Revista Mediação - Número 17

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ISSN 1808-2564

revista de educação editada e produzida pelo colégio medianeira

Diretor Pe. Rui Körbes, S.J. Diretor Acadêmico Prof. Adalberto Fávero Diretor Administrativo Gilberto Vizini Vieira

Uma visita especial às aulas de violão Lucas Feron ....................................................................................................................................... 7

Coord. Comunitário e de Esporte Prof. Francisco Alexandre Faigle Coordenação Editorial Nilton Cezar Tridapalli Luciana Nogueira Nascimento

A “capital europeia” Diego Zerwes ................................................................................................................................

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(MTB 2927/82v) Revisão Nilton Cezar Tridapalli Projeto Gráfico e Diagramação

Os desafios da escola na era da digitalização Carolina Prestes Yirula ..................................................................................................................

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Sonia Oleskovicz Ilustrações Marcelo Cambraia Sanches Colaboraram nesta edição Adalberto Fávero, Carolina Prestes Yirula, Danielle Mari Stapassoli, Diego Zerwes, Fernando Guidini, Francisco Carlos Rehme, Lucas Feron, Luciana Nogueira Nascimento, Marcelo Pastre, Paulo Venturelli, Vinícius Soares Pinto

Compro, logo sou feliz? Vinícius Soares Pinto ....................................................................................................................

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Consumo, logo existo Metáfora inepta e desconexa sobre a felicidade Adalberto Fávero ..........................................................................................................................

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Tiragem 3000 exemplares Papel Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo)

“Sofro, logo compro” ou olho, logo preciso! Luciana Nogueira Nascimento .....................................................................................................

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Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa) Número de Páginas 52

Macacos como lembranças?! Danielle Mari Stapassoli ...............................................................................................................

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EQUIPE PEDAGÓGICA Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries Coordenadora Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro

O lazer do homem moderno Marcelo Pastre ...............................................................................................................................

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Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries Coordenadora Profª Eliane Dzierwa Zaionc Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries

Psiu... não espalha, mas sou apaixonada por Paraty Francisco Carlos Rehme ...............................................................................................................

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Coordenadora Profª Roberta Uceda Ensino Médio Coordenador

Um autor de extraordinária criatividade Paulo Venturelli ..............................................................................................................................

Prof. Marcelo Pastre

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Coordenador de Pastoral Pe. Guido Valli, S.J. Coordenador de Midiaeducação Nilton Cezar Tridapalli

Educação Inaciana: o início de um percurso... Fernando Guidini ...........................................................................................................................

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Assessoria de Comunicação e Marketing Luciana Nogueira Nascimento

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria.

Linha Verde • Av. José Richa, 10546 Prado Velho • Curitiba • Paraná fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040 www.colegiomedianeira.g12.br mediacao@colegiomedianeira.g12.br

Saudade - Pe. Raimundo Kröth, S.J. ENTREVISTA ..................................................................................................................................

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Pensar, existir, consumir e ser feliz um desafio contemporâneo É possível ser feliz sem consumir nos tempos atuais? Ou é impossível consumir e não ser feliz? Que diferença há nas relações entre quem faz do consumo um meio de felicidade e quem nega o consumo na tentativa de ser feliz? A sociedade contemporânea apresenta desfios à humanidade que convive com a era tecnológica e da informação, com o individualismo exacerbado e premente, com o presentismo acentuado e veloz e que busca freneticamente formas de felicidade, momentos de realização e o sentimento de completude diante de sua existência. Para nos ajudar a refletir, a pensar e ser, três artigos debatem o tema principal desta edição: Consumo e felicidade. Primeiro tratamos do conceito de felicidade e sua relação histórica, uma busca que não é exclusiva da contemporaneidade. Em seguida, o tema nos é apresentado por uma metáfora sobre o conto infantil João e Maria. No caminho entre a floresta e a casa de doces, muitas reflexões propõem uma análise sobre a sociedade neoliberal. João e Maria convivem agora com as metrópoles, as vitrines, as tentações e atrações do mundo capitalista. No entanto, refletem sobre a miséria, a fome e a busca da felicidade, que parece sempre momentânea, passageira e ligada a um produto que, depois de adquirido, perde o sentido. "A felicidade fica sempre ao alcance da mão: comprável, mas fugaz; alcançável, porém célere; distante, no entanto desejável!" Por fim, as crianças, sem limites e os pais, sem norte, são os personagens em busca

da felicidade. Vítimas de um mundo de telas, cores e produtos intermináveis que prometem a felicidade ao alcance das mãos, apenas com a senha do cartão de crédito, as crianças são o novo e melhor alvo do mix de marketing. E como resistir a ele? Leia e descubra. Entre o consumo e a felicidade, o leitor ficará dividido pela música, a literatura, a arte e o lazer. Uma análise sobre o contexto brasileiro e a visão de nossa realidade dentro e fora do país, nos provoca e convida a dialogar com as crianças sobre o tema. Finalmente, encerramos esta edição com uma homenagem. Pouco antes do fechamento da Revista Mediação, recebemos a triste notícia da perda de nosso ex-diretor Pe. Raimundo Kröth, um dos maiores idealizadores desta publicação. Ela nasceu sob a direção de Raimundo, que sempre nos cobrava a busca pela excelência. Uma Revista do Colégio Medianeira não poderia ser menos que o melhor de cada um de nós. Pe. Raimundo era provocativo, perspicaz e muito afetivo, embora mantivesse as características rigorosas de seus ascendentes alemães. Com saudade e a memória povoada por boas lembranças, republicamos uma entrevista dada pelo Pe. Raimundo ao número zero da Revista Mediação. É uma forma singela de recordá-lo e a seus ensinamentos e de homenageá-lo e agradecer pelo tempo em que tivemos o privilégio de tê-lo conosco. Boa leitura e não esquece de escrever pra gente!

Luciana Nogueira Nascimento

mediacao@colegiomedianeira.g12.br 4


Caro Professor Henrique! Sou mãe do Mateus da Silva Oliveira Stavis, da 5a série B, e gostei do seu artigo “História dentro de casa”. Achei importante o registro de onde viemos, mas também os questionamentos como: por que nossos antepassados vieram de tão longe? Como eles viviam? Quais suas necessidades e as expectativas de viver no Brasil? A nossa família é um pedaço da história que, infelizmente, se perde em três ou quatro gerações, pois os registros escritos são escassos. Somos brasileiros, uma mistura que dá samba e, além disso, dá história. Com vontade de deixar algum registro para as próximas gerações, fizemos uma prévia pesquisa, com ajuda de dos avós e bisavós e principalmente de Internet. Descobrimos um braço da família vindo da França e da Alemanha, que chegou pelo porto de Paranaguá, como muito imigrantes. Também existe um outro braço vindo do Rio Grande do Sul, um tataravô lutou na Guerra do Paraguai, apaixonou-se por uma índia Paraguaia que veio morar no Brasil. Isto é uma pequena parte de um quebracabeça que tem data para ser montado, pelo menos parcialmente. Nestas férias, iremos fazer uma pesquisa de campo e viajaremos para montar algumas peças. Seu artigo nos instigou a continuar o trabalho. Atenciosamente, Liege da Silva Oliveira Stavis

Fiquei estarrecido ao ler o texto “É pra polemizar? então tá...”, na revista Mediação número 16 . A defesa de um regime ass assino, comandado por um ditad or sanguinário como Fidel e seu politburo genocida, relativiz ado por comparações esdrúx ulas (“quantos cidadãos AM ERICANOS estão presos nos EUA por ‘dissidência ideológic a’ em um país que reiterad amente é am ea çad o pe lo ter ror ism o islâ mi co? Quantos fugiram dos EU A por serem contrários à forma que o Gover no trata os terroristas presos?”) não se coa duna com os princípios de humanidade que sempre encontrei no Colégio Medianeira. Espero que barbaridades deste tipo não contaminem meus filhos que estudam neste grande Colégio. Meu veemente protesto! Sérgio Leoni

sor Mauro Braga: Resposta do Profes ios de humaado pelos “princíp Justamente norte Colégio Mediatais tanto para o nidade”, fundamen que cada ser mim, que acredito ra pa to an qu ira ne o de seus pree buscar a superaçã pr m se va de o an hum mentáerência, mas seu co inf a oe rd pe e (m conceitos les...), e que um la uma porção de rio, a meu ver, reve ação, que está isso é a boa inform ra pa os inh m ca s do em quer buscá-la. disponível para qu Cordialmente.

Mauro M. Braga

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Prezados senhores

Meu nome é Abimael Alves de Oliveira Junior e sou pai do aluno Abimael Alves de Oliveira Neto, da 7ª Série. Primeiramente gostaria de informar o alto nível dos artigos publicados na revista Mediação. Leio-os com grande satis fação, pois sei que estou lendo algo que vai enriquecer meu conhecim ento e cultura. Gostaria de comentar sobre o artigo “É pra pole mizar? Então tá...” da revista Mediação, nº 16, Ano VI. Quero aqui propor alguns comentá rios, já que o próprio artigo fala em polemizar. Compreendi perf eitamente os comentários feitos e apresentados e apreciei muito a postura do autor em mostrar pontos fortes de Cuba. Porém, man ifesto aqui minha postura de discordar sobre a polêmica do trat amento aos presos políticos de Cuba. Penso que, antes de qualquer cois a, devemos observar que o regime político de Cuba já fala por si. É um regime autoritário e tirano. Logo, não se pode duvidar de que o povo cubano viva amedrontado e em constante pensamento de Guerra ou invasão (e nem seria diferente), o governo Cubano (como todo poder autoritário e aí lembremo-nos de nosso vizinho Cha vez e nosso novo amigo Ahmadinejad) é justamente de controla r a mídia e manter o povo sempre informado das coisas do regi me.(...) Concordo plenamente que nos são apresentadas nos jornais e na mídia informações controladas pela elite, mas não podemos pensar que estes governantes cuba nos estão vivendo um socialismo “romântico”. Infelizmente não é assim. O que se vê é tirania pura e, em Cuba, isto começa na raiz. Não é socialismo, é tirania. Socialismo é o que se vê na França, na Holanda, onde o povo vive com dignidade, onde as empresas não detêm todo o capital, onde se pode estudar, ir ao hospital, orgu lhoso de seu país, não importando se nasceu nas cercanias de Pari s ou se nasceu aqui na América (Guiana Francesa e Suriname). (...) Gostei muito do artigo. Realmente trouxe a polêmica, mas não posso concordar que Cuba é um país que trata bem seus presos políticos ou quem vai contra o regime. Que simplesmente diz para os contrários ao Regime “paguem sua passagem, podem ir embora; quando chegarem lá, escrevam ”. Não, não é isto. E quem está em Miami são filhos dos que saíram de Cuba durante a revolução. Penso que é bom que nossos filhos e alunos do Colégio leiam o artigo e pesquisem um pouco mais sobre Cuba, sua história, problemas e soluções (a Medicina dom iciliar e do esporte é uma das melhores do mundo) para que iden tifiquem e entendam este país e este povo tão sofrido. Desta form a, todos nós, e muito mais eles, poderão ficar mais céticos quanto ao que a mídia lhes passa de informação (ou desinformação). Obrigado. Abimael Jr

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Resposta do professor Mauro Braga: Olá, Abimael. Agradeço sua contribuição nesse debate. Achei pertinente, dentro da perspectiva da boa polêmica, apenas rebater algumas citações de seu comentário, que produziram discordância de minha parte(...). Abimael, falo com sinceridade: se um dia você for a Cuba e conversar com as pessoas, verá lá uma realidade muito diferente disso. O apoio ao regime é genuíno e maciço. Lá temos a noção do que seja um “governo popular”. Se você critica Ahmadinejad e Chavez por “controlarem a mídia”, sugiro investigar as grandes corporações de informação que dominam o mundo ocidental, e suas relações promíscuas com o poder. Pressuponho, também, que cidadãos cultos e educados (como os cubanos, por exemplo) saibam como filtrar essas coisas muito melhor do que os milhões de miseráveis ou mal-informados da classe média de países como o Brasil, não? Discordo veementemente dessas afirmações: por favor, reveja a história imperialista da França e da Holanda para verificar a origem desse “bem estar social”. Depois, informe-se sobre a enorme tensão gerada pela convivência entre os cidadãos nativos e os imigrantes e seus descendentes, quanto à partilha desse “bem estar” social. Certamente verá que isso está anos-luz distante do socialismo – muito mais do que a sociedade cubana, com certeza. Há um excelente artigo recentemente publicado no jornal “Brasil de Fato”, entrevistando um defensor do regime que mora em Miami e convive com os reacionários. É importante registrar, no entanto, que Miami hoje é como a Chicago dos anos 30, controlada por poderosas máfias de cubanos poderosíssimos(...). Fico tranquilo em saber, no entanto, que estes nunca mais terão chance em Cuba, pois o povo jamais permitirá que eles voltem a governá-lo. Exatamente porque amam Cuba e reconhecem as conquistas da Revolução. Cordialmente, Mauro M. Braga


Uma

VISITA ESPECIAL

às aulas de

violão Por Lucas Feron

A música é – e ninguém duvida – uma forma de comunicação. Veja como compositores de outros tempos são atuais e enriquecem a experiência estética de crianças. E vai o convite: experimente você também.

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E

Em um dia desses, um dia qualquer, resolvi convidar um amigo especial para visitar as oficinas de violão. Talvez alguns de vocês o conheçam de nome, pois sua música, com certeza, já foi ouvida por todos nós (em maior ou menor escala), seja em casa, em eventos festivos – como um casamento, ou até mesmo em trilhas sonoras de filmes. Estou falando de Johan Sebastian Bach. Dentre muitos os “poderes” que a música possui, certamente um dos mais fascinantes é o de poder realizar uma conexão com nossos antepassados, sejam eles mais recentes, aqueles que acompanharam a vida de nossos avós, por exemplo, ou até mesmo antepassados de séculos atrás, como é o caso de Bach (16851750). Através de sua obra deixada em manuscritos para a humanidade, nos presenteou com tamanha genialidade e beleza artística, seja em suas suítes, seu cravo bem temperado, suas tocatas e fugas ou em praticamente qualquer obra que tenha produzido. Deixe-me contar um pouco melhor sobre essa história de visita às aulas de violão. Em certa classe, como de costume, trouxe algumas músicas de gêneros variados e autores diversos para uma breve apreciação no final da aula. Neste dia, escolhi trazer para a audição algumas obras de Bach, o famoso compositor alemão que influenciou – e ainda influencia – muitos compositores, músicos e amantes da música, é claro. Deixei rolarem algumas obras, como a famosa Ária na corda sol e também a célebre Tocata e fuga em ré menor. Após as audições, pedi para que os alunos imaginassem a cena de um filme que se adequasse a cada obra ouvida e que cada um descrevesse para a turma o que foi imaginado. Para a primeira obra ouvida, Ária na corda sol, as descrições feitas pelos alunos giraram em torno de cenas de despedidas, sejam de amigos e pessoas queridas se despedindo por tempo indeterminado, sejam de pessoas prestes a partir para o outro lado da vida. Outros relatos descreveram reencontros de pessoas que não se viam há muito tempo. Também, como destaque, coloco a sinceridade das crianças, como no caso

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de um aluno da primeira fase do Ensino Fundamental, que se disse realmente encantado pelos sons do violino, até mesmo simulando um maestro na aula, um pouco desajeitado pela empolgação, mas certamente muito sincero e animado com a ideia. Para a segunda obra, o clima de suspense tomou conta das mentes atentas ao fabuloso som do órgão de tubo, executado na Tocata e fuga em ré menor. Aí a imaginação foi longe, e – minha nossa! – como essa geração possui talento para descrever cenas de suspense. Ao ouvir a música, o nome de “Conde Drácula” tomou conta de quase todos os relatos, além de castelos e figuras das mais diversas que foram descritas com detalhes e muita atenção pelos alunos. No início das audições, houve alguns comentários por parte dos alunos questionando o porquê de ouvir este tipo de música em uma aula de violão. Porém, foi apenas uma questão de minutos para que vários alunos se rendessem à música. Quando observei, já estavam anotando em seus cadernos o nome de Johan Sebastian Bach e as obras citadas, para, imagino eu, procurar no Youtube ou até fazer um download na internet, a fim de apreciar a obra com mais calma. O mesmo ocorreu com Heitor Villa-Lobos, considerado o “maior compositor das Américas”. Uma verdadeira surpresa para qualquer brasileiro é saber que é de nossa terra que brotou o “maior compositor das Américas” e que o próprio chegou a reunir 40.000 cantores para um concerto no estádio de futebol do clube Vasco da Gama. Para se familiarizar melhor com a magnitude da obra do Villa, recomendo a audição de sua série das Bachianas Brasileiras. Comece pelas de número 2 (O trenzinho do caipira), 4 e 5, além, é claro, de sua obra completa para violão, ou seja, os cinco prelúdios, os doze estudos, a suíte popular brasileira, o choros nº 1 e o concerto para violão e orquestra. Aliás, talvez você possa ter feito alguma analogia do nome “Bachianas” com o nome do compositor alemão que citei no início deste artigo. Realmente, as “Bachianas”, que são inspiradas em melodias do sertão brasileiro, são homenagens do compositor carioca ao alemão, que tanto o influenciou em suas obras, cada um deles inspirado em seu próprio folclore.


Uma observação de minha parte é que – não importa a época ou o estilo – todas as obras de arte possuem algo em comum, ou seja, a vida humana e seus diversos momentos. Pois, ao ouvir uma obra com cerca de 300 anos de vida, um aluno de Ensino Fundamental relata que imaginou uma cena de despedida. Isso nos demonstra que a conexão da obra de arte com a vida é inevitável, sendo como um espelho da própria vida, em que cada um enxerga um pouco de si, de sua imaginação e de seus sentimentos quando em contato com uma obra. Seja ela de qualquer época, o que realmente importa é sua beleza, a vida e o autoconhecimento que ela nos traz. É claro que neste artigo, resumo apenas alguns trechos destes momentos. Temos muitos outros artistas que também nos honraram com suas visitas, não apenas os vulgos “compositores eruditos”. Também fomos visitados por Luiz Gonzaga, Os Mutantes, Geraldo Vandré e, para o segundo semestre, muitos outros já estão com visita previamente agendada. Convido todos sugerirem novas visitas em nossa aula, para que a oficina fique cada vez mais bem frequentada e torne-se um verdadeiro ponto de encontro, de construção de conhecimento, de amizade, de paz, de crescimento, de história e muita música, é claro.

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UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA AUTOR: BENNET ROY Editora Jorge Zahar Este livro apresenta os caminhos da música do Ocidente a partir do século IX, quando surgiram as primeiras ‘composições’; o desenvolvimento da escrita e das idéias musicais e também os instrumentos e práticas adotadas nos diversos períodos dessa evolução. Quadros sinópticos de cada período mostram os vários tipos de música, seus locais de origem, sua gênese cronológica e os principais compositores da época.

ALUCINAÇÕES MUSICAIS AUTOR: OLIVER SACKS Editora Companhia das letras A música é uma das experiências humanas mais assombrosas e inesquecíveis, e o livro do neurologista e escritor Oliver Sacks, ‘Alucinações musicais’, nos faz entender por quê. A exemplo de seus livros anteriores, entre os quais se destacam ‘Tempo de despertar’ e ‘O homem que confundiu sua mulher com um chapéu’, Sacks nos oferece aqui histórias musicais cheias de drama e compaixão humana envolvendo pessoas comuns ou portadoras de distúrbios neuroperceptivos. O estudo de casos surpreendentes de pessoas com distúrbios neurológicos ou perceptivos ligados à música reitera a crença de Sacks em uma medicina que humaniza o paciente e tenta, junto com a abordagem clínica, integrar as dimensões psicológica, moral e espiritual tanto das afecções quanto de seu tratamento.

A MÚSICA E A CIÊNCIA SE ENCONTRAM AUTOR: LEINIG, ESPÍNOLA CLOTILDE Editora Juruá

Email para sugestões: lucas.feron@gmail.com Lucas Feron é professor de violão do Departamento de Arte e Cultura do Colégio Medianeira. É também graduando nos cursos de Educação Musical na UFPR e Bacharel em violão – EMBAP.

Neste livro a professora e musicoterapeuta Clotilde Espínola nos presenteia com sua enorme bagagem de conhecimentos, trazendo as mais diversas relações da música com nosso mundo de conhecimentos. Os capítulos trazem assuntos como a Música e a Física, a Biologia, a Química, a Antropologia, a Psicologia e muito mais.

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“CAPITAL

europeia” Por Diego Zerwes

Se falta sensibilidade para que as pessoas percebam que há muitos negros em Curitiba, poderia ser dito que, em grande parte, isso seria causado pela falsa representação de Curitiba, que estamos acostumados a ver e a ouvir desde crianças.

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Caro leitor, se você estiver em Curitiba, olhe ao seu redor. Observe as pessoas. Se você encontrar algum negro (preto ou pardo) e ele estiver trabalhando, tome nota que, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ele recebe, em média, 2,6 salários mínimos. Já digo, de antemão, que será uma tarefa difícil, porque, de acordo com alguns curitibanos, há poucos aqui. Essa máxima, de que há poucos negros em Curitiba, é contestada pelos dados do IBGE. De acordo com o senso de 2005, 19,7% dos moradores da capital são pretos ou pardos. A média de anos que os negros estudaram e do salário que recebem já pode soar alarmante. Imagine, então, compará-los com os dos brancos: os negros estudam 7,4 anos; os brancos 9,3. Enquanto os negros recebem os 2,6 salários mínimos, os brancos, 4,7. Para o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), os negros recebem em média 60,5% do salário dos brancos. Bem, esse “fenômeno” tem uma explicação histórica e atende pelo nome de “invisibilização”. Ele foi objeto de estudo de Marcilene Lena Garcia de Souza, Doutora em Sociologia pela Unesp e pesquisadora sobre Relações Raciais no Paraná. Ela, junto com o também Doutor em Sociologia Pedro Bodê, remontam as ques-


tões históricas. Curitiba recebe a alcunha de “a capital europeia do Brasil”, o que seria, para os pesquisadores, utilizando um termo de Eric Hobsbawn, um “processo de ‘invenção de tradições’”. Não que Curitiba não tenha recebido imigrantes europeus, o que de fato aconteceu, mas o problema, contudo, é a supressão da identidade negra. Sob esse aspecto, um jovem negro – que participa de um movimento que valoriza a cultura afro-brasileira, entrevistado por Souza e Bodê, indica algo sintomático: “foi criado um monte de praças [...], aí criaram a Praça do Zumbi [dos Palmares]”. Esse “monte de praças”, referenciado por ele, diz respeito às que carregam várias etnias em seus nomes, como a Praça do Japão, Praça da Espanha, Praça da Ucrânia, Bosque do Alemão, Memorial Polonês, Memorial Árabe. Quanto à Praça do Zumbi, ele relata: “me diga, aonde que é? Bem lá no Pinheirinho, tem um bairro, tem a favela e, depois da favela, a valeta; depois da valeta é a praça”. Sendo este artigo de 1999 (Revista de Sociologia e Política nº 13: 7-19 nov.), ainda não podia contar com a informação da reforma, salientada por Rogério Waldrigues Galindo na matéria “Curitiba descobre seus negros”, publicada pela Gazeta do Povo em 29/05: “A inauguração da nova praça, com direito a homenagem aos 54 países africanos, teve direito a pompa e circunstância. O prefeito Luciano Ducci, que terminou a obra iniciada por Beto Richa, fez questão de dizer o quanto o local era importante e de homenagear a comunidade afro da cidade. Reflexos da Copa? Parece ser mais que isso”. O que Galindo pretende dizer é que “os negros descobriram sua própria força”. Ou seja, não foram os próprios políticos que descobriram uma comunidade a mais de eleitores. Para ele, “o movimento negro é que criou um grupo que se reconhece como força nova. A ideia de por cotas na prefeitura, a reforma na praça, o projeto de mapear quilombos no interior do estado e tudo o mais são uma tentativa de correr atrás desse novo público”. Ele lista alguns feitos por essa comunidade, como o cursinho pré-vestibular para afrodescendentes, ou as pesquisas do Instituto de Pesquisa da Afrodescendência e ainda as cotas da UFPR.

Há outro fato que revela a natureza da tentativa de branqueamento da capital paranaense. Pare para pensar: além da praça, há algum monumento que suscite a presença negra em Curitiba? Muito bem, você pode ter pensado na Negra Lata D’água, nos fundos do Paço da Liberdade. Souza e Bodê constataram que a escultura não é um tributo aos negros. É uma homenagem ao escultor Erbo Stenzel. A jornalista e estudante de Ciências Socias da UFPR, Marisa Rodrigues, conta que a obra foi realizada no período em que Erbo estava no Rio do Janeiro. Para ela, a influência negra vem do local onde ele se encontrava: o Rio. Contudo, a escultura estava abandonada no quintal de sua casa, já em Curitiba. Rafael Greca a resgatou em 1966, não por ser uma representação da cultura afro, mas por ser uma obra de um artista paranaense. Além desse monumento, “‘descobrimos’ ainda um bloco de granito localizado na Praça Santos Andrade (no centro da cidade), na qual há uma placa em bronze com uma dedicatória ‘à colônia afro-brasileira’. A ‘homenagem’ da Câmara de Vereadores de Curitiba à ‘etnia negra’ vem reforçar nossa tese. A obra que lembraria a população negra passa despercebida em meio à paisagem’”, dizem Souza e Bodê. Há ainda outros lugares, ou nomes históricos. Bairro Rebouças, ou os Voluntários da Pátria. Se a presença negra em Curitiba passa ao largo dos políticos, para alguns intelectuais, não. Wilson Martins, Ruy Wachowicz, Romário Martins são os que se destacam, segundo Souza e Bodê, por exemplo, ao negar a existência de escravos no Paraná, cuja definição Wilson Martins compõe: “Sem escravidão, sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é brasileira”. Essa corrente de pensamento é contestada por Octavio Ianni: “Em linhas gerais, [...] o que ocorreu foi, inicialmente, uma predominância de índios ou seus descendentes; depois os negros e mestiços seus começaram a aumentar relativamente aos outros, chegando a dominar numericamente”. Ele chega a afirmar que em 1767, a população negra de Curitiba chegou a 50%. Mesmo que a fonte apresentada não seja totalmente precisa, indica a presença de escravidão por estas terras, ao contrário do que pensa Wilson Martins.

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Se falta sensibilidade para que as pessoas percebam que há muitos negros em Curitiba, poderia ser dito que, em grande parte, isso seria causado pela falsa representação de Curitiba, que estamos acostumados a ver e a ouvir – eu, pelo menos – desde crianças. Resolvi pesquisar no youtube o que há sobre Curitiba. No vídeo de aniversário de 316 anos da cidade, aparecem quase 40 pessoas. Dessas, três ou quatro podem ser consideradas pardas. Nenhuma negra. Outro, intitulado “Orgulho”, de seis personagens, uma é negra. Os mesmos números são para um vídeo sobre vandalismo. Talvez do início dos anos 2000, talvez antes, há um vídeo sobre o transporte público de Curitiba, o sempre elogiado transporte público. Eu não identifiquei nenhum negro. Bem, há algo de errado. Já sei! No começo dos anos 2000, ou ainda no final dos 90, ainda não havia esse dito politicamente correto. Portanto, a necessidade de colocar figurantes de todas as etnias não era uma “obrigatoriedade”. Quando esse assunto veio a mim pela primeira vez, eu olhei na minha sala de aula, 4° ano de Publicidade e Propaganda em uma universidade

privada de Curitiba. Quantos negros na minha sala? Nenhum. Olho agora a foto da formatura, com mais de 100 alunos. Três pardos. Aí eu me lembro da sala de aula da especialização, dessa vez em uma universidade pública. De 40 alunos, um negro. Tudo bem que isso é uma amostra pequena no grande universo que é o de Curitiba. Contudo, para mim, é uma amostra irrefutável de que há um sério problema por aqui. O objetivo deste texto não foi mostrar algo inédito, já que, como vocês puderam notar, ele é um recorte de uma realidade já apresentada. A proposta é tentar desmascarar este embuste que há décadas esconde a verdadeira Curitiba, é tornar visível estes 19,7% que formam a linda “capital europeia” que, das cidades do Sul, é a que mais concentra negros e a que mais tenta escondê-los. A “capital europeia” é, aliás, uma das poucas capitais em que o Dia da Consciência Negra não é feriado. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Diego Zerwes é formado em Publicidade e Propaganda (Universidade Positivo), especialista em Literatura Brasileira (UTFPR) e aluno de Letras (UFPR). No Medianeira, trabalha na Biblioteca da fase II.

A UTOPIA BRASILEIRA E OS MOVIMENTOS NEGROS AUTOR: ANTÔNIO RISÉRIO Editora 34

O QUE É RACISMO AUTOR: JOEL RUFINO DOS SANTOS Editora Brasiliense Alguns tentam provar que as diferenças sociais são determinadas por fatores biológicos. Outros explicam que o racismo surgiu da necessidade de justificar a agressão. Seria verdade? Faria o racismo parte da natureza humana? Neste livro, os primeiros passos para a compreensão deste fenômeno universal, suas modalidades e suas implicações sociais.

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Avesso ao academicismo e alheio ao politicamente correto, o poeta, sociólogo e ensaísta Antonio Risério aborda neste livro atualíssimo o sempre controverso debate sobre a questão racial brasileira. Mobilizando noções de História, Política, Lingüística, Sociologia, Semiótica, Estética e Antropologia com rara e poderosa intuição, o autor examina sob diferentes ângulos os mais variados aspectos relacionados ao tema, como as enormes diferenças da questão racial no Brasil e nos Estados Unidos; a influência africana em nossa história e cultura, da língua à literatura, da culinária ao urbanismo, da religião à música e ao cinema; a mestiçagem e o sincretismo como traço e valor do modo de ser brasileiro, e os movimentos negros na história do Brasil, desde a luta contra a escravidão até os atuais debates sobre cotas e ações afirmativas. Livro escrito não para os especialistas - embora com eles também dialogue - mas para um público amplo, ‘A utopia brasileira e os movimentos negros’ desloca os problemas de seus nichos habituais e revela perspectivas insuspeitadas para a compreensão da realidade brasileira.


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DESAFIOS DA ESCOLA

na era da

digitalização Por Carolina Prestes Yirula

Para entender como as tecnologias podem ser mais do que produtos de marketing escolar e realmente ser um integrador entre a escola e outros espaços educativos, é necessário ampliar o conceito de educação. O aluno não se educa apenas quando está dentro de uma sala de aula.

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Diante do cenário global da atualidade, é possível pensarmos em uma nova configuração de mundo, em que as relações sociais se dão, predominantemente, por meio de aparatos tecnológicos, como televisão, rádio, computador, celular. Podemos assumir, devido a essas novas maneiras de interação social, que o mundo está, de forma crescente, tornando-se um espaço digital. Para Pierre Lévy, estudioso do tema, o ciberespaço é, hoje, “o terreno onde está funcionando a humanidade”. Esse fenômeno gera diversos impactos sociais, altera comportamentos e reorganiza a dinâmica de um mundo antes marcado pela cultura do impresso. Diferentes campos sociais são afetados por essa crescente presença da tecnologia em nossas vidas, dentre eles o da educação. O aluno que hoje está na sala de aula acessa diversos aparelhos tecnológicos, fazendo deles extensões de seu próprio corpo, consome conteúdos midiáticos, vai ao cinema, vai a shows, vai à escola. Vemos então que a instituição de ensino deixa de ser o elemento que centraliza as referências do jovem. Frente a este cenário, o surgimento e a intensificação do uso de novas tecnologias representam uma nova possibilidade de repensar e desenvolver as práticas educativas. A presença significativa das tecnologias da informação na vida dos alunos cria novos desafios para a escola, que deve arriscar-se e questionar-se frente às novas exigências que surgem em decorrência deste mundo, cada vez mais “digital”.

Educação e Comunicação Para falarmos sobre o encontro das áreas da educação e da comunicação, sugiro compreendermos, de início, o que entendemos (neste texto) por educação. Em um primeiro momento, falar em educação pode remeter ao espaço escolar, que se constitui como um espaço de ensino institucionalizado, de aprendizagem formal; contudo, para o professor Carlos Brandão, doutor em Ciências Sociais pela USP, é importante considerarmos também que “a educação existe onde

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não há escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais de transferências de saber”. Desta forma, a instituição de ensino conhecida como escola passa a dividir espaço com outras instituições que cooperam para a construção do saber, e então ocorre o que podemos chamar de “pedagogia cultural”, termo que, segundo os autores Shirley Steinberg e Joe Kincheloe, enquadra a educação numa variedade de áreas sociais, incluindo – mas não se limitando – a escola. Essas áreas sociais podem ser, segundo os referidos autores, denominadas também como “áreas pedagógicas”, que seriam aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, televisão, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes, etc. Sob este ponto de vista podemos entender, portanto, que o poder da instituição escolar divide espaço com outras instituições sociais, como a igreja, trabalho, família, mídia, entre outros e, assim, aqueles que se encontram dentro da dinâmica social (os agentes sociais) buscam e constroem suas referências de mundo e seus saberes não apenas a partir do conteúdo exposto em sala de aula, mas a partir das mais diversas áreas pedagógicas com as quais entram em contato. Desta maneira, entenderemos, por educação, não apenas o ensino institucionalizado, encontrado na escola, mas sim o contato do homem com essas diferentes “áreas pedagógicas”. Portanto, ao pensarmos no ensino formal, iremos pensar também nessas outras áreas pedagógicas, pois existe uma permeabilidade entre elas; a escola, os meios de comunicação, a família acontecem simultaneamente na vida do jovem, além de acontecerem entre si; o que é divulgado na mídia pode ser pautado na escola; o que se discute na escola pode aparecer como tema de debate em casa; o que se passa em casa pode ser retratado pela mídia e assim segue-se a lógica que entrelaça as diversas áreas pedagógicas presentes na vida dos jovens. Com a revolução tecnológica, as possibilidades de comunicação expandiram-se e os educadores passaram a ter ao seu alcance novos sistemas capazes de contribuir com o ensino em sala de aula. A inserção de aparatos tecnológi-


cos ao ensino formal é fundamental, pois amplia as possibilidades de aprendizado, além de exercitar novas capacidades e habilidades dos jovens; contudo, essa aproximação requer uma análise profunda, pois, para que a revolução tecnológica possa contribuir com o sistema de ensino da escola, é preciso que ela seja incorporada e entendida como fundamental para que, junto com o progresso tecnológico, ocorra uma abertura que permita pensar (e questionar) a educação formal – colocando-a em sintonia com as mudanças e avanços que ocorrem fora do espaço físico da escola. Porém, para que seja possível o alcance dessa sintonia, existem diversos pontos que devem ser repensados no que diz respeito ao currículo escolar, o qual, segundo Ruth Sabat, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é diretamente afetado pelos “saberes que são produzidos através do currículo cultural desenvolvido pela mídia”. Desta forma, para atualizar-se frente às mudanças do ambiente externo, a educação formal deve levar em consideração estímulos que afetam os seus alunos fora do ambiente da escola, e esses estímulos encontram-se na relação dos alunos com a família, com os amigos e com conteúdos midiáticos. Para Margarida Kunsch, professora titular da USP, a escola coloca-se como “a institucionalização da educação formal em uma determinada sociedade, que tem por função possibilitar a apropriação e a assimilação de conhecimentos e habilidades úteis e/ou necessários à vida do indivíduo dentro da vida social”. Portanto, ao sugerir que almeja preparar o jovem para a vida e para o convívio social, é indispensável que a escola dê atenção ao que ocorre com esse aluno fora da sala de aula – assim, a escola deve entender quem são os “educadores” deste aluno quando ele não está em aula, para então compreender se há adequação do currículo escolar à realidade do aluno fora da sala de aula. Nas palavras de Roxana Morduchowizc, professora de Comunicação na Universidade de Buenos Aires e especialista em comunicação e culturas juvenis, “as identidades dos jovens se definem não apenas pelo livro que lêem, mas também, e principalmente, pelos programas que as-

sistem na televisão, pelos sites que visitam, pela música que escutam e pelo filme que decidem ver” (tradução nossa) – desta forma, as relações que se dão fora do espaço escolar também educam e geram comportamentos e, por isso, são tão importantes quanto a educação formal. A educação informal pode acontecer por meio do contato com mensagens midiáticas veiculadas em cinema, televisão, revistas, internet, jornais, rádio. Ela é uma realidade incontestável na vida dos jovens pós-modernos, os quais, segundo a professora da Faculdade de Educação da USP, Maria da Graça Setton, pertencem a uma “geração que precocemente sociabilizou-se com a cultura midiática”. Assim, frente a esta convivência do jovem com o conteúdo midiático, é importante entender como ocorre a conciliação entre o consumo do conteúdo escolar e o consumo do conteúdo disponibilizado pela mídia. A interação do jovem com o conteúdo divulgado pela mídia interfere diretamente nas condutas por ele assumidas. Para Tânia Esperon Porto, doutora em Educação pela USP e mestre em Tecnologia Educacional, “o aluno convive com duas situações: ora tendo que seguir parâmetros propostos e exigidos por uma escola reprodutora e ora vendo, através da mídia, uma realidade dinâmica e estética da sociedade cuja cultura está em constante efervescência”. Esse paralelismo interfere no comportamento do jovem em sala de aula; por isso, surge a necessidade de repensar a educação formal e de considerar a integração com a educação informal. Se a escola

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quer ser significativa na vida dos jovens, deve compreender a realidade em que eles vivem. Neste contexto surge um novo tipo de estudante, com novas habilidades e capacidades e, para atender a este novo perfil de aluno, surge a necessidade de pensar em uma nova configuração para o ensino formal, além de outro desafio – a necessidade de pensar em um novo perfil de educador, o qual passaria a ser um “educomunicador” e que seria, segundo Ismar Soares, coordenador-geral do Núcleo de Comunicação e Educação da USP, (...) um agente cultural com conhecimentos suficientes no campo da educação e com manejo profundo das teorias, linguagens e técnicas da comunicação. Sobretudo um profissional com capacidade de criação, para dar vida e sentido aos recursos colocados pela civilização a serviço de toda a humanidade, trata-se de um verdadeiro gestor de processos comunicacionais: faz nascer e gerencia projetos e produtos na área da comunicação nos espaços do ensino formal e não formal.“

Com esse perfil, o educomunicador assume papel fundamental, pois se responsabiliza por trazer para a sala de aula a linguagem do jovem, a cultura da mídia e a realidade de um mundo mediado, essencialmente, pela tecnologia. Assim, seria construído um espaço de debate, que por meio do currículo escolar tradicional possibilitaria o questionamento e postura crítica e reflexiva dos alunos acerca dos fatos que os rodeiam fora das paredes da escola. Ele aproxima, portanto, a

escola e a mídia – ambas “frequentadas” pelos alunos, e responsáveis por seus comportamentos, aprendizados, costumes, valores. Segundo a professora Margarida Kunsch, ao promover essa aproximação, a escola assume que é um “mecanismo social ao lado de outros”, e reconhece não ser a única instituição detentora do processo de ensino. Essa posição contribui para o seu sucesso, já que passa a considerar as necessidades de seus educandos e, segundo Tânia Esperon Porto, a entender que as “novas gerações têm novos modos de compreender e de se envolver com as questões atuais”. Esse entendimento acerca da necessidade de trazer à dinâmica escolar aquilo que ocorre fora dela configura-se como uma necessidade já reconhecida. No Brasil, foi instituída, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entre outros aspectos, ela defende que o ensino formal deve valorizar as experiências extraescolares de seus alunos, vincular as práticas pedagógicas às práticas sociais, articular-se com a família e a comunidade, criando processos de integração da escola com a sociedade. Esse reconhecimento leva o ensino formal a reorganizar e repensar seu modelo de atuação; a partir do momento em que temas presentes na vida social são integrados às matérias e conteúdos formais, podemos pensar em uma “transversalidade na educação”, que valoriza a presença da realidade extraescolar dentro da proposta pedagógica. Essa “transversalidade” pode ser vista nos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que sugerem que “temas transversais”, como ética, saúde, consumo, orientação sexual, trabalho, sejam integrados ao conteúdo programático escolar, visto que são importantes e presentes na vida dos alunos. Essa tendência à transversalidade pode favorecer o envolvimento do aluno com o conteúdo que lhe é passado em sala de aula; apresentar conteúdos com os quais os jovens se deparam em seu dia-a-dia e fazer uso de linguagens que são comuns a eles pode reduzir a dispersão em aula, e dar maiores possibilidades para que o aluno torne-se interessado no conteúdo oferecido pelo currículo escolar. Além disso, segundo Maria da Graça Setton, ao trazer “a mídia para den-

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tro das salas de aula (...) como material didático, como fonte de informação, como registro de uma época e história (...) servindo como instrumento ideológico que ajuda na construção das identidades individuais e coletivas”, o educador oferece caminhos para que o aluno consiga posicionar-se dentro de sua realidade extraescolar, tornando-o capaz de criticar, questionar, problematizar aquilo que lhe é apresentado por meio dos conteúdos midiáticos.

Carolina Prestes Yirula é formada em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Esse artigo foi escrito a partir dos estudos que desenvolveu em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), que teve como grande área de pesquisa a Educomunicação.

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ALIENÍGENAS NA SALA DE AULA – UMA INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO ORGANIZADOR: TADEU TOMAZ DA SILVA Editora Vozes A obra é um conjunto de ensaios focalizados em torno da perspectiva dos ‘estudos culturais’. Tem o objetivo de abrir esse campo de estudos para uma discussão entre as pessoas envolvidas com educação no Brasil. Analisa a área de ‘estudos culturais’ e sua aplicação à análise e à crítica educacional.

A CULTURA DA MÍDIA NA ESCOLA – ENSAIOS SOBRE CINEMA E EDUCAÇÃO AUTORA: MARIA DA GRAÇA JAVINTHO SETTON Editora Annablume “Neste livro, enfrentamos um desafio. Sabendo que a escola, na atualidade, vem se deparando com outros parceiros em sua ação pedagógica - e aqui ressaltamos a emergência da mídia - seria necessário aprendermos, como educadores, outras linguagens passíveis de transmitir e produzir conhecimento. Ainda que o código escrito seja o grande difusor e matéria-prima de toda e qualquer produção e manipulação do conhecimento característico dasformações modernas, é preciso observar o surgimento de outros estímulos criativos em nosso meio cultural. Mais especificamente, tratando-se de sociedades latinoamericanas como a brasileira, é preciso atentar para a presença de uma cultura de massa, com força socializadora, que preenche a vida de nossas populações, estas muitas vezes ainda não plenamente familiarizadas com a linguagem culta e letrada.” (Graça Setton)

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Apropriando-se ironicamente da máxima cartesiana do “Penso, logo existo”, os três artigos que se seguem mostram como algumas noções de felicidade são, no mínimo, confusas na nossa vida e no nosso mundo do consumo. Isso é atual, é verdade, mas não é exclusividade do jeito contemporâneo de viver.

compro,

logo SOU

?

FELIZ Por Vinícius Soares Pinto

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D

Definir felicidade, não sendo por meio de exemplos, é um grande desafio. É uma daquelas palavras que todos parecem saber o que é, mas na hora de explicar sobre o que, exatamente, se trata, a situação se complica. O mesmo acontece quando somos perguntados sobre o que é o tempo, a justiça, o pensamento e a razão. Santo Agostinho, filósofo da Idade Média, consegue ilustrar o que quero dizer, quando questionado sobre o que seria o tempo: “Se ninguém me perguntar eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei”. Pois bem, o que é felicidade para você? Há quem diga que é ter dinheiro de sobra para comprar objetos de desejo, alguns diriam que é ter saúde e muitos amigos, para outros talvez seja sinônimo de casa cheia, com filhos e netos, ou seja, pode ser um monte de coisas diferentes, mas todas parecem ir para o mesmo caminho: algo que faça o homem viver melhor. O dicionário Aurélio também não diz algo muito diferente: 1. Qualidade ou estado de vida. 2. Bom êxito; sucesso. Indepentende do significado de felicidade, parece ser natural que todo homem vá atrás dela, que busque as coisas que, acredita, lhe proporcionarão uma vida mais feliz. Pode ser que, no fim das contas, muito do que o homem acredite proporcionar a prometida felicidade realmente não a traga. Isso é muito comum de ser observado, pois a felicidade nunca nos foi tão prometida e oferecida como agora. Hoje, você pode encontrá-la em potes de margarina, em celulares coloridos, em roupas finas, ou, se você quer, realmente, ser muito feliz, em apartamentos com áreas de lazer privativas – lugar onde sua família estará segura e distante dos seres infelizes, aqueles que não podem pagar pela felicidade. Certamente, a maior responsável por associar felicidade à compra é a Publicidade, esta ciência que se utiliza de belos modelos sorridentes, dotados de discursos convictos e treinados para oferecer possíveis atalhos para a felicidade, para uma vida melhor. Desta forma, para ser feliz, basta escolher, sacar o cartão e digitar a senha. Caso não possa comprar a felicidade à vista, não faz mal! Ela cabe no seu bolso, em sessenta prestações. Nas palavras do consagrado fotógrafo Oli-

viero Toscani, “a publicidade não vende produtos nem ideias, mas um modelo falsificado e hipnótico da felicidade”. Além da procura desenfreada por uma vida mais feliz a partir da compra por objetos que, num primeiro momento, aparentam ser a solução para a ausência de felicidade, existe o problema do homem não se conformar com a realidade e querer imitar uma hiper-realidade a qual lhe é apresentada a todo momento, por meio das mensagens publicitárias. A pessoa começa a não distinguir mais a realidade da fantasia, sente-se seduzida e atraída a querer fazer parte desta, tentando tornar-se imagem e semelhança dos protagonistas dos anúncios. O escritor inglês Frederic Beigbeder, no livro $29,99, consegue ilustrar muito bem esta mistura entre realidade e fantasia vivida pelo homem pós-moderno, ao dizer que, diferente de tempos anteriores, quando a publicidade imitava a vida, hoje é a vida que imita a publicidade. Na década de 1950, por exemplo, não é difícil encontrar anúncios que reproduzam típicas donas de casas para convencer sobre os benefícios de um novo eletrodoméstico. No entanto, hoje é diferente. A realidade não basta. É preciso recorrer a uma hiper-realidade, uma hiper-felicidade. Desta forma, a figura da típica dona de casa é substituída por mulheres com corpos corrigidos por computadores e figurinos sensuais, com o objetivo de convencer o quão necessário é o produto anunciado. O perigo está quando a pessoa comum não consegue distinguir sua realidade da fantasia anunciada, sendo capaz de acreditar e fazer das suas ações uma busca interminável pelo conceito de felicidade ligado aos produtos. Ainda de acordo com Toscani, “a publicidade nos ensina como nos comportar na sociedade do consumo. Ela propõe um modelo social: ‘compro, logo sou’”. Apesar da busca pela felicidade por meio do consumo parecer ser tema de discussão recente, geralmente ligada à realidade pós-moderna, bombardeada pela avalanche de simulacros e a valorização do imediatismo, há quem critique este modo de vida já há três séculos antes de Cristo. Refiro-me ao filósofo grego Epicuro, cujo discurso critica o hábito das pessoas de procurar a felicidade nos lugares errados. Para ele, bas-

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tam três coisas para o homem ser feliz: ter amigos, uma vida autoanalisada e liberdade. Não por acaso, grande parte da publicidade faz associações dos produtos anunciados à liberdade e aos amigos. Repare: qual anúncio de carro ou cartão de crédito não lhe promete liberdade ou uma viagem ao lado de amigos? A reflexão e a autoanálise, obviamente, não serão argumentos para a venda de um produto, pois a partir do momento que o homem a pratica, também não age por impulso e, consequentemente, pensa duas vezes antes de consumir. Portanto, quando o homem cai na tentação da compra, atraído pelas promessas de se tornar alguém mais feliz, na verdade apenas materializa na forma de um bem o seu desejo por liberdade e companhia de amigos. No entanto, se o homem não reflete sobre sua vida e atitudes, essa alegria é passageira e, num curtíssimo espaço de tempo, sente novamente a necessidade de materializar suas carências. Com o intuito de conscientizar e lembrar as pessoas de que elas não se tornariam mais felizes ao comprar, um epicurista da cidade de Oenoanda, Diógenes de Oenoanda, em

A PUBLICIDADE É UM CADÁVER QUE NOS SORRI AUTORA: OLIVIERO TOSCANI

120 d.C, construiu um enorme muro de pedra em que escreveu toda a filosofia da felicidade de Epicuro, próximo a um movimentado mercado. Para encerrar, tome como exemplo a atitude de Diógenes e imagine um mundo onde, ao invés existirem, por todos os lados, apenas anúncios luminosos e coloridos que nos estimulam a comprar, houvesse mensagens nos questionando o quão, realmente, precisamos daquilo que compramos e lembrando-nos de nossos desejos verdadeiros. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Vinícius Soares Pinto é formado em Publicidade e Propaganda (UP), estudante de Filosofia (UFPR) e pós-graduando em Comunicação, Cultura e Arte (PUCPR). Trabalha no Laboratório Audiovisual do Colégio Medianeira.

$ 29,99 AUTORA: FREDERIC BEIGBEDER Editora Record

Editora Ediouro O livro conta a trajetória de Toscani desde os tempos em que ra fotógrafo de moda das principais publicações européias, narra os bastidores das conversas com Luciano Benetton e todo o processo de criação do premiado e ao mesmo tempo combatido publicitário. Oliviero diz que o consumidor do mundo atual é bombardeado com promessas ridículas e slogans repetitivos.

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$ 29,99 é uma parábola sobre a propaganda, seus súditos e profissionais, entre eles o próprio autor. Octave é um publicitário famoso, com um salário invejável e capaz de atrair ainda mais dinheiro, mulheres e cocaína em quantidades suficientes para torná-lo uma espécie de super-homem. Mas, na verdade, logo o leitor descobre que Octave está mais para morto do que vivo, é infeliz, insatisfeito e nem todo o aparente glamour de sua vida o impede de ser um eterno nostálgico, noite e dia suspirando pela mulher que o deixou.


consumo, logo

EXISTO Metáfora Inepta e Desconexa Sobre a Felicidade

Por Adalberto Fávero

Não nasceu de nenhuma costela, não conheceu nenhuma serpente, não ofereceu nenhuma maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer ‘parirás com dor e teu marido te dominará...’ Enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas. (Eduardo Galeano, De pernas pro ar) 21


J

João e Maria, depois de se perderem na floresta, quase serem comidos pela bruxa, voltarem para casa e “serem felizes para sempre”, agora já são um casal comum (ainda que com certa idade, é óbvio), desses que adoram a cidade em que moram e costumam pintá-la em cores de arcoíris, com seus teatros de arame, de madeira ou de alvenaria, pré-montados ou embelezados vagarosamente... a diferença pouco importa. Não por acaso residem numa capital projetada como referência de um desses reinos do sul, agora em ascensão na geografia do mundo. São pouco acostumados a duvidar das coisas. Enxergam o mundo por óculos de grau muito bem definido e com uma lente só. Mesmo assim, ultimamente, andam pensativos e desconfiados, ou melhor, espantados com algumas novidades das poucas ruas e dos muitos anúncios que costumam acompanhar. Há quem diga que os dois estão se tornando filósofos ou bom pensadores em vista de algumas impressões que manifestam, além de certo ar de desconforto presente nos seus olhares. Em tempos de política, de textos raivosos na internet, de propagandas gratuitas, certo dia falaram numa só voz que algo anda errado com a felicidade. Pareceu, a seus amigos, que essa expressão assemelhava-se a afirmar que há algo de quente no gelo. No entanto, o que lhes passava pela mente é que as coisas andam muito fugazes e que todo dinheiro que tinham não lhes satisfazia o bem estar subjetivo. Coisa de filósofo, pensaram eles. Pareceu estranho ouvir isso das plácidas e educadas bocas de João e Maria, mas afinal já não se tratava apenas do tal casal da história de contos de fadas e sim de gente moderna, atual, de uma cidade admirada, abençoada e cantada pelo país afora. Acontece que essa tal metrópole anda amarrotada de shoppings e ali não é lugar onde se encontre amor, amizade, ajuda em hora de necessidade, respeito a um colega sofrido... Parece mais provável encontrar indiferença, solidão na multidão e o desejo incontrolável de consumir. Nesses locais acontece um encontro inalienável – mas alienado – entre o consumidor e a mercadoria. Já não se sabe o que mais importa, se o consumidor ou o que ele consome, porém as bolsas nos braços e as marcas de grife dão a

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impressão de constituir os sujeitos, o que se comprova pelos seus andares altivos entre a multidão alheia ao que se passa. Essa prática de medir a felicidade pela quantidade e qualidade do que se consome é cada vez mais presente, mas também mais frustrante na subjetividade pessoal e coletiva. Enfim, o marketing tem se proposto a produzir felicidade pelo consumo e isso tem causado indigesta frustração na propaganda. Isso parece ser verdadeiro porque o consumo não pode acabar e assim não se chega à felicidade de fato e sim à alegria momentânea e sem ponto de chegada. João e Maria sempre adoraram a moda como se ela fosse uma espécie de certificado de validade pública do seu status e de sua realização. De alguma forma, era a exposição da própria felicidade. O problema é que, ao confiar nas marcas, recebe-se um certificado de felicidade de curto prazo e vai se hipotecando o futuro. Passase a ser reconhecido pela grife e a própria identidade está impressa nesse reconhecimento. Tal situação tem incomodado os nossos heróis desde que descobriram que as antigas fadas e bruxas há muito tinham sido assassinadas “pelo realismo empírico” da notícia. Antes eles tinham um projeto de futuro que dava sentido aos passos e agruras da vida. Nessa nova situação, veem-se tentados a anular o passado, renascer e adquirir um novo eu a cada dia e a cada nova proposta de consumo. Há um desejo crescente de fugir do próprio eu, adquirir algum sossego em pacote já acabado e arranjar um jeito mais fácil de conseguir a felicidade. No entanto, alguma coisa parece morrer dentro deles ao não traçar mais metas que pareçam impossíveis, mais ou menos como na tentativa de chegar ao horizonte e perceber que ele se afasta, mas isso apenas obriga a continuar a caminhada em sua direção. A felicidade, anteriormente, sempre se apresentava com essa característica. A impressão de João e Maria é de que a felicidade está cada vez mais cara; no entanto, é tão fugaz quanto as migalhas de pão que um dia jogaram no chão para achar o caminho de volta para casa. Essa série de novas compras que a propaganda anuncia ser suficiente para alcançar a felicidade é vendida nas lojas e restaurantes, porém a maioria está impossibilitada de alcançá-la.


O fundamental é não deixar acontecer a autodepreciação. O resto é tédio. O sonho maior de estabilidade vai se consumindo pragmaticamente na luta pela sobrevivência à revelia das utopias coletivas. As mortes violentas apavoram, os vizinhos são suspeitos, os barulhos aterrorizam, o fanatismo ideológico impressiona, o desejo de vida pacífica cerca-se de arames elétricos... não se aspira mais revolução, transpira-se medo! Há um sentimento de desistência do presente diante do futuro inconcebido que exige salvavidas de satisfação em curto prazo e o culto dos resultados. Os trabalhadores e as empresas agora vivem e se alimentam deles. 24 horas por dia o marketing impinge a necessidade de conquistar a felicidade pela mercadoria e pelo resultado imediato e instantâneo. Às vezes, João e Maria acham que não voltaram para casa e estão ainda em algum canto da terrível floresta com a velha madrasta à caça da própria destruição. Não importa tanto no que acreditam, é necessário ter pressa. Essa metrópole onde vivem levanta brindes e profere altos vivas ao cimento e ao asfalto. De um lado ou outro foram criados enfeites para enganar os olhares insanos – porém o calor aumentou. A chuva caiu refrescante. Aí se brindou a chuva, mas veio a enchente. Os rios, escoadouros e cisternas não venceram. Houve o caos, sobretudo nas periferias. Pedras caíram dos morros e as casas e as vidas foram levadas. Houve mortes. Houve espanto. No centro de toda água boiaram manequins e marcas de grife. Chefiando o carrossel de esperanças perdidas estavam a nike, restos de sanduíches mcdonald’s, esfirras do habib’s e um outdoor com a inscrição “amai-vos como eu me amei.” Atrás dessas promessas de felicidade vinham corpos, todos descorados e indigentes

pela indigência da cidade, do cimento, do asfalto e dos esgotos malcheirosos. A ideia de fazer da vida uma obra de arte quer dizer viver em transformação permanente, se autodefinir continuamente e o eu antigo precisar ser desconstruído e tecido de novo, ininterruptamente. Entretanto, a mercadoria despersonaliza e aniquila quando reduz a cidadania do homem ao status de consumidor. Ela própria é que adquire personalidade e sentido. É como retirar a cafeína do café: pode ser bom para a saúde, mas é insalubre para o bom degustador. Não parece café. O inferno, se de fato existe, deve estar repleto desses personagens insalubres e frios, daqueles que desistiram de viver com alegria e paixão e se contentaram com a voraz volúpia do mercado. Consumo, logo existo, deve ser a loa coletiva e permanente a satanás! Nossos heróis têm um ponto de vista confuso sobre a situação em que vivem, porém essa pode ser uma virtude, caso deflagrem a aventura arrojada de andar em alguma perspectiva menos instantânea e vazia. Essa questão do lugar de onde se fala e do ponto de vista é estratégica para uma saída em direção a um novo horizonte. Isso faz lembrar que “do ponto de vista do oriente do mundo, o dia do ocidente é noite. Na Índia, quem está de luto se veste de branco. Na Europa antiga, o Negro, cor da terra fértil, era a cor da vida, e o branco, cor dos ossos, era a cor da morte. Segundo os velhos sábios da região Colombiana do Chaco, Adão e Eva eram negros e negros eram seus filhos Caim e Abel. Quando Caim matou seu irmão com uma bordoada, trovejaram a ira de Deus. Diante da fúria do Senhor, o assassino empalideceu de culpa e medo, e tanto empalideceu que branco se tornou até o fim dos dias. Os brancos, somos todos filhos de Caim.” (Eduardo Galeano, em De pernas para o ar). A propósito do lugar de onde olham o mundo, João e Maria possuem muitas dúvidas. Nem mesmo lhes é claro se estão na terrível floresta de outrora, no meio de um belo sonho de consumo ou se presos num emaranhado de pedras. Isso é explicável, porque cresce neles a sensação de que, em torno de seu convívio, os mesmos que fabricam a miséria declaram guerra aos desesperados da terra. A lei oficial surge a seus olhos como uma frágil teia de aranha que só apanha os pequeninos que se arriscam a atravessar

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seus limites claramente impostos e expostos. Não segura peixe grande! Perguntam-se, permanentemente, se chegará um momento em que poderão e saberão lançar âncoras sobre essa situação transitória em que vivem. Ou será que a situação está mais para a catapulta constantemente içada e capaz de jogá-los para frente sem noção de ancoradouro e porto seguro? Será a autocriação e a autoinvenção permanente? Terá a roda do mundo emperrado quando ruiu o muro de Berlim? Com ele terá desmoronado o edifício do bem e do mal, deixando órfão o próprio diabo? As drogas mais vendidas na atualidade serão mesmo as da produtividade e eficiência? Resumirão elas, de fato, as novas tábuas da lei? Inovação será mesmo sinônimo de resultados? Talvez fosse melhor a João e Maria enfiaremse novamente nos livros dos contos antigos ou reiniciar os caminhos da velha floresta, ainda que sem as migalhas de pão. Ou não? Quanto mais olham para o universo, mais ele lhes parece com um pensamento e quanto mais o examinam mais imprevisível se apresenta. Impressiona-os o fato de que os seres humanos foram reduzidos a seres urbanos e eles são de um tempo em que os mágicos são os engenheiros da alma. Essa situação sufoca, causa espanto e impotência. A felicidade fica sempre ao alcance da mão: comprável, mas fugaz; alcançável, porém célere; distante, no entanto desejável!

Há um pessimismo arguto e angustiante no ar como se os dias atuais fossem incapazes de possibilitar a felicidade ou como se as amarras do consumo prendessem o ser e a capacidade do sonho. Vale lembrar, outra vez, Galeano falando de certa vista do final do século: Está envenenada a terra que nos enterra ou desenterra. Já não há, só desar. Já não há chuva, só chuva ácida. Já não há parques, só parkings. Já não há sociedades, só sociedades anônimas. Empresas em lugar de nações. Consumidores em lugar de cidadãos. Aglomerações em lugar de cidades. Não pessoas, há públicos. Não há realidades, só publicidades. Não há visões, só televisões. Para elogiar uma flor, diz-se: “Parece de plástico”.

Aí estão João e Maria, Maria e João, a vida, a cidade, a metrópole, a esperança, a empresa, o consumo, a pessoa, a sociedade e a nação. O esbanjo e a falta de pão. A felicidade ou não? Andar para a frente, ver o futuro, contentar-se com o consumo ou enfiar a cabeça no chão? Fazer história, caminhar novos caminhos ou aceitar ficar presos no alçapão? É isso, João e Maria, Maria e João! (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Adalberto Fávero é diretor acadêmico do Colégio Medianeira. Formado em Pedagogia, História e Teologia, é especialista em Currículo e Práticas Educativas (PUC-RJ) e mestre em Educação (PUCPR).

VIDA PARA CONSUMO AUTOR: ZYGMUNT BAUMAN

DE PERNAS PRO AR AUTOR: EDUARDO GALEANO Editora L&PM Editores Há cento e trinta anos, depois de visitar o País das Maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias, não precisaria atravessar nenhum espelho: bastaria que chegasse à janela.

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TRADUTOR: MEDEIROS, CARLOS ALBERTO Editora Jorge Zahr Zygmunt Bauman nos revela a verdade oculta, um segredo bem guardado da sociedade contemporânea - a sutil e gradativa transformação dos consumidores em mercadorias. As pessoas precisam se submeter a constantes remodelamentos para que, ao contrário das roupas e dos produtos que rapidamente saem de moda, não fiquem obsoletas. Bauman examina ainda o impacto da conduta consumista em diversos aspectos da vida social - política, democracia, comunidades, parcerias, construção de identidade, produção e uso de conhecimento. E não esquece de analisar como esta característica parece evidente no mundo virtual - redes de relacionamento, como Orkut e MySpace, não trabalham com a idéia do homem como produto?


“SOFRO,

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COMPRO”

OU

OLHO,

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PRECISO! Por Luciana Nogueira Nascimento

A angústia do ter no lugar do ser não atinge apenas os adultos. As crianças são as maiores vítimas do hiperconsumo que impõe sentimentos e necessidades ligadas ao emocional e exige escolhas imediatas para a sobrevivência dos pequenos consumidores. Os pais... ah! quantas dúvidas diante de tanta responsabilidade! 25


Q

Quatro horas por dia na escola, oito na frente da televisão. Entre os enredos que fascinam estão mundos prá lá de fictícios, absolutamente irreais, porém sedutores, encantadores e que despertam os sonhos mais profundos e sinceros de que a vida fosse mesmo um conto de fadas, com vestidos rodados e sedosos, cabelos perfeitamente penteados, corpos desenhados com varinhas de condão ou espaçonaves fantásticas e armas milagrosas capazes de exterminar qualquer contrariedade. Os sonhos surgem para as crianças, como ocorreu um dia para os adultos de hoje, que muitas vezes acabam usando os filhos para realizar desejos contidos na infância, para uma geração que conheceu o significado da palavra escassez e que procura, ao máximo, poupar os filhos desta frustração, do querer e não poder. Gilles Lipovestky defende que o consumo emocional, diferente do marketing tradicional, apela para a memória afetiva e sua ligação direta com a marca. Esta estratégia funciona não só com as crianças um pouquinho mais crescidas, os adolescentes, mas com os adultos que vibraram, por exemplo, com o relançamento dos personagens da Vila Sésamo ou da boneca Susi ou do Capitão Marwell. Não são brinquedos ou personagens de programas atuais. Todos foram relançados intencionalmente para o público infantil, mas com o apelo ao público mais velho. Na sociedade do hiperconsumo, os "abusos" do consumo são permitidos segundo o livro A Felicidade Paradoxal: Ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo, de Gilles Lipovetsky. Para o autor, "neste momento, os indivíduos não compram mais tão motivados pela pressão social, mas motivados pela vontade, para a satisfação do próprio prazer. Vivemos num momento de hedonismo, onde o indivíduo necessita para a visibilidade social se apresentar como pleno, satisfeito e feliz". O mesmo se aplica ao consumo na infância. Embora a criança não tenha plena compreensão do que significa "visibilidade social", ela percebe as reações de crianças e adultos diante de seu comportamento de consumo e associa esta reação ao sucesso ou à frustração. Complementando ou parafraseando a máxi-

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ma cartesiana, "sofro, logo compro" resume a ideia do que Lipovetsky trata como o ópio da sociedade. As "pílulas da felicidade" encontradas nos shoppings, nos cartões de crédito, nas compras online, são a medicalização, a saída encontrada para as já muito comuns síndromes, depressões e pânicos decorrentes não apenas do não saber lidar com grandes desafios ou situações de fracasso, mas também como uma forma de fuga. Fuga, por exemplo, de responsabilidades ou do sentimento de culpa pelo desejo incontrolável de ascensão social e profissional, o que obriga os pais a assumirem cada vez mais compromissos profissionais e a ocuparem o tempo cada vez menos com os filhos, em casa. Hoje não é simples ser criança e conviver com os apelos da mídia, a escassez de apelos da escola, o despreparo ou ganância dos pais, a cobrança dos colegas e a imposição dos intervalos comerciais. Como a criança pode se apropriar de seu contexto, entender sua posição na família e na sociedade, compreender o que é conhecimento, limites, respeito, amizade e felicidade na sociedade de consumo? Susan Lin, pesquisadora da Universidade de Harvard, constatou que o excesso de publicidade provoca inúmeros distúrbios nas crianças. A ela estão relacionadas a obesidade precoce e a anorexia, a sexualidade precoce e os distúrbios familiares. Em referência a esta mesma pesquisa, Frei Betto comenta no artigo "Dia da Criança: cidadão ou consumista?" que são menos felizes as crianças influenciadas pelas ideias de que sexo independe de amor, a estética do corpo predomina sobre os sentimentos e a felicidade reside na posse de bens materiais. Entretanto, os pais não percebem com facilidade esta infelicidade. Consumo e felicidade se confundem na cabecinha dos inocentes seres de 1 a 6 anos e nos nem tão inocentes de 7 a 13 anos. Como receber enxurradas de mensagens que ordenam e seduzem, ditando a boneca do momento ou o carrinho que faz as acrobacias mais "maneiras", as roupas que mais os fazem parecer com artistas do cinema, os produtos que os tornarão mais adultos e livres para escolher e determinar o que querem, e não mais pedirem aos pais? Como eles podem não querer tudo o que surge nas propagandas esteticamente perfeitas, coloridas


e sonoras, que sugerem que a felicidade pode ser encontrada em cada brinquedo, em cada produto apresentado? É impossível resistir à frase "Eu quero...", "Eu preciso...". No livro Crianças do consumo - a infância roubada, Susan Lin pergunta: "Como pode uma família, sozinha, proteger os filhos de uma indústria que gasta US$ 15 bilhões anualmente para manipulá-los?" E esse é o novo estratagema dos magos do marketing para as crianças - manipulá-las não só sobre querer consumir, mas sobre como consumir, já que elas mesmas não podem ir ao shopping sozinhas e pagar pela compra. Além de criar na cabecinha delas uma necessidade, que não existe, eles ensinam, de maneira sutil e quase imperceptível aos menos atentos e desavisados - e neste grupo estão prioritariamente as crianças - como se deve fazer para se ter o que quer. Agora, mais do que querer um determinado produto, a criança é induzida a argumentar com os pais a sua necessidade. Não estranhe quando entrar em uma loja de brinquedos e encontrar os filhos dizendo aos pais "mas mãe, você não entende, eu preciso dessa boneca. Ela será minha amiga e companheira, vai me ajudar a passar o tempo quando estou sozinha em casa, vai me fazer companhia enquanto você vai trabalhar". Bingo! Quase com lágrimas nos olhos e um arrebatador sentimento de culpa, a mãe se dirige ao caixa com a boneca e mais meia dúzia de acessórios que compensam a criança pela ausência dos pais em algumas horas do dia. E, uma vez que a fórmula funciona, não há mais caminho de volta. A criança passa a se especializar na argumentação até ter tudo o que quer ou até que os pais retomem a consciência e a rédea da situação e se lembrem da aplicação das palavras educação, limite, consumo e respeito. Apesar disso, não é a atitude da criança que deve ser condenada. Ela foi colocada oito horas por dia em frente a uma babá eletrônica que emite som e imagens com o consentimento, e às vezes por determinação, dos pais. E não vamos entrar aqui na polêmica dos milhares de "desculpas" do mundo contemporâneo: preciso trabalhar, não tenho com quem deixar, não tenho como sair do trabalho para ficar com o filho, quando estou em casa tenho tantos afazeres que não dá tempo de brincar, não dá tempo de conver-

sar, eu queria muito, mas... Todos somos reféns desta dinâmica familiar. Mas todos devemos assumir verdadeiramente o papel de educadores quando se trata de tecer as tramas, os tecidos, a cadeira de relações que moldarão a adolescência e a vida adulta destas crianças. "Crianças são seres miméticos por natureza. A melhor maneira de interessar um bebê em música é colocá-lo ao lado de outro que já tenha familiaridade com um instrumento musical. Ora, o que esperar de uma criança que presencia os pais humilharem a faxineira, tratarem garçons com prepotência, xingarem motoristas no trânsito, jogarem lixo na rua, passarem a noite se deliciando com futilidades televisivas?", argumenta Frei Betto em seu artigo. E não há argumento melhor. As crianças são o reflexo dos pais em casa, dos professores e colegas na escola. Elas agem, até certa idade, por reflexo. Depois, por comparação. O Instituto Alana, dedicado à questão do consumo na infância, criou um manual "O que fazer para proteger nossas crianças do consumo". Uma das primeiras considerações diz que "questionando, denunciando abusos, orientando e dizendo não sempre que preciso poderemos deter este ciclo nitidamente vicioso onde a criança manipulada manipula os pais e estes, manipulados também, cedem ao apelo consumista, confundindo amor com permissividade". Talvez o que nem todos tenham é preocupação ou o entendimento de como orientar a criança sobre o que ela vai receber nestas oito horas diárias. A primeira e, acredito, mais importante atitude a tomar é o diálogo, importante para o contraponto da instantaneidade das mensagens, para a descartabilidade dos produtos, que se estende às pessoas, para a construção da autonomia e da liberdade de escolha frente à imposição da mídia, para que se teçam relações sólidas, saudáveis e de confiança para que a criança encontre um porto seguro em meio ao mar de ansiedade criado pelo desejo de consumo. E todo momento disponível deve ser aproveitado para se ter uma boa conversa com os filhos. Sem formalidades ou imposições, apenas uma boa e equilibrada conversa que fará toda a diferença. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

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Como habituar os filhos ao uso moderado da TV

A televisão é o meio mais poderoso para a formação do hábito de consumo. Por isso, aí estão algumas ideias para moderar a exposição da criança à TV:

Diminuir o número de televisores em casa e retirar os aparelhos dos quartos das crianças ou evitar colocá-lo ali.

Dividir o tempo frente à TV com outros membros da família pode levar a conflitos, mas também pode ajudar as crianças a aprender regras importantes como negociação, cooperação e comprometimento.

Limitar o número de horas frente à TV é fundamental para as crianças de qualquer idade, lembrando que quando a criança é pequena, fica ainda mais fácil fazer isso: "É de pequenino que..."

Desligar a televisão durante as refeições, além de diminuir a exposição à publicidade, permite que a criança se concentre no que está comendo e per-

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ceba quando já está saciada, evitando, assim, os riscos de distúrbios alimentares.

Os pais de bebês e de crianças com menos de dois anos podem atender as recomendações dos profissionais de saúde mantendo-os longe das telas o quanto puderem.

Não fique atraído por vídeos e jogos de computador para crianças pequenas que alegam aumentar o seu QI e torná-las mais espertas. Eles não fazem isso.

A TV ligada, como barulho de fundo enquanto as crianças brincam, interfere na concentração das mesmas produzindo efeitos negativos no desenvolvimento de sua inteligência.


O QUE OS PAIS PODEM FAZER... EM CASA o Antes de podermos ajudar as crianças a lidarem com as suas vulnerabilidades temos que entender as nossas próprias, incluindo as tendências de gastar demais ou de nos voltarmos aos produtos como forma de gratificação. o Podemos criar o hábito de fazer coisas junto com nossos filhos que não envolvam a mídia tais como: ler, jogar cartas ou brincar com jogos de tabuleiro, cozinhar juntos ou tocar instrumentos. o É importante conversar com as crianças ajudando-as a captar o real objetivo da publicidade para que elas comecem a captar as suas atitudes em relação a ela. o Encontre maneiras de ajudar as crianças a descobrir o significado das celebrações que vão além do comercial e da quase sempre compulsória troca de presentes. o Participe de eventos nacionais tais como Semana do Desligue a TV ou Dia sem Compras.

CRIANÇAS DO CONSUMO - A INFANCIA ROUBADA AUTOR: SUSAN LINN Editora Alana Em 'Crianças do consumo', a psicóloga Susan Linn faz um estudo detalhado do 'mercado infantil', como é conhecido pelos profissionais da publicidade, realizando um exame dos paradigmas da infância moderna corrompida por interesses comerciais vindos de todos os lados. As crianças são a bola da vez do marketing, alvos de tudo, desde brinquedos até a indústria de fast-food. Todos os aspectos da vida das crianças - saúde, instrução, criatividade e valores - estão correndo o risco de serem comprometidos pelo seu status no mercado consumidor. Apoiada em histórias reais do marketing para crianças, teorias do desenvolvimento infantil, nas pesquisas mais recentes sobre o tema e até na opinião dos profissionais de marketing sobre o seu trabalho, Susan Linn revela a gravidade do problema e mostra o que pode ser feito sobre o assunto.

A FELICIDADE PARADOXAL ENSAIO SOBRE A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO AUTOR: GILLES LIPOVETSKY Editora Companhia das Letras

Luciana Nogueira Nascimento é formada em Jornalismo pela PUCPR, especialista em Marketing pela FAE Bussiness School. É exaluna e assessora de comunicação e marketing do Colégio Medianeira.

O consumo traz felicidade? Tentando entender a ambigüidade de uma época em que a felicidade é valor máximo, mas carrega consigo inúmeras aflições do espírito, Lipovetsky cria a tese de que, na sociedade de hiperconsumo, essa felicidade é paradoxal. De um lado, estão dadas as condições para que as aspirações individuais sejam satisfeitas pelo mercado; de outro, também estão postos os obstáculos que se contrapõem à postura hedonista do indivíduo contemporâneo. O hiperconsumidor tem acesso ao ter, mas aspira a ser; os mais diversos prazeres sensoriais estão ao seu alcance, mas é preciso preservar a saúde, evitar os excessos, fazer regime, manter a forma. O que Lipovetsky propõe é a reavaliação da formação do indivíduo, com vistas ao fortalecimento da autonomia e da crítica, para que se possa resistir à sedução feérica da publicidade e do espetáculo.

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MACACOS como

lembranças?! Por Danielle Mari Stapassoli

Erguer uma estátua a quem diz que pode chegar no Brasil, explodir tudo e ainda receber macaquinhos como souvenires é sintoma de que algo não está certo. Como desenvolver e vivenciar valores morais e éticos coletivos, quando aquilo que priorizamos é o individualismo e o espetáculo? 30


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Estamos envoltos em situações amplamente noticiadas nos meios de comunicação que nos dão a forte sensação de impunidade, do menosprezo da legalidade. Menores que cometem crimes cruéis e que não são devidamente punidos, ou, pior ainda, que os cometem por saberem que não serão duramente punidos e que são utilizados como soldados por pessoas que planejam e articulam os crimes; homens ditos figurões da política, da economia, que desviam grandes verbas públicas da saúde, da educação, ou que simplesmente guardam em casa grandes somas de dinheiro (sonegação? falcatruas?); jovens que circulam com carrões de seus pais em alta velocidade atropelando e matando outros jovens; policiais que atiram em vias públicas e que matam inocentes com balas perdidas... Questões como segurança pública e vida política no Brasil parecem caóticas. Estamos em ano eleitoral e o que ouvimos dos candidatos? É hora de avaliar, de usar as notícias divulgadas para escolher nossos representantes políticos. No Paraná, conforme noticiado em jornais de grande circulação, nos últimos quatro anos, muitos políticos tiveram um aumento médio em seu patrimônio de 150%. Com certeza, uma aplicação financeira muito rentável que a grande maioria da população desconhece! No contexto nacional, a maioria dos programas de TV noticia, numa disputa frenética por IBOPE, cada vez mais e mais situações que nos deixam deprimidos diante da nossa realidade. Programas que desrespeitam a vida humana, banalizam ações criminosas, fragmentam notícias na superficialidade da informação sem reflexão. Em um momento, a dor, a revolta de um pai, e, logo em seguida, para esquecer, a convocação da nova seleção brasileira! Como ter orgulho de ser brasileiro quando as notícias que circulam sobre nós em escala mundial são em tantos aspectos negativas? Até mesmo astros hollywoodianos megalomaníacos se acham no direito de dizer que aqui é permitido matar pessoas, explodir tudo e que ainda damos macacos como lembranças! No entanto, como numa espécie de garim-

po, alguns programas de TV ainda se propõem a discutir estas questões com mais profundidade. Funcionam como uma luz no fim do túnel, ou melhor, como uma rara mina de extração. Foi bom perceber em um mesmo dia, e em horários diferentes, três programas que discutiram os problemas sociais brasileiros. Logicamente, foram transmitidos em horários pouco assistidos pela grande maioria da população. O primeiro deles era local e abordava a eficiência ou ineficiência do sistema penitenciário no Brasil e no Paraná. O segundo, o Roda Viva, entrevistava a escritora e especialista em medicina do comportamento, Ana Beatriz Barbosa Silva, que discutia os distúrbios de comportamento em todas as esferas da vida social. E o terceiro programa entrevistava um jurista e discutia a ação policial na sociedade brasileira. Com relação à entrevista no programa Roda Viva, a escritora colocou que a sociedade moderna privilegiou a liberdade individual e que isto se tornou hoje a grande contradição de nossa sociedade. Como desenvolver e vivenciar valores morais e éticos quando se prioriza a individualidade? Arnaldo Jabor, em seu texto “Os psicopatas são os novos heróis do cinema e da TV” (2008) faz uma reflexão muito interessante sobre nossa sociedade, baseando-se nos estudos de Ana Beatriz B. Silva, quando diz que o psicopata é um prenúncio do futuro, quando todos seremos assim para sobreviver. A psiquiatra também colocou a importância da criação dos limites, da disciplina firme que deveria começar na família e continuar em todos os espaços sociais. Regras claras e imparciais são ações que buscamos construir. Será possível? O fato é que a discussão sobre o comportamento humano e, neste caso, brasileiro, merece sim grande atenção por parte da sociedade e dos educadores. Os espaços sociais privilegiam cada vez mais a individualidade e a busca pelo estrelato. Anos atrás, com famílias numerosas, a primeira experiência social que tínhamos como crianças era a de um lugar coletivo, uma casa cheia de irmãos, primos, tios e tias. Por isso, havia a necessidade de se aprender a buscar uma individualidade na qual se descobrisse a própria identidade na coletividade. Era necessário dividir e, depois, conquistar um espaço. Hoje, o movimen-

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to é contrário. A primeira experiência que se dá às crianças, em grande parte das famílias de classe média e alta, é a do reforço da individualidade. Depois, mais tarde, ao frequentar a escola, é que a criança passa a vivenciar espaços mais coletivos e tenta construir a noção de coletividade que deveria vir do próprio conceito de família. No entanto, a noção de família modificou-se. Não que seja para melhor ou para pior, coloco aqui que apenas “modificou-se”, acompanhando as próprias modificações que ocorreram nas sociedades. O que parece preocupante nesta modificação é o desaparecimento da importância dos papéis sociais na formação dos valores: pai, mãe, tios e avós. As crianças não são mais incentivadas a conviverem com os mais velhos e não aprendem a respeitá-los e valorizá-los, nem dentro da família e muito menos na sociedade. Se eu não vivencio momentos nos quais possa entender a importância destas pessoas na minha vida, como posso entender a importância destas pessoas nas vidas das outras pessoas? Nesta nova configuração, os mais velhos – se não quiserem ser esquecidos como objetos usados – é que devem correr atrás das crianças, devem buscar a eterna juventude. Valorizamos prédios históricos, viajamos para longe em busca da arte e da cultura, mas esquecemos das histórias dos nossos familiares. Num contexto maior, desvalorizamos nossas raízes indígena e africana. Aqui no sul, é quase uma regra considerar que todo cidadão descende de italianos, alemães, ucranianos... mas se há na família um membro indígena ou negro, será que consideramos que isto faz parte da nossa nacionalidade e que por isso mesmo somos BRASILEIROS? Talvez seja por isso que valorizamos mais os outros (das nações ditas desenvolvidas) do que nós mesmos. Por acaso, por sermos descendentes de europeus registrados em nossos nomes, somos menos brasileiros em outros países? As notícias nos mostram que não. Não cuidamos da nossa própria casa, não a valorizamos, não lutamos para fazer dela um lugar bom e digno para viver. Por isso, quando comentários como o de Sylvester Stallone explodem em nossos ouvidos como bombas absurdamente irritantes, ainda é preciso engolir um profundo vazio de decepção e de que há muito o que fazer.

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Outro dia, acessando o site da TV Cultura em busca de vídeos, encontrei um com o tema: “Brasil-Portugal: lá e cá”, no qual há uma troca de visões sobre as culturas destes dois países, discutidas entre os jornalistas Paulo Markun, do Brasil, e Carlos Fino, de Portugal. É triste constatar o que já sabemos: muitos portugueses (é claro que não só eles) veem o Brasil como um país muito inseguro para morar. Sabemos que nossas maravilhas naturais são atrativas para os turistas estrangeiros e agora até para, novamente, os megalomaníacos hollywoodianos. Porém, sabemos também que a imagem que circula sobre a sociedade brasileira é justamente a que mais nos esforçamos, sem sucesso, para combater: a de uma sociedade violenta, corrupta, com muito tráfico e prostituição. Quantas de nós, mulheres, não nos sentimos envergonhadas por sermos brasileiras quando sabemos de notícias que vinculam a mulher brasileira à exploração sexual fácil e farta em nossas belíssimas praias? Uma questão para refletirmos agora em época de eleição diz respeito à colocação do Brasil em alguns rankings mundiais. Recentemente, tivemos a Copa do Mundo de futebol e, para a tristeza de muitos e muitos brasileiros, o Brasil ocupa hoje a 8ª. colocação mundial. Muito triste, não é? Mas o que dizer da sua colocação quanto à educação? No ranking do índice de desenvolvimento humano, o Brasil ocupa hoje o 88º. lugar, atrás do Paraguai, Equador e Bolívia. Isto não deveria ser de suma importância para nossos governantes e até mesmo para a população? Não parece ser mesmo, o que fica bem evidente quando acompanhamos a discussão sobre a decisão de Curitiba ser ou não uma das cidades-sede para a Copa de 2014. De onde virá o dinheiro para a reforma do estádio de futebol, cerca de 130 milhões? Isto só para o estádio, sem contar com todas as obras necessárias, em áreas já valorizadas, e as inúmeras licitações públicas com atos ilícitos. Enquanto isto, em revistas de circulação nacional, nós, educadores, nos sentimos de mãos atadas quando somos expostos como profissionais incapazes de oferecer uma educação


de qualidade aos nossos alunos “desmotivados”. Onde está a verba da educação para escolas públicas, transporte escolar, valorização do profissional? Talvez esteja nos 150% de aumento de patrimônio de nossos políticos ou nas verbas para obras públicas que não se concretizam. É ano eleitoral e os “macacos” como lembranças estão à solta! Avalie. Pesquise. Acompanhe. Converse com seus filhos sobre a realidade em que vivemos. Na maioria das vezes, as crianças ouvem os assuntos que estão circulando na mídia e têm uma opinião sobre o assunto, seja porque ouviram em casa ou na escola entre os colegas. Esta opinião, quando discutida e orientada, acaba por assumir a forma do grupo ao qual pertencem. Que valores nortearão suas ações e escolhas? É importante fazer uma reflexão sobre os assuntos que estão em evidência com as crianças. Por mais simples que seja, esta ação faz a criança criar vínculos afetivos com suas

referências de comportamento: pais, irmãos mais velhos, tios, avós, professores... Leia ou assista a algumas notícias, informalmente, e comente-as com eles, valorizando a opinião em formação, acrescentando pequenos questionamentos que os façam refletir sobre suas próprias opiniões. Além de conhecerem a realidade em que vivem, conseguirão participar de discussões em aula, sentindo-se participantes, terão como argumentar suas opiniões, poderão expandir suas próprias ideias em textos, fazer questionamentos... Não discutir estes assuntos com as crianças, quando necessário, é ignorar seu amadurecimento, seu crescimento, e o papel que cada um de nós tem na formação da sociedade que queremos!

O QUE É O BRASIL? AUTOR: ROBERTO DAMATTA

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Danielle Mari Stapassoli é Graduada em Pedagogia (PUCPR), especialista em Organização do Trabalho Pedagógico (UFPR) e também em Currículo e Prática Educativa (PUC-RJ). No Medianeira, professora de História e Geografia da 4ª série.

O QUE FAZ O BRASIL, BRASIL?

Editora Rocco

AUTOR: ROBERTO DAMATTA

Roberto DaMatta é conhecido pelos ensaios antropológicos que escreve para adultos. Só que agora seu brilhantismo pode ser desfrutado também pelo público infanto-juvenil. Em O que é o Brasil?, um ensaio que faz parte da coleção Palavra da Gente, o professor leva a garotada a pensar a identidade brasileira a partir dos aspectos mais populares e conhecidos da sociedade: a casa, a rua, as relações raciais, a comida, as mulheres, o carnaval, a malandragem e a religião. Como é que sei o que sou? Como se constrói uma identidade nacional? Como um aglomerado de gente se transforma num Brasil? Essas são as perguntas levantadas por Roberto DaMatta neste ensaio, cujas idéias são, muitas vezes, polêmicas. Isso porque sua primeira função não é a de convencer, mas a de provocar o debate e estimular o pensamento. No livro, o objetivo do autor é mostrar a seu novo público que a identidade de um povo se revela através das pequenas coisas e que essas pequenas coisas são capazes de render entusiasmadas discussões.

Com a exposição e análise das mais expressivas manifestações culturais brasileiras formadoras da sua identidade como nação, Roberto DaMatta procura responder a pergunta título de seu livro - ‘O que faz o Brasil, Brasil?’. Ao examinar os grandes acontecimentos como o Carnaval, o Dia da Pátria, as procissões religiosas, os hábitos alimentares, o futebol, a política e as artimanhas de seus representantes, a economia, o jeitinho com que são dribladas as dificuldades - todos elementos formadores da nossa brasilidade -, Roberto DaMatta tenta explicar como os vários brasis se ligam entre si, fazendo ver que é através da cultura, por mais variada e extensa que seja, que uma sociedade se expressa e pensa sobre si mesma.

Editora Rocco

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O lazer no

MUNDO

moderno

Por Marcelo Pastre

O lazer pode ser utilizado como uma possibilidade múltipla de visualização da sociedade local e da vida urbana. É necessário pensar no lazer como um símbolo, uma nova referência da civilização, uma representação que se constitui como matriz de práticas construtoras do mundo social.

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Situar o lazer no mundo moderno significa identificar mudanças, decifrar continuidades, reconhecer diversidades e desvelar desigualdades. É o contraste e a coexistência de antigas manifestações e modos de vida não dissolvidos convivendo com o novo, com novos costumes e hábitos culturais.

A compreensão do lazer utilizada neste artigo está baseada nos estudos de Norbert Elias e Eric Dunning, em seu livro A Busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacional, no qual identificam o lazer como um elemento estratégico para conhecer a sociedade. Seus estudos apontam para a possibilidade de discutir o lazer e o tempo livre na sociedade moderna como conceitos diferentes entre si e, sobretudo, não tomando como ponto de partida a categoria trabalho. Para eles, o lazer é visto como uma esfera pública, em que as decisões individuais podem ser tomadas tendo em vista a satisfação, os impulsos e os sentimentos de cada indivíduo. O lazer não pode ser analisado como se obedecesse a uma finalidade predeterminada, pois depende das configurações de poder entre os indivíduos e entre grupos, as quais são dinâmicas e estão fundadas em relações de interdependências. Nas sociedades contemporâneas, as atividades de lazer ocuparam um espaço antes reservado às atividades religiosas e às crenças, no relaxamento das restrições impostas ao indivíduo e à sociedade. Através dessas atividades, estabeleceu-se uma maior ou menor tolerância pública à exteriorização de manifestações da excitação. Por intermédio destas atividades de lazer, estabelece-se na vida cotidiana da sociedade moderna o equilíbrio de tensões posto pela relação complementar entre a busca da excitação e o controle das emoções. As atividades de lazer dentro dos limites estabelecidos socialmente permitem experiências emocionais que normalmente não são vividas nas atividades rotineiras. A emoção explicitada em público, quer seja “real”, quer seja representada, é sempre objeto de observação, o que em si já é um potencial controle, ou seja, o descontrole emocional controlado em que a restrição

rotineira de emoções pode, até certo ponto, ser publicamente reduzida e com aprovação social, em um autodomínio dos impulsos e sentimentos, mais do que qualquer outra atividade. Para Elias, a civilização resulta também de um processo de mudanças no nível de controle das emoções. Nível esse que também está intrinsecamente relacionado com o crescente grau de entrelaçamento e interdependência entre as pessoas que compõem a sociedade. O nível de controle das emoções de qualquer sociedade é diretamente proporcional ao grau de “civilidade” dessa sociedade, ou seja, quanto mais elevado for esse patamar, mais distante essa sociedade estará da barbárie. Buscando reforçar as ideias até aqui apresentadas da relação do lazer e das emoções, tomaremos o estudo de Ademir Gebara, “Sociologia configuracional: emoções e lazer” (em Lazer e Ciências Sociais, diálogos pertinentes), o qual retoma algumas questões relativas a esta relação, que são reivindicadas pelos configuracionistas como uma das grandes contribuições para o estudo da área. O lazer deve ser compreendido tendo em vista as transformações não planejadas das configurações da sociedade, em uma perspectiva de longa duração. Decorre dessa afirmação que a questão do lazer, para os configuracionistas, assenta-se sobre três aspectos fundamentais: 1. O lazer moderno não é sinônimo de liberdade, é sim um efeito histórico específico, afetando situações de equilíbrio e restrições em suas múltiplas esferas; o lazer hoje é mais privatizado, individualizado, comercializado e menos violento. A junção destas facetas modernas do lazer explica-se pela complexidade e generalidade das relações sociais (interdependências), emergentes na civilização urbano-industrial. 2. O descarte de emoções violentas, espontâneas e intensas na sociedade moderna devese ao alto desenvolvimento de limiares de contenção “civilizada”, tomando-se em consideração nosso passado mais distante. 3. O lazer moderno é uma atividade crescentemente correspondente a formas de comportamentos miméticos (representações). Para pre-

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O lazer pode ser utilizado como uma possibilidade múltipla de visualização da sociedade local e da vida urbana. É necessário pensar no lazer como um símbolo, uma nova referência da civilização, uma representação que se constitui como matriz de práticas construtoras do mundo social. Enquanto representação da sociedade, as práticas do lazer devem ser tomadas como um estudo particular, como uma formação social na qual se definem de maneira específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e as dependências recíprocas que ligam os indivíduos uns aos outros, produzindo códigos e comportamentos originais.

cisar o sentido desta afirmação, afirma-se que as atividades de lazer, de jogo, de brincadeiras permitem emoções intensas, porém controladas, de tal maneira que, em público, a moderação é um componente destas atividades. Cabe aqui a afirmação de pensarmos mais e melhor sobre o papel do lazer como um símbolo, uma nova referência, enquanto portador do signo da modernidade e da civilização.

Marcelo Pastre é coordenador do Ensino Médio do Colégio Medianeira. Licenciado em Educação Física (UFPR), é mestre em Mídia e Conhecimento – Engenharia de Produção (UFSC) e doutor em Educação (UNIMEP).

O PROCESSO CIVILIZADOR: FORMAÇÃO DO ESTADO E CIVILIZAÇÃO. VOLUME 2.

A BUSCA DA EXCITAÇÃO: DESPORTO E LAZER NO PROCESSO CIVILIZACIONAL

AUTOR: NORBERT ELIAS Editora Jorge Zahar Neste segundo volume, Elias examina as condições sociais, econômicas e políticas que provocaram mudanças na sociedade européia, desde os tempos de Carlos Magno até o século atual. Baseando-se em grande volume de dados históricos, sociológicos e psicológicos, formula uma originalíssima teoria sobre a formação do Estado. Este verdadeiro clássico na historiografia sobre o tema é considerado por estudiosos de psicologia, sociologia e história uma das maiores obras interdisciplinares das últimas décadas.

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(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

AUTOR: NORBERT ELIAS E ERIC DUNNING Editora Difel (Lisboa) Por que razão a sociedade industrial gasta grande parte do seu tempo de lazer em esportes que tendem para a violência? Como relacionar a violência dentro e fora das atividades esportivas com as necessidades e as orientações sociais e psicológicas? Eis duas das questões da maior atualidade a que este livro, escrito por dois sociólogos consagrados, procura dar resposta.


PSIU... n達o espalha,

mas sou

apaixonado por

PARATY

Por Francisco Carlos Rehme

N達o tem como n達o espalhar: Paraty, no Rio de Janeiro, 辿 um mosaico muito bem engendrado de elementos como a terra, o ar, o mar e o ser humano, cheio de sonhos materializados em palavras, livros e aventuras. 37


A

Assim com “Y” mesmo, já que nos transporta aos tempos coloniais (e nos transporta no balanço do lombo das mulas, já fatigadas, mas ainda assim teimosas, persistentes “feito mula”, desde a descida da Serra da Bocaina). Combina mais com o jeito de ser da cidade: caprichosamente parada no tempo e inteligentemente plugada ao tempo.

ções que duram a eternidade mesmo. As páginas amarelecidas de Paraty, com plagas de bolor e poeira acumulada não desagradam. Ao contrário, é o charme de quem naturalmente envelheceu. A avançada idade de uma das primeiras cidades nascidas em território americano se revela na bem conservada arquitetura de seus sobrados, das igrejas e no calçamento de suas ruas. Assim, andar – e só se pode andar: os automóveis são impedidos de circularem na parte histórica da cidade – pelas estreitas ruas centrais da velha Paraty é caminhar por alguns capítulos do livro de história do Brasil. Capítulos de belos enredos, dramáticos desfechos, repletos de heróis anônimos e de muito sofrimento. O pé de moleque do calçamento das ruas, por tanto tempo pisado pelos pés descalços de moleques e marmanjos negros, calado, conta histórias da colônia. Vá pelo meio da rua e perceba: ele é propositalmente mais baixo para facilitar o escoamento das águas das chuvas e do próprio mar. Do mar mesmo! Pois, nas marés de sizígia, a preamar lava as ruelas mais próximas do porto. Em quase todas as esquinas, nos cruzamentos de tais ruas, sutilmente a maçonaria deixou sinais de sua presença politicamente poderosa. O triângulo maçom, quando não está evidente nas fachadas dos sobrados, se insinua de alguma forma pelas calçadas, pelas paredes caiadas, pelos portais de madeira, algo entre o secreto e o notório.

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Ocorre que há pouco tivemos a oitava edição da FLIP. Parece nome de personagem de desenho animado, de história em quadrinho. Pode ser isso tudo, mas é ainda mais: a Feira Literária Internacional de Paraty é um encontro de gente que curte ler, com quem curte aquele que curte ler, com esses e essas caras que inventam vida em folha de papel, os escritores. Não vou dizer que não podia haver outro lugar, senão Paraty... xi! já disse. Existiriam sim algumas outras cidades no Brasil que abririam suas páginas para que milhares de apaixonados leitores as lessem. Mas, convenhamos, se você conhece Paraty, com todo respeito a sua opinião, creio que há de concordar que o casamento entre a literatura universal e a geografia local é dessas raras institui-

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Na calada da noite – é verdade que a noite por lá se cala bem mais tarde, sobretudo em dias de festa –, sentado no banco da praça diante de uma das tantas igrejas, quem sabe você ainda ouça o som de castanhola do tropel que transportava ouro das minas gerais até o porto. Ao sentir a brisa, pode ser a terra lhe sussurrando no ouvido uma trama entre piratas, tupinambás e negros fujões, pronta para macular a ordem lusitana, supostamente solidificada como a pedra da praça que estampa a já gasta cruz de malta. Dizem os antigos que essa mesma brisa, quando dobra as quadraturas das esquinas, entoa as melodias dos bailes dos avarandados palacetes dos barões do café que mandavam na cidade. O mar de Paraty também faz parte desse precioso livro de história, geografia, romance e que imagino ter o título em letras douradas e lom-


bada em couro. Do velho porto não se vislumbram mais galeões e caravelas. Mas, pode se embarcar noutro barco e navegar pela baía, lavar a alma com o vento e borrifo das ondas quebradas na proa. Vá longe e pare em alguma ilha, onde há praias magníficas e sossegadas. Outras nem tanto. Algumas têm dono. Fico a me perguntar: alguém de fato pode ser proprietário de um pedaço do mar, de praias, de uma ilha? Não, não precisa responder, prefiro permanecer na minha santa ingenuidade... O mar de Paraty encanta. Ele embalou um dos mais ilustres filhos dessa terra: Amir Klink. Amir ouviu o canto da sereia e logo voltou para o mar. Uma vez ele saiu da costa africana e foi para onde apontava o seu nariz: veio parar em Paraty. Outra vez, ele saiu de sua terrinha natal, onde faz escalas curtas e só parou na Antártida. Esperou o gelo derreter, desprendeu o veleiro e... sossegou? Claro que não! Foi para o polo ártico, noutro lado do mundinho que para ele é ainda mais azul. Alguém o vê fora do seu barco, longe do mar? É Capelo Gaivota em pessoa. Não bastasse a beleza histórica da cidade, a aura literária que orna os beirais de suas casas, os recônditos santuários de vida marinha e insular que se espremem entre os morros, nas cos-

tas de Paraty tem mais espetáculo: a Serra do Mar, donde se debruça a Floresta Atlântica e descem cascatas em águas cristalinas e geladas. As costas de Paraty... é que ela é o tipo da cidade – com a permissão de Italo Calvino – que tem rosto, tem coração e tem costado também. O rosto você descobre quando chega da baía da Ilha Grande e divisa o casario de Paraty no horizonte. Não tenha dúvida, trata-se daquele encontro fatal de olhares e que te fisga para toda a vida. Os olhos castanhos, coloniais, caiçaras da cidade com reflexos de sol e mar na vidraça das janelas faiscando nos seus. Bem, aí é tarde: você chegou ao coração da cidade. Caia fora se puder ou admita, mesmo que discretamente, sua paixão por Paraty e seu entorno, que tão dignamente a moldura. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br) Francisco Carlos Rehme, o Chicho, é geógrafo, professor de Geografia de 5ª. série do Ensino Fundamental e da 3a. série do Ensino Médio no Colégio Medianeira. Especialista em Geografia Física – análise ambiental pela UFPR e em Currículo e Prática Educativa (PUC-Rio) é mestre em Geografia, dentro da linha de pesquisa “Dinâmica das Paisagens” (UFPR).

OLHARES: ANGRA, PARATY E RIO CLARO AUTOR: NELIO RODRIGUES Editora Desiderata Seleção de fotografias de Nélio Rodrigues e de textos literários de diversos autores nativos sobre a região de Angra dos Reis, Paraty e Rio Claro, que retratam as características dos habitantes, seus costumes, o artesanato e sua interação com a paisagem.

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um

AUTOR de

EXTRAORDINร RIA

criatividade Por Paulo Venturelli

Se os livros oferecidos nas vitrines e estantes das livrarias parecem iguais, o contato com a literatura do angolano Gonรงalo M. Tavares farรก o leitor perceber o quanto a linguagem literรกria pode ser criativa, inventiva e ter a propriedade de abrir o mundo para a instabilidade do humano.

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S

Se você costuma ler obras literárias, deve ter percebido que para a literatura o enredo é fator secundário. Uma obra de arte genuína neste campo precisa enfocar antes de tudo a linguagem, a visão de mundo, a prospecção nos personagens, retratando-os não como gente feito nós, mas na completude do livro, em que tudo que nos interessa saber sobre os mesmos nos é dado pelo autor/narrador. Por isto, a prática de leitura é uma tarefa fundamental na vida. Em constante contato com o mundo ficcionalizado, você absorve elementos para organizar um pouco o caos do mundo e da vida e, em especial, conhecer-se melhor. A literatura é um espelho mágico a mostrar como nossa identidade não é algo sólido, pronto, estratificado e, sim, um processo sempre em construção. O que há de angustiante nisto, apela para a nossa maturidade: aprendemos que ser maduros não é ser inteiriço, pleno, sem brechas. Ser/estar no mundo é um jogo de teatralizações em que o devir está sempre à nossa porta e o aqui-e-agora completo e fechado não passa de miragem.

Tais questões podem servir de introdução para abordarmos um escritor de primeira grandeza que, apesar de novo, tem causado frisson todo especial com sua obra: Gonçalo M. Tavares. Este escritor nasceu em Luanda (Angola) em 1970, de pais portugueses e aos três aos transferiu-se para Lisboa, onde mantém sua residência atual. Em pouco mais de dez anos, sua produção ultrapassa os vinte livros e foi traduzido para mais de 30 países. Sua obra é composta por romances, contos, ensaios, poesia e teatro. Há duas “vertentes” no que ele tem escrito: O Bairro e O Reino. A primeira série é uma reunião de livros em que ele homenageia escritores que admira, seja por meio da ironia, do absurdo, do humor. Só para destaque: O senhor Calvino, O senhor Valéry, O senhor Brecht. A segunda série é composta pela tetralogia Jerusalém, Um homem: Klaus Klump, Aprender a rezar na era da técnica e A máquina de Joseph Walser (este recém-lançado no Brasil). Nestes últimos Tavares debruçase sobre o mal, mas nega que os romances são um atestado de descrença na humanidade. Como ele próprio afirma: “Não diria que o olhar sobre estes personagens é para tentar ver o mal, mas é

um olhar que tenta percebê-los completamente humanos. E no limite os comportamentos humanos têm uma base animalesca, que é quase linear – defender o espaço, o território, sobreviver” (Folha de S. Paulo, 17 jul. 2010). O reconhecimento adveio com os vários prêmios recebidos por Jerusalém: LER/Millennium, 2004; José Saramago, 2005; Portugal Telecom, 2007. E é sobre este livro que gostaríamos de nos deter um pouco mais, chamando sua curiosidade para as incríveis inovações praticadas pelo autor. Jerusalém deixa de ser uma simples leitura e torna-se uma aventura intelectual, daquelas que alargam nossas vidas e acrescentam uma dose de pimenta em nossas retinas cansadas pelo cotidiano esbatido pela rotina. Em primeiro lugar, o título não indica o local onde ocorre o a história. Jerusalém só é referida na citação de um salmo. E é evidente a intenção do autor/narrador de não nos oferecer elementos para localizar sua narrativa no espaço ou no tempo, porque estamos diante de uma espécie de alegoria sobre a brutalidade, que se pode passar em qualquer tempo e lugar, independente de coordenadas geográficas ou históricas. O que num primeiro instante parece ser um romance realista se esfarinha na oscilação entre passado e presente. Possivelmente, como diz Moacyr Scliar, o tema seja a loucura, mas a “loucura moral” muito focada no século XIX, quando os psiquiatras pensavam dominar a mente de seus clientes, fato este que gerou entre nós uma obraprima como O alienista, de Machado de Assis. Sobre o “retorno ao mundo”, depois de passar temporada no hospício, diz o narrador: “Esforçara-se por aprender de novo a contactar com as pessoas normais, e não apenas isso: também com os dias normais: os dias que esperam pelo humano para que este decida o que fazer deles. É que durante anos fora treinado no instinto contrário: o instinto de aceitação, de disciplina total, de ordem: o dia surgia-lhe à frente já preparado, medicado, dir-se-ia – não no sentido farmacêutico, mas num sentido quase de engenharia: o dia seguinte estava já resolvido, construído, as perturbações e os exageros haviam sido afastados, a rotina diária era uma simplificação impressionante da existência. Os dias eram isso mesmo: medicados. E, apesar do esforço, esse passado no Georg Rosenberg deixara os seus res-

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tos sobre os anos seguintes, os anos de Aparente liberdade, os anos em que a doença de Ernst já não se manifestava. A sua cabeça encontrava-se dentro dos limites de segurança – tanto para si como para os outros – mas havia ainda coisas por esclarecer: a conta do seu mundo interior não estava terminada: a cabeça não era matéria que permitisse uma fácil construção de diques; as barragens não barravam, tudo continuava em circulação, em passagem, os pensamentos ligavam-se uns aos outros de uma maneira não previsível (...).”

Em suma, o romance é de uma crueza acachapante. Temos um impacto profundo ao avançar por suas páginas. Gonçalo M. Tavares, com segurança e artesania, implode todos os conceitos que podemos fazer de romance. Se Joyce, Virginia Woolf e Proust tinham colocado a arte de narrar num nível insuperável, Tavares vai além, mesmo que não faça pirotecnias verbais e frasais. A palavra, a frase, o tema, a visão e a forma de conduzir a trama em suas mãos ganham outra investidura até agora nunca explorada por ninguém – uma fusão de lírica agreste e inóspita, com uma ironia catastrófica.

da narrativa. É como se o autor nos desse um tracejado do que deve ser bordado. Não nos dá a linha. Esta deve vir de nosso repertório e sensibilidade. E assim, ao ler, vamos complementando aquele bordado, chegando a configurações que possivelmente não foram de todo previstas pelo escritor.

Ele abre possibilidades para um gênero que parecia esgotado (basta ver o número de críticos rosnando que o romance acabou e o grande número de escritores que não fogem de um registro jornalístico-realista, produzindo com vistas no cinema ou na tevê, como se sua história fosse um pré-script de um roteiro), porque mesmo mantendo um certo conteúdo que vai da loucura, passa pela medicina, aproveita-se do existencial, mergulha no vazio da vida sem sentido, no mundo inabitável, na desumanidade das relações, na perplexidade ante ocorrências inesperadas, também consegue explorar a forma de narrar de modo inovador.

Livre de qualquer escola literária, Gonçalo Tavares põe na mesa um cardápio alucinante de ingredientes justapostos, sobrepostos, contraditórios, cingidos por uma liga de temperos que repelem um ao outro. Num movimento centrífugo, o que ele traz diante de nossos olhos escapa, num primeiro momento, da racionalidade que toda leitura precisa manter para ser um exercício de certa lógica e confortável, produtivo e prazeroso, impondo ao ato de ler um trabalho de construção milimétrica que seja capaz de ir às minúcias, às entrelinhas, ao subtexto para ganhar uma certa dimensão daquela racionalidade esgarçada pelas artimanhas do romance.

Faz do narrar um jogo de cartas, em que estas estão embaralhadas, dão saltos, retroagem e analogicamente se distendem numa configuração arrebatadora pelo que têm de instigante e provocador para o sentido. O leitor precisa estar atento na montagem deste sentido, obrigandose a ser um interlocutor sagaz e lúdico, porque tem diante de si uma palheta de cortes muito novas e desconhecidas, mas que ele terá de combinar para sair do aparente caos e construir algo próximo do sentido que em Gonçalo Tavares já é outra história e não apenas seguir o vai e vem

Gonçalo M. Tavares não é apenas uma revelação nas letras portuguesas, é revelação na literatura universal, porque vem escrevendo de um modo que ninguém mais o faz no mundo, capaz de fundir num mesmo plano invenção e um discurso consistente, apontando suas artilharias para as mazelas do mundo contemporâneo. Sabemos que o romance hoje está muito confundido com a indústria cultural – os best-sellers de digestão rápida e mero entretenimento. Com este autor português, o romance recupera seu espírito real: ser um antigênero, um artefato que angustia, faz

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refletir, desmonta qualquer conforto existencial, provoca na mente do leitor ilações cruciais por exigir deste uma nova postura não só diante da página escrita, mas, principalmente, diante de si e do mundo. Bakhtin afirma que o romance nasceu do mundo da praça pública, por isso tem um profundo lastro iconoclasta, ou seja, tira a falsa cerimônia com que os atos dos homens querem se ver cercados. A romanesca de Tavares está neste filão. Suas garras afiadas vão bem de encontro aos absurdos da existência: as hierarquias, as guerras, a infidelidade, o tédio, o horror de atitudes impensadas, o descompromisso, a loucura, a falta de solidariedade, o cotidiano como pesadelo, os desmandos políticos, as tiranias, o esmagamento de um pelo outro, a trapaça e também o humor que se pode tirar das condições mais adversas da vida.

JERUSALÉM

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Saramago dizia que Gonçalo Tavares não tem o direito de escrever tão bem estando apenas na faixa dos 30 anos e vaticinou-lhe o prêmio Nobel daqui uns trinta anos. Independente disto, é um privilégio lermos um autor de nossa língua com tal poder de criatividade, de raciocínio tão ágil, de desvestir todas as estátuas e mostrar como estamos nus diante das voltas que o mundo dá. (Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Paulo Venturelli é escritor. Doutor em Literatura (USP), é professor da Universidade Federal do Paraná.

A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER

AUTOR: GONÇALO M. TAVARES

AUTOR: GONÇALO M. TAVARES

Editora Companhia das Letras

Editora Melhoramentos

O médico Theodor Busbeck anda empenhado em descobrir se o horror está aumentando ou diminuindo ao longo da História. Mylia, sua ex-mulher, tem a capacidade de ver a alma e sofre de uma dor lancinante no ventre. Acabou internada num hospício pelo próprio marido. Gomperz, diretor do hospício, mantém uma amizade ambígua com Theodor e desperta cada vez mais ódio em seus pacientes. Kaas tem as pernas magras e problemas de dicção. Hanna é uma prostituta que vive com Hinnerk, um ex-combatente que atemoriza as crianças do bairro. Tratando de relações de dominação, desejo, repulsa e agressividade, Jerusalém costura a vida desses personagens em direção a um desenlace inesperado. Ocupados em lidar com os limites da sanidade, todos se sentem acossados por um perigo sem nome. Num estilo seco e desconcertante, Jerusalém aponta para as dimensões pessoais e coletivas do terror e expõe a capacidade humana de vigiar, oprimir e torturar.

Com A máquina de Joseph Walser, o autor de Jerusalém (prêmio Portugal Telecom 2007) volta a atrair as atenções no Brasil. O romance integra a tetralogia O Reino, dedicada ao mal, e é escrito numa prosa cuja habilidade narrativa é apenas superada pela desenvoltura com que Tavares combina ficção e investigação filosófica. O pacato funcionário Joseph Walser leva uma vida previsível, enquadrada pelos movimentos repetitivos da máquina industrial que opera. Nem mesmo a guerra é capaz de afetar a estabilidade de seu cotidiano. Entretanto, Walser tem uma paixão secreta: a enorme coleção que mantém fechada à chave, protegida até mesmo dos olhares de Margha, sua calada mulher. Pela propriedade com que trata de temas universais como o poder, a morte e o acaso, A máquina de Joseph Walser merece ser comparado a obrasprimas perturbadoras como Auto-de-fé, de Elias Canetti, e O processo, de Franz Kafka.

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EDUCAÇÃO

INACIANA: o início de um percurso...

Por Fernando Guidini

Saiba mais sobre a Companhia de Jesus e veja como sua trajetória está completamente envolvida no compromisso com a educação, sempre buscando a excelência, o mais e o melhor para e com o outro.

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A

A data do dia 31 de julho marca a festa do Santo fundador da Companhia de Jesus: Inácio de Loyola (1491-1556). Rememorar uma data como essa é voltar no tempo e relembrar a história de Inácio: seus primeiros anos em Loyola, sua estada nas armas como militar, a conversão e os estudos universitários, seus primeiros companheiros, a fundação da Ordem, os trabalhos missionários. Em um contexto social de uma modernidade nascente em meio a conflitos religiosos, avanços nas ciências, descobertas de novas terras e formação de Estados Nacionais, a Companhia de Jesus se estabelece como um estandarte cristão trazendo em seu bojo o ardor missionário. Inácio imprime em seu grupo de amigos e companheiros o propósito da contemplação na ação, convidando os jesuítas a verem Deus em todas as coisas, e todas as coisas em Deus. Com a aprovação oficial pelo Papa Paulo III no ano de 1540, a Companhia se firma como ordem missionária. O desejo inicial do primeiro grupo de amigos – ir à terra santa, não se realiza. Decidem, então, colocar-se à disposição do Papa, para que os enviem em missão segundo as necessidades da igreja. Inácio, já em Roma, assume a direção e o cuidado do grupo de amigos no Senhor enquanto alguns de seus companheiros partem em missão por diferentes lugares da Europa, Ásia, África e América. Dentre os diferentes campos missionários estabelecidos pelos Jesuítas, a educação se impõe como um vigoroso espaço de evangelização e formação cristã, mesmo que a Ordem fundada não tivesse como primeiro objetivo e propósito a educação. A fundação de colégios ou universidades não fazia parte dos ideais de Inácio e de seus companheiros que almejavam o serviço a Deus e à Igreja de uma forma livre e abnegada, dedicando-se à pregação, confissões e missões, ministérios apostólicos diretos e correntes na época. Entretanto, o discernimento constante fez com que esses homens percebessem tanto a necessidade quanto a importância de se alavancar um projeto missionário capaz de contemplar a educação, formando bem tanto os

seus, isto é, os Jesuítas, quanto aqueles que se apresentassem para estudar em um colégio da Companhia. Tais ideias se encontram referendadas na parte IV das Constituições da Companhia de Jesus na qual Inácio escreve: “O fim que a Companhia tem diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas. Este fim exige uma vida exemplar, doutrina necessária, e maneira de a apresentar. (...) Para isso, funda colégios e também universidades, onde os que deram boa conta de si nas casas e foram recebidos sem os conhecimentos e doutrinas necessários possam instruir-se neles e nos outros meios de ajudar as almas”. (2004, p. 115)

O primeiro colégio administrado pela Companhia para alunos externos foi em Goa. Registros mostram que já no ano de 1544 os Jesuítas assumiram a direção desse colégio (conforme TAVARES, 2007, p. 121-134). No ano de 1545, dois outros colégios: um na Alemanha; outro na Irlanda. Em 1546, Gandia, na Espanha. Percebe-se, portanto, como que desde os primórdios, Inácio admitia e incentivava o apostolado nos colégios, julgando-os, como salienta SCHMITZ (1994), “um dos apostolados prioritários da Ordem, especialmente por causa do efeito multiplicador que se exercia através dos formados por eles” (p. 13). Mas é ao Colégio de Messina, na Sicília, que compete o estatuto de ser o primeiro colégio criado pelos Jesuítas para a educação da juventude. Em 1548, a pedido do vice-rei, Dom Juan de Veja, Jeronimo Nadal e outros nove religiosos deram início ao que seria o primeiro colégio da Companhia de Jesus. Ao Colégio de Messina segue a fundação do Colégio de Palermo (1549) e do Colégio Romano (1551), atual Universidade Gregoriana. Foi em Messina que pela primeira vez os Jesuítas “aplicaram um plano de estudos e um método pedagógico bem definidos, plano de estudos e método que, posteriormente, viriam a ser adotados por todos os outros colégios da Companhia” (GOMES, 1994). Tal método foi o modus parisiensis. Inácio e seus companheiros, formados pela Universidade de Paris, não hesitaram em implantar nos colégios da Ordem o método de estudos utilizado

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nessa Universidade, considerado o melhor em “matéria de repetições, disputas, competições, interrogações e declamações” (FRANCA, 1952). Além disso, o método privilegiava em sua estrutura de estudos a divisão dos alunos em classes, os exercícios escolares em horários definidos, o incentivo para o trabalho escolar (premiações) e a piedade. Como afirma Gomes (1994), “A concentração do ensino nos Colégios implicou o encadeamento orgânico das matérias, a articulação metódica das disciplinas, a sua gradação em níveis sucessivos, a exigência de sólidas bases gramaticais, a progressão nos estudos, a estrutura bem aparelhada dos programas e, consequentemente, a divisão dos alunos em classes”. (p. 188)

O método consistia em um conjunto de 467 regras bem distribuídas (provincial, reitor, prefeito de estudos, professores, exames, prêmios, estudantes internos e externos, bedel, academias). Sua origem se encontra na prática educativa efetuada nos Colégios e na Parte IV das Constituições a qual trouxera as linhas mestras “da organização didática e sobretudo sublinhara o espírito que deveria animar toda a atividade pedagógica da Ordem” (Franca, 1952, p. 16). A intenção do fundador, aplicada à ação dos professores nos Colégios da Companhia, culminou nessa obra de importância singular na educação moderna. A leitura do Ratio como um tratado pedagógico torna-se impossível, pois se trata de um plano de estudos que em seu conjunto universaliza a proposta educativa da Companhia de Jesus, precisando, assim como os Exercícios Espirituais, ser vivenciada e colocada em prática. Os estudos inferiores e superiores propostos nos Colégios e mediatizados pelo Ratio, pautaram “a organização e as atividades de numerosos colégios fundados e dirigidos pela Companhia de Jesus. Essas instituições multiplicaram-se rapidamente, chegando a um total de 728 casas de ensino em 1750, nove anos antes da expulsão dos Jesuítas do Brasil e dos demais domínios portugueses, e 23 anos antes da supressão da Ordem pelo Papa Clemente XIV” (SAVIANI, 2008, p. 57).

Concentra-se em Messina, portanto, o nascimento do primeiro plano de estudos dos Jesuítas. Segue-se a essa inicial experiência um movimento de estudos e discussões pedagógicas internas à Ordem que durará meio século. Tal movimento reflexivo, centrado na prática educativa dos Colégios, culminou no ano de 1599 com a publicação daquele que seria o método pedagógico dos Jesuítas: o Ratio atque Instituio Studiorum Societatis Iesu, mais conhecido como Ratio Sdutiorum.

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Elementos teóricos e pedagógicos subjazem a presente reflexão. Dentre eles, destaca-se: a filosofia e a teologia presentes na educação jesuítica, a aquisição do conhecimento mediante a didática adotada, a disciplina em sala e a organização dos alunos em classes, a função do professor especialista em seu ofício e disciplina, a administração dos colégios e sua manutenção, a dimensão da palavra presente nos princípios da Contra-Reforma Católica e sua força na educação, a dialogia Igreja-Estado, a organização dos estudos e a manufatura nascente, dentre outros. Essa discussão, ao volver seu olhar sobre a história inicial da educação na Companhia de Jesus, abordou sinteticamente alguns dos elementos centrais do projeto educativo jesuítico em seus princípios, propósitos e método de trabalho pedagógico. A festa de Santo Inácio de Loyo-


la deu forma à reflexão e trouxe à pauta a rememoração dessas ideias, demonstrando, mais uma vez, a centralidade da pessoa de Inácio frente ao trabalho educativo dos Jesuítas. Perpassados quase cinco séculos desde a fundação da Companhia e dos primeiros colégios, considerar-se herdeiro desse grande projeto e optar por essa forma de ensino é, à força da identidade motriz, responder de forma crítica e ao mesmo tempo criativa aos desafios educativos hoje propostos. Acreditar na educação, em uma constante leitura e releitura do momento presente por meio do conhecimento, e conceber os agentes envolvidos nesse processo como sujeitos, torna-se a condição de possibilidade para a educação de pessoas humana e academicamente equilibradas e inseridas em seu tempo e espaço. As características presentes na educação da Companhia de Jesus, em sua pedagogia propriamente inaciana, lançam luzes sobre esse caminho.

HISTÓRIA DAS IDÉIAS PEDAGÓGICAS NO BRASIL

(Comente este artigo em mediacao@colegiomedianeira.g12.br)

Fernando Guidini é graduado em Filosofia pela FAJE-BH, pós-graduado em Comunicação e Semiótica pela PUCPR e mestrando em Educação pela PUCPR. É Orientador Educacional das 5ª e 6ª séries no Colégio Medianeira.

REFERENCIAIS

BIBLIOGRÁFICOS

CONSTITUIÇÕES DA COMPANHIA DE JESUS. São Paulo: Loyola, 2004. GOMES, Joaquim Ferreira. O modus parisiensis como matriz da pedagogia dos Jesuítas. In Revista Portuguesa de filosofia. Braga, n. 50, PP. 179-196, 1994. SCHMITZ, Egídio. Os Jesuítas e a Educação. A filosofia Educacional da Companhia de Jesus. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994. TAVARES, Célia C. da S. Francisco Xavier e o Colégio de Goa. In Em aberto. Brasília, v. 21, n. 78, PP. 121-134, dez. 2007.

ATUALIDADE DA PEDAGOGIA JESUÍTICA AUTOR: LUIZ FERNANDO KLEIN

AUTOR: DERMEVAL SAVIANI Editora Autores Associados ‘História das Idéias Pedagógicas’ é um compêndio sobre a história da educação. O autor divide a obra em quatro partes - 1. as idEias pedagógicas no Brasil entre 1549 e 1759 - monopólio da vertente religiosa da pedagogia tradicional; 2. entre 1759 e 1932 - coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da pedagogia tradicional; 3. entre 1932 e 1969 - predomínio da pedagogia nova; e 4. entre 1969 e 2001 - configuração da concepção de pedagogia produtivista.

Editora Loyola A pedagogia jesuítica tem logrado notável atualização no último decênio ao conjugar a fidelidade aos princípios do Ratio Studiorum, o discernimento educativo contemporâneo. Destacase pela ousadia das metas e pelas estratégias personalizadoras de ensino e aprendizagem. Ressalta a atenção à pessoa amada com atitude básica pra formar homens e mulheres competentes e comprometidos com a transformação das estruturas injustas da sociedade. Enfatiza a coresponsabilidade dos diversos segmentos da escola em vista de sua otimização. Empenha-se pela abertura e integração da escola com outras instâncias da sociedade. Impregnado de valores o processo educativo, a atual pedagogia jesuítica demonstra sua relevância em vista do terceiro milênio.

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SAUDADE

Pe. Raimundo Kröth, S.J.

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Com pesar e profunda tristeza, a comunidade acadêmica do Colégio Medianeira recebeu a notícia do falecimento do ex-diretor Pe. Raimundo Kröth, aos 68 anos de idade e 47 de Companhia de Jesus. Ele morreu no dia 3 de outubro, às 22h, na Casa de Saúde dos Jesuítas, em São Leopoldo, RS, vítima de câncer. Seu corpo foi enterrado no Cemitério dos Jesuítas, junto ao Santuário do Pe. Reus, em São Leopoldo. Pe. Raimundo dirigiu o Colégio Medianeira por duas vezes. De 1975 a junho de 1986, assumiu diversos encargos como professor, orientador espiritual, Superior da comunidade religiosa e Diretor geral. De 2000 a 2007, assumiu novamente a Direção geral do Colégio e foi o responsável por mudanças estruturais importantes e pelo Planejamento Estratégico, realizado entre 2006 e 2007, que garantiu novos rumos e objetivos para a instituição até 2012, com o compromisso pelo grupo de constante atualização. De personalidade forte, visionária, reflexiva e analítica, Pe. Raimundo Kröth foi diretor, educador, amigo e conselheiro dos educadores do Colégio Medianeira. Para ele, dirigir um colégio da Companhia de Jesus era mais que uma tarefa ou um desafio, era uma missão de vida e um compromisso com os paradigmas da educação jesuíta. Exigente, discreto, espirituoso e bem-humorado, o Pe. Raimundo tinha a busca da excelência como meta e cultivava a autonomia e a liberdade como essenciais para a sobrevivência dos homens e das instituições, sem, no entanto perder de vista os votos feitos durante a vida religiosa, principalmente o da fidelidade à Companhia. Foram 47 anos de dedicação inquestionável. Sua fama de visionário o levou nos dois últimos anos ao Colégio Santo Inácio, de Fortaleza, no qual chegou como diretor. Lá, em dezembro de 2009, passou a ter problemas de saúde. Descobriu então se tratar de um câncer. Vislumbrando os dias que viriam, entregou a direção do Colégio e mudou-se para a Casa de Saúde dos Jesuítas, em São Leopoldo, onde, resignado, permaneceu. Na posição de educador e Jesuíta, Pe. Raimundo Kröth, S.J., passou os 47 anos na Companhia de Jesus. Em sua segunda missão, como Diretor do Colégio Medianeira, nos falou, na edição no. 0 da Revista Mediação. Esta entrevista reeditamos, como uma forma de homenageá-lo, relembrando suas palavras sempre sábias, prontas para análises lúcidas e diretas, porém com ternura, humildade e carisma, de um jeito próprio que ele sabia demonstrar.

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O que diferencia a educação jesuíta? No que uma escola jesuíta é diferente das demais?

ver desse modo, mas o grupo de amigos tem outros valores.

É uma questão de conceitos. É muito forte (e bastante comum no colégio) a ideia de formar homens e mulheres para os demais. Depois, a excelência. Santo Inácio não suportava medíocres, ele dizia que Deus merece o melhor. Quem queria ser companheiro de Santo Inácio, na Companhia, tinha de entrar com essa noção da maior glória de Deus. Isso se prescrevia para todos os setores, e também para a educação. Então, geralmente, onde há uma escola dos jesuítas, é uma escola academicamente boa, já pelo valor que as ciências têm, nessa visão de Santo Inácio da maior glória de Deus, de que o toque de Deus está presente em tudo aquilo que o ser humano pode descobrir ou inventar para beneficiar a raça humana. E evidentemente também entra a evangelização, mas é a evangelização pela cultura. A característica sempre é essa busca da excelência.

Santo Inácio tem muito a noção de que nós fomos criados por Deus e isso foi um ato de amor. Nós somos à imagem e semelhança de Deus, portanto em nós há a marca da grandeza de Deus, e isso nós podemos expressar para fora, na fraternidade, na convivência, mas também na literatura, na pintura, na música, na ciência.

Como é possível persistir nessa meta de ser para os outros, para os demais, se os alunos vêm de uma sociedade essencialmente egoísta? É evidente, a família que vem, vem da sociedade, e mesmo nós, se nos descuidamos, somos engolidos por isso. Em primeiro lugar, você tem de saber que está contra a correnteza, contra a corrente da sociedade. E é preciso abrir os valores, e exatamente aí entra a importância do Reino pregado por Cristo, que se centraliza em Deus e na pessoa humana. São os dois grandes valores. Toda pessoa humana tem igual valor. Essa sensibilização não é só por atividades religiosas. Eu diria até que é o que menos ocorre na escola. Ocorre também, mas é mais pela História, pela Biologia, pela Geografia. Todos devem entender que são ciências que podem privilegiar alguns, mas podem também privilegiar a todos. Criar a sensibilidade da pessoa, fazer com que perceba. Naturalmente é muito lento, e eu diria que sempre um pouco em conflito. Às vezes o conflito não é na sala de aula, mas quando, por exemplo, eles aprendem alguma coisa aqui no colégio, vão para casa, e a família não vive isso, já começa o conflito. Depois, quando eles querem vi-

Existem mil e uma formas, e ele as valorizava muito, por isso a ciência e as artes sempre foram coisas bastante desenvolvidas nas escolas jesuítas.

E o educador de uma escola da Companhia de Jesus, como ele deve ser? Em princípio, deve ser uma pessoa humanamente rica, isso é básico, e em segundo lugar que busque, de uma ou outra forma, a excelência, ou esteja disposto a fazer o caminho da excelência. Mas também seja uma pessoa que tenha, minimamente, fé. Claro que isso tem muitos níveis, e as circunstâncias da vida das pessoas são muito diferentes, mas é importante que a fé não seja algo estranho, mas algo valorizado. Esses seriam os aspectos principais: ter minimamente fé, poder viver a esperança, a fraternidade; ter um olhar para o outro um pouquinho educado pelo olhar de Cristo, de Deus, e ao mesmo tempo ser uma pessoa que busca a excelência.

E qual a posição do estudante? As escolas jesuítas estimulam participação política, por exemplo? Certamente, porque se nós vamos formar homens e mulheres para os demais, a política é um caminho. Formamos para a consciência crítica, e daí para a política é um passo. Só que nós não fazemos uma determinada opção política, isso fica aberto, as pessoas têm liberdade, os jesuítas também têm liberdade, como as famílias têm liberdade, e temos uma variedade enorme de alternativas. Mas uma coisa é certa: a consciência crítica certamente os leva a um olhar crítico para dentro da política, e daí para tomar posições não demora nada.

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E quando se formam tantos espíritos críticos, como é que se administram esses espíritos críticos, que também são contestadores dentro da escola? Na medida em que são contestadores, eles sabem que também precisam abrir espaço para diálogo. Contestar o quê? Por quê? Como poderia ser? Enquanto a proposta que eles fazem não contraria valores que a escola tem como centrais, caminhamos com eles. Evidentemente, se há um choque, mostra-se o choque e diz-se não. Mas é certo que é preciso abrir espaço para o diálogo, para o diferente, para a proposta deles. E os alunos veem abertura, não se afirmam pelo contraste, porque nossos professores caminham com eles, têm muita amizade, o que esvazia o confronto e abre o diálogo de amigo para amigo.

O Medianeira é uma escola em que se percebe nos estudantes muita autonomia e liberdade. Como isso é gerado e administrado? É uma autonomia que tem uma direção. Vamos pegar um caso muito simples, o namoro. Se proibirmos, vão namorar do mesmo jeito. Se permitirmos, vão namorar e poderemos acompanhar. Quando há um excesso, chamamos e conversamos. A maioria sabe levar isso direitinho. Fazemos disso um elemento educativo, e aí está a importância de ter na escola pessoas que são capazes de conversar criativamente com os alunos, e se for necessário questioná-los. A gente sempre diz que os jovens não querem ser questionados. Se o jovem não for questionado naquilo que sabe que esteja errado, amanhã ele te joga na cara: "você devia ter feito e não fez, você sabia melhor que eu, e não tomou uma atitude". Para nós, é muito claro: há autonomia, mas há limites. Há um trabalho educativo de explicitar os valores que se quer, mas nem sempre todos se conformam, eles fazem as tentativas, nos testam, e aí o educador tem de chegar e conversar, em uma outra parte desse trabalho educativo. Tem de fazer disso um elemento construtivo.

As famílias compreendem esses diferenciais todos de uma escola jesuíta? Quando falamos em família, falamos de muitas coisas diferentes. Temos famílias em diferentes extremos. Temos desde famílias altamente conservadoras até famílias militantes de esquerda, só para citar dois extremos. De vez em quando há um estranhamento, "vocês são um colégio do PT". Não somos. Nós formamos para valores e consciência crítica. Se

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depois eles encontram mais respaldo num partido ou noutro, não é algo que a escola esteja privilegiando. Ou, por exemplo, quando se dá a catequese, alguns querem doutrina. Há grupos na igreja que são mais fundamentalistas e vão pela doutrina, mas gente sabe que isso não funciona com os jovens. Não que eles não devam ter a doutrina, mas é muito mais eficaz lhes dar reflexão através da prática, da experiência, e isso eles adoram. Quanto mais corajosa e ousada a experiência, mais eles gostam. Basta ver a semana da Páscoa, quando nossos estudantes passam alguns dias morando com famílias pobres. Isso os marca profundamente. Aí, sim, você pode refletir, dar os elementos de doutrina, e eles aceitam bem. Mas se quiser só ficar enfiando doutrina na cabeça, não dá certo. Padre Raimundo prezava pelos momentos de isolamento e reflexão. Mas também apreciava o encontro com os amigos que cativou no Medianeira. Ele era graduado em Filosofia, Pedagogia e Teologia e pós-graduado em Pedagogia Inaciana. Seus pais, já falecidos, vieram da Alemanha e se instalaram no lugar onde ele nasceu, "um pouquinho além de Chapecó", em Santa Catarina, chamado Saudade. É este o sentimento que ele nos deixou, além dos ensinamentos e conselhos, e que nos preenche sempre que nos lembramos do Padre Raimundo.


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