A MINHA COMPANHIA :: A menina da bilheteira - Diana Fernandes

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COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO

A MENINA DA BILHETEIRA — DIANA FERNANDES

A AULA, UMA CRÓNICA

A MINHA COMPANHIA


A MINHA

FICHA TÉCNICA

A Minha Companhia é um

Coordenação

COMPANHIA

EDITORIAL

novo projeto da Companhia

Pedro Mascarenhas

a temporada 19/20 que

Textos

sua equipa e desvendar

Marques

Nacional de Bailado para visa dar a conhecer a

os bastidores do Teatro

Susana Moreira

Camões, a casa da CNB.

Edição

Uma centena de

Maria Santos

colaboradores constitui

uma equipa de profissionais que produzem e contribuem

José Luís Costa Pedro Mascarenhas Fotografias

para a realização, tanto

Hugo David

todas as outras atividades

Design gráfico

dos espetáculos, como de inseridas na programação

Estúdio João Campos

aqui.

Impressão

da Companhia. Descubra-os

Greca Artes Gráficas Tiragem

2000 exemplares


Da janela, vê-se o foyer do teatro, grande, aberto. Vê-se a porta para o auditório, a partir da qual não se regressa igual. Vê-se o bar ao fundo, com mesas a dar para o rio. Veem-se as movimentações dos bailarinos que tomam alguma coisa ou espreitam a cor da água antes de se fecharem num estúdio a ensaiar, dos trabalhadores que voltam para as suas mesas de escritório depois do almoço ou de um café.

Está ali todas as tardes, como uma espécie de sentinela que guarda qualquer coisa de indefinível, qualquer coisa que nem sabíamos que precisava de ser guardada. É com alívio que se entra e se vê que ela está ali, atrás da janela; no vidro, uma abertura para nós e para as mãos dela. Costuma dizer-se que o espetáculo sempre continua mas quem pode ter mesmo a certeza até chegar ali e a ver?

Pode acontecer, mais tarde, ela ver da janela o marido chegar. Conheceram-se num teatro, um teatro parecido a este, quando ambos faziam frente de sala. Eram mais novos e não imaginavam um dia serem um casal. Tornaram-se amigos. Ambos queriam ganhar um dinheiro extra. Ambos gostavam que o dinheiro extra viesse com um trabalho daqueles, que nem parecia trabalho, onde se podia ver espetáculos, e começar a entender o que acontece atrás dos palcos. Nos dias em que ele vem fazer frente de sala, ela tenta ficar depois do fim do horário de trabalho. Nessas noites, tenta ir ver o espetáculo. Depois, voltam para casa juntos, à noite, como se tivessem tido um encontro amoroso, como se tivessem ido sair, e quando chegam a casa os filhos mais pequenos dormem, esquecidos das saudades que tiveram deles. +++ O palco, ao contrário do local onde ela se senta muitas tardes da sua vida, é grande. Talvez demasiado grande. É tudo preto: o chão, o teto, as laterais. Do palco não se vê nada: nem rio, nem sequer

A AULA, UMA CRÓNICA

Lá dentro, atrás da janela, ela costuma estar sentada. Ultimamente, está sentada e afaga a barriga, onde carrega o segundo filho. Começou a trabalhar na bilheteira quando tinha na barriga o primeiro. Tem um computador e um telefone — porque ela não é só a primeira cara que algumas pessoas veem quando entram no teatro, também é muitas vezes a primeira voz que ouvem — e não precisa de mais nada. Não há quase decoração nas paredes, a não ser dois desenhos feitos por crianças, não pelo filho dela nem pelos seus enteados, mas por filhos de outra mãe e de outro pai, e ela nunca teve coragem de os tirar.

Ao princípio, quando começa o dia de trabalho, o foyer está bastante vazio, mas mesmo quando não há movimento ela tem sempre o que fazer. O aborrecimento é um problema de pessoas com pouca imaginação. Ela é uma mulher que gosta de organização e a organização faz-se sobretudo mentalmente. Enquanto espera – que telefonem a pedir informações, que alguém, um colega, lhe bata com os nós dos dedos na janela para conversar um pouco, ou que se aproxime a hora do espectáculo – ela organiza o seu dia a dia, o seu futuro. Às vezes, até, o seu passado.

A MENINA DA BILHETEIRA — DIANA FERNANDES

O espaço é pequeno, retangular, mas o que ressalta é o vidro, a janela. É uma janela que não dá para fora mas para dentro.

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A MENINA DA BILHETEIRA DIANA FERNANDES


gente quando o auditório se enche, invisível no escuro da sala. Ela sempre quis saber como seria estar num palco. Mais do que estar num palco, queria saber como seria dançar num palco. Quando era pequenina, como é costume acontecer com as meninas, dizia que queria ser bailarina. Mas era demasiado alta para bailarina, porque as bailarinas queriam-se pequenas, leves, corpos irreais. Ou, então, era ela que achava que era demasiado alta, porque se achava demasiado alta para quase tudo, até para brincar com as outras crianças, invariavelmente mais baixas do que ela. Ela era tímida e ninguém lhe explicou que o palco era, paradoxalmente, o melhor sítio para os tímidos; um lugar para se esconder, mostrando-se. Também dizia que queria ser professora de Matemática. Haveria qualquer coisa de comum nas duas coisas para uma menina, ambas as disciplinas a transportavam para uma expressão abstrata, afastada da realidade comezinha dos dias e das pequenas maldades das crianças. Também não foi para Matemática apesar de não haver, para isso, requisitos de altura, de pés, mãos, braços, de toque, ouvido, uma inclinação para entender o movimento. Fez aulas de ballet, como é costume as meninas fazerem, e, por isso, nunca deixou de gostar de dança. É como um vírus, umas daquelas coisas que cientistas como ela – que trabalhou anos em laboratório e tem um doutoramento em Ciências Biomédicas – talvez tentem um dia controlar. O prazer de ver dançar, para ela, ainda está relacionado com a memória de um prazer em dançar, mas agora é mais do que isso. Porque agora ela sabe o trabalho que a magia dá. Entre os anos que trabalhou

intermitentemente a fazer frente de sala e os três anos em que trabalha na bilheteira, já teve tempo suficiente para saber como teria sido a sua vida se, afinal, tivesse continuado a dançar, para apreciar como os corpos em palco são de pessoas de carne e osso a fazerem-se de outra matéria. Mas virá dessa memória de infância a predileção pelos clássicos. Se tivesse que escolher um só bailado, escolheria O Quebra-Nozes, com a presença das crianças, o seu olhar natalício, disponível, bondoso, transformador. Há uma hora em que o foyer se enche e a bilheteira fica realmente muito pequena, e da janela só se veem pessoas que querem comprar bilhetes, levantar bilhetes, pedir informações, queixarem-se, elogiarem, são simpáticas, antipáticas, comovedoras ou enfurecedoras, humanas. Depois, as pessoas entram no auditório e as portas fecham-se. E da sua janela ela pode apenas adivinhar o que se passa no palco. +++ É um rosto sem uma maquilhagem especial. Limpo. Não traz um penteado elaborado. Não tem uma roupa feita propositadamente para estar ali. Sem embelezamento. Sem técnica. Ela é apenas ela, sem personagem, sem uma história atrás conhecida. O sorriso, que parece encomendado, largo, generoso, como deve ser em alguém que trabalha com o público, nunca foi ensaiado, e não lhe é difícil. É simultaneamente instintivo e uma arte consciente contra as preocupações com os filhos, as longas horas dos dias com dois empregos e muitas responsabilidades, as más notícias que, como toda a gente, foi tendo — e irá tendo — ao longo da vida.


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Ela é a menina da bilheteira. Ela é a rapariga à janela, e observa-nos e podia dizer alguma coisa sobre todos nós, que corremos para os teatros, que procuramos qualquer coisa que não sabíamos antes, não sentíamos antes, ou procuramos apenas confirmar que nos continuamos a comover com as mesmas coisas de sempre.

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Ela é a primeira pessoa que vemos da Companhia quando chegamos ao Teatro Camões. Ela é a pessoa em quem normalmente não reparamos, mesmo que ela sorria, seja incomummente simpática.

A AULA, UMA CRÓNICA


A AULA, UMA CRÓNICA POR SUSANA MOREIRA MARQUES

Sento-me do lado de fora do estúdio com receio de perturbar. Todos os dias os bailarinos vêm fazer a aula e este parece-me ser um espaço em que estão fora dos olhares do público, fora de olhares avaliadores. Parece-me um espaço íntimo. Ainda que sejam tantos que o estúdio se parece tornar pequeno. Vejo-os refletidos no espelho, aqueles que estão mais ao fundo da sala, e observo como os seus corpos se desenham nos exercícios. Mais perto, vejo alguns dos bailarinos, ou apenas pormenores deles: uma perna, um pé, uma mão, a nuca. A variedade é estonteante e é surpreendente. Há bailarinos que calçam uma espécie de botas para aquecer. Mas pelo menos um bailarino faz grande parte da aula descalço. Vestem todo o tipo de roupas: fatos inteiros, calças que não combinam com a parte de cima, calças por cima de collants, calções por cima de collants, calções sem collants, saias, fatos colantes ao corpo, roupas largas a cair pelas costas abaixo. Alguns vestem cores pálidas, desaparecendo na pele, clássicas; mas outros vestem cores, mesmo berrantes, misturadas com tons escuros. Assim, de repente, parece-me uma rebeldia, uma forma de cada um evidenciar o seu caráter num mundo onde tantas vezes se querem todos os corpos iguais. Mas talvez seja só impressão, porque ali já se conhecem muito bem. É uma família. Em alguns casos, há mesmo famílias: casais que chegaram juntos de casa; ou mãe e filha que ainda coincidem na aula diária. Há qualquer coisa de caótico no espaço, na distribuição das pessoas, e na ligeira dessincronia que às vezes se nota entre os bailarinos na barra, cada um adaptando

ligeiramente os exercícios ao seu ritmo e necessidades, mas passados alguns dias, quando volto a assistir à aula da manhã, reparo como os bailarinos estão mais ou menos todos nos mesmos lugares ou nas mesmas zonas do estúdio e parece haver ali alguma regra, uma ordem, que não é imediata para quem olha pela primeira vez. Há qualquer coisa de nivelador — e de belo nessa igualdade — naquela massa de bailarinos. Ali, na aula da manhã, eles não são bailarinos estagiários, ou bailarinos principais ou bailarinos que já deixaram de dançar. São pessoas que fazem uma aula de ballet, que treinam o corpo, exercitam-se, aquecem, pensam no que precisam de trabalhar, tentam esquecer o que lhes dói. Ali, antes dos ensaios, não têm papéis, posições, hierarquias. Vão todos os dias à aula. Começa sempre às 10h. Os professores da Companhia vão variando e, às vezes, vêm professores convidados de fora. Desta vez, o professor é francês, mas fala inglês, que é, muita vezes, a língua de trabalho aqui. Mas ele quase não precisa de falar e faz as marcações com um pá-pá-pá entrecortado por grandes respirações. E quase nem usa os pés, marcando os passos com as mãos. Isso parece bastar. Os exercícios são em si uma linguagem que os bailarinos aprenderam há muito tempo, desde pequenos. Quando se deixa de dançar, por exemplo, este é possivelmente o único lugar para continuar a treinar aquela língua, ou melhor, para continuar a deixar o corpo falar. Se não houvesse aula, possivelmente,


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Durante a aula, costuma haver uma pausa. Costuma haver trocas de sapatilhas. Calçam-se pontas. Os corpos vão ficando quentes e vão desaparecendo camadas de roupa. As barras desaparecem para a segunda parte da aula e os bailarinos percorrem toda a área do estúdio, um grupo, depois outro, depois outro. Os gestos vão ficando largos e progressivamente dançados. Saltos. Passos rápidos. Piruetas. Tento ver refletidos no espelho os rostos mas não consigo ler neles preocupação ou, pelo contrário, ligeireza, como no início da aula, à barra. Tudo fora do estúdio já deve ter desaparecido para eles. Isso deve compensar o cansaço, o esforço,

Lisboa, Teatro Camões Setembro 2019

A AULA, UMA CRÓNICA

Num momento de pausa, um bailarino comenta que esteve parado duas semanas de férias, sem um único ensaio, sem uma única aula, sem nenhum movimento, sem a música que precede quase impercetivelmente o movimento. As duas semanas passaram num instante, como sempre passam as férias, mas tinham passado muito devagar para o seu corpo. O corpo tinha-se ressentido da paragem e tinha-lhe custado recomeçar a rotina: desde logo, recomeçar as aulas, às 10h, todos os dias. Talvez seja exagero dele. Talvez não. De uma forma ou de outra, fico a pensar se a importância daquelas aulas é apenas física - visto que grande parte dos bailarinos continuarão a dançar o resto do dia - ou se não será, quase, uma questão de fé: o bailarino cumprindo aquele ritual diário sente-se mais preparado, mais forte, para tudo o resto.

a dor, a monotonia da repetição. A aula termina. As pessoas pegam em sacos, casacos, garrafas de água pelo corredor e vão saindo. O pianista sai com as suas partituras. Alguns bailarinos ficam para o ensaio que começa às 11h30. É no mesmo estúdio, mas alguma coisa mudou.

A MENINA DA BILHETEIRA — DIANA FERNANDES

alguns bailarinos que já não dançam deixariam de se sentir bailarinos, e isso, para alguns, pode ser quase como deixarem de se sentir eles mesmos.


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T.01-E.01-OUT.2019


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