus dias de infância ali volveram No tempo ao coração mais primoroso, Nesses dias ditosos, em que apenas Ao mundo despertado, vi e ouvia Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 11


Por sobre os lábios meus roçarem beijos, Beijos de puro amor, nascidos de alma, De alma de Mãe mui carinhosa e bela! Foi ali que por voz suave e santa Ouvi e cri em Deus! É minha pátria! A declaração à pátria contida na primeira estrofe citada neste trecho lembra os versos de Alberto Caeiro, em “O guardador de rebanhos”: “O Tejo é mais belo que o rio que corre na minha aldeia, /Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre na minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre na minha aldeia”. Embora reconheça em tudo a superioridade da metrópole, ainda assim é para a pátria que se deseja voltar. Há também marcados neste trecho, verbos em segunda pessoa, dirigidos ao poeta que cantou, “no cume da Tijuca altiva”, as saudades de sua pátria, numa possível referência à “Canção do Exílio”. Vale lembrar que esta não seria uma citação isolada, uma vez que versos de Gonçalves Dias aparecem, inclusive, como epígrafe de um dos poemas de Maia Ferreira. Por fim, o poeta angolano destaca o pertencimento de sua terra à nação portuguesa: (...) Vi as belezas da terra, Da tua terra sem igual, Mirei tudo do que encerra O teu lindo Portugal; E se invejo a lindeza, Da tua terra a beleza, Também é bem portuguesa A minha terra natal.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 12


Depois da exaltação das belezas da metrópole, Maia Ferreira enumera como uma característica positiva de sua terra o fato de pertencer a Portugal. Na introdução que escreveu para “Espontaneidades de minha alma”, Gerald Moser afirma que o poeta “tomando uma atitude tipicamente colonial ao orgulhar-se de ser um leal súdito português, respeitava os bons modelos literários e o governo ao qual servia” (MOSER, 1985, p. XXIX). Aparentemente, o sentimento nativista expresso na poesia de Maia Ferreira está distante do que apresenta Gonçalves Dias, que talvez já se possa chamar “nacionalismo”. Machado de Assis afirma, em ensaio de 1873, que a primeira coisa a se reconhecer na literatura brasileira da época seria “certo instinto de nacionalidade” (ASSIS, 1994, p.01). Percebendo na literatura da época um prosseguimento da tradição de Gonçalves Dias e, neste, a continuação de Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Quanto à poesia de Maia Ferreira, Jacopo Corrado afirma que Por um lado, o poeta assume uma atitude tipicamente colonial, mostrando seu orgulho em ser um leal súdito português e pintando retratos de nativos em puro estilo cartão-postal; mas, por outro lado, ele foi o primeiro a desenvolver um novo regionalismo africano, abrindo o caminho para a criação da literatura Angolana moderna. (CORRADO, 2010) O que se percebe na poesia de Maia Ferreira é o resultado de um longo processo de aculturação, ou assimilação cultural, por meio do qual se consolidava a dominação da metrópole sobre a colônia. Segundo Alfredo Bosi, “aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior.” (BOSI, 1992, p.17). Sendo assim, explica-se o tom de humildade do poeta angolano diante da metrópole, cuja superioridade lhe foi inculcada no processo de colonização. Podemos afirmar, então, que a tradição literária brasileira que Machado de Assis percebe continuada em Gonçalves Dias, no caso da literatura angolana,

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 13


aparece apenas sua primeira manifestação, o que aponta para estágios diferentes das literaturas nacionais brasileira e angolana. Não significa, todavia, que seja possível perceber em Gonçalves Dias uma completa independência literária. O mesmo Machado de Assis afirma que para esta não há “sete de setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.” (ASSIS, 1994, p.01). Pouco tempo depois da estreia de Gonçalves Dias, segundo Bosi, Alexandre Herculano o saudava e o repreendia ao afirmar que o poeta tinha “muito de português no trato da língua e nas cadências garrettianas do lirismo” (BOSI, 2006, p. 105). A afirmação do escritor português se apresenta significativa para a conclusão de nosso estudo. Se Maia Ferreira escrevia sua terra submetendo-a à beleza de Portugal, afirmando sua pátria, mas mantendo a metrópole como arquétipo; o poeta brasileiro traz a natureza de sua pátria, mas, ainda assim, não se revela completamente independente. No caso de Maia Ferreira, ainda persistia a dominação política e econômica, já na poesia de Gonçalves Dias, permanecia, apesar da independência política, o domínio cultural europeu, o modelo literário da metrópole, como afirma Manuel Bandeira, na “Evocação de Recife”, o “macaquear a sintaxe lusíada”. Os dois poetas acabam por não diferir, portanto, em sua condição de submissão ao modelo, seja estético ou político, da metrópole.

Referências ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 14 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2013. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 14


CORRADO, Jacopo. À procura das influências brasileiras na construção da cultura literária angolana: O caso José da Silva Maia Ferreira. Maringá: 4º CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários, 2010. Dias, Gonçalves. Primeiros Cantos. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_ac tion=&co_obra=16654 . Acesso em 21 jan. 2014. ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. 3. ed. Luana: UEA, 1985. FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidades da minha alma. 3º Ed. União dos Escritores Angolanos, 1985. JACOB. Sheila Ribeiro. De Mucandas e Sûnguis, um texto de resistência: uma leitura do romance A casa velha das margens. Dissertação (mestrado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2012. MOSER, Gerald. Introdução. In: FERREIRA, José da Silva Maia. Espontaneidades da minha alma. 3º Ed. União dos Escritores Angolanos, 1985.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 15


O “desenho de arquiteto” de João Cabral de Melo Neto Rafaela Cardeal2 Resumo: Tomando como ponto de partida a metáfora “desenho de arquiteto”, este ensaio aborda os aspectos arquitetônicos da poesia de João Cabral de Melo Neto. Para tal, propõe uma leitura retrospectiva da obra até o livro A educação pela pedra (1966), considerado pela crítica o mais arquitetônico da produção cabralina. Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; desenho de arquiteto; Le Corbusier; poesia brasileira.

Abstract: Taking the metaphor of the “architectural blueprint” as a starting point, this paper approaches the architectural aspects of João Cabral de Melo Neto’s poetry. For this purpose, it proposes a retrospective reading of his works until the book A educação pela pedra, considered by critics João Cabral’s most architectural deed. Keywords: João Cabral de Melo Neto; architectural blueprint; Le Corbusier; Brazilian poetry.

2

Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 16


“A palo seco existem situações e objetos: Graciliano Ramos, desenho de arquiteto, as paredes caiadas, a elegância dos pregos, a cidade de Córdoba, o arame dos insetos.” (“A palo seco”) Valendo-nos de um objeto “a palo seco”, buscaremos compreender as delimitações estruturais que compõem o “desenho de arquiteto” traçado por João Cabral de Melo Neto em sua obra. Tal expressão se refere à planta, termo utilizado pela arquitetura para nomear o desenho técnico que dá a ver o projeto de uma construção. Nessa representação gráfica, visualizam-se os espaços que constituem determinada edificação a partir de uma visão imaginária, muitas vezes de uma perspectiva área. Assim como um arquiteto desenha uma planta baixa, um poeta pode definir calculadamente um projeto poético “arquitetônico”, com o qual conceberá a criação e a realização estrutural de uma obra. Como uma maneira de impor dificuldades à escrita, a composição do que chamaremos de “estrutura de livro” proporciona um controle mais rigoroso desse processo, evitando-se, em termos cabralinos, a expressão fácil e espontânea. A atitude de criar um livro “arquitetônico” se tornou para João Cabral uma ideia-fixa, a partir da qual se desenvolve uma questão fundamental: o que é fazer um livro? Obsessivamente, a poética cabralina procurou de todas as formas responder a essa pergunta por meio da fabricação de planos para livros. Essa característica, que se tornou uma marca poética, foi explicitada nas declarações do poeta, que inúmeras vezes afirmou escrever “de fora para dentro”: “Antes faço o plano do livro, decido o Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 17


número de poemas, o tamanho, os temas. Crio a forma. Depois encho.” (MAMEDE, 1987, p. 137) Com base nessas etapas de produção, a macroestrutura era preparada segundo a ideia do livro e os poemas eram compostos conforme a concepção estrutural determinada pelo plano. Esse método incomum era sempre renovado, na medida em que o que se concebia para um livro era descartado na construção do próximo, demonstrando-se com isso a ausência de padronização, de um plano único aplicável a diferentes livros. Logo, a organização visual presente em cada volume produz o isomorfismo entre a estrutura funcional do livro e o material semântico dos poemas. Sem qualquer dúvida, a questão da “estrutura de livro” é um procedimento caro a essa poética como teoria e prática, pois a criação desse conceito, que demarca limites para impedir qualquer interferência externa durante a escrita, torna-se um valor à medida que se efetiva de modos distintos nos livros. Podemos dizer que esse trabalho estrutural se apresenta como uma “civil geometria” – imagem que simultaneamente demonstra uma plasticidade matemática, o estudo dos espaços e das figuras, e uma intenção moral por qualificar tanto a noção de cidadania quanto um ramo da engenharia, responsável pelo planejamento, construção e manutenção de grandes estruturas. Essa expressão cabralina nos servirá de metáfora para compreender a influência da arquitetura de Le Corbusier, que, na estética do engenheiro, encontrava na plasticidade originada da geometria e do cálculo uma lição ética. Em outros termos, tanto para o poeta como para o arquiteto, a justeza estética estará aliada à justiça e, assim, todo gesto artístico implica uma moral, pois “a mentira é intolerável” (LE CORBUSIER, 2013, p. 5). Em Por uma arquitetura, com a intenção de confrontar o avanço da engenharia e o retrocesso da arquitetura, Le Corbusier recomenda “três lembretes” aos arquitetos: o volume, a superfície e a planta. O primeiro lembrete, explica o autor, é o elemento através do qual os sentidos percebem e medem as formas sob a luz. O segundo lembrete é o “envelope do volume” (Ibidem, p. 9) Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 18


– em outras palavras, as diretrizes e as geratrizes, as linhas, que revelam e marcam a individualidade das formas. E, por fim, o terceiro lembrete: a planta, “geradora do volume e da superfície” (Ibidem, p. 9), o que determina irrevogavelmente tudo. Os elementos através dos quais se manifestam a arquitetura – o volume e a superfície – são determinados pela planta, origem de uma “grandeza de intenção e de expressão” (Ibidem, p. 27). Essa representação gráfica é a base construtiva para a composição prévia de ritmo e coerência através da qual se invalida a “sensação insuportável ao homem” (Ibidem, p. 27) de indigência e de desordem em favor da coerência: Uma planta necessita a mais ativa imaginação. Necessita também a mais severa disciplina. A planta é a determinação do todo; é o momento decisivo. Uma planta não é tão bela para desenhar quanto o rosto de uma madona; é uma austera abstração; não passa de uma algebrização árida ao olhar. De qualquer modo, o trabalho do matemático permanece uma das mais altas atividades do espírito humano. (LE CORBUSIER, op. cit., p. 27) O planejamento de uma construção, determinado por uma planta baixa, é elaborado por um desenho em que as linhas compõem e impõem as características basilares da futura edificação. Essas linhas, para Le Corbusier, são traçados reguladores, medidas que condicionam e delimitam o todo, elementos que organizam a ideia por meio da forma. Portanto, a escolha de um traçado regulador confere à obra eurritmia, a harmonia de todas as partes, a combinação simétrica de proporções e linhas, e consolida sua geometria fundamental, é “um dos momentos decisivos da inspiração, é uma das operações capitais da arquitetura.” (Ibidem, p. 47) Essa concepção arquitetônica e a composição cabralina se aproximam por apresentarem uma lógica que reivindica que tanto a imaginação quanto a disciplina, aplicadas ao trabalho matemático, geram a “algebrização árida ao olhar”. Assim, a ideia de um traçado regulador concebido se transforma na delimitação Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 19


poética de um plano de disposição para versos e poemas e, como um arquiteto, o poeta projeta limites precisos, responsáveis por uma garantia estética e moral contra o arbitrário. Tal ideário foi posto em prática por Cabral em sua obra rigorosamente até A educação pela pedra, o livro mais “arquitetônico”, que marca simbolicamente o encerramento do ciclo da pedra iniciado em Pedra do sono: o percurso do sono à educação, sinalizado pela definição do objeto e a aprendizagem com ele. Analisemos, daqui para frente, a formação “arquitetônica” dessa poética para entender como a publicação de Museu de tudo apresenta uma nova metodologia, que a priori apresenta preceitos anticabralinos. 1. Civil geometria Como poeta-engenheiro, João Cabral defendia o planejamento estrutural do livro numa postura contrária à prática mais frequente de se produzir uma quantidade de poemas e reuni-los em coletâneas. Essa tendência “arquitetônica”, que aparece somente como tema em O engenheiro, intensifica-se gradualmente nos livros posteriores, nos quais a sistematização ocorre tanto no método de divisão estrutural do livro quanto na matemática plástico-poética dos poemas. Tal construtivismo assume-se também como critério organizador em antologias, como por exemplo em Duas águas (1956). O título do volume é composto por um termo retirado do campo semântico da construção, que nomeia o tipo mais comum de telhado, cujo formato de um “V” ao contrário provoca o caimento da água da chuva para dois lados distintos. Tal imagem, o telhado de duas águas, torna-se metáfora para a compreensão de duas vertentes desta poética. Na orelha do livro, esclarece-se que os poemas ali reunidos não correspondem às dicotomias: “herméticos” versus “claros” ou “regionalistas” versus “universalistas”, ou até mesmo “tensos” versus “distensos formalmente”. Visto que tais oposições, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 20


segundo o autor, não se encontram radicalmente em sua produção, justifica-se que esses poemas sejam categorizados a partir de um propósito: Duas águas querem corresponder a duas intenções distintas do autor e – decorrentemente – a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou do ouvinte: de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos. (MELO NETO, 1956) Em outros termos, varia-se o rigor expressivo e o vigor comunicativo em prol de atingir de forma mais incisiva um ou outro objetivo. Na primeira água, a dos “poemas para serem lidos em silêncio”, encontram-se Uma faca só lâmina, Paisagens com figuras – ambos inéditos em livro quando da publicação da antologia –, O cão sem plumas, Psicologia da composição, O engenheiro e Pedra do sono. Na segunda água, concentram-se os “poemas para auditório”: “Morte e vida severina (então inédito), O rio e Os três mal-amados. O ato de organizar sua produção poética conforme duas categorias, ou melhor, duas intenções distintas, já revela ao leitor uma preocupação com um projeto poético, uma forma conceitual, através da qual Cabral indica uma metodologia para a compreensão de sua obra. Mais do que uma simples antologia, Duas águas exibe três livros inéditos, assim como Terceira feira (1961), edição brasileira que reúne os livros Quaderna, publicado em Lisboa no ano anterior, Dois parlamentos, publicado em Madri no mesmo ano, e o inédito Serial. Diferente da divisão anterior, concebida nos planos do telhado de duas águas, o volume apresenta a reunião de livros publicados anteriormente no exterior, vistos como unidades regidas por leis próprias. Neles observam-se três projetos distintos de “estrutura de livro”, que apresentam uma confluência

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 21


entre as duas águas. A “comunicação a dois” e a “comunicação múltipla” encontram-se incorporadas nesta leitura. Em Quaderna ainda não há o traçado rigoroso de um projeto estrutural. O que se destaca no livro é sobretudo a construção dos poemas enquanto peças autônomas. Como objeto de conhecimento, o poema poliédrico apresenta deslocamentos imagísticos, isto é, mobiliza o ângulo de visão do observador para melhor apreender o objeto sobre o qual se detém. Nesse funcionamento, o discurso poético é posto em movimento, deixando à mostra seus dispositivos composicionais. Tal procedimento é incorporado no poema de abertura, “Estudos para uma bailadora andaluza”, no qual a validade das imagens é testada à procura de um símile mais próximo do objeto que se visa representar. Tal atitude relativiza o poder absoluto do criador, que compartilha com o leitor a arbitrariedade da metáfora – empenho estético e ético, portanto – e mobiliza os limites do discurso. Para além de uma “estrutura translúcida”,3 o livro apresenta em termos estruturais um traço regulador que constitui balizas para a construção poética com uso da quadra como paradigma, o que permite a organização estrófica do poema e a elaboração de partes iguais para a compreensão analítica do objeto. Já em Dois parlamentos, apresentam-se na criação do plano estrutural do livro critérios matemáticos, como explica João Cabral: Nele desenvolvo, além da preocupação com cada poema, princípios da estruturação da obra globalmente considerada, tanto no nível da estrofação quanto no da métrica. A primeira parte trata do problema da seca. Um grupo de senadores sulistas vai ver o Polígono das Secas. É como se dissessem: essa miséria não é tão grande. Na segunda, há algo semelhante, mas o número base, do 3

Expressão de Benedito Nunes.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 22


ponto de vista formal, é o 5; na outra parte, era o 4. (ATHAYDE, 1998, p. 113) Dividido em duas partes, “Congresso no Polígono das Secas” e “Festa na Casa-Grande”, o livro adota uma estrutura dramática cujo formato de falas articuladas em diálogo se especificam por dois ritmos: o senador, de sotaque sulista; e o deputado, de sotaque nordestino. Tais anotações se encontram entre parênteses, acompanhando o título de cada um das duas partes que compõem o livro, e se assemelham à rubrica teatral. Em uma ordem própria, contrária à linear, a numeração das estrofes, cada uma estruturada em 16 versos, segue uma progressão aritmética: 1, 5, 9, 13, 2, 6, 10, 14, 3, 7, 11, 15, 4, 8, 12, 16. Tendo como base o número quatro, tal sequência forma uma série de quatro partes ou estrofes: série 1, 5, 9, 13; série 2, 6, 10, 14; série 3, 7, 11, 15; série 4, 8, 12, 16. Tendo como base o número cinco, a segunda parte é estruturada em 20 estrofes, apresentando a seguinte disposição: 1, 6, 11, 16, 2, 7, 12, 17, 3, 8, 13, 18, 4, 9, 14, 19, 5, 10, 15, 20. Compõem-se assim cinco séries: 1, 6, 11, 16; série 2, 7, 12, 17; série 3, 8, 13, 18; série 4, 9, 14, 19; série 5, 10, 15, 20. Em ambas as partes, os primeiros versos de cada estrofe apresentam semelhante construção, sustentando um padrão rítmico e sintático. Em “Congresso no Polígono das Secas”, a primeira (1, 5, 9, 13) e a quarta (4, 8, 12, 16) séries apresentam a construção “cemitérios gerais”, enquanto a segunda (2, 6, 10, 14) e a terceira (3, 7, 11, 16) séries apresentam “nestes cemitérios gerais”. Em “Festa na Casa-Grande”, o primeiro verso de todas as séries inicia com a construção “o cassaco de engenho”; o que se modifica é a condição de representação do cassaco: na primeira série (1, 6, 11, 16), mostra-se o cassaco quando se é criança, mulher e velho; na segunda (2, 7, 12, 17), há um afastamento espacial, mostrando “de longe” e “de perto” o que se vê do cassaco; na terceira (3, 8, 13, 18), essa condição se apresenta através da presença e da ausência do ato de dormir e trabalhar; na quarta (4, 9, 14, 19), a qualidade “amareladamente” do cassaco é descrita; e

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 23


por fim, na última série (5, 10, 15, 20), o percurso da doença até a morte encerra a condição cassaco e o livro, respectivamente. Composto por uma estrutura de cortes, encaixes e combinações, Dois parlamentos instaura um jogo textual que solicita a participação ativa do leitor. Distante de uma disposição linear, o livro, organizado por uma sequência de saltos, aponta para uma liberdade de leitura, na qual o leitor pode optar por seguir um caminho convencional, em progressão linear, ou embarcar no trajeto delineado pelo poeta, em progressão aritmética. Entretanto, se a primeira opção for escolhida, o leitor em busca de se guiar por um desenvolvimento sequencial enfrentará os obstáculos criados pelo poeta, tendo que ir e vir várias vezes nas páginas do livro. Evitando o movimento caótico entre as páginas, a segunda opção – seguir a ordem determinada pelo poeta – demonstra que a linearidade desta leitura ocorre, contraditoriamente, através dos saltos numéricos. A relação sequencial e a obsessão pelo número quatro, presente em Quaderna e Dois parlamentos, se intensifica no plano de Serial, cujo título aponta para uma tendência maquinal ligada à produção em série, à repetição mecânica e homogênea empregada nas indústrias. O livro, “construído sob o signo do número 4” e, ainda, “dividido em quatro partes sob qualquer ângulo que se olhe” (, como explica João Cabral, é composto por 16 poemas que se agrupam em séries de 4 poemas, nas quais se observa o arranjo de 2, 4, 6 ou 8 quadras em cada parte. Para segmentar os poemas em partes simétricas, são utilizados os recursos gráficos – algarismos arábicos, asteriscos, sinais de parágrafo e travessões – para separar os quatro segmentos dos poemas, nos quais cada arranjo dá a ver uma específica forma de perceber os objetos. Assim, os quatro poemas que apresentam suas partes divididas por algarismos arábicos têm em comum a exposição de um objeto que se modifica em quatro situações, ou de uma mesma qualidade verificada em quatro diferentes objetos. Os quatro poemas separados por asteriscos focalizam objetos e situações Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 24


cuja integridade se mantém, independentemente dos contextos ou dos pontos de vistas sob os quais são analisados. A divisão marcada por sinais de parágrafo identifica os quatros poemas nos quais os objetos permanecem estáticos, apenas movimentando-se em torno deles os olhares do poeta e do leitor. A segmentação em travessões nos quatro poemas mostra a presença de personagens unidos por alguma característica, seja o trabalho ou o modo como trabalham, com exceção do poema “Uma sevilhana pela Espanha”, no qual uma única personagem, a sevilhana, passeia por quatro cidades da Espanha. Em A educação pela pedra, o projeto de “estrutura de livro” domina com perfeição o conceito “máquina de comover”, no qual o caráter maquinal do poema expresso no engenho estruturalista desperta a sensibilidade do leitor. Os 48 poemas que compõem o livro estão divididos em quatro séries de 12 poemas: (A), (a), (B), (b). As duas primeiras, somando 24 poemas, têm como tema motivos pernambucanos, enquanto as outras duas formam um bloco simétrico com temática diversa. Todos os poemas são compostos por duas estrofes, mas, como sugere uma espécie de continuidade gráfica, as partes indiciadas pelas letras minúsculas – (a) e (b) – formam uma série de poemas compostos por 16 versos, sendo seis poemas com duas estrofes de oito versos e seis com uma estrofe de seis e uma de dez versos. Já as partes representadas pelas letras maiúsculas – (A) e (B) – agrupam uma série maior, de 24 versos, que apresentam seis poemas com duas estrofes de doze versos; e seis com uma estrofe de oito e uma de dezesseis versos. Para além de uma organização estruturalmente rigorosa, o livro traz a utilização da técnica permutacional, a reprogramação de versos entre poemas, compondo uma série de 16 poemas que se articulam aos pares. Não é uma novidade a elaboração de um jogo textual na poética cabralina, já que em Dois parlamentos havia a composição de séries formadas por estrofes cuja lógica, avessa à progressão linear, possibilita uma rearticulação da leitura. Essa mobilidade permite ao leitor seguir as regras propostas pelo autor ou adotar leis próprias, reconstituir a linearidade das estrofes ou Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 25


até mesmo anulá-las completamente. A flexibilidade de leitura, exposta em A educação pela pedra, dispõe de um refinamento estrutural mais apurado, que atinge não só as estrofes, os blocos, mas se realiza igualmente no nível dos versos. Tal sofisticação nasce da constituição de um plano – ou, para usar as palavras de Le Corbusier, de um traçado regulador – que determina uma geometria fundamental da obra, um dos momentos axiais da arquitetura. Mais próximo da arquitetura do que da música, João Cabral afirma que o seu ritmo, avesso ao melódico, é sintático: “Você, diante de uma obra de arquitetura, vê que ela tem um ritmo. Esse ritmo não é musical, porque a arquitetura é muda. Existe um ritmo visual, existe um ritmo intelectual, que é um ritmo sintático.” (ATHAYDE, op. cit., p. 87) O ritmo “arquitetônico” construído em A educação pela pedra foi certificado formalmente com a publicação de um documento,4 espécie de planta baixa do livro, que expõe o rigoroso planejamento que o poeta desenvolvia para seu trabalho poético. Se o poeta, aluno da pedra, ao aprender, simultaneamente ensina ao leitor, em “Fábula de um arquiteto” (MELO NETO, op. cit., p. 320) revelam-se duas lições – uma positiva e outra negativa – extraídas da arquitetura corbusiana. Conforme se explica em entrevista, esse poema foi motivado pela visita de João Cabral à Capela de Ronchamp, construída por Le Corbusier na França, a qual provocou grande irritação no poeta por representar a negação dos ensinamentos difundidos pelo próprio arquiteto. Na tensão entre abertura e fechamento, critica-se uma mudança metodológica a partir do ofício do arquiteto: aquele que antes “[abria] para o homem” passa a aprisionar “até refechar o homem” em condição de feto, no conforto materno de uma “capela útero”. Assim, a lição de claridade, “luz razão certa”, é substituída pela de obscuridade, por “opacos de fechar”, como Este documento intitulado Um original de João Cabral de Melo Neto apresentado por Antonio Carlos Secchin está disponível na Revista Colóquio Letras. “Paisagem tipográfica – homenagem a Joáo Cabral de Melo Neto (19201999)”. Lisboa, Fundaçáo Calouste Gulbenkian, jul-dez 2000, n. 157/158. 4

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 26


renúncia a “dar a viver no claro e aberto”, transformando a arquitetura em antiarquitetura. Na opinião do poeta, Le Corbusier, um de seus mestres, “caprichou” no final da vida para contradizer arquitetonicamente o que havia pregado no começo da carreira. Depois de muitos anos de “estar em livro”, João Cabral se queixava de um esgotamento provocado pelo incessante trabalho intelectual, de elaboração plástica e matemática, que exigia dele vigor físico. Logo após a publicação de A educação pela pedra, relataria em entrevistas uma incapacidade de estruturar livros com o mesmo rigor construtivo de antes por uma falta de “força psicológica, e até da saúde física, para continuar exercendo esse esforço criador de parto, isto é, dor de luta” (ATHAYDE, op. cit., p. 115). Então, diante desse cansaço, poderíamos afirmar que o poeta invalidaria seus próprios conceitos no volume posterior? Não, tendo em vista que o poeta, ao contrário do arquiteto, continuaria aplicando à sua obra os mesmos pressupostos estéticos e éticos. Mas, por outro lado, a marca usual da fábrica cabralina adquiriu um novo design a partir de Museu de tudo, que apresenta, no entanto, aspectos anticabralinos. 2. A “linha ainda fresca” O trabalho criador de Joan Miró apresentava uma importante lição de invenção – e não de descoberta – para a poética cabralina. Criticamente analisada no ensaio em prosa Joan Miró, a obra do pintor catalão é descrita como a realização de uma luta contra o hábito e a habilidade, com a finalidade de “limpar seu olho do visto e sua mão do automático” (MELO NETO, op. cit., p. 690). Dessa forma, o experimentalismo de Miró consiste em um esforço contínuo para vencer seus hábitos visuais – o que não significa anulá-los, mas renová-los a cada dia. Em “O sim contra o sim”, essa lição de inovação se apresenta como um a priori, uma espécie de desaprendizagem através da qual se torna possível um novo ensinamento. Ao sentir a mão direita demasiado sábia, tão Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 27


hábil que já não inventava mais nada, Miró passa a pintar com a esquerda para reaprender “a cada linha, / cada instante, a recomeçar-se” (Ibidem, p. 274). Tal atitude diante do ato criador é também adotada por João Cabral em sua obra. Nesse sentido, podemos afirmar que ele está sempre em busca de uma “linha fresca” que mantenha o saber na medida do aprender para evitar o automatismo poético. Esse incessante trabalho de invenção nos parece conceituado nos versos de “O postigo”: O que acontece é que escrever é ofício dos menos tranquilos: se pode aprender a escrever, mas não a escrever certo livro. Escrever jamais é sabido o que se escreve tem caminhos; escrever é sempre estrear-se e já não serve o antigo ancinho. (Ibidem, p. 550) Nessas duas estrofes, o trabalho de escrita é visto como um ofício jamais “sabido”. Tal concepção foi posta em prática ao longo da obra, pois, conforme vimos, cada livro apresenta nova estrutura à medida que se substituem os planos estruturais. Para sempre “estrear-se”, essa poética renova também seus instrumentos. Assim, o “ancinho” manuseado em A educação pela pedra não será mais útil, deixando evidente que outra ferramenta será operada a partir de Museu de tudo. Porém, mais do que uma mudança instrumental, esse livro delineia um novo tipo de projeto, cujas características se apresentam em “O museu de tudo”, o poema de abertura: Este museu de tudo é museu, Como qualquer outro reunido; Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 28


Como museu, tanto pode ser Caixão de lixo ou arquivo. Assim, não chega ao vertebrado Que deve entranhar qualquer livro: É depósito do que aí está, Se fez sem risca ou risco. (MELO NETO, op. cit., 345) Numa leitura excessivamente literal desses versos, podese dar a entender que o projeto cabralino daqui para frente perderá seu rigor. Entretanto, é preciso não confundir o aparente descuido confessado pelo poeta com facilidade ou como uma hipotética ausência de trabalho. O poema apresenta uma severa autocrítica, elaborada por seu autor, que acusa o livro no qual se inclui de não alcançar uma estrutura “arquitetônica”. Assim, “não chega ao vertebrado / que deve entranhar qualquer livro”, tendo em vista que o “vertebrado” refere-se à existência de um planejamento rigoroso, de uma “civil geometria”, aos moldes de A educação pela pedra. Portanto, expõe-se uma nova atitude diante da elaboração do livro – o que não afeta a unidade dos poemas, nos quais ainda se reconhece o típico rigor cabralino. Entendemos que a suposta ausência do “vertebrado” somente é validada se for comparada ao “fazer no extremo, onde o risco começa” (Ibidem, p. 318), que se traçava nos livros anteriores. Nesse sentido, a “planta” de Museu de tudo diferenciase por ter sido delineada “sem risca ou risco”, transformando o espaço do livro em um “depósito do que aí está”. O que antes era um plano meticuloso, no qual cada etapa da realização poética era calculada para impedir ao máximo a interferência externa, aos moldes de uma planta baixa, tornar-se-á o desenho simplificado de um espaço. Ao nomear o volume com o termo “museu”, o poeta reafirma uma obsessão arquitetônica: a construção de um edifício, no qual é possível, como um “arquivo”, salvar os poemas do “caixão de lixo” e preservá-los para a posterioridade.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 29


João Cabral esclarece em entrevista que Museu de tudo é uma coleção: “Uma série de poemas que nunca consegui encaixar na arquitetura de nenhum livro anterior.” (ATHAYDE, op. cit., p.116) Essa afirmação corrobora a ideia de “depósito” presente no poema título, mas também nos indica certa inconsistência teórica. A publicação de poemas “excluídos” de outros livros nos revela que a “arquitetura” de livro não ocorria como o poeta geralmente descrevia. Se primeiro se concebia uma estrutura prévia, a qual determinava a criação dos poemas, o controle compositivo não deixaria restos, ou seja, poemas fora do plano. Portanto, parecenos que um dos procedimentos construtivos mais celebrados na poética cabralina não era a única e irrestrita forma de criação. Depois das experiências rigorosas e calculadas, presentes em Quaderna, Dois parlamentos, Serial e principalmente A educação pela pedra, o poeta comenta o seu novo projeto: Eu acho Museu de tudo nem melhor nem pior que meus outros livros. Acontece que meus livros em geral saíam planificados, e em Museu de tudo não houve essa preocupação. Foi uma experiência nova minha, eu queria saber se era possível fazer uma poesia crítica, pois eu sou um antilírico, me considero mais crítico do que poeta. Então eu fiz uma quantidade muito grande de poemas sobre pintores e escritores – mas, como muito deles não eram conhecidos, os poemas não foram entendidos. Eu me lembro que, na época em que o livro saiu, um crítico disse que ele não tinha plano. Mas no Brasil é muito raro um sujeito fazer poemas com plano – o sujeito vai escrevendo e, quando chegam a um determinado número, ele os publica em livro. Por que todo mundo tem o direito de fazer isso e eu não? (Ibidem, p. 68) Nesse depoimento, o poeta entende que a incompreensão em relação a seu Museu decorre da falta de familiaridade com pintores e escritores retratados nos poemas e da ausência de “plano” apontada pelos críticos. Sobre esse último aspecto, João Cabral voltaria a afirmar em outra entrevista: “Eu tenho a Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 30


impressão que acostumei mal o leitor brasileiro. Todo mundo publica livros de poemas soltos e quando eu faço um, ninguém entende.” (MAMEDE, op. cit., 157) A publicação de um livro sem plano, ou melhor, sem “arquitetura” aparente, não altera o rigor geométrico da “marca de fábrica” cabralina, pois o “vertebrado” e o “arquitetônico” continuam presentes em cada poema. Assim, acreditamos que a falta de entendimento de Museu de tudo, acusada por Cabral, não provém necessariamente da leitura e análise do livro, mas do discurso teórico propagado pelo poeta. Defensor de uma poesia construída a partir de uma matemática plástica, com altos níveis de organização e controle, o poeta-engenheiro não poupou esforços para consolidar uma atitude estética que buscava desvelar as faces ocultas da criação artística. Se analisarmos os ensaios e as entrevistas de João Cabral, veremos que nesses espaços de expressão pessoal, um discurso racionalista é constantemente legitimado por suas declarações polêmicas sobre arte, poesia e sua própria obra. Um desses exemplos é a afirmativa: “Eu não concebo um livro como um depósito de poemas. Para mim, um livro deve ser tão estruturado quanto um poema, propriamente.” (Ibidem, p. 35) Essa premissa, válida até a publicação de A educação pela pedra, sem dúvida se relativiza com a publicação de Museu de tudo. Tendo em vista tais questões, parece-nos necessário demonstrar um exemplo da recepção crítica desse livro para compreender melhor determinado juízo crítico que é constantemente aplicado à poética cabralina. Em resenha publicada no Suplemento Literário Minas Gerais a 24 de abril de 1976, Danilo Lôbo sinaliza a publicação de “um novo livro, mas não um livro novo” (LÔBO, 1981, p. 154). Para o crítico, a falta de unidade formal e temática é reconhecida pelo próprio poeta em “O museu de tudo”, poema de abertura, no qual se reconhece o “não-princípio” que orientou a organização do volume. Essa suposta confissão de uma espécie de violação dos preceitos cabralinos – a ausência do “vertebrado”, da “risca” e do “risco” – comprova na análise crítica o argumento de que não há nenhuma Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 31


novidade no livro, a não ser que se considere a liberdade estrutural como uma inovação cabralina. Ao final da resenha, conclui-se: Museu de tudo deixa, infelizmente, a desejar. Depois de nove anos de espera, o leitor desejaria encontrar uma obra que levasse às ultimas consequências a pesquisa formal de A educação pela pedra. O que encontra, entretanto, é um Cabral multifacetado e um tanto difuso. A obra, embora composta em sua grande parte de poemas inéditos, tem um sabor de antologia, de uma seleta de poemas déjà vus, representativos de períodos diversos da carreira do poeta. Para os que conhecem a obra de Cabral, deixa a impressão de ter sido feita com aparas dos livros anteriores. (LÔBO, op. cit., pp. 156-157). Tal abordagem mostra a expectativa do crítico – ou da crítica – de encontrar no livro recém-lançado uma espécie de continuação de questões formais presentes em A educação pela pedra. Como não há uma “arquitetura” aos moldes do volume anterior, Museu de tudo é visto como um título menor por apresentar um poeta “multifacetado e um tanto difuso”. Mesmo admitindo que a obra seja composta em grande parte por composições inéditas, afirma-se a presença de uma “seleta de poemas déjà vus”. Essa caracterização demonstra uma perspectiva impressionista, pois o déjà-vu nada mais é do que a reação psicológica que faz com que o indivíduo acredite já ter visto alguma coisa e, por extensão, vivido alguma situação que de fato é desconhecida ou nova. Lembremos que João Cabral é um poeta de ideias-fixas. Portanto, a reincidência de alguns temas e motivos é um aspecto desenvolvido amplamente na poética cabralina e não apenas uma especificidade desse livro. Tal tendência à reiteração parece-nos já anunciada em O engenheiro, nos versos de “A lição de poesia”:

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 32


E as vinte palavras recolhidas as águas salgadas do poeta e de que se servirá o poeta em sua máquina útil. Vinte palavras sempre as mesmas de que conhece o funcionamento, a evaporação, a densidade menor que a do ar. (MELO NETO, op. cit., p. 55) Peças da “máquina útil”, as “vinte palavras” atuam como metáfora de uma linguagem orientada pela redução, na qual a criação é fabricada a partir de um vocabulário restrito. Tendo em vista que a obsessão cabralina se fundamenta no nível metafórico, consideramos que a impressão de “já visto” poderia ser guiada pela repetição voluntária de certas das imagens em diversos poemas. Segundo João Cabral, a metáfora deriva da sua visualidade e do desejo de dar a ver – o que demonstra a relação íntima entre o ímpeto visual e o exercício poético. Portanto, executa-se o incansável trabalho de desdobramento imagético a partir do qual se empregam variações da mesma metáfora ou de seus símiles para chegar a uma espécie de “verdade” da representação. Voltando à reflexão de Danilo Lôbo, observamos que outra característica identificada pelo crítico em sua resenha é o “sabor de antologia” de Museu de tudo. Este será reforçado alguns anos depois com a publicação de Poesia crítica (1982), organizado pelo próprio poeta. Na “Nota do autor”, explica-se o projeto do volume: “Este livro reúne os poemas em que o autor tomou como assunto a criação poética e a obra ou a personalidade de criadores poetas ou não” (MELO NETO, 1982. p. v). Conforme o tema, a antologia foi estruturada em duas partes: na primeira, intitulada “Linguagem”, João Cabral faz a crítica da própria atividade poética; na segunda, intitulada “Linguagens”, faz a crítica da obra Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 33


ou da personalidade de outros criadores. Esses motivos são constantes da poética de João Cabral. Assim, os oitenta poemas que compõem o volume são extraídos de Pedra do sono (1942) até A escola das facas (1980), o último livro lançado até então. Nesse percurso de quase quarenta anos, que compreende a publicação de quinze títulos, o que nos chama atenção é a notável presença de Museu de tudo. Desse modo, metade da antologia é composta por quarenta poemas publicados pelo poeta em seu museu: destes, os categorizados em “Linguagem” são poucos, cinco poemas,5 ao passo que em “Linguagens” encontram-se 35 poemas.6 Tal disparidade não significa que o diálogo com outras poéticas seja maior do que a reflexão sobre a própria criação. Como uma estratégia para evitar o discurso autocentrado, falar de outra obra ou da personalidade de diferentes criadores é um meio de falar, avessamente, de si mesmo. Destaca-se na figura retratada uma afinidade artística, isto é, as características ou particularidades as quais se aproximam ou se distanciam do projeto cabralino. Com semelhante apreensão conceitual, a afinidade entre Museu de tudo e Poesia crítica ocorre em razão de este último livro ser uma antologia, uma seleção de poemas, e o critério seletivo de um museu ser um método de antologizar certos testemunhos “O artista inconfessável”, “Catecismo de Berceo”, “Paráfrase de Reverdy”, “A lição de pintura”, “O autógrafo”. 6 “A insônia de Monsieur Teste”, “Na morte de Marques Rebelo”, “Retrato de poeta”, “El cante hondo”, “A escultura de Mary Vieira”, “A luz em Joaquim Cardozo”, “Díptico”, “No centenário de Mondrian”, “As cartas de Dylan Thomas”, “W.H. Auden”, “Ademir da Guia”, “O pernambucano Manuel Bandeira”, “A Pereira da Costa”, “Casa grande & senzala, quarenta anos”, “Ainda el cante flamenco”, “Resposta a Vinicius de Moraes”, “A Ademir Meneses”, “Joaquim do Rego Monteiro, pintor”, “A Capela Dourada do Recife”, “A Quevedo”, “Rilke nos Novos Poemas”, “Anti-char”, “A Willy Lewin morto”, “Máquinas, de Vera Mindlin”, “À Brasília de Oscar Niemeyer”, “A Escola de Ulm”, “O espelho partido”, “Escultura Dogon”, “Exposição Franz Weissmann”, “Para Selden Rodman, antologista”, “O silêncio de Racine”, “Relendo Marafa”, “Fábula de Rafael Alberti”, “Proust e seu livro”, “Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar”. 5

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 34


materiais ou imateriais. Retomando as palavras de João Cabral, a inédita experiência de empreendida em seu livro-museu foi uma maneira de “saber se era possível fazer uma poesia crítica” (ATHAYDE, op. cit., p. 116), pois ele se considerava mais crítico do que poeta. Tal objetivo já estava presente em outros momentos da obra cabralina e, assim, com a reunião dos poemas que exibem esse olhar crítico, o volume Poesia crítica se apresenta ao leitor de forma mais clara e pedagógica do que Museu de tudo. O termo “museu” nos leva, no entanto, a pensar na práxis de uma educação do olhar, na qual a percepção e a sensibilidade estão imbricadas na produção de um conhecimento poético. Os poemas que dão a ver as imagens capturadas pelo olhar de João Cabral transformam-se em objetos de museu, compondo uma exposição “de tudo”: poetas, pintores, paisagens, leituras, amizades, reflexões sobre o tempo. Assim, em Museu de tudo encontramos um espaço privilegiado em que o leitor é convidado a entrar para observar o universo cabralino.

Referências ATHAYDE, Félix de. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2013. LÔBO, Danilo. O poema e o quadro – o picturalismo na obra de João Cabral de Melo Neto. Brasília: Thesaurus, 1981. MAMEDE, Zila. Civil geometria: bibliografia crítica, analítica e anotada de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Nobel, 1987. MELO NETO, João Cabral de. Duas águas: poemas reunidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. ___________. Poesia completa e prosa. Org. Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. ___________. Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. REVISTA COLÓQUIO LETRAS. Paisagem tipográfica – homenagem a Joáo Cabral de Melo Neto (1920-1999). Lisboa: Fundaçáo Calouste Gulbenkian, jul-dez 2000, n. 157/158. SECCHIN, Antonio Carlos. Um original de João Cabral de Melo Neto. In: COLÓQUIO LETRAS. Paisagem tipográfica – homenagem a Joáo Cabral de Melo Neto (1920-1999). Lisboa: Fundaçáo Calouste Gulbenkian, jul-dez 2000, n. 157/158, p.159.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 35


Entre a recriação e a renúncia, o ato de deixar falar: breve abordagem sobre produtividade poética brasileira e polifonia a partir de Chico Alvim e Carlos Nejar Cínthia Marítz dos Santos Ferraz Machado7 Resumo: Este artigo propõe uma abordagem acerca da produtividade literária e da polifonia na poética brasileira contemporânea a partir de autores como Chico Alvim e Carlos Nejar. Pretendemos demonstrar que processos de criação configuram as obras destes poetas que têm em comum a característica do ato de deixar falar: de conferir ou imprimir vozes às suas criações num processo de ânima. Chico Alvim e Carlos Nejar manejam o discurso fora da ordenação ou da hegemonia. Inscrevem-no na expressão da pluralidade por meio de um movimento ou jogo dinâmico; do processo contínuo e não de um sistema operante e determinante. Em seus poemas estão inscritas a dramatis personae, responsável pelo trânsito entre o olhar e o deixar falar, em direção ao leitor. Palavras-chave: produtividade poética; polifonia; pluralidade; Alvim; Nejar Abstract: This article proposes an approach about the literary productivity and polyphony in contemporary brazilian poetry from authors such as Chico Alvim and Carlos Nejar. We intend to demonstrate that the processes of creation constitute the works of these poets have in common the characteristic of the act of letting speak: to check or print their creations voices in anima process. Chico Alvim and Carlos Nejar handle the speech out of order or hegemony. Inscribed on the plurality of expression by means of a moving or dynamic game; continuous process and not a functioning and determining system. In his poems are inscribed the dramatis personae, responsible for traffic between the look and let speak, toward the reader. Keywords: poetic productivity; polyphony; plurality; Alvim; Nejar

Graduada em Letras pela UFV/MG. Mestre em Letras – Literatura, Cultura e Sociedade pela Universidade Federal de Viçosa/MG. Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. 7

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 36


Desde Heidegger vivemos uma questão de enfrentamento entre o lírico e o dramático como conceitos de gêneros fechados e formais, que se tornaram operadores fundamentais do histórico e da cultura literária. A partir de então, circunstâncias históricas, políticas e filosóficas passam a problematizar e a requerer para si a determinação da concepção de eu lírico por meio de questões como subjetividade/interioridade, exterioridade, ânima e produtividade. Mediante este quadro, pretendemos explorar, neste artigo, a polifonia ou interação de vozes como uma característica determinante de um eu lírico da geração de poetas como Francisco Alvim e Carlos Nejar, bem como perscrutar o processo de criação de ambos e sua constituição de diálogos. Atualmente, os valores e os modelos culturais da chamada era planetária ou “globalização” redimensionam cada vez mais as categorias quantidade e qualidade, trazidas para este texto sob a conceituação correlata de produção e produtividade literárias. Todavia, para que possamos alargar convenientemente a distinção conceitual entre produção e produtividade, é preciso que não percamos de vista a ideia de poesia enquanto força estruturante que programa e decide a sorte do seu sistema, ou como algo que não cabe explicar como nasce; que nasce apenas e passa a existir, harmonioso. Conforme aponta Eduardo Portella (1981), o conceito de produção, qualquer que seja o seu embasamento teórico, sempre estará atrelado à significação de quantidade, dada a perspectiva material. Para o crítico literário, autor de Fundamento da investigação literária, na perspectiva da produção, “[...] todo texto só é texto à proporção e na medida de sua informação” (PORTELLA, 1981, p. 104). Aqui, produção pressupõe ou ativa o dispositivo quantidade, operação quantificadora onde há a manipulação do sistema linguístico, da informação. Já a qualidade ou produtividade transcende o nível da informação e escapa à linearidade ou ao controle de modelos fechados como o sistema linguístico, uma vez que é decidida fora do sistema, de acordo com o raciocínio de Portella (1981). Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 37


Qualidade e produtividade são relacionadas ao objeto de maneiras diversas, em diferentes tempos, dado o pensamento da época. Os clássicos literários ilustram a potencialidade da força produtiva através de suas características transculturais, que lhe permitem leituras em diversas culturas; bem como por suas características transtemporais, que lhe asseguram na permanência através dos tempos. Assim, em acordo com Portella, a linguagem reconfigura o encontro da linguagem (língua e discurso) e a realidade (natureza), ultrapassando ou transpondo o sistema. Enquanto entendemos a produção como processamento ou aproveitamento do acervo linguístico existente, na produtividade, os fatos recebem novos sentidos, seja pelas mãos do poeta, seja pelos olhos de cada apreciador em seu tempo. Dessa maneira, a noção de produtividade hoje implica nos exercícios de invenção e intervenção poéticos ou ação criadora, que revitalizam e revigoram as relações do poeta com a palavra. Mais além, concebemos essa característica ou matéria sobredeterminante da linguagem um terreno permeável à irrigação artística, onde a vida impressa no pré-texto reanima, resgata e recompõe a essência poética, consubstanciada entre a interioridade e a exterioridade, manifestada na(s) voz(es) poética(s). A ação poética que se realiza no Brasil desde os anos 1950 até a atualidade encontra, neste terreno, solo fértil para crescimento e florescimento, caracterizando um chamado Pósmodernismo bastante peculiar no que tange às tendências e dimensões do movimento. Inicialmente surgido e caracterizado nos Estados Unidos da América, o Pós-modernismo não se concretizou plenamente em todas as dimensões e esferas da produção artístico-literária brasileira. De acordo com Domício Proença Filho (1988), professor pesquisador em língua portuguesa e literatura brasileira pela Universidade Federal Fluminense, autor de Pós-modernismo e Literatura, livro em que especula a existência de um novo estilo estético, procedimentos presentes em manifestações artísticas dos Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 38


seus últimos 30 anos, similar ao que aconteceu com o Modernismo no Brasil, em relação a traços configuradores do movimento na Europa e nos Estados Unidos, a literatura feita no país parece traçar um percurso específico e até autônomo; mantendo, entretanto, alguns pontos de contato com o movimento precursor. Maria Lúcia Outeiro Fernandes (2010), em Matéria de Poesia: crítica e criação, também corrobora dessa proposição ao afirmar que as tendências ou principais traços configuradores não tiveram muito êxito em termos germinativos no solo brasileiro. Aliás, para a pesquisadora, a própria ideia do movimento no Brasil ainda é provocativa e desafiante para a compreensão da arte contemporânea, uma vez que suas tendências procuram o afastamento em relação ao Moderno, mas não informam precisamente o que foi colocado em seu lugar. É por isso que, de maneira peculiar, a arte literária deste período concretizou apenas em certa medida as orientações estéticas do movimento de origem, ao passo que gerou linhas de força e atuação distintas na produção brasileira, que, para Proença Filho, se apresentam ora completamente distanciadas dos elementos do Modernismo, ora que a eles muito devem ou ainda que os intensificam; decorre daí seu aspecto múltiplo, diferenciado e distanciado das características originais. Outeiro Fernandes concorda com tal aspecto múltiplo, mas alerta, entretanto, que colocar em contraste ou buscar rastrear indutivamente nas obras e no contexto os diálogos e procedimentos que operam deslocamentos em relação à Modernidade não seria eficaz ou satisfatório para tentar definir o movimento no país, sendo o mais adequado, adotarmos perspectivas pós-modernas. Assim, podemos pensar a Pós-modernidade como condição cultural que engloba ciclos estéticos, como o Pósmodernismo, no interior do qual floresceu e frutificou no terreno da produtividade poética brasileira diversos estilos estéticos como a dita Geração de 1945, o Movimento da Poesia Concreta, a Poesiapráxis, o Movimento do Poema-processo, o Tropicalismo, a Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 39


chamada “Poesia Marginal” e algumas outras manifestações progressoras, como despontaram também alguns percursos individualizados como o caso de Francisco Alvim, Carlos Nejar, Affonso Romano de Sant’Anna, e Marly de Oliveira, a destacar. A ramificação que caracteriza o enraizamento e o processar do Pós-modernismo brasileiro assume seu alcance plural dada a compreensão das circunstâncias de seu desenvolvimento no espaço literário do país. É nesse sentido que, de acordo com a visão de Proença Filho e Outeiro Fernandes (2010), o grande desafio do pesquisador é perceber como as perspectivas pós-modernas são trabalhadas diversificadamente e como se articulam em cada um dos seus adeptos, com temas e questões que emergem do contexto cultural e político em que se inserem. O crescente e acelerado processo de modernização, que vem ocorrendo nas últimas décadas em nosso país possui dimensionamentos próprios, característicos de uma economia dependente e de realidades sociais diferenciadas e diversificadas. De extensões continentais, o Brasil propicia tanto condições sofisticadas de desenvolvimento quanto situações extremamente subdesenvolvidas. Cumpre lembrarmos que, nas primeiras décadas ou início do movimento em questão, período compreendido entre os anos 1950 e 1980, o país vivera acontecimentos políticos e sociais muito significativos e mobilizadores, como a Ditadura Militar. Compreendemos, entretanto, que a condição geral da sociedade não determina a produção e a produtividade cultural de uma realidade. Contudo, embora não expliquem, ao menos justificam a ação criadora e a significação cultural de uma dada produção, uma vez que o quadro político em que se apresenta o horizonte brasileiro literário desde os anos 1950 oferece circunstâncias e condições de produção bastante perturbadoras. Tomando por primeira base de raciocínio, Célia Pedrosa, autora de Poesia Hoje (1999), Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea (2008) e Ensaios sobre poesia e Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 40


Contemporaneidade (2011), alguns importantes aspectos da poesia brasileira contemporânea podem ser melhor compreendidos se a tomarmos a partir de reavaliação ou funda observação do movimento modernista e do seu legado, e não somente a partir do contexto imediato ou mais próximo, contabilizando-se apenas o recorte temporal a que determinada produção está inserida. De acordo com ela, o movimento modernista foi e continua sendo o responsável pela grande sistematização de propostas estéticas e ideológicas concernentes à nossa vida cultural e forneceu parâmetros para um intenso processo de releitura que até hoje gera grandes efeitos produtivos, como a agitada produção contemporânea. Se observarmos, ainda que rapidamente, as várias manifestações posteriores ao movimento modernista, notaremos que estas que se caracterizaram pelo diálogo, pela recusa ou pela retomada de suas propostas como, por exemplo, a “poesia marginal”, o poema-processo e neoconcretismo, entre outros. Parece-nos, nesse sentido, que o movimento modernista acabou por se fazer uma bem-sucedida tentativa de “revitalização” da intelectualidade artística brasileira que, revigorada pela força do movimento e legada às produções posteriores, sintonizava com o processo de transformação político-social associado ao desempenho industrial e tecnológico que caracteriza a pósmodernidade. Estes efeitos produtivos, em sua somatória, molduraram após a década de 50, um entrechocar de atitudes em busca da essência estética a se seguir, que se caracterizavam ora díspares, variados ou múltiplos, ora mesmo antagônicos, conforme podemos observar pelo intenso desenvolver dos movimentos literários (Concretismo, Instauração-Práxis, Tropicalismo, Poema-processo). Embora de perspectivas desencontradas, buscaram um mesmo objetivo, como acredita Nelly Novaes Coelho: a reordenação da palavra poética no mundo. Mesclado a essa efervescência, prosseguia ainda, o amadurecimento de poetas vindos de gerações anteriores, “cuja Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 41


atuação fora decisiva para a configuração da poesia brasileira contemporânea”, como lembra a pesquisadora, que cita entre os mais simbólicos deste processo, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Cecília Meirelles, Murilo Mendes, Dantas Mota, Péricles Eugênio, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre outros (COELHO, 1971, p. 39). Nesse quadro cultural percebemos uma realidade nacional que ainda muito dialoga com a antecessora, seja pela recusa ou pela retomada a nova constituição, seja pelo novo sentido ou novo caráter da ação poética, já reivindicado na semana de 22 como renovação intelectual-artística. Dentre esta efervescência, surgiam ainda, algumas manifestações subterrâneas que irrigavam a fecunda realidade cultural a partir da segunda metade da década de 50, como o surgimento de revistas, colunas, sessões, ensaios e artigos jornalísticos que atuavam como instrumentos de divulgação do pensamento crítico-poético do movimento. Entendemos, pois, que há nesse período uma linha de força que sentimos marcar a nova poesia que se desenha na década de 60, mas que, contudo, não se possa definir como totalidade da produção poética do momento. Aliás, a literatura mesma nunca apresentou ou tencionou apresentar tal uniformidade artística. Cremos haver, dentre a diversidade do panorama poético brasileiro deste período uma linha definidora que marca a produção daquela geração e que sintetiza o húmus que se oferecia ao novo poeta, que passa a se revelar como alguém preocupado em exprimir as exigências do mundo concreto em que vive. Parece-nos ser esse o caminho seguido por poetas significativos da literatura de hoje, como Francisco Alvim e Carlos Nejar. Atraídos por estas sendas criadoras, abertas pelos que o precederam, o artistas absorvem as diretrizes que correspondem à sua individualidade criadora, aderindo, por um lado, “à essencialidade daqueles que voltavam para o homem em face do enigma da vida” e por outro “cerrando fileiras entre os que exigiam a pesquisa experimental” (COELHO, 1971, p. 45). Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 42


Francisco Alvim ou simplesmente Chico Alvim, como era chamado entre amigos e admiradores, é poeta e diplomata brasileiro, tendo atuado no consulado da Espanha e da Holanda. Ao longo de sua carreira poética, coroada com prêmios e reconhecimentos, como o Prêmio Jabuti em 1981, estabeleceu grandiosa parceira com Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, um amigo convicto de que a obra alviniana representava o transbordamento lírico circunscrito por elementos épicos, como a anulação do sujeito, que prescindindo no mundo, fecha-se sobre si mesmo para dar voz ao outro. Para Cacaso, a polifonia se traduz na materialidade a que o texto de Alvim se propõe, mas é, antes de tudo, a representação de uma geração ou de uma cultura. Também a Nejar não escapa o recurso de textualização da voz multifacetada, bem como a construção de um discurso que conduz a uma cena ou temática, geralmente cara à cultura brasileira. Por sua vez, Luiz Carlos Verzoni Nejar, ou Carlos Nejar é um grande poeta gaúcho, atualmente radicado no espírito santo, também prosaísta, crítico e tradutor, caracterizado igualmente por elaborada pesquisa de linguagem, expressividade e amadurecimento. Ambos, com intenção e registros distintos, pintaram magistralmente através do outro, personagens múltiplos, aos quais, mais tarde Ivan Junqueira veio a denominar como o fenômeno dramatis persoane, cujos personagens inscritos na obra “lhe dissipam [a ele, o autor] por inteiro a persona, promovendo, assim, o trânsito do autor em direção às personagens”. É nesse sentido que os autores vestem seus personagens/poemas/cenas pela própria pele ou os vestem pela palavra literária e, por meio da produtividade específica de cada um lhes sentem ou tomam as dores, os desejos e as angústias nas diversas situações. Dessa forma O corpo fora, obra de 1988, é o ato de deixar falar. No primeiro contato com o livro, o que salta aos olhos do leitor é a sucessão de poemas curtos, a coloquialidade da língua e da fala nas cenas cotidianas colhidas atentamente pelo poeta. Os poemas de Alvim abrem-se para o leitor como pequenas coleções Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 43


de falas, afirmações, e mesmo provocações, que, para além do arquivamento de memória, se querem o olhar e o ouvir atentamente a plasticidade e a peculiaridade do cotidiano. A partir desses aspectos, tomam acento as imbricações entre o lírico e o dramático na poesia de Chico Alvim. Para Staiger (1975), a essência do lírico seria a recordação, cujos fernômenos estilísticos marcam a musicialidade, a repetição, o desvio da norma gramatical e a antidiscursividade, enquanto que o gênero dramático se configura como concentração ou duvidosidade, unidade e diálogo. Todavia, em O corpo fora há a contaminação das características do dramático, que está sempre centrado para o fim, o clímax, o ápice. Este movimente é pulsante em todas as poesias e unidades de ação, tempo e lugar estão bem marcadas em toda a obra. Podemos entender, pois, que as especificidades do verso de Alvim evidenciam uma produtividade poética atenta para a necessidade do leitor e para o efeito da leitura, como uma maneira de aproximar-se das condições e das relações entre tempo, sociedade e leitor. Ou, por outra perspectiva, uma expressão poética a serviço da comunicação, entendida como uma propriedade fruitiva do poema, não compromissada com uma mensagem ou recado destinado, mas com o estabelecimento de uma conexão com o seu próprio tempo. Em O corpo fora, ou mais especificamente em poemas pertencentes ao conjunto da obra como “Fuga”, temos renunciado o olhar e pressuposto o sujeito como abnegado. Jacques Derrida, em Salvo o Nome (1985) ressalta que a linguagem da abnegação ou da renúncia não é de fato negativa, pois denuncia ao tempo em que renuncia, impondo a ordem de ir rumo a um outro. A abnegação de que fala Derrida a um nome, uma marca ou assinatura ocorre no movimento poético de retirada da imagem do próprio sujeito no poema; nesse íterim, há a denúncia da imagem na renúncia do olhar. Assim, “o corpo fora” manifesta-se no “olhar do corpo que se despede” (poema “Adeus”) e no “olhar

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 44


em fuga” (poema “Fuga”), situados entre a persona e a dramatis persoane. Portanto, o texto alviniano se configura em uma importante obra para o exame da expressão de pluralidade e da intervenção dramática no gênero lírico que se dá pela figura do eu paradoxalmante relegada à condição dramática do formato do alterego (o outro). No caso de Alvim, a escuta do outro está atenta ao falar do mundo, das proximidades, do que o outro tem a dizer. Nesse quadro do pensamento e da pesquisa literária, torna-se imperativo que se repense em qual medida o eu lírico se desdobra em Chico Alvim ou em que medida ele se teatraliza entre o “eu” e o “nós”. Pois esse movimento representa recuperar o sujeito pósmoderno como uma pernanente extensão entre o ser e o não ser, oposta à concepção iliminista que discursa a favor do pensamento hegemônico, de ordenação. Não obstante, “Os viventes” de Carlos Nejar (1979) também se propõe a um ostensivo e complexo investimento poético por prefigurar um retábulo da humanidade, onde há o registro poético das mais variadas criaturas, desde a mais importante até a mais ínfima, ou como mencionara Junqueira àquelas que, “por sua tragicidade e estrutura, mudaram a face do mundo e pertubaram a própria visão que possuíamos desse mundo” (JUNQUEIRA, 2011, p. 11). A respeito do subconjunto “A Arca da Aliança”, livro que estabelece diálogo com o texto bíblico e que compõe a obra referida acima, Ivan Junqueira infere, em tom de apreciação, sobre a postura ao mesmo tempo contemplativa e subversiva na poesia nejariana, nos remontando à questão orientadora deste texto, sobre a iniciativa e produtividade poéticas: É nesse subconjunto, que vale por um livro inteiro, que Nejar ajusta o tom definitivo desses novos “viventes”. É que sua leitura dos textos bíblicos revela não apenas uma absoluta e lúcida compreensão deles, mas também uma compreensão comovida, uma compreensão que se dá a partir do pensamento emocionado, assim como vemos nos Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 45


altos espíritos que se convertem a essa ou àquela religião. É bom que se lembre, ainda uma vez, que Nejar está falando pela boca dos outros, a dos profetas, apóstolos e das criaturas mais remotas do Velho Testamento, desde Adão e Eva, vale dizer, desde as origens do homem bíblico. E esses “viventes” revivem de forma pungente e lancinante, nos perfis que deles traça o poeta (JUNQUEIRA, 2005, p 427). As palavras de Ivan Junqueira reforçam a estatura que faz do texto nejariano igualmente instigante objeto para análise nos estudos literários, na medida em que oferece materialidade para que possamos sondar seus processos de criação e constituição de diálogo e cenas. Nesse sentido, serão exploradas, a seguir, algumas das produções de ambas as obras comentadas, representativas das dicussões propostas neste texto, como o caso de “Adeus” – irônica ou subversivamente eleita para o início destas abordagens. ADEUS Meu amor, não reparaste que toda frase clara vem de tua fala? Fala fala fala fala fala Catedral de gelo Rosa búlgara O nada cabe no nada da tua fala Olhar do corpo que se despede. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 46


Em “Adeus” temos um poema que assinala um jogo cênico entre aquilo que se vê e aquilo que se ouve; o olhar a e a fala. Apesar de o autor já ter afirmado acreditar em uma poesia sem metáforas e sem imagens, a plasticidade, neste caso, está expressa a cor e na claridade impressas no texto. A transparência dos termos se emana como a fragilidade de uma catedral de gelo ou da rosa búlgara (uma conhecida rosa branca e aveludada) como exemplos sinestésicos de um olhar rápido, que se desprende do corpo em uma pequena fração de tempo. A fala exterioriza-se e por si só passa a existir, clara dentro do próprio ato. Entendendo a metaforização como um processo de condensação e deslocamento dos sentidos, percebemos que Chico Alvim, num movimento contrário e paradoxal, imprime por meio de sua produtividade em “Adeus” a dispersão e o deslocamento, por meio do trabalho cênico com o vocabulário. Operar fora do domínio da metáfora remete-nos à noção benjaminiana do vivido. Alvim, pois, domestica a experiência do vivido por meio do deslocamento no texto. Todavia, a negativa da metáfora implica no reconhecimento da experiência e no poema “Adeus”, a voz amada inscreve-se num processo de perda do significado. O eu lírico transborda-se no deslocamento de uma cena na qual uma pessoa discursa veemente enquanto outra desprende-se do diálogo e mergulha o olhar em seus próprios pensamentos. Chico Alvim é fundamentalmente um poeta da escuta, da audição. Sua percepção do acaso ordenada pelo inconsciente. Esse auscultar/escutar significa entender que a palavra tem força/potência, que funda realidades, e que possui certa acepção mística do processo de criar. Em “Expediente” temos, mais uma vez o jogo entre o ato de ver e o de ouvir, desta vez, porém, empregado na tarefa rotineira de um cotidiano cênico:

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 47


EXPEDIENTE Há uma poça de água e os carros passam – o aflito rumor da água No chão vermelho – o outro lado da rua – a mesma obra o mesmo obreiro Um telefone arde na ante-sala Profere o interstício da fala, não fala. O olhar alviniano capta as imagens da rua: o chão úmido, a insistente poça de água, a construção e o trabalhador/obreiro. O ouvido capta o rumor, um ruído ou som quase indistinto dos carros que passam sobre a poça, espalhando-lhe a água, o toque do telefone e o interfalo entre as falas que ocorrem. O som impresso no poema pelo ruído constante, pelo toque insistente do telefone e pelo ritmo das conversas que se instauram no ambiente supera, entretanto, a imagem evocada no texto, anulando o olhar pessoal do poeta em renúncia a uma voz vinda das ruas, que expresse o cotidiano do expediente diurno de um ambiente urbano movimentado. A cena evocada no poema desnuda, entretanto, ao contrário da suavidade emanada em “Adeus” (apesar de o texto anterior apresentar um certo conflito, uma discussão, em que alguém fala enérgica e constantemente), uma experiência cansativa e irritante, que remete a um intenso expediente de trabalho através de termos como “aflito”, “vermelho” e “arde”. Temos reforçada mais uma vez a sensação de deslocamento ilustrativa da modernidade e a Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 48


contemporaneidade literárias, que se traduzem no jogo de forças que impõem uma produção cristalina, ao tempo em que uma sensação de entre lugar. Em “Fuga” podemos perceber uma interferência nítida do dramático na poesia lírica de Chico Alvim com intuito de fugir às tendências canônicas dualistas (lírico e dramático como conceitos fechados e autossuficientes), de forma intensificada no poema. FUGA Nada Nada neste teu corpo findo auréola da aurora pouso do ar retém o olhar os dedos do olhar Nada Nada segura a nuca tênue o castanho cabelo O negro mais negro da negra montanha acolhe o ombro o ombro nu não o olhar, o olhar em fuga. O poema aponta para uma figura que quase escapa, em icônica fuga. Mas o olhar oblíquo contorna o corpo findo e traça o desenho dos ombros. O poema é todo um contorno, mas não fixa o olhar. O olhar se retira, assim como a imagem suscitada no poema. Os poemas se compõem na tensão gerada entre as falas, as vozes permitidas, as imagens e os espaços permitidos. É a partir

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 49


dessas tensões e desses deslocamentos que, mesmo no poema sem metáforas, as situações se formam e os sujeitos se retiram. O eu lírico se situa, portanto, na expansão do ser, do devir, do não ser, da extensão da noção de eidós (ver/experimentar) e do mythos (movimento de fora) e que resulta numa identidade cultural, manifestada na produtividade peculiar do artista. Entendemos, a partir de exemplos como esses que o Pósmodernismo verdadeiramente se caracteriza por essa tensão entre mythos e eidós. Como podemos depreender Chico Alvim promove a anulação do sujeito lírico por meio das vozes que confere ao poema. Esse exercício é o que confere a força motriz de sua produção literária; a materialidade do seu texto. É o autor quem escolhe dar vozes, mas ele tem consciência de que a potência de sua polifonia individualizada dá força à representação de toda uma geração. A poesia, diferentemente da prosa, prima pelo som antes da semântica. Se partirmos da noção de Hugo Friedrich, em A Estrutura da Lírica Moderna (1985), a respeito da obscuridade frequentemente associada à poesia como fenômeno intrínseco, como ato de cavar para descobrir um sentido oculto, perceberemos que Alvim e Nejar escrevem poemas clarividentes, em que se é possível apreender o que está posto sem maiores empreendimentos. Chico Alvim, especificamente, maneja o discurso fora de ordenação ou hegemonia; inscrevendo-o na expressão da pluralidade por meio de um movimento ou jogo dinâmico; do processo contínuo e não de sistema operante e determinante. Em seus poemas estão inscritas a dramatis personae, responsável pelo trânsito entre o olhar e o deixar falar, em direção ao leitor. Considerando-se sua natureza de fundo intertextual religioso, algumas poemas-persona de Nejar também se destacam nesse horizonte. Em Nejar, a ação literária ou o caráter que a ação poética assume, na contemporaneidade, a compreensão ampla na existência humana, da condição humana, combinadas a partir de Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 50


uma dialética tensa de produtividade tal qual a alviniana: desta vez, porém, situada entre a imagem do homem (desempenho imediato, consciência poética) e a figura do ser. Os perfis escolhidos e retratados pelo poeta gaúcho figuram no nosso imaginário cultural ocidental mesmo que não sejamos leitores do texto bíblico, dada a sua amplitude mítica, o que nos parece ser suficiente para que se eles mantenham transtemporal e transculturalmente. É nesta perspectiva que o estudo da dimensão épica da palavra lírica contemporânea em Carlos Nejar, pela lente da paródia também se alça como ilustrativo das tendências pós-modernas. A progressão do verso nejariano, para além da afirmação de sua essencialidade poética, corre em busca da compreensão da existência da poeticidade, estreitada à ação social do poeta. É por este método que, com uma linguagem transverberada o poeta dará corpo, voz, vestes e discernimento a Eva e Adão, nos dois primeiros poemas que abrem o segundo conjunto A Arca Aliança, de Os Viventes, “Eva” e “Adão Depois da Queda”. Debruçando-se incialmente sobre Eva, “a mãe de todos os viventes” como corresponde o texto do Gn 3:20, Carlos Nejar adentra-lhe pela pele e submerge-lhe pela consciência. “Eva”, lançada à consciência da sua nudez, e inicialmente revestida pela culpa, será agora coberta pela palavra nejariana ao conduzí-la à redenção, subvertendo, assim, a leitura do texto sagrado que lhe impõe, patriarcalmente pela condição de mulher que é, o subjulgo da “culpa original”, sobre a qual carrega nos ombros a dor da humanidade, sem que lhe seja oportunizado considerar sua ingênua ignorância: A culpa toda me reveste e eu nua. Ouvi o que a serpente Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 51


sussurrava e caí. Com Adão. (...) O que pode a dor, se num traço nos julga? Revestindo-se da perspectiva do outro, o poeta busca resgatar seu poema-persona da sua condenação original, tomandolhe as dores, e o conduz pelo viés da superação. Este caminho criado por Nejar dialoga, antecipadamente, com a redenção de Maria, que, embora se enquadre no mesmo gênero da mulher paradisíaca, não carrega sobre os ombros tão pesado fardo. Desnaturalizando a entranhada leitura do texto sagrado, Nejar questiona a tradicional concepção bíblica de mulher influenciável, corrupta e fraca. Assim, a leitura paródica da palavra revelada contesta por uma comovida poeticidade o demasiado peso atribuído a Eva, fazendo reviver de forma pungente um novo “vivente”: Porém, uma mulher, como eu, pela semente, vem, e com a planta do pé que floresceu, esmagará a serpente. E sob as folhas da figueira tapamos a nudez e continuamos nus, continuaríamos se Deus não nos cobrisse de outra pele viva, do único capaz de abrir o selo: a pele do cordeiro. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 52


Ora, como vimos, a paródia pode contestar leituras e concepções tradicionalmente arraigadas pelo tempo via método do contraste. A arte pós-moderna intenciona justamente minar, “de-historicamente” as convenções e os pressupostos que parecem desafiar a constituição subjetivo-literária. A leitura de “Adão Depois da Queda” nos impulsiona a avançar na compreensão da postura de Nejar. Adão, também vestido pela palavra nejariana – e eis aqui outra não-fortuita engenhosidade, visto que o poeta se coloca subversivamente tanto na posição do outro quanto na de “criador” (empregado por nós de maneira intencionalmente dúbia) – não se condiz influenciado ou influenciável: “O conhecimento do mal eu quis”. Recuperemos, pois, para que a correspondência seja melhor visualizada, a parte em que o texto sagrado, previsto em Gn3:12-13, na qual Adão transfere à companheira o seu pecado, impregnando-lhe a corruptibilidade: “Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi. E disse o Senhor Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: a serpente me enganou e eu comi”. Travestindo-lhe a pele e habitando-lhe a alma, o poeta toma-lhe a voz pela palavra e reconstrói obtemperadamente a passagem anterior. A voz do poeta ecoa por este vaso de barro, fazendo com que o poema-persona reclame a dialógica angústia que nele habita: entre o homem e o poeta, mas também entre o poeta e seu poema: Em Deus aguardo. Pelos séculos, aguardo, com meu odre quebrado. Observemos que o termo “quebrado” sustenta a materialização tanto do recipiente quanto a da construção analógica, comparativa. A voz nejariana, a partir da prespectiva do outro, retine uma aflição precípua ao pensamento contemporâneo do poeta da “condição humana”, que está a reelaborar e reinventar, por uma sagaz equação dos contrastes, o Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 53


texto bíblico na busca de compreender a obscura mensagem e propósito de Deus. Há, aqui, a contestação da visão tradicional do homem submetido a Deus, não pelo amor, mas pela necessidade e pelo medo, que se mescla ou se justapõe à do homem que, ainda confusamente, começa a ter uma nova percepção de seu ser relativo, como parte integrante do absoluto. É por meio dessas considerações, que concebemos o processo criador em “A Arca da Aliança” revelador de uma consubstanciada perspectiva épica na poesia contemporânea aliada à perspectiva paradoxalmente legitimadora da paródia, que nestes textos se compraz na re-apresentação dos perfispersonaes via subversão textual. Partindo de uma visão extremamente subjetiva, epidérmica, contestadora do mundo mítico bíblico, e, alimentado pelo espírito crítico-revisionista da nova geração, Nejar não naufraga num misticismo religioso, como é frequentemente enquadrado o poeta Jorge de Lima, mas sim, se deleita em um despojado construtivismo poético. É antes o equilíbrio resultante de sua nova fórmula, entre extremos, que se faz marca definidora. O verso nejariano é, assim como o alviniano, tenso (dramático), e sua linguagem é clara e visivelmente distanciada, isto é, que se dispõe a evocar uma nova concepção subjetiva por sobre a tradição. Privilegiando o metro curto, podemos julgar que Nejar e alvim tangenciavam assim a sintaxe cabralina. Como afirma Ivan Junqueira, “não houve poeta neste país, de 1960 pra cá, que não pagasse tributo ao estilo das facas do autor pernambucano, tanto assim que são hoje incontáveis os seus epígonos” (2011, p. 12). Todavia, o verso curto e límpido de Carlos Nejar, diferentemente do de Francisco Alvim é fruto de um artesanal engenho que usa intensivamente a imagística, recurso através do qual ele sintetiza a mensagem e evita o discursivo. Concluindo, podemos apontar que os autores fixam o próprio projeto por empreendimentos distintos, embora mantenham um traço comum e importante: o desdobramento do Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 54


sujeito literário em vozes multifacetadas, em vozes do outro. Em ambos há também o derramamento do dramático sobre o lírico num instigante pulsar de criatividade da contemporaneidade poética. A polifonia ou interação de vozes parece ser, portanto, uma característica determinante do eu lírico da geração de poetas como Francisco Alvim e Carlos Nejar que, com exímia e transverberada linguagem, emprestam a voz e olhar aos seus personagens, (re)criando-os dentro de um verdadeiro processo de anima. Alvim por renúncia, retirada do corpo para deixar falar a voz apenas, e Nejar por reinscrever, na atualidade, conhecidos personagens bíblicos em novos perfis poéticos. Assim sendo, reconhecemos que o tom definitivo sobre o qual Chico Alvim e Carlos Nejar ajustam seus poemas-persona revela uma compreensão maior da ação poética hoje, somente permitida através da renúncia do sujeito, em trânsito para o leitor ou da reinvenção pelo intertexto, da distinção entre a imagem do homem (sua constituição imediata) e a figuração do ser, representada. Este tom ou este reacender de luzes na contemporaneidade é o que nos parece assegurar a potência criadora dos artistas abordados neste texto e mesmo a permanência da literatura por todos os tempos.

Referências A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. ALVIM, Francisco. Poemas [1968-2000]. São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac & Naify/7Letras, 2004. BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, 2 ed. COELHO, Novaes Nelly. Carlos Nejar e a “Geração de 60”. São Paulo: Saraiva, 1971. ______ . O gesto épico da poesia. In: O Estado de São Paulo. São Paulo: 8.9.1970. ______ . A épica do instante. São Paulo: Saraiva, 1971. DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 55


EAGLETON, Terry. O que é Literatura. IN: _____. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 1 – 22. FERNANDES. Maria Lúcia Outeiro (Org.). Modernidade lírica: construção e legado. Araraquara; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008, p. 127-165. ______ . (Org.); PIRES, ANTONIO DONIZETI (Org.). Matéria de poesia: crítica e criação. São Paulo; Araraquara: Acadêmica; Laboratório Editorial FCL-UNESP, 2010. 282p FILHO, Domício Proença. Pós-modernismo e Literatura. São Paulo: Editora Ática, 1988. FRIEDRICH, Hugo. A Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1985. HEIDEGGER, Martin. Arte y Poesía. Trad. Samuel Ramos. México: Fondo de Cultura Económica, 1973. HUTCHEON, Linda. The politics of Postmodernism. New York: New Accents, 1990. ______ .Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. JUNQUEIRA, Ivan. Ensaios escolhidos de poesia e poetas. São Paulo: Editora Grirafa, 2005, pgs. 423- 430. MELO NETO, João Cabral de. Poesia e Composição. Lisboa, Portugal: Revista Critério, n 2, 1975. MERQUIOR, José Guilherme. Musa morena moça: notas sobre a nova poesia brasileira. IN: Revista Tempo Brasileiro, n° 42-43, 1975, p. 7-19. NEJAR, Carlos. A Chama é um Fogo Úmido: reflexões sobre a poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Academia de Letras. 1994. ______. Os Viventes. São Paulo: Editora Leya, 2000. PEDROSA, Célia. Poesia: Viagem e Antiviagem. IN: ______ Ensaios sobre poesia e Contemporaneidade. Niterói: Editora da UFF, 2011, págs. 55-75. ______. Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. PORTELLA, Eduardo. A ressurreição da palavra segundo Carlos Nejar. IN: Revista Tempo Brasileiro, n° 42-43, 1975, p. 32-36. ______. Produção e produtividade poética. IN: Fundamento da investigação literária. Fortaleza/Rio de Janeiro: Edições UFC, 1981, 3 ed. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da Poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 56


A poesia pau-brasil: desconstruindo o Brasil de José de Alencar em Iracema Ingrid da Silva Marinho8 Telma Borges9 Resumo: Este artigo analisa a Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade, como sendo uma reescrita da genealogia da identidade brasileira, no sentido de desconstruir a ideia de Brasil no romance Iracema, de José de Alencar, o qual trata do índio como um elemento mítico e exclui a presença do negro. Nesse sentido, essa reflexão fará uma breve análise de ambas as obras, partindo da tentativa de compreender a representação identitária nacional, tangenciando o conceito de carnavalização, elemento presente em Pau Brasil e de suma importância para reforçar a ideia de desconstrução do Brasil escrito por Alencar. Palavras-chave: Poesia Pau Brasil; Iracema; Desconstrução; Carnavalização. Abstract: The article analyzes the Pau Brasil Poetry of Oswald de Andrade as a rewrite of the genealogy of Brazilian identity, in order to deconstruct the idea of Brazil in the novel Iracema, by José de Alencar, which deals with the Indian as a mythical element and exclude the presence of black slaves. In this sense, this reflection will make a brief analysis of both works, based on the attempt to understand the national identity representation, tangential to the concept of carnivalization, this element in the work Pau Brasil and of great importance to strengthen the deconstruction of the idea of Brazil written by Alencar. Keywords: Poesia Pau Brasil; Iracema; Deconstruction; Carnivalization.

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros. Bolsista CAPES. Montes Claros- MGBrasil. 8

Doutora em Literatura pela UFMG e Professora do Programa de PósGraduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Montes Claros. Montes Claros- MG- Brasil. 9

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 57


Vida selvagem e identidade. Partindo desses dois princípios, José de Alencar tentou representar um país nascente, através da construção da história de um Brasil mítico, produzindo uma literatura, a qual teve como desafio representar o país, embora tenha utilizado a figura indígena, deformada pela imaginação e transformando-a em um cavaleiro medieval. Isso se explica pelo fato do romantismo brasileiro, apesar de produzir uma literatura que se adequou ao presente e aos temas locais, ter seguido o caminho das literaturas europeias. Embora houvesse a tentativa de manter uma visão positiva do país, os românticos se engajaram no projeto de uma literatura equivalente à europeia e não a si mesma, pois o Brasil não era culturalmente autônomo. O desejo dos românticos de fazer com que a literatura cumprisse com seu papel patriótico, não foi o suficiente para impedir que a tradição indígena fosse desvinculada da tradição portuguesa, embora o romantismo brasileiro tenha sido o primeiro movimento fundamentado por uma ideia patriótica. Sendo assim, José de Alencar, ao seu modo e coerente com o modelo da época, soube celebrar a pátria e o que havia de mais singular dentro dela, através, por exemplo, da figura do índio, embora a presença do negro estivesse ausente na sua literatura. A despeito disso, o nacionalismo exótico de Alencar construiu o modelo de identidade brasileira do século XIX, conforme nos diz Helena: Tematizar a articulação da vida selvagem, a individualidade pretérita e, a partir dela, representar o Brasil, como eu social, foi o desafio que José de Alencar tomou a seu cargo. Suas obras, que por vezes surpreenderam pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a “memória” do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem, na construção da história da pátria. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no século XIX. (HELENA, 2006, p. 91). Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 58


Mas então José de Alencar cumpriu com o seu papel patriótico na literatura? Se considerarmos a ideia patriótica como uma das fundadoras do Romantismo brasileiro, sim. Se entendermos que o Romantismo apenas atendeu culturalmente à classe burguesa da época, não. No entanto, não se pode esquecer as versões verossímeis do século, a formação cultural e social dos leitores, os preconceitos, os quais, segundo Lúcia Helena (2006), impediram Alencar de escrever a história da nação. Para a estudiosa, “Alencar tem por escrever a história de uma nação. Dar-lhe forma e origem. Atribuir-lhe valores. Há que considerar seus preceitos e preconceitos. E formular versões verossímeis ao século e aos leitores. São muitos os percalços.” (HELENA, 2006, p. 92). Ainda segundo a estudiosa, a independência do Brasil não libertou o país das heranças coloniais e, por esse motivo, se impôs a tarefa de se produzir romances para uma burguesia que, quando culta e letrada, apreciava o modelo de romance europeu. Talvez a narrativa de Alencar tenha atendido aos gritos de um país, ainda nascente, no século XIX; ainda assim, não sustentou totalmente a proposta da língua nacional, uma vez que no primeiro encontro entre Iracema e Martim há completo entendimento da língua do indígena por parte de Martim. No plano da escrita, a língua do índio é como a do europeu. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: - Quebras comigo a flecha da paz? - Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? - Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram e hoje têm os meus. (ALENCAR,?, p. 05-06). Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 59


Eis o questionamento: como pode então uma índia que nunca chegou à civilização entender e se fazer entender diante do homem branco? Na citação acima, é Martim quem fala a língua indígena. Com isso, não podemos esquecer que a estratégia os Jesuítas, de aprender a língua e cultura do outro, foi traçada para depois dominá-lo. Padre Anchieta escreveu a primeira gramática do tupi-guarani com essa finalidade. Mas essa é uma das lacunas que Alencar não conseguiu preencher, embora tenha enxertado termos da língua indígena na narrativa, fazendo, também, uso da língua nacional; “assumindo a existência de uma língua comum” (HELENA, 2006, p. 25), o autor não conseguiu dar originalidade à língua indígena. De acordo com Nelson Werneck Sodré, “[o] romantismo brasileiro empreende um enorme esforço, que se define especialmente com a obra de José de Alencar, para definir uma autonomia linguística que não estava em condições de caracterizar.” (SODRÉ, 1988, p. 207). A lenda de José de Alencar conta a história de uma índia da tribo Tabajara, que se apaixona pelo português Martim, aliado da tribo Potiguara, inimiga da tribo da heroína. Por amor, ela trai o segredo da jurema e luta contra seu próprio povo para permanecer ao lado do amado. O romance entre a índia (a natureza virgem, o Brasil antes da colonização) e o português (colonizador, cultura e exploração europeias) é entendido como uma alegoria do início da mestiçagem nacional. Assim, o nascimento de Moacir, fruto do amor do casal, representa então o surgimento da nação brasileira, a raiz da mestiçagem. Interessante perceber que, por mais que Alencar tenha tido, de fato, a intensão de tratar da mestiçagem nacional, a figura do negro não aparece no romance. Daí, não se pode esquecer que Alencar era escravocrata, pertencente à burguesia, classe que considerava os negros parte inferior da escala social; representavam a última camada, marginais, incapazes de representar a nação, por isso não poderiam ser os heróis. Para Sodré, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 60


a valorização do negro, realmente – convém repetir – nunca chegou a merecer a atenção literária, entre nós e com muito mais forte razão não poderia impressionar a um homem dos meados do século XIX, que faleceu antes que o movimento abolicionista tomasse corpo, como Alencar, o maior dos indianistas, aquele que colocou termos de prosa literária, largamente difundida, a valorização do indígena. (SODRÉ, 1988, p. 278). Sendo assim, valorizar o índio e idealizá-lo através da criação de uma figura romântica e heroica tornou-se a melhor saída para reforçar a ideia do bom selvagem divulgada por Rousseau. Não foi por acaso que Alencar criou o personagem Poti, o índio bom, amigo de Martim, capaz de salvar o português; mais do que isso, Poti tem sua identidade esmagada e passa ser semelhante ao europeu, por isso digno de ser chamado de irmão. Tem-se aí a imagem clara do etnocentrismo europeu. Assim como Poti, Iracema também se torna vítima do etnocentrismo, a partir do momento que assume a condição de serva: “A virgem pendeu a fronte; velando-se com as longas tranças negras que se espargiam pelo colo, cruzando ao grêmio os lindos braços, recolheu em seu pudor. [...] Iracema tudo sofre por seu guerreiro e senhor.” (ALENCAR, p. 45-51). Numa visão romântica, Iracema torna-se submissa em nome do amor que sente por Martim. Mas isso é apenas uma maneira de velar o enaltecimento que Alencar faz à imagem do outro, o europeu. Parafraseando Alfredo Bosi, Zildete Souza (2015) afirma que se esperava de Alencar uma postura de rebeldia, em Poti e Iracema, diante do europeu; porém o que se tem é a “íntima comunhão com o colonizador” (BOSI apud SOUZA, 2015, p. 65). Souza destaca ainda a euforia da independência política pela qual Alencar deixou-se assumir uma postura conservadora, pacífica e harmoniosa diante da colonização. Mesmo se considerarmos que Alencar tenha tentado reconstruir o processo de construção da nacionalidade brasileira, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 61


ele se sustentou no alicerce do modelo romântico europeu, o qual valorizava o “homem natural” e a própria natureza, assim construindo personagens idealizados, entre eles o índio – escolhido para ser o símbolo da origem do povo brasileiro. Ao contrário daquilo que o indianismo romântico propôs, o neo-indianismo dos modernos de 1922, segundo Cândido, “iria acentuar aspectos autênticos da vida do índio, encarando-o, não como o gentil-homem embrionário, mas como o primitivo [...]” (CANDIDO, 1975, p. 20), um modelo de índio contrário à cultura europeia. Diferente dos românticos que, para consolidar o caráter nacional da literatura, heroicizou o índio, o projeto modernista dessacralizou a identidade nacional, caracterizando a antropofagia, cujo sentido metafórico constitui-se em dois processos: devorar e digerir, ou seja, assimilar ou rejeitar o que seria útil para uma nova literatura. Sendo o oposto daquilo que José de Alencar fez, o projeto antropofágico de Oswald de Andrade, revelado no “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, exalta a raça, o popular, o carnaval, o “acontecimento religioso da raça.” (ANDRADE, 1972, p. 203). Qual seria então a hipótese Brasil de Oswald de Andrade? Se Mário de Andrade compôs um herói às avessas na figura de Macunaíma, Oswald de Andrade construiu um Brasil ao revés daquilo que Alencar escreveu, utilizando o povo brasileiro como personagem principal na Poesia Pau Brasil, tirando do índio o papel mítico e desconstruindo, em versos, a ideia de Brasil que Alencar produziu no século XIX. Oswald reescreve poeticamente uma provável genealogia da identidade brasileira. É possível então afirmar que a hipótese Brasil de Oswald é consoante à afirmação de Lúcia Helena, ao tratar do modernismo como sendo um momento de contemplação da identidade individual e nacional: Se o modernismo contempla a identidade individual e nacional como resíduos em permanente hibridismo, ao revisitar a mata virgem das nossas memórias, faz (modernismo) alusão a um outro momento decisivo na Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 62


postulação hipótese Brasil e de sua constituição como entidade e identidade. (HELENA, 2006, p. 90). Entende-se o modernismo brasileiro como uma fase, na qual a literatura contribuiu para diversas áreas da vida intelectual; um movimento literário com um vasto trabalho de pesquisa folclórica, a liberdade na escrita e o “abre-alas” para as futuras gerações literárias, as quais também viriam buscar as manifestações populares de forma verdadeira e não mitificada, como visto anteriormente na literatura nacional, citando como exemplo o romance Iracema, de José de Alencar. Buscou-se, então, reforçar a identidade brasileira, melhor dizendo, redescobrir o Brasil e sua identidade, esta reconhecida como mistura. Tem-se, portanto, uma cultura dominante brasileira e uma cultura popular. Segundo os modernistas, somente a arte que integrasse essas duas culturas poderia, de fato, representar o verdadeiro Brasil e ratificar a miscigenação étnica do povo brasileiro, integrando e unificando popular e erudito, tendo como resultado a cultura brasileira e a reformulação da arte estética. A poesia Pau Brasil, citada nove vezes no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, caracterizada como “ágil e cândida [...] de exportação” (ANDRADE, 1972, p. 204), vem representar o modernismo e ironizar o tradicionalismo. Trocando em miúdos, a poesia Pau Brasil, além de criticar a erudição, incorpora elementos populares, até então não tratados na poesia, incluindo aí o negro. O discurso antropofágico de Oswald de Andrade age dentro de um corpo carnavalizante, que desconstrói o que está velado no outro, que o poder da história e do colonizador reprimiu. Nesse sentido, a carnavalização torna-se um processo de desentronamento do discurso oficial na poesia Pau Brasil, presente na proposta estética do poeta. Em linhas gerais, a concepção de carnavalização trata da ambivalência e da ambiguidade, em que o duplo causa um efeito subversivo da inversão para a reconstrução do presente. Oswald de Andrade se apropriou desse recurso na poesia Pau Brasil para recontar a história do país; utilizou o método da Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 63


re-descoberta, da ironia, da paródia para retomar a antropofagia como prática cultural, devorando a história “mal contada”. Uma história recalcada, sob uma produção compensatória de invenção do índio como belo, civil, cavalheiresco e heróico. (CUNHA, 1995, p. 52). A antropofagia poética oswaldiana construiu um olhar enviesado sobre aquilo que estava ocultado na história do Brasil, através de uma cosmovisão, a qual não se limitou em repetir aquilo que já havia sido dito. O poeta dedicou-se em descobrir o Brasil e, entre as grandes descobertas, está a antropofagia “como possibilidade de reinserção do índio na história e na cultura brasileira.” (CUNHA, 1995, p. 53). O autor da Poesia Pau Brasil foi até o índio, aquele camuflado pela história e, quem sabe até então, esquecido. Poesia Pau Brasil, publicado em 1925, é a realização daquilo que foi apresentado no Manifesto da Poesia Pau Brasil; composto por nove seções; não por acaso, Oswald escolheu como título de uma nova poesia o nome do produto que fora demasiadamente explorado pelos colonizadores. Desde o título, a obra do poeta antropófago apresenta um traço carnavalizante. O Pau Brasil que antes explorado, agora é matéria de poesia. Segundo Gardiner (2000), para Bakhtin o carnaval exerce um papel crítico nas sociedades modernas e, entre as manifestações populares, a festa dos tolos se contrapunha à cultura medieval oficial e eclesiástica. Nesse ritual festivo, havia um falso bispo, dança, missa encenada por clérigos vestidos de mulher, recitais obscenos. Assim, a igreja era ridicularizada e questionada. Não é por acaso que Pau Brasil inicia com o poema intitulado “Escapulário”, onde é subvertida a ordem litúrgica para exaltar “a poesia de cada dia”. Seguindo uma vertente de análise, a partir do modelo épico, Silva (1995) reconhece a natureza épica da poesia Pau Brasil, apresentando características próprias do modelo épico moderno presente na obra, a qual está dividida em dez partes, sendo cada uma com títulos próprios, não numerados, com o total de 140 poemas. Mesmo explicitamente, os elementos de uma Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 64


épica, como invocação, proposição, dedicatória e divisão de cantos, o texto infere essa estrutura. (SOUZA, 1995, p. 194) Segundo a análise do estudioso, o poema “Escapulário” pode ser entendido como uma invocação; o poema “Falação”, como uma proposição. Partindo do princípio de uma estrutura épica carnavalizante, Oswald apresenta uma ruptura implícita, por meio da ausência de métrica, rima, estrofe, seguindo uma nova concepção de manifestação do discurso épico, definida pelos modernistas. Ainda de acordo com os estudos de Silva, “a base inicial de formação de matéria épica é um fato histórico” (1995, p.189). Baseado nessa afirmativa, Silva afirma que “o processamento literário de fusão da estrutura mítica de representação com a história da colonização do Brasil legitima a matéria épica do Paubrasil.” (SILVA, 1995, p. 194). Sendo assim, o bloco 2, intitulado “História do Brasil”, traz a representação da viagem do colonizador; o bloco 3, “Poemas de colonização”, dá início à representação histórica, mantendo a narrativa em 3ª pessoa; e no bloco 4, “São Martinho”, o narrador aparece em 1ª pessoa, constituindo um novo “Eu”. (SOUZA, 1995, p. 194) Partindo desses princípios, é fácil perceber a ideia de carnavalização em Poesia Pau Brasil, não só com o intuito de desconstruir o discurso oficial, mas também para redistribuir os papéis na história oficial e, aparentemente, indissolúvel. Dando início a outro viés de análise geral da obra, o poema “Falação” traz trechos do manifesto: “A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança”10. Os poemas que seguem agrupados em “História do Brasil” satirizam o processo de colonização brasileira, sob um novo contexto e uma nova forma de composição. No poema “Os selvagens”, Oswald faz referência à Carta de Caminha: “E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas”11; mostra um Brasil acolhedor: “terra [...] que todos agasalha e convida”12; exalta a ANDRADE, 1972, p. 203. ANDRADE, 1972, p. 26. 12 Idem. 10 11

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 65


natureza; ironiza a catequização do índio: “do gentil amigo que os padres da Companhia doutrinam”13; ironiza também, através dos poemas em francês, aquilo considerado culto, mas que, na verdade, já está ultrapassado. A poesia de Oswald constrói “teado”, uma metáfora da construção da língua nacional falada, a qual ele deseja elevar à condição de língua literária. No segundo bloco de poemas, intitulado “Poemas de Colonização”, percebe-se a referência ao processo de colonização para criticar a exploração do negro. Oswald vale-se dos elementos populares, incorporando mitos e lendas do Brasil relacionados à cultura negra. Utiliza uma linguagem simples e assim aproxima a poesia da fala, daí tomando como exemplo o poema “Scena”, no qual o termo “coa” representa “com a”. Nesse sentido, é possível perceber a evidente valorização de variações linguísticas do português falado: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica.” (ANDRADE, 1972, p. 204), que vai de encontro à erudição da língua. O folclore, fatos históricos, étnicos e econômicos, a culinária e a língua compõem o grupo de matéria prima para a poesia Pau Brasil: “A poesia existe nos fatos. Os cesebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela.” (ANDRADE, 1972, p. 203). O bloco de poemas “São Martinho” inicia com a sutileza do luar, no poema “Noturno”: “Lá fora o luar continua”14 e, em seguida, mostra o Brasil dividido entre o campo e a cidade: “e o trem divide o Brasil”15; o progresso do centro urbano de São Paulo, com um olhar atento à expansão do café. Os poemas desse bloco atentam, principalmente, para as mudanças ocorridas em decorrência do surgimento dos centros urbanos, das estradas de ferro, chamando atenção para o contexto histórico do século XIX, assim enfatizando o nascer de uma nova história: “uma estrada de ANDRADE, 1925, p. 31. ANDRADE, 1925, p.45; 15 Idem; 13 14

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 66


ferro nascendo do solo”16 e o trabalho dos operários, aqueles que “Forjam as primeiras lascas de aço”17. Ainda nesse bloco, dois tons se misturam. O luar e o trem. O som dos pássaros e das usinas. A musicalidade dos versos em redondilha aparece como traço marcante no poema “O violeiro”, através das palavras singulá e vortas, as quais remetem ou mesmo lembram, aproximam-se das modas de viola e, ao mesmo tempo, nos revelam a língua falada pelo brasileiro comum. Em outros poemas, como “O grammatico” e “O capoeira”, a língua cotidiana é elevada à condição de língua literária; os telhados constroem casas, mas em Oswald de Andrade eles constroem a língua dos negros que “comiam feijão e angú /Abobora chicorea e cambuquira” (ANDRADE, 1925, p. 40). O bloco intitulado “Carnaval” é composto por dois poemas; curiosamente o primeiro deles com o título “Nossa Senhora dos Cordões”. Um título que mescla sagrado – através da referência à virgem Nossa Senhora – e profano, com inferência ao carnaval, através da palavra Cordoes, que faz lembrar os blocos de rua, os cordões carnavalescos. Isso também evidencia o popular, uma vez que o carnaval aproxima as camadas sociais num mesmo intuito de diversão. No corpo do poema, tem-se a clara imagem do sagrado – Mãe, Auxiliadora – juntamente com a exaltação da festa de um mundo alegre e invertido, o carnaval – “o brilhante cortejo / Do Riso e da Loucura” (ANDRADE, 1925, p. 63). Se partirmos desse princípio, é fácil pensar no processo de carnavalização dentro da hipótese Brasil do poeta. Na visão de Stam (1992), o princípio carnavalesco revoga as hierarquias, iguala as classes sociais e cria outra vida, livre das regras, restrições ou repressões. Durante o carnaval, tudo o que é marginalizado e excluído, como o insano e o escandaloso, tornase libertador e igualitário, evidenciando que as distinções hierárquicas, normas e proibições são, temporariamente, 16 17

ANDRADE, 1925, p. 50; Idem.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 67


suspensas. O carnaval tem o poder de testar e contestar todos os aspectos da sociedade, por meio do riso festivo; assim, aqueles que são questionáveis podem ser preparados para a mudança e, aqueles que são considerados legítimos podem ser reforçados. Oswald não se fez valer da classe burguesa nem a quis agradar, mas exaltou os rejeitados, os marginalizados, aqueles que, de fato, construíram a história da nação brasileira e que, por muito tempo, foram excluídos, esquecidos. A seção “Secretário dos Amantes” poetiza o saudosismo, sendo o poema mais lírico da obra e, além disso, apresenta uma composição com estilo fragmentado. No bloco “Postes da Light”, Oswald faz alusão ao futebol: “a Europa curvou-se ante o Brasil” (ANDRADE, 1925, p. 76); retrata elementos da cultura brasileira: o café, a pinga, a palha; resgata elementos do interior mineiro, a paisagem e a história; o folclore através do bumba-meu-boi; um Brasil colonial e moderno, popular e erudito, assumindo uma posição irônica. Oswald de Andrade faz um poético “convite” através do bloco de poemas intitulado “Roteiro das Minas”, chamando atenção para o interior do Brasil, suas riquezas cultural e histórica; uma viagem de trem a São João del Rey revela “O corrego que ainda tem ouro”18; uma visita a casa de Tiradentes – “a história morta / Sem sentido”19. A viagem por Minas articula-se com a proposta de revalorização e redescoberta da história nacional. Seguindo a viagem poética por Lagoa Santa, Sabará, Ouro Preto chega-se ao “Loyde Brasileiro”. Segundo Santini, “[...] os poemas desta seção mostram toda a aversão em relação ao nacionalismo artificial de idealizações passadas.” (SANTINI, 2008, p.113). Esse último bloco, reunindo oito poemas, inicia com o “Canto do regresso a Patria”, uma sátira à “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Percebe-se nitidamente à crítica ao ufanismo romântico: “Minha terra tem palmares / Onde gorgeia o mar”20. ANDRADE, 1925, p. 87; ANDRADE, 1925, p. 92; 20 ANDRADE, 1925, p. 103. 18 19

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 68


Oswald utiliza-se do mesmo ritmo do poema de Gonçalves Dias, através dos advérbios aqui / lá: “Os passarinhos aqui / Não cantam como os de lá”21, mantendo, assim, o tom satírico. O poema de Oswald é o claro encontro entre o passado – a terra de palmeiras – e o presente – o progresso de São Paulo. A partir daí, é fácil perceber a máscara com que o poeta camufla e valoriza a dualidade cômico-irônico, com a capacidade de desestabilizar identidades fixas, suspendendo a regra comum. Além disso, faz referência ao Zumbi dos Palmares; referência à resistência à escravidão e sua resistência, de que é ícone a história da Serra da Barriga, em Alagoas, onde surgiu o primeiro Quilombo. Sustentando esse tom crítico/satírico, Oswald faz um percurso histórico/geográfico e brilhantemente poético, composto por poemas que vão negar o nacionalismo idealizado no passado. Através da poesia, Oswald encontrou um novo caminho para (re)descobrir o Brasil, desenhando seus contornos através de uma nova leitura do passado colonial e as heranças deixadas por ele, relembrando “a defesa da Patria contra os hollandezes”, o “Forte de São Marcello”, a “Cathedral da Bahia”, num percurso que termina de modo ironicamente saudosista, não de sua pátria, mas de Paris: “Mas se esqueceram de ver / Que eu trazia no coração / Uma saudade feliz / De Paris.” (ANDRADE, 1925, p.112). Retomemos à dedicatória do livro: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”, é possível pensar em dois significados, os quais, segundo Santini, [...] poderiam se referir tanto à viagem realizada pelos modernistas ao interior de Minas Gerais, ocasião em que se permitiu aos brasileiros e ao viajante Blaise Cendrars um novo conhecimento sobre o país, quanto à permanência de Oswald na França, junto ao mesmo Cendrars, que teria despertado no autor [Oswald] o 21

ANDRADE, 1925, p. 103

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 69


interesse em “ver com olhos livres” uma realidade já vestida [...] (SANTINI, 2008, p. 107). Do alto de um atelier da Place Clichy, em Paris, Oswald de Andrade descobriu o Brasil. Coincidência ou não, a França foi o berço de nascimento do romantismo brasileiro, uma vez que lá estudavam jovens escritores, entre eles Gonçalves de Magalhães, Manuel de Araújo Porto Alegre, Francisco de Sales, Pereira da Silva, Azeredo Coutinho: Lá se encontravam para estudar ou cultivar-se, e lá travaram contacto com as novas orientações literárias, cabendo certamente a Magalhães a intuição decisiva de que elas correspondiam à intenção de definir uma literatura nova no Brasil, [...]. (CANDIDO, 1975, p.11-12). Ainda segundo CANDIDO, o passo decisivo para esse movimento do grupo de jovens escritores brasileiros foi a revista Niterói, publicada em Paris, no ano de 1836, “que trazia como epígrafe: ‘Tudo pelo Brasil, e para o Brasil’.” (CANDIDO,1975, p.13). A revista constituiu uma nova ordem de sentimento, orgulho patriótico, a busca por um modelo brasileiro. A primeira edição de Poesia Pau Brasil também foi publicada em Paris, talvez não por coincidência, mas para concretizar o projeto explícito no Manifesto da Poesia Pau Brasil: “uma poesia de exportação”. Uma saudade feliz de Paris. Oswald de Andrade traz, no poema que fecha o livro, a ironia perfeita para relembrar o local de nascimento do nacionalismo romântico, através dos versos “Uma saudade feliz / De Paris”. Os poemas de Pau Brasil, além de incorporar elementos culturais, mesclam o moderno e histórico, criando o retrato do Brasil em sua “poesia de exportação”. O poeta escreveu em versos a identidade nacional que se reconhece como mistura. Oswald, então, desconstrói para reconstruir um novo ou “o verdadeiro Brasil”, um Brasil diferente daquele conhecido pela história oficial, enquanto em José de Alencar, a construção romântica da identidade brasileira anulou o índio, no sentido sociocultural, revestindo-o a partir de traços eurocêntricos. Por outro lado, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 70


Alencar manteve seu projeto de literatura nacional que tinha como objetivo construir um símbolo ideal – o índio – para fortalecer e representar a nação brasileira. No entanto, não mencionou o negro como elemento constitutivo da nação brasileira. A respeito disso, Souza explica que a omissão do negro na produção literária do escritor romântico foi justificada pela dificuldade em lidar esteticamente com um problema complexo que era a escravidão e, também, pelo desejo de uma literatura autônoma e comprometida com a construção positiva da nação. Além disso, não se pode esquecer que o tema da escravidão acabou aparecendo na última fase do período romântico, largamente explorado por Castro Alves. Diante disso, não se pode deixar de reconhecer que os questionamentos da tentativa de construção identitária de Alencar seriam algo talvez impensável para sua época, mas que não pode se reservar no quarto de silêncio da contemporaneidade.

Referências ALENCAR, José de. Iracema. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000014.pdf. Acesso em: 10/09/2015. ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. Paris: Sans Pareil, 1925. ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguardas Europeias e Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1972. p. 203-208. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5. ed. Belo Horizonte / São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1975. CUNHA, Eneida Leal. A Antropofagia, Antes e Depois de Oswald. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. p. 49-57. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Oswald de Andrade e a Descoberta do Brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. p. 85-92.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 71


GARDINER, Michael. O carnaval de Bakhtin: a utopia como crítica. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor (Orgs.) Mikhail Bakhtin linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2000. p. 211- 255. HELENA, Lúcia. A hipótese Brasil. In: A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EdiPURS, 2006. p. 89-103. LIMA, Luiz Carlos. Oswald de Andrade – a utopia antropofágica: uma utopia sem história. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. p. 93-97. SANTINI, Juliana. A poiesis pictórica de Pau-Brasil – tradição, ruptura e identidade em Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ícone – Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 105-122, jul. 2008. Disponível em: http://www.slmb.ueg.br/iconeletras. Acesso em: 25/04/2015. SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Vertente Épica do Pau-Brasil. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. p. 187-199. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992. SOUZA, Zildete Lopes de. Do discurso político ao discurso literário: o (não) lugar do negro na nação imaginada por José de Alencar. Montes Claros, 2015. Dissertação (mestrado em Estudos Literários) - Programa de Pós-Graduação em Letras – UNIMONTES.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 72


O rap e o espaço Ana Ligia Faria Teixeira22 Resumo: A partir da música-texto Da ponte pra cá (2002) produzida pelos Racionais MC’s, este artigo tem por objetivo propor uma análise do espaço narrado na produção do grupo. De acordo com Michel de Certeau (1994) atribuímos sentido ao mundo quando nos expressamos sobre ele, quando relatamos nosso percurso, de forma que todo relato é uma prática do espaço. A música é um exemplar do cenário dos anos 2000 designado por nós como terceira fase do grupo inaugurada com o lançamento do disco duplo intitulado Nada como um dia após o outro dia (2002), momento em que o rapper-narrador considera a possibilidade de que o negro e o branco se contaminem por interação e a questão da pobreza aparece com mais força fazendo com que a condição social supere as questões raciais. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira. Espaço. Rap. Abstract: From the song-text Da ponte pra cá (2002) produced by Racionais MC’s, this present paper aims to propose a space’s anlysis narrated in the group’s production. According to Michel de Certeau (1994) we attribute meaning to the world when we express ourselves about it, when we report our journey, so that all reporting is a practice space. Music is a copy of the 2000s setting referred to us as the third group stage opened with the double album released and entitled Nada como um dia após o outro dia (2002), when the rapper-narrator considers that it is possible black and white people contaminate themselves through interaction, and the poverty matter shows up stronger, causing the social condition overcomes the racial issues. Keywords: Afro-Brazilian Literature. Space. Rap Music.

Mestranda em Teoria Literária, pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Minas Gerais; Professora Substituta do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. 22

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 73


Introdução Neste trabalho propomos uma análise do espaço relatado na música-texto23 Da ponte pra cá (2002) do CD Nada como um dia após o outro dia (2002), produzida pelos Racionais MC´s no cenário dos anos 2000 no Brasil e mais especificamente na cidade de São Paulo, amparados pelos estudos dos relatos de espaço, de Certeau (1994). Para a compreensão mais ampla da problemática abordada pelas canções dos Racionais MC’s é preciso conhecer e compreender o movimento Hip Hop, o rap e o grupo do qual analisaremos a canção. De acordo com Andrade (1999), o rap é um dos elementos artísticos do movimento juvenil Hip Hop. Por sua vez, é um movimento social dos jovens excluídos, a maioria negra, surgida em meados dos anos 1970 nos EUA, nos guetos de Nova York. O termo Hip Hop nasce a partir de ações para conter as inúmeras guerras e disputas entre gangues que atormentavam a periferia de Nova York, tendo como proposta principal a paz. “Ele foi criado e continua com o mesmo propósito: canalizar energias que poderiam estar voltadas à criminalidade centralizando-as na produção artística”. (ANDRADE, 1999, p.86) Dentro do movimento Hip Hop, encontramos o rap, que é uma música de origem jamaicana, a partir da qual as pessoas tentam superar a crise social, fatos como o desemprego, as dificuldades escolares, as perseguições policiais e, principalmente, investem na autoestima. Dentre os ideais dessa cultura pode-se destacar: criar o estímulo afirmativo para a juventude negra, denunciar a exclusão cultural e econômica do Achamos por bem denominar as músicas dos Racionais MC´s como músicastextos, porque o rap é de cunho testemunhal, em que o rapper aparece como narrador das experiências cotidianas da comunidade da qual ele pertence. Assim que, de acordo com Certeau (1994) todo relato é uma prática do espaço, consideramos as ações narrativas da música-texto Da ponte pra cá (2002) para analisarmos o espaço nela descrito. 23

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 74


mundo dos brancos e a necessidade de transformar sua própria realidade por meio da conscientização coletiva. O Hip Hop engloba várias manifestações artísticas, produzidas a partir de diferentes elementos e estruturas, como os MC’s (mestres de cerimônia), os Dj’s (disc-jóqueis), a dança, que é conhecida como break, a pintura, representada pelo grafite; porém, é a música, o rap, que é o instrumento de maior poder e valorização. Alguém pode apreciar um movimento de dança do break ou observar uma grafitagem, mas ninguém resiste à observação demasiada do rap. Pode-se até não gostar desse estilo musical, mas ele jamais é ignorado e é exatamente o que os hip hoppers e quaisquer outros membros de movimentos juvenis almejam – querem ter visibilidade e poder de voz – isso basta para confortar a identidade juvenil desses atores sociais. (ANDRADE, 1999, p.87). No Brasil, o Hip Hop chegou aos inícios da década de 1980 em São Paulo, através do break (dança), sendo posteriormente divulgado nos bailes e nas lojas específicas de música negra, tendo como um de seus pioneiros Nelson Triunfo que, segundo Andrade (1999) é conhecido como o “guru” do Hip Hop. O grafite chegou simultaneamente com o break e em meados dos anos 1980 chegou o rap. Grupos de hip hoppers que se interessavam por este ritmo musical, identificados com o movimento juvenil, “nascido na periferia e cuja força se concentra na música de origem negra, passaram a pesquisá-lo difundindo-o no país” (ANDRADE, 1999, p.88). Assim, surgiram os grupos de rap do movimento Hip Hop, estando hoje entre os mais conhecidos Thayde, Dj Hum e Racionais MC´s “pertencentes a esse momento histórico de introdução, consolidação e proliferação dos ideais” (ANDRADE, 1999, p.88). Tratamos até aqui sobre o objetivo do nosso trabalho, a história do movimento Hip Hop e o que é rap. Agora, conheceremos o grupo Racionais MC´s do qual analisaremos sua Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 75


produção. Este grupo, sob a influência de Milton Salles (ROCHA, DOMENICH, CASSEANO, 2001), admitia que a música é uma arma e está em todos os lugares. Se ela tem esse poder de mover esse sistema, ela tem também o poder de elucidar. Os Racionais MC´s são um grupo de rap paulistano, composto por: Mano Brown, Edy Rock e Ice Blue que são os rappers, e KL Jay que é o DJ. O grupo surgiu no final dos anos 1980, sendo um dos pioneiros no cenário nacional desse gênero/estilo musical, e podemos dizer que sua produção é dividida em três fases: a primeira fase entre os anos de 1989 até 1996, com a produção de discos como, por exemplo, Holocausto Urbano (1990) e Raio X do Brasil (1993), nos quais a tônica ou a principal preocupação do rapper-narrador é o estabelecimento ou o despertar de uma consciência positiva ou afirmativa de valores autenticamente negros; na segunda fase, marcada ou definida pelo disco Sobrevivendo no Inferno (1997) tem-se uma transformação no discurso do rapper-narrador, afim de conduzir o seu interlocutor para a constatação da impossibilidade de desconsideração da condição mestiça do afro-descendente brasileiro e da condição de pobreza que faz com que os Cinqüenta mil manos evocados por Mano Brown não sejam mais somente os negros, mas também pobres; e, finalmente, uma terceira fase, na qual o rapper-narrador tem plena consciência de sua condição mestiça, da impossibilidade de sua existência sem considerar que as semelhanças e as diferenças existentes entre os afrodescendentes e os não afro-descendentes não são exatamente distinções que impossibilitam o contato.” (VIANNA, 2008, p.13) Como já dito, neste trabalho analisaremos a música-texto Da ponte pra cá (2002) última faixa do CD 2 do álbum duplo Nada como um dia após o outro dia (2002) que pertence à terceira fase do grupo, momento em que o rapper-narrador tem plena consciência Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 76


de sua condição mestiça, considera a possibilidade de que o negro e o branco se contaminem por interação e a questão da pobreza aparece com mais força como fator de união entre indivíduos fazendo com que a condição social supere as questões raciais. Ademais, a faixa analisada não foi escolhida aleatoriamente, e, sim, porque o título já fala sobre seu conteúdo. “Da ponte pra cá” é uma expressão que entrou no vocabulário do rap nacional e da literatura da periferia paulistana em particular, porque identifica aqueles que moram na periferia da Zona Sul de São Paulo, além disso, na cidade existem várias pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros, que margeiam o centro, separando a periferia. A ponte separa o “lado de lá”, dos bairros ricos e o “lado de cá” da periferia pobre, que é tema bastante trabalhado na produção dos Racionais MC´s em sua terceira fase, já que, com o crescimento não planejado da cidade a população pobre foi sendo expulsa do grande centro, cada vez mais valorizado e foi obrigada a estabelecer-se em áreas periféricas sem a mínima infraestrutura urbana. O próprio termo “ponte” tem sua força poética, pois é um elemento que ao mesmo tempo une e separa. Problema teórico e prático da fronteira: a quem pertence a fronteira? Não tem o caráter de não-lugar que o traçado cartográfico supõe no limite. Tem um papel mediador. Também a narração o faz falar: “Pára!” – diz a floresta de onde sai o lobo. “Stop!” – diz o rio mostrando o seu jacaré. Mas este ator, pelo simples fato de ser a palavra do limite, cria a comunicação assim como a separação: e muito mais, só põe a margem dizendo aquilo que o atravessa, vindo da outra margem. (CERTEAU, 1994, p. 213) A ponte permite transportar-se de um lado para outro, segundo Leite (2013) sobre um patamar elevado do chão sobre, necessariamente, um obstáculo do terreno que impede o curso de uma via terrestre. Determinadas situações geográficas impulsionam este tipo de solução arquitetônica e urbanística e acabam por caracterizar algumas cidades. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 77


O rap e o espaço A lua cheia clareia as ruas do Capão,/ Acima de nós só Deus humilde, né não? né não?/ Saúde! (Plin) Mulher e muito som,/ Vinho branco para todos, um advogado bom/ (Cof,cof) ah, esse frio tá de foder,/ Terça-feira é ruim de rolê, vou fazer o quê/ Nunca mudou nem nunca mudará/ O cheiro de fogueira vai perfumando o ar/ Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa, (RACIONAIS MC´S, 2002) A noite cai na cidade de São Paulo e o bairro Capão Redondo é iluminado pela lua cheia, pois o governo não se importa em manter as luzes das ruas da periferia funcionando, então o que ilumina é a lua. Um dos temas trabalhados nas músicas-textos dos Racionais MC´s em sua terceira fase é a questão da pobreza, condição social que supera as questões raciais e promove a união entre os indivíduos. De acordo com Nascimento (2006) consideramos que: o que nos importa agora é a intensidade com que as mensagens dos Racionais brotam de seu meio, de seu lugar, pois acreditamos que é um discurso que, em seu conteúdo, nasce e se nutre a partir das próprias relações do homem com seu meio físico e sócio-cultural, ou seja, de seu território. (NASCIMENTO, 2006, p. 5-6). O fato de que o crescimento da cidade de São Paulo não foi acompanhado de um planejamento social urbano que contemplasse com infraestrutura a grande quantidade de gente que chegava à região, a população negra e pobre foi sendo excluída da cidade e das relações de trabalho, empurrada para áreas cada vez mais distantes do centro e da visão do Estado. Dessa forma, os indivíduos que constituem essa população estão historicamente relegados à comunidade, e por serem assim sentem que não pertencem ao universo simbólico da Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 78


nacionalidade brasileira porque vivem em um espaço desprovido de possibilidades para o exercício desse vínculo nacional, assim, buscam nesse novo ambiente (a margem) sua própria natureza por meio de encontros entre indivíduos que dividem as mesmas histórias e costumes e estes se encontram na periferia, lugar onde vivem, o que mobiliza o pertencimento à área geográfica ocupada por esta população que organizada em torno do Movimento Hip Hop, vai preconizar o pertencimento às suas periferias e por isso o “Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa” (RACIONAIS MC´S, 2002), o rapper, mesmo com as dificuldades e depois de muitos anos, continua morando no seu bairro. “‘Da ponte pra cá’ define o sentimento e a condição dos que vivem nas periferias e se reconhecem como pertencentes a uma cultura com características definidas, antes de tudo, pela geografia”. (LEITE, 2013, p.?) Pensando em como foram formadas as periferias a constituição de um espaço urbano é inseparável de um movimento de organização que impõe aos indivíduos e aos grupos um padrão comportamental. Este movimento faz com que o espaço se constitua como regular, isto é, que ele se teça com a regularidade necessária para compreender os comportamentos e os interesses que deles resultam. Ou seja, não é possível pensar o espaço que nós habitamos sem levar em consideração o fato de que ele se constitui no mesmo movimento em que nos organizamos como seres sociais. (MACIEL, 2000, p. 11-12) A organização social dos moradores da periferia e dos bairros ricos de São Paulo está representada na música-texto cantada por Mano Brow, “sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa/ nas ruas da sul eles me chamam Brown” (RACIONAIS MC´S, 2002). Na música, o rapper questiona a possibilidade de o playboy conviver com o pessoal da “quebrada” 24, já que a marginalidade atrai a juventude da classe média. “Playboy bom “Quebrada” é uma gíria utilizada por comunidades que habitam as periferias das cidades, designa locais que sejam distantes do centro, conhecidos pela sua periculosidade, humildade e pobreza. 24

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 79


é chinês e australiano,/ Fala feio, mora longe e não me chama de mano/"E ae brother, hey, uhuuul, " pau no seu cu.” (RACIONAIS MC´S, 2002). O playboy aqui está representado pelo estrangeiro que igual aos que moram da ponte pra lá são desprovidos da cultura da periferia, remete a uma outra demarcação de padrões, “já que suas atitudes e sua linguagem não condizem com as caracterizadas autenticamente pelos que realmente conhecem as ‘quebradas’, que dominam seus códigos linguísticos e comportamentais, nos mais diferentes níveis” (NASCIMENTO, 2006, p.17). A palavra brother é a diferença dada como marca da superioridade dos manos em relação aos playboys, instituindo, assim, uma prática utilitarista que visa a se aproveitar dos seus bens materiais e do seu dinheiro, Respeito, sou sofredor e odeio todos vocês/ Vem de artes marciais que eu vou de Sig Sauer,/ Quero sua irmã e o seu relógio Tag Heuer/ Um conto se pá, dá pra catar,/ Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar./ Um triplex pra coroa é o que malandro quer,/ Não só desfilar de Nike no pé. (RACIONAIS MC´S, 2002) Porém, os playboys e os manos não se misturam, não andam juntos, são os manos do lado de cá e os playboys do lado de lá “Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai,/ Mas no rolé com nós cê não vai!/ Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar./ Entendeu?/ Se a vida é assim, tem culpa eu?” (RACIONAIS MC´S, 2002). “O playboy é explorado e excluído a inversão de valores operada funciona ironicamente como um esboço de afirmação cultural”. (NASCIMENTO, 2006, p.17). Segundo Maciel (2000), a constituição do espaço urbano e os comportamentos que ele abarca são concomitantes, assim como narra Mano Brow na música, na medida em que a ponte separa o lado pobre da Zona Sul dos bairros ricos, faz com que os moradores de ambas as partes não se misturem. De acordo com o autor pensamos o espaço urbano como estriado por excelência. O espaço estriado trata-se do espaço das sedimentações históricas, Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 80


dos estratos históricos que vigoram nos dispositivos de saber efetuado pelas instituições, pelo aparelho de Estado, enfim, pelas segmentações sociais, é um espaço físico e vivido. É claro que as variações estão presentes na organização do espaço urbano, mas a distribuição de funções, sejam elas policiais, administrativas, comerciais, entre outras, se estabelecem segundo uma organização geométrica regular. Podemos dizer então que a cidade é, por excelência, a expressão de um espaço estriado, onde o meio físico e as funções sociais, administrativas pelo aparelho de Estado, constituem estratos que fixam e normatizam a vida. (MACIEL, 2000, p.13) Os Racionais MC´s procuram expor as contradições entre dois territórios demarcados e espaços não compartilhados. A cidade, geração após geração, juntou na periferia seus irmãos de sofrimento, forçando-os a inventar, na tensão diária da vida cotidiana, formas alternativas para sobreviver, por isso, como descrito no refrão, o mundo é diferente da ponte pra cá. “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá,/ O mundo é diferente da ponte pra cá!/ Não adianta querer ser, tem que ter para trocar,/ O mundo é diferente da ponte pra cá”. (RACIONAIS MC´S, 2002). A ponte separa dois lugares, o lado de cá, da periferia da Zona Sul e o lado de lá dos bairros ricos; de acordo com Certeau (1994), o espaço realiza-se enquanto vivenciado, ou seja, um determinado lugar só se torna espaço na medida em que indivíduos exercem dinâmicas de movimento nele através do uso, e assim o potencializam e o atualizam. Quando ocupado, o lugar é imediatamente ativado e transformado, passando à condição de lugar praticado. “Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres”. (CERTEAU, 1994, p. 202) Da mesma forma que a rua é transformada em espaço pelos pedestres, tanto a “quebrada” quanto os bairros ricos se transformam em espaço pelos seus moradores Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 81


Outra vez nós aqui, vai vendo,/ Lavando o ódio embaixo do sereno/ Cada um no seu castelo, cada um na sua função (...) E cada favelado é um universo em crise/ Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,/ Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém...” (RACIONAIS MC´S, 2002). Cada favelado é um universo em crise, significa que cada pobre tem um universo de histórias, que está em crise por causa dos problemas que os obrigam a se reinventarem todos os dias buscando formas diferentes de sobreviverem. “Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém” (RACIONAIS MC´S, 2002), ou seja, ninguém quer ficar na sombra dos outros, está explícito a consciência do desejo de igualdade, E quem não quer chegar de Honda preto e banco de couro,/ E ter a caminhada escrita em letras de ouro/ A mulher mais linda, sensual e atraente,/ Da pele cor da noite, lisa e reluzente/ Andar com quem é mais leal e verdadeiro,/ Na vida ou na morte, o mais nobre guerreiro/ O riso da criança mais triste e carente,/ Ouro e diamante, relógio e corrente/ Ver minha coroa onde eu sempre quis por,/ De turbante, chofer, uma madame nagô./ Sofrer, pra quê? Mas se o mundo jaz do maligno,/ Morrer como homem e ter um velório digno,/ Eu nunca tive bicicleta ou vídeo-game,/ Agora eu quero o mundo igual cidadão Kane. (RACIONAIS MC´S, 2002) Mano Brown pergunta se alguém não quer ter uma vida gloriosa, com dinheiro, mulheres bonitas, amigos verdadeiros e conseguir tirar um sorriso de qualquer criança, por mais carente que ela seja como seria do lado de lá da ponte, afinal todos desejam conquistar seu lugar ao sol. Deseja ver sua mãe como uma madame, ou seja, uma mulher negra que assume o posto dado à típica mulher branca rica, que é assim tratada como madame por vários subalternos negros e pobres. Mas ele se pergunta, para que sofrer se o mundo jaz do maligno e mostra não mais se importar com o que ocorre neste mundo, já que morrer Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 82


como um homem de honra e não como um verme é muito mais digno em tempos onde a honra é escassa. Porém quer ter o mundo igual ao do cidadão Kane, que é um filme que conta a história de Charles Foster Kane, um menino pobre que acaba se tornando um dos homens mais ricos do mundo. O rapper faz disso sua inspiração após uma infância sofrida agora ele pretende “conquistar o mundo”. Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,/ Minha meta é dez, nove e meio nem rola/ Meio ponto a ver... Hum... e morre um. (RACIONAIS MC´S, 2002). A rua é uma escola onde tem que se esforçar para não vacilar. Logo, explorando a analogia com a escola e a ideia do ditado popular – meio certo não existe – para sobreviver deve-se sempre escolher o caminho certo, principalmente se tratando da vida perigosa levada na periferia deve-se tomar cuidado para não cair na vida do crime. Concluindo esta estrofe, Mano Brow manda um salve para “Jardim Rosana, Três Estrela e Imbé,/ Santa Tereza, Valo Velho e Dom José./ Parque, Chácara, Lídia, Vaz, Fundão/ Muita treta pra Vinícius de Moraes” (RACIONAIS MC´S, 2002), que são favelas em que ocorrem as ações narradas na música. Todas as ações descritas Mano Brow contam a relação conflituosa entre a periferia e as zonas nobres da cidade, são estas ações que fazem com que estes lugares se tornem espaços, pois, o lugar praticado é algo fisicamente imóvel que depende das dinâmicas de deslocamentos de um coletivo para se re-significar e atualizar-se constantemente. O espaço público só adquire identidade quando praticado pelos indivíduos através do contato físico, pressupondo um tipo de enraizamento – provisório – com tais lugares. As transições de um lugar a outro, realizadas pelo coletivo de praticantes das cidades geram reverberações constantes nas passagens de lugar para lugar-praticado, de anônimos para portadores de identidade. “Em suma, o espaço é um lugar praticado”. (CERTEAU, 1994, p. 202).

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 83


Considerações finais Este artigo teve como intuito, analisar o espaço narrado na música-texto Da ponte pra cá (2002) última faixa do CD 2 do álbum duplo Nada como um dia após o outro dia (2002) dos Racionais MC´s, um grupo de rap paulistano e um dos mais famosos do Brasil. O espaço narrado é a periferia que está “da ponte pra cá” e que é uma referência das músicas-texto dos Racionais MC´s por ser o espaço geográfico redefinido como espaço pertencente aos moradores. Na música pode-se verificar a exaltação do pertencimento ao bairro – à “quebrada” – “Antes de tudo, eu quero dizer, pra ser sincero/ Que eu não pago de quebrada, mula ou banca forte,/ Eu represento a sul, conheço loco na norte”. (RACIONAIS MC´S, 2002). Mano Brown diz que ele não paga de morador e defensor da favela, “pagar” significa alguma pessoa querer mostrar algo que não é. Ou seja, Brown nega que ele esteja fingindo ser da favela, porque ele é e representa este lugar. Com a enunciação dessa escolha pelo bairro, pela quebrada, o enunciador faz outras escolhas como, por exemplo, conviver com a violência própria de seu espaço, com a constante ameaça de morte, o total desprovimento de aparelhamento de cidadania (de infraestrutura como postos de saúde, escola, saneamento, proteção policial). (VIANNA, 2011, p. 128) São essas ações que fazem com que os moradores da periferia se reinventem todos os dias buscando diversas formas de sobreviver, se reinventam e reinventam constantemente este lugar, tornando-o espaço. Como vimos de acordo com Certeau (1994) o espaço é um lugar praticado e, de acordo com Maciel (2000), é um espaço estriado, pois é físico e vivido. A partir da análise feita foi possível observar que a questão territorial é de suma importância na construção e constituição do mundo do rap dos Racionais. O rap representa aqueles que vivem na periferia, funciona como meio de transformação social, representa a ampliação das vozes e dos anseios individuais, é um canal de Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 84


veiculação de mensagens em favor da autoestima, da valorização da sua comunidade, dos seus valores e da sua cultura.

Referências CERTEAU, Michel de. Relatos de espaço. In: A invenção do cotidiano 1. Petrópolis, Vozes, 1994, p. 199-217. MACIEL, Auterives. Nomadização dos espaços urbanos. In: COSTA, Icléia Thiesen M.; GONDAR, Jô (org.). Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 11-21. ANDRADE, Nunes Elaine. “Hip Hop: movimento negro juvenil”. In: ______. Rap e educação: Rap é educação. São Paulo: Summus, 1999. ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella; CASSEANO Patrícia. HIP HOP: A Periferia Grita. 1ª edição, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. VIANNA, Cíntia Camargo. Preto tipo A ou pardo tipo A? A Construção de uma identidade étnico-cultural afirmativa na manifestação artística dos Racionais MC´s. Olhares e Trilhas, Uberlândia, n 10, p.21-32, 2009. Disponível em: < file:///D:/Meus%20Documentos/Downloads/13867-52298-1-PB.pdf> VIANNA, Cíntia Camargo. Literatura afro-brasileira contemporânea: o rap como possibilidade. Ipotesi, Juiz de Fora, v.15, n.2 - Especial, p. 123-131, jul./dez. 2011. LEITE, Antonio Eleilson. Nada como um dia após o outro. In: Outras Palavras: Comunicação Compartilhada e Pós-capitalismo. São Paulo, 2013. Disponível em: < http://outraspalavras.net/posts/nada-como-um-dia-apos-o-outro/>. NASCIMENTO, Jorge Luiz. Da ponte pra cá: os territórios minados dos Racionais MC´s. Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, a. 2, n. 2, p. 1-28, 2006. Disponível em: < file:///D:/Meus%20Documentos/Downloads/3434-5569-1PB.pdf> Discografia dos Racionais MC’s Faixa 10 do CD2 "Nada como dia após o outro dia" do Grupo Racionais MC 's, "Da ponte pra cá".

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 85


Prosa e poesia

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 86


“Ô Mãe, por que que aqui não tem macieira?” Fernanda Vieira Sant Anna Não me lembro da leveza que uma infância deveria ter. Ou assim me disseram os livros, os filmes e os sonhos com seus muitos sorrisos e bichos de estimação e cores. Me lembro do peso, da angústia, das incertezas, da luta diária pelo que viria. Lembro dos adultos, minha mãe, meus tios, na janela e no quintal de casa, discutindo o desespero da inflação, o desemprego, a fome, o fim da ditadura. O fim de uma repressão e a continuidade de outra, a miséria. Nasci ainda sob o silêncio dos Anos de Ferro. Casa barulhenta. Cresci – por sorte, sina ou acaso – numa casa com livros e discussões e discussões políticas. Eu não me lembro, não mesmo, mas meu avô era ateu e comunista, minha avó católica e com um coração imenso que não guardava fração ou migalha de respeito por qualquer autoridade. Nenhuma mesmo, viu? Eu vi o muro cair pela TV e vi um mundo, minha casa, se encher de esperanças de um mundo novo. Dava para sentir o cheiro do novo misturado ao café. Mas não me lembro da leveza que sempre tem nos filmes de Hollywood. Crianças sorridentes e desenhos de macieiras. Lembro de correr atrás de doce, bola de gude, polícia e ladrão, garrafão, futebol. Queimada, amarelinha, corda, elástico, pique-alto-tá-esconde-pega, carniça, pião, pipa, jogar marimba pra recuperar pipa avoada, maria-choca. Correr solta na rua. Catar manga na calçada do vizinho, carambola na outra rua, comer amêndoas secas na latinha na fogueirinha na pracinha. Pular nas poças d’água da rua sem asfalto. Da goiaba do pé do quintal da amiguinha, que servia de almoço, lanche ou janta. Lembro da fome que só via fubá com água. Com açúcar pra mingau e sal pra angu, no mesmo dia. Da fome que dormia pra passar. Lembro que tinha fruta catada. Da água do poço da vizinha de coração bom de onde andávamos duas ou três ruas pra baixo e mais uma ou duas ruas pra esquerda, com as panelas, baldes e potes cheios. Eu me lembro dos problemas de família, que eram muitos, pesados e presentes. Da barraquinha na feira, simples, pequena e de quinquilharias. Eu lembro de tudo isso e mais. Mais... Mas a leveza? Essa não ficou em mim. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 87


Solidão só Leandro Pinheiro Coisa mais sem graça Caminhar por esta praça Assim,... tão só Assim sem fé Ah, tua presença Até abre sentença Ai,... um nó Há pior tristeza? Viver a aspereza Não ter dó Não que não te queira É que vivo à beira Assim,... tão só Assim sem fé Não é o caminho Que se faz sozinho Tão sem nós Dou passo a frente Levado pela corrente Sem dar pé É essa ciência Viver na desistência Assim sem fé Assim,... tão só Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 88


Alguma crônica deve ser de amor Douglas de Oliveira Tomaz Escorregou pelo chão quente o seu corpo suado. Já estava só de cueca – sol o obrigara. Ventilador não supera meu fogo, repetia a si mesmo, enquanto escorria. Em sua cabeça, via-se como uma massa gelatinosa, grudenta. Era o calor, repetia. Tudo culpa do calor. Se não houvesse essa quentura, tudo seria melhor, eu estaria correndo por campos verdejantes como na clássica cena de A Noviça Rebelde. Se não houvesse mormaço, quarto não teria se tornado este abrigo subterrâneo contra bombardeios. Abrigo inútil. Vento ainda entra pelas frestas e me arranca o couro. Derreto. Assim, derretido, lembrou-se da mensagem que recebera pela manhã. Um amigo distante, daquela outra vida, dizendo: Olá, tudo bem? Sinto sua falta. O que tem feito? Não se esqueça de que existo. E como esquecer, seu filho da puta? pensou, mas não respondeu a mensagem prontamente. Levantou-se da cadeira, gastou a manhã com outras hesitações e até conseguiu ignorar o atordoamento. Mas nada escapa ao meio-dia. Nada consegue fugir do sol a pino. E, então, como esquecer este ostracismo? Esse silêncio todo que separou nossos corpos intocados. Se não fosse a porra do seu silêncio, talvez eu tivesse insistido na outra vida, fumando maconha e pensando que o mundo pode ser melhor. Se não fosse seu namoro de adolescência – seis anos! Crescemos, amadurecemos juntos. Sei, sei, sei. No chão morno, lembranças repentinas misturadas a água e sais minerais: o dia em que foi acordado pelos carinhos dele no sofá de um amigo, festa ainda acontecendo ao redor, acordou e ele alisava seu cabelo, falava algo sobre ter perdido a virgindade com a namorada, mas, mesmo depois de tudo, estar confuso se ainda poderiam continuar. Outra lembrança maldita: os dois caminhando no meio de um aglomerado de pessoas, de mãos dadas para não se perderem um do outro. E mais: o dia em que ele o levou em casa de moto e deixou sua mão recostada na coxa do amigo na garupa. Eu, o amigo da garupa, sem saber o que fazer com aquela mão, tentando ao máximo me afastar dela porque não queria dar bandeira, não queria passar a impressão de estar dando em cima de um amigo hétero. Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 89


A última recordação não veio porque até hoje não sabe como se despediram. Apenas chegou o dia em que não fumava mais, nem havia utopia, só o calor que de tempos em tempos trocava sua pele. Tentou se colocar no lugar do outro. E se houvesse desejo verdadeiro engolido a seco? O que fazer com aqueles seis anos de namoro? O que fazer com o amigo hesitante? Abraçar-lhe mais forte? Dizer com o abraço que é, é verdade? Repeli-lo e dizer com a distância presente que sim, continua sendo? Silenciar-se? Ir embora da cidade? Pedir a namorada em casamento? Casar, ter filhos, sonhar com o amigo de outro tempo, ter repetidas poluções noturnas, mandar-lhe mensagem em algum momento? O que fazer com o desejo? E a falta de desejo, em que resulta? Foda-se a alteridade. O único fato palpável é a quentura de tudo. E o passado. E as marcas do tempo. Ah, que poético! Marcas do tempo. Parece nome de novela ruim. Essa história toda soa como uma Malhação do lado b. Se crises existenciais gays passassem na tevê – filosofou por um instante. Mas não passam. Tudo um dia vira silêncio. Tudo agrupado no mesmo floco de sujeira intitulado: Silêncio Constrangedor. Levantou-se do chão, mas tudo ao redor já era água salgada. Nadou até o computador. Respondeu ao amigo de outras vidas que sim, tudo ia bem, muitíssimo bem, citando Caio, e no final anexou a cena de A Noviça Rebelde, anexou os campos verdejantes, não citou que na vida de agora fazia muito calor. E a pele ainda não fora completamente trocada.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 90


Divino absurdo Ulisses Maciel Guimarães Um homem velho senta-se com dificuldade diante de um grupo de pessoas e diz vagarosamente: Vejam bem a que ponto cheguei! Eu que fui, certa vez, criatura divina. Imagem e semelhança de Deus. Deus, esse que no absoluto de sua sabedoria, Me criou a partir do barro. Será? Dada à imperfeição, provavelmente. Como poderia? Um ser perfeito e absoluto criar o imperfeito? Talvez tenha trocado a ordem das coisas. Isso me ocorre às vezes. Não sei se por conta da idade, Mas admito a dificuldade em ordenar, Mesmo assim eu tento, Mesmo sem a ilusão de poder. Poder, eu não posso. Me iludo, e assim, sigo em frente. Para onde? Perguntas. Para o nada. Para a morte. Para onde mais?

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 91


Acesse nossa seção de artes em www.brazilianstudies.com

Os trabalhos publicados na Jangada: crítica, literatura, artes estão licenciados com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional. Arquivo formatado em fonte Book Antiqua, tamanho 11, e publicado em formato pdf pela Clock-t Edições e Artes, em julho de 2016.

Jangada: Colatina/Urbana, n. 6, jul-dez, 2015 - ISSN 2317-4722 – Pág. 92


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.