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Influenciadores culturais

sentado numa das cadeiras da plateia, Alfredo Ferreira, 61 anos, explica o gosto que lhe dá trazer ao Cineteatro Municipal João Mota espetáculos menos conhecidos, que podem não esgotar, mas marcam a diferença, uma explicação dada numa rápida conversa, porque daí a poucos minutos tem de ir aos bastidores acompanhar os artistas que se vão apresentar em Notas de Contacto – Barreiras Inimagináveis. De seguida tem de subir ao palco para agradecer ao público e explicar quem são os Olharápios.

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Até há bem pouco tempo, ir a espetáculos no Cineteatro Municipal João Mota, coisa rara nas rotinas deste empresário do concelho, significava comprar o bilhete, entrar anonimamente na sala, sentar­se na plateia e não pensar mais no assunto. Uma vivência muito diferente da que tem como espectador ativo. Faz parte dos Olharápios, um grupo com perto de 20 pessoas, que desde 2017 se reúne voluntariamente para pensar parte da programação da temporada. Em novembro de 2022 foram deles as escolhas de todo o cartaz. Programaram, acolheram artistas, indicaram os lugares, asseguraram a frente de casa e todo o apoio à produção. E adoraram. «Os bastidores são uma experiência indiscritível porque nós, enquanto consumidores de cultura, não fazemos a mínima ideia de todas as etapas, de todos os procedimentos, burocracias, para se efetivar um espetáculo», reconhece Rute Carvalho, professora na Escola Secundária de Sampaio e uma das «olharápias». «Permite­nos ter uma maior tolerância face a situações que julgamos à partida, enquanto público», acrescenta, «muitas vezes apenas exigimos».

A complexidade e o trabalho necessários para pôr de pé um espetáculo foi também uma surpresa para a designer de 27 anos, Cláudia Leonardo. «O processo de programação, o que envolve trazer artistas, a questão do orçamento, da logística, não pensarmos só no nosso gosto pessoal, mas em ofertas culturais que atraiam outro tipo de público, são etapas que desconhecia». Estar com os artistas nos bastidores tem sido um verdadeiro privilégio, conta Júlio Vaqueiro, de 31 anos, assíduo consu midor de cultura, «vejo tudo o que consigo». «É desafiante, mas é tam bém uma oportunidade única», des taca Vera Gaspar, que trabalha no setor energético e a experiência que tem na área da cultura passa pela di namização das Bibliotecas Frigorífi cas do Grupo Desportivo de Alfarim. Apesar de não ser professora, Vera Gaspar está no grupo que faz as su gestões a pensar no público escolar, onde dá a sua visão enquanto encar regada de educação.

Já Rute Carvalho foi convidada como professora, mas rapidamente «saltou» para o grupo que pensa a programação dedicada às famílias. Não coube em si de orgulho quando viu o palco do Cineteatro preenchido com pais, mães, avós e crianças, com menos de três anos, que dançaram e brincaram ao som de Mozart, Bach e Monteverdi, num concerto onde os bebés foram a plateia e parte do pró prio espetáculo. Um momento ines quecível que conseguiu trazer até ao público de Sesimbra.

A cultura da comunidade

Os Olharápios encontram aqui a possibilidade de saírem da sua zona de conforto e fazerem coisas novas, desligadas dos seus percursos profissionais.

É o que acontece com Pedro Alves, 29 anos, engenheiro, professor de matemática, apaixonado pela natureza, que chegou aos Olharápios através de um espetáculo no Grémio, onde conheceu Alexandre, o único ator amador do grupo.

Quando a 12 de novembro subiram ao palco juntos para apresentar o projeto e antecipar o concerto de Joana Cármen, a forte pronúncia alentejana de Pedro deixou adivinhar as suas origens. Está nos Olharápios de corpo e alma, porque a viver há pouco tempo no concelho decidiu: «já que cá estou é para viver na comunidade».

Comunidade é também a palavra-chave

Quando os espetáculos se tornam nossos

Os Olharápios são a versão local do projeto Visionários, lançado em 2017 pela Associação Cultural Artemrede, da qual o município de Sesimbra é associado. Trata-se de um modelo que pretende aproximar espectadores, artistas e instituições culturais, através de grupos de debate em que o espectador abandona o seu papel tendencialmente passivo e participa ativamente nos processos de escolha e programação. A inspiração veio no projeto italiano Visionari Durante a edição do terceiro Festival Kilowatt, dedicado à arte contemporânea, em Sansepolcro, Itália, a organização tinha vendido poucos bilhetes. Numa noite, um técnico referiu que talvez fosse melhor acabarem com o festival, a não ser que se encontrasse uma forma da cidade o sentir como “algo seu”. Foi então que decidiram convidar a população a participar na escolha dos espetáculos. Uma experiência que vai continuar em Sesimbra, onde um espetáculo com o selo «escolha Olharápios» é, certamente, uma proposta feita com o olhar do público.

tava muito atento», reconhece. Com reforçado sentimento de pertença, garante que nos Olharápios «há vontade de fazer do Cineteatro uma coisa de todos, um espaço onde toda a gente tem uma voz». E resume: «as conversas que temos nos cafés sobre estes assuntos podemos ter aqui e, pelo menos aqui, vão ouvir-nos». É esta a caraterística que transforma estes meros espectadores em Olharápios: a sua participação ativa e comprometida com a comunidade.

Fazer do Cineteatro casa

Os Olharápios têm espaço para ser escutados por quem programa, mas também pelos seus pares, que os olham como referências, como verdadeiras agendas culturais. O passa-a-palavra entre a comunidade está a ter resultados. No mês programado pelos Olharápios as sessões estiveram praticamente todas esgotadas. Para Rute Carvalho, a proximidade é essencial para chegar às pessoas. «Quando se cruzam comigo já me perguntam o que está previsto no cineteatro», o que a deixa muito feliz. Não é por acaso que faz sugestões para famílias, pois acredita que é de pe quenino que se adquirem hábitos culturais.

O cartaz com as escolhas dos Olharápios em 2022 abriu precisa mente com uma peça para crian ças, No Início era um Jardim mágico, superou todas as minhas expectativas, queria muito que este espetáculo chegasse a Sesimbra», e conseguiu, partilha a «olharápia» que o sugeriu, a designer Raquel Santana, 37 anos. É com emoção que recorda essa sessão, onde teve a responsabilidade de estar em palco a apresentar os Olharápios, o que foi «um bocadinho assustador». Mas todo o nervosismo foi compensado com o prazer de assistir sentada ao lado da filha, na sua terra, a um es petáculo «lindo», que lhes «encheu a alma».

A condição de mãe de três meni nas, que anda sempre à procura de uma agenda com atividades para crianças, faz com que a participação neste projeto seja ainda mais gra tificante. Em criança e adolescente já era uma apaixonada pelo mundo das artes e da cultura, mas quando entrava nas salas de espetáculos sentia que não fazia parte, que era um elemento externo, como se o acesso fosse reservado apenas a uma elite, «eram equipamentos intocáveis e nada acolhedores». Já as suas filhas «sentem que o Cineteatro é casa, porque sabem que pelo menos de 15 em 15 dias vão lá, sentem que fazem parte». No dia da apresentação foi com espanto que viram a mãe, Raquel, em palco. «Vais falar para tanta gente?» perguntaram, preocupadas. No final Raquel só tinha um desejo, «tê-las cativado». Porque é este o grande propósito dos Olharápios, através do seu olhar cativar o público do Cineteatro Municipal João Mota.

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