revista de educação do colégio medianeira NÚMERO 29 |
ANO XII - 2016 | ISSN 1808-2564
Currículo e
aprendizagem:
uma
abordagem
jesuítica
PEC: um projeto
de aprendizagem integral
O mundo precisa
de competência, compassividade consciência e compromisso
Geografia
urbana:
meu lugar na cidade mediação
1
2
mediação
Diretor Pe. Carlos Alberto Jahn, S.J.
Diretor Acadêmico Prof. Fernando Guidini
Diretor Administrativo Gilberto Vizini Vieira
Jornalista responsável Carlos Alberto Jahn (MTB 9977)
sumário
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Meu lugar na cidade
Ketilyn Castro de Almeida
Meu
O cinema na escola
Gustavo Pinheiro
lugar
Coordenação Editorial
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Vinicius Soares Pinto, Jonatan Silva, Liliane Grein
PEC - Um projeto de aprendizagem integral
Ketilyn Castro de Almeida
na Currículo e aprendizagem: 15 uma abordagem jesuítica cidade
Revisão Bruno Sanroman
Redação Jonatan Silva
Projeto Gráfico
Fernando Guidini
Liliane Grein
Ilustrações e imagens Shutterstock, Fabiano Vianna, Nilo Biazzetto, Paulinha Kozlowski e Marcelo Weber
Colaboraram nesta edição Alexandre Rafael Garcia, Andressa de Oliveira Nascimento, Carlos Alberto Jahn, Cezar Tridapalli, Cleverson São João, Fernando Guidini, Giovanna Farias Rodrigues, Gustavo Pinheiro, Isabelle Ridder, Isabel Cristina Piccinelli Dissenha, Ketilyn Castro Almeida, Larissa Ferreira Nunes, Luciane Hegemeyer, Mariana Terendo Cuduh, Nicole Witt, Sofia Padilha
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Perfil: Edgar Morin
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Entrevista com Carlos Alberto Jahn
Texto cedido pela editora Palas Athena
Cezar Tridapalli
Serviço de Orientação Pedagógica Claudia Furtado de Miranda, Danielle Mari Stapassoli, Juliana Cristina Heleno, Mayco Delavy e Ivana Suski Vicentin
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Educação Infantil e Ensino Fundamental de 1º a 5º ano Coordenação Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro
Ensino Fundamental de 6º e 7º ano Coordenação Profª Eliane Dzierwa Zaionc
Ensino Fundamental de 8º e 9º ano Coordenação Prof° Marcelo Pastre
C
expediente
Revista de educação editada e produzida pelo Colégio Medianeira ISSN 1808-2564
oeira, p a
37
o território
Eu, você, nós: pessoas conscientes, competentes, compassivas e comprometidas
Isabel Cristina Piccinelli Dissenha E não é que o ambiente é também sujeito do processo formativo?!
Nicole Witt
da diversidade
Ensino Médio Coordenação Profº Adalberto Fávero
41
Capoeira, o território da diversidade
45
A história além do óbvio
49
Uma mulher em conflito
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Um passeio público
Cleverson São João
Coordenação de Pastoral Isabel Cristina Piccinelli Dissenha
Coordenação de Midiaeducação Vinicius Soares Pinto
Comunicação e Marketing
Luciane Hagemeyer
Vinícius Soares Pinto
Tiragem 5000
Papel Capa: Papel 180g Miolo: Papel 90g
Alexandre Rafael Garcia
Um passeio público
Número de Páginas 56
Impressão Gráfica Radial Tel: 3333-9593
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que devidamente citada a fonte e autoria. Linha Verde - Av. José Richa, nº 10546 Prado velho - Curitiba/PR fone 41 3218 8000 Fax 41 3218 8040 www.colegiomedianeira.g12.br comunicacao@colegiomedianeira.g12.br
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Cezar Tridapalli
Charge
Marcelo Weber
mediação
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editorial
Todas as vezes em que uma edição da Mediação sai do forno é o resultado de esforços e debates dentro e fora do Colégio Medianeira. O número 29, esse que você tem em mãos, carrega como tema central a Aprendizagem Integral, algo caro a nós educadores e que, apesar de não parecer tão cotidiano quanto deveria, está ligado tão intimamente ao nosso tempo. O artigo escrito pelo diretor acadêmico do Medianeira, Fernando Guidini, nos direciona ao mote, que direta ou indiretamente, reverbera em todas as páginas. Todos os conceitos e práticas da aprendizagem, e também da troca de conhecimento, só fazem sentido porque são feitos por e para pessoas. Com a ideia de mostrar um pouco mais das práticas docentes de nossos educadores, trazemos duas entrevistas e apresentamos relevantes projetos transdiciplinares. Em relação às entrevistas, na primeira, o diretor geral do Colégio, Carlos Alberto Jahn, conta sua trajetória e seu compromisso com a educação na Companhia de Jesus. Adiante, o professor de Capoeira, Cleverson São Jorge, contextualiza a Capoeira, sua importância cultural e esportiva e possíveis usos na mediação pedagógica. Em um mun-
do cada vez mais voltado às máquinas e aos processos tecnomediados, o Medianeira reafirma a preocupação com as pessoas e com a formação de sujeitos capazes de tecer um mundo por meio de ações competentes, comprometidas, compassivas e conscientes. O Serviço de Orientação Religiosa e Pastoral (SOREP), o Centro de Educação Ambiental (CEA) e o uso da linguagem audiovisual dentro da sala de aula, são três importantes estratégias de aprendizagens. A matéria sobre geografia urbana e a crônica desta edição dialogam ao colocar em xeque as certezas sobre como olhamos para a nossa cidade. O elemento comum aos textos que compõem a revista é justamente a reflexão, uma maneira de questionarmos o mundo, mas também de nos comprometer – buscando a consciência de que podemos nos aperfeiçoar e de que esse aprimoramento é fruto do conhecimento e da reflexão. Ponto alto da edição, o texto do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin coloca luz sobre a importante questão do sujeito eticamente responsável. O artigo é reflexão fundamental para que possamos compreender o que está ao nosso redor e nos colocarmos mais próximos dos demais.
Outro tema desta edição é o Projeto Educativo Comum (PEC), documento-chave da Rede Jesuíta de Educação para os próximos anos. Ele tem o objetivo de revisitar o trabalho educativo realizado nas escolas jesuítas à luz do foco na Aprendizagem Integral, e desenhar caminhos de implantação que garantam uma renovação sustentável das unidades em todos os âmbitos. A reportagem conversou com o Delegado para a Educação Básica, Pe. Mário Sündermann, figura central à frente do projeto e que pontuou os desafios na sala de aula, para educadores, alunos e famílias. Por fim, uma bela trinca cultural. Primeiro uma resenha literária A Famosa Invasão dos Ursos na Sicília, de Dino Buzzati. Depois, a crítica do filme Mia Madre (2015), de Nanni Moretti, uma obra do cinema contemporâneo italiano e, por último, a charge – que tanto tem a nos dizer. Em síntese, a Mediação número 29 coloca-se em sintonia com os processos de ensino-aprendizagem de uma educação que vê nos meios de comunicação um ambiente de aprendizagem e uma estratégia de socialização. Você é nosso convidado. Boa leitura! Jonatan Silva
Envie sugestões e comentários para:
comunicacao@colegiomedianeira.g12.br Procure essa e as edições anteriores, que podem ser lidas na íntegra, no nosso site:
www.colegiomedianeira.g12.br
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mediação
Meu
lugar
na cidade
Os espaços urbanos estão cada vez mais inseridos em contextos contemporâneos que envolvem a ocupação artística e o debate político. E com Curitiba não é diferente: da criação do Passeio Público ao surgimento dos artistas de rua. Por Ketilyn Castro de Almeida
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lém de conhecer as ruas e bairros da cidade, pode ser interessante também se aprofundar sobre a geografia urbana do lugar em que mora. Essa é uma forma de ampliar a visão sobre a cidade, descobrindo novas formas de ocupar espaços, seja com política ou arte, e consequentemente ajudar no desenvolvimento urbano como um todo. A professora de Geografia do 8º ano do Colégio Medianeira, Rafaela Pacheco Dalbem, lembra que geografia urbana é um ramo da ciência geográfica que estuda as áreas urbanizadas ao redor do globo, mas que não é tão simples como pode parecer. “Esse ramo vai se debruçar em assuntos de cunho organizacional e físico – estando muito próximo do urbanismo – social – onde se aproxima da antropologia, história e sociologia – e de conceitos como espaço e território”. Rafaela ainda comenta que deixando de lado exceções como Brasília e os núcleos iniciais de Belo Horizonte e Palmas, a maioria das cidades no mundo não foi planejada na sua origem, mas sim ao longo do seu desenvolvimento. “Os territórios e espaços ocupados ou escolhidos para implantação de uma área urbana foram iniciados por um grupo social que assentou suas casas ali por algum motivo, seja água, relevo plano, facilidade para movimentar-se ou tantos outros fatores”.
A
Trazendo esses conceitos para Curitiba e seu planejamento urbano, aliás, famoso dentro e fora do território nacional, o professor de geografia, Luiz Henrique de Oliveira, lembra que essas práti-
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mediação
cas iniciaram por volta do fim do século XIX com a implantação do Passeio Público e a canalização do Rio Belém, no intuito de controle sanitário para contenção das enchentes, que eram recorrentes na região. “Após esse período teríamos como marco o Plano Agache, de 1941, que organizou o centro da cidade e as áreas de expansão. Esse plano delimitou o desenvolvimento de Curitiba até a implantação do primeiro Plano Diretor, na metade da década de 1960 e, a partir de então, o viés metodológico ou mesmo a atualização do Plano foram incipientes. Se formos um pouco mais a fundo e procurarmos os tipos de planejamento que ocorreram na cidade (e no Brasil) ao longo da sua história, podemos dizer que foram especialmente planos de embelezamento, planos de conjunto e planos desenvolvimento integrado”, conclui. De acordo com Luiz Henrique de Oliveira, professor de Geografia do 7º ano do Colégio Medianeira, no histórico do urbanismo há um distanciamento entre o espaço planejado e a dinâmica real da cidade, e com Curitiba não foi diferente. Como exemplo dessa afirmação ele cita o papel que a especulação imobiliária teve no desenvolvimento da cidade, aliado ao planejamento da mesma. “Esta combinação fez com que grande parte da população se direcionasse para áreas mais distantes da região central ou para municípios da região metropolitana. Lugares com menos infraestrutura, equipamentos urbanos necessários para atender suas necessidades e,
de maneira geral, distantes (espacial e qualitativamente) da ‘cidade modelo’”. E tanto Luiz quanto Rafaela acrescentam um déficit sobre Curitiba: “A cidade é reconhecida por suas interferências urbanas, mas infelizmente, ao longo da história, alguns grupos sociais foram deixados de lado, em nome da manutenção de um status de cidade modelo e capital europeia”. Luiz complementa lembrando que atualmente, os últimos debates em relação ao futuro de Curitiba estão ligados à revisão do Plano Diretor, que deve ser reavaliado a cada dez anos. OCUPAR A CIDADE Muito se fala sobre “ocupar a cidade”, mas pode não ser um conceito claro para todos. Para o professor Luiz Henrique, significa fazer parte e ser visto, e isso pode ser feito por qualquer grupo de pessoas, pois historicamente a cidade é um local de encontro que agrega pessoas, promovendo troca de experiências, diálogo, aproveitamento do espaço público. Segundo Rafaela Dalbem, um exemplo de ocupação em Curitiba é o movimento dos ciclistas. “Eles estão reivindicando seu espaço dentro de esferas públicas e formais, inclusive com a ampliação da malha cicloviária, com espaços destinados não só à compra e manutenção de bicicletas, mas espaços culturais como a Bicicletaria Cultural, que fica ao lado da Praça de Bolso do Ciclista, na região central da cidade”. Mas quando o assunto é arte os professores acreditam que, além de ser uma forma de ocupação, o grafitti é também uma for-
ma de territorialidade dentro da cidade. “Esta questão está intrínseca nesse processo, independente se de forma oficial ou não, se em forma de arte ou em forma de reivindicação de questões sociais. Dentro da geografia falamos de alguns territórios que são ‘flutuantes’, pois não são necessariamente delimitados por um perímetro específico e podem mudar de tempos em tempos”, explica Rafaela. O educador finaliza com um lembrete social: “Trocar os espaços privados de socialização, como shoppings e clubes, por espaços públicos, como praças, parques e ruas, é o primeiro e importante passo para que o sentido da cidade (o do encontro) seja retomado. Claramente isso é uma questão de esforço individual e coletivo e, apesar de algumas vezes encontrarmos vários empecilhos, vale pensar em maneiras criativas de mobilização”, conclui Luiz. MAIS ARTE Além do grafitti, há outras expressões artísticas que passaram dos muros de escolas, estúdios e escritórios para chegar até a rua, e além de ocupá-la, também retratá-la. Esse é o caso do grupo Urban Sketchers Curitiba, criado em Junho de 2015. O projeto foi inspirado no movimento internacional de desenhistas de rua, os Urban Sketchers, que se alastra por várias cidades do mundo, utilizando sempre o nome oficial seguido pela cidade. A ideia é a promoção de encontros aos sábados, com duração média de duas horas para produção de croquis, além de
Ilustrações de Fabiano Vianna
mediação
7
Fotos de Nilo Biazzetto
apresentar os trabalhos ao ar livre, confraternizar com os outros artistas e até registrar o momento com fotos. Fabiano Vianna é um dos fundadores do grupo, ao lado dos colegas Simon Taylor, Raro de Oliveira, Antonio Dias e Thiago Salcedo. “Na rua é onde as histórias acontecem. Sujeito às dificuldades e alegrias de estar exposto. Clima, acontecimentos e surpresas. Além dos diferentes personagens como malucos-beleza com visões duplicadas, curiosos enigmáticos e cantores de praça. Na rua relembrei conceitos de desenho de observação e proporção. Redescobri minha própria cidade. Se é que ela realmente existe e não esteja diariamente sendo criada”, lembra. Desenhando in loco, ou seja, no próprio local do espaço retratado, cerca de 50 participantes mais assíduos se encontram. E entre o grupo há diferentes profissionais, desde amadores, agrônomos, advogados, zootecnistas, arquitetos a ilustradores profissionais. Qualquer um pode participar. “Basta acordar cedo, animado e ir até o local marcado e divulgado pelo grupo no Facebook, munido de seus materiais de desenho favoritos e um banquinho. Vale uma ca-
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deira de praia também”, comenta. Mas há algumas regras que os participantes precisam cumprir. Entre elas, o desenho, que deve ser desenvolvido em duas horas, embora acabamentos finais possam ser acrescentados depois. Além da ocupação, o trabalho desenvolvido pelo grupo tem o poder documental. “O maior benefício será em longo prazo, um registro artístico de uma época. Mesmo quando algumas construções já tenham desaparecido, ainda teremos os desenhos” Fabiano ainda acrescenta lembrando do objetivo do grupo. “Como todo movimento artístico histórico, as pessoas se reúnem naturalmente, movidas por vontades coincidentes. Eu acho que este movimento representa e quer reviver uma fase onde as pessoas voltam a povoar as ruas e praças. A cidade em si. E até mesmo a volta da utilização de materiais físicos, manuais, em oposições às técnicas virtuais e mecânicas dos computadores”, conclui. FOTOGRAFAR AS RUAS O fotógrafo curitibano Nilo Biazzetto Neto trouxe a rua para os seus trabalhos, ou melhor, foi
nela que encontrou sua arte. Ele lembra que a educação artística não era presente em casa durante sua infância e adolescência, apenas quando o assunto era música. Porém, quando analisa seu passado, percebe que o ato de fotografar já tinha seu espaço em casa, graças a sua mãe e aos famosos álbuns de família. “No primeiro ano da faculdade de publicidade e propaganda comecei a me interessar mais pela foto, mas foi no segundo ano, com aulas mais direcionadas que me apaixonei”, comenta. Com uma lente 50 mm, famosa por equivaler ao campo de visão humano e não ter possibilidade de zoom, obrigando o fotógrafo a se aproximar ou se afastar da cena, Nilo se encantou por fotografar o cotidiano da cidade. “Na rua é onde tudo acontece, naquele universo há diversos caminhos artísticos, não só o da fotografia. Lá temos os opostos como a iluminação que muda na noite e no dia, a riqueza e a pobreza. Além das características típicas da região, como a música. Quando meus alunos vão fotografar na Argentina, por exemplo, sempre digo que não precisamos apenas fotografar
o tango, precisamos vivenciá-lo e senti-lo. O mesmo acontece com um prato típico”.
não vou conseguir retratar, seja por falta de zoom, desfoque ou outras características”.
Nilo lembra que fotografar a cidade que mora é mais complexo e por isso considera que não tem trabalhos tão consistentes sobre Curitiba, além de dois projetos sobre a chuva, o primeiro deles mostrando uma cidade mais sombria e cinza e o segundo mais colorido. “Mas o meu trabalho não é documental, eu gosto de fazer um recorte da cidade. E também nunca gostei de carregar tanto equipamento, então há pouco tempo me rendi ao Instagram. E meu celular se tornou meu principal equipamento. Quando vou fotografar já penso em uma imagem quadrada. É prático, porque eu fotografo, edito e posto na hora. É libertador, mas precisa existir o desapego de saber que algumas cenas eu
“Faz 22 anos que comecei a fotografar”, Nilo não gosta de definir como anos de profissão, pois considera a fotografia algo mais. “Não é só uma profissão é uma personalidade, a fotografia é quem eu sou. Hoje 90% do meu material fotográfico é de projetos pessoais e apenas 10% é profissional”. Tímido, ele encontrou na máquina fotográfica um escudo para essa retração. “Quando vou fazer retratos na rua, tenho muita facilidade de direção, mas principalmente de abordagem. E em poucos minutos consigo tirar o melhor daquela pessoa, com uma imagem verdadeira”. Há 18 anos, Nilo montou uma escola de fotografia, “uma ousadia para a época”. Mas atual-
mente o conceito se expandiu, e a Portfólio se tornou um espaço de arte, não apenas pelos seus eventos culturais, mas por convidar a refletir sobre a arte e a vida todos os dias. “A fotografia não é fruto de um equipamento, a fotografia é um alimento. É tudo que vemos, sentimos e ouvimos. E é por isso que a escola cada vez mais reúne todas as expressões artísticas e proporciona um espaço para que outras pessoas pensem assim. Temos também um muro galeria, mais uma forma de levar a arte para fora, para a rua, para o acesso de todos”, conclui.
Ketilyn Castro de Almeida é jornalista, blogueira, fotógrafa e pós-graduada em Mídias Digitais pela Universidade Positivo.
Recomendações Filme: 1984 Direção de Michael Radford Adaptação cinematográfica do clássico homônimo do escritor inglês George Orwell. O longa faz um diálogo entre o totalitarismo, a questão do espaço público e privado e, claro, a constituição da sociedade como pirâmide. Tão brutal quando o livro, o filme nos permite visualizar aquilo que Orwell imaginou logo após a Segunda Guerra Mundial. 1984 tem o ator John Hurt em uma de suas melhores atuações.
O Jogo da Amarelinha Julio Cortázar | Editora Civilização Brasileira Um dos maiores romances já escritos, O Jogo da Amarelinha permite que o leitor, literalmente, caminhe no livro. Ao invés de contar uma única história linear, Cortázar cria uma trama que deixa a cargo de quem lê o caminho a seguir. É como se o leitor seguisse os “mapas” deixados pelo autor argentino. Publicado originalmente em 1963, O Jogo da Amarelinha ainda é atual e desperta a curiosidade de leitores e estudiosos.
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O
cinema na escola Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê o ensino da disciplina, que esbarra em desafios enquanto busca novas possibilidades. Por Gustavo Pinheiro
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mediação
rabalhei no laboratório
A previsão de que os filmes se-
audiovisual do Colégio
jam de produção nacional busca
Medianeira, em Curitiba,
aproveitar do cinema o seu papel
durante três anos. Minha
de construtor de uma identidade
atuação esteve muito próxima da
nacional. O cinema brasileiro, em
atividade letiva pois orientava os
que pese contarmos já 20 anos
alunos em atividades que envolviam
da dita “Retomada” (que para as
expressão audiovisual e, através
historiografias correntes inicia-se
do projeto “Cinema de Passagem”,
com “Carlota Joaquina”, longa
também atuava como programador,
de Carla Camurati, de 1995. Filme
exibindo
pequenas
que, diga-se, assisti pela primeira
sessões de 20’ de curtas metragens,
vez na escola), ainda se ressente
durante o intervalo das turmas de 8º
de um grave preconceito encala-
ano ao Ensino Médio.
crado na população, de que seria
T
diariamente
Essa vivência específica me forneceu alguns elementos da análise que pretendo apresentar neste artigo, sobre a Lei 13.006, de 26 de junho de 2014, que incluiu o §8º ao art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.494/96), artigo que estabelece a base curricular para a Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio em todo o Brasil. O §8º prevê que “A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais. ”
um cinema “de pior qualidade”, “cheio de palavrão”, preconceito que só o total desconhecimento do cinema nacional justifica. Conhecer a história do cinema brasileiro e descobrir, por exemplo,
ao jornalismo, o papel de grande
que depois de “Tropa de Elite 2”
“contador de histórias”, tem este
(José Padilha, 2010), o filme brasi-
posto tomado de si pela diversida-
leiro de maior público de todos os
de de mídias e o que designamos,
tempos foi “Dona Flor e Seus Dois
na sua generalidade, por “audio-
Maridos” (Bruno Barreto, 1976),
visual”. Os grandes contadores de
seguido por “A Dama do Lota-
história, hoje, são as séries televi-
ção” (Neville de Almeida, 1978)
sivas e sua mídia mais comum, a
e “Se Eu Fosse Você 2” (Daniel
internet, com canais como o You-
Filho, 2009), põe em perspectiva
Tube e as mídias sociais em geral,
o senso comum sobre o cinema
que promovem difusão de toda
nacional e revela quão próxima é
sorte de produtos audiovisuais, de
a relação entre o Cinema e a iden-
produção às vezes mais, às vezes
tidade nacional. A história dos
menos profissional.
filmes brasileiros no século XX é
A menção da lei à expressão
também a história social, política
“filmes de produção nacional” é
dução nacional” estabelece um
e econômica do nosso país.
importante porque também es-
recorte específico que confere à
tabelece um recorte de tipo es-
longo prazo pode sustentar a via-
E aqui se vislumbra outro aspecto importante da expressão “filmes de produção nacional”, que é o de que sejam, afinal, filmes. Filmes, na acepção mais corrente e comum da palavra. Isto porque, na contemporaneidade, o
privada, à qual se dirige essencial-
bilidade de uma produção nacio-
cinema, que já muito novo rouba-
mente a produção atual para TV
nal múltipla e variada.
ra à literatura, ao teatro e mesmo
e internet.
A expressão “filmes de pro-
iniciativa legislativa um caráter próprio de política pública, voltada à formação de público para o cinema nacional, sendo o público de cinema uma das forças que em
pecífico de audiovisual e sua respectiva prática de espectação. São filmes! Pensados para uma espectação coletiva e não produzidos para uma espectação à delivery,
mediação
11
A escola, amostra singular da sociedade para os alunos de educação infantil, do ensino fundamental e médio, é sem dúvida um ambiente muito propício para a espectação pretendida por quem realiza um filme. O espectador vê o filme entre seus pares, em relação a quem seu senso de alteridade varia enormemente de indivíduo a indivíduo, percebe a reação do outro diante do filme que ele também assiste. Que experiência marcante perceber a quem, afinal, o filme faz rir ou chorar. A mim? Ao outro? Por quê? Saio deste filme com as mesmas perturbações dos demais? O que lhes inquietou? A coletividade das turmas que assistem filmes em sala constrói um repertório comum, capaz de suscitar discussões importantes, que digam respeito ao seu contexto social imediato, mas que digam respeito, inclusive – e isso é muito importante –, aos próprios filmes. A espectação cinematográfica na escola parece muito, afinal, com a espectação que se faz na sala de cinema, mas acrescenta à experiência a possibilidade de discussão anterior e posterior do que é visto em grupo. E esta oportunidade é raríssima. Fora do ambiente escolar, somente círculos muito específicos como cineclubes, escolas de cinema e festivais, conseguem constituir um ambiente que compreenda a possibilidade de assistir e pensar os filmes coletivamente.
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mediação
É importante ter consciência
mensais, já é cumprida quando
do privilégio que isto representa
professores de disciplinas especí-
para não o desperdiçar. Em que
ficas recorrem, lá e cá, de forma
pese a temática tratada por um
esparsa e sem uma estratégia
determinado filme possa trazer
comum, a trechos de filmes para
elementos de reflexão importan-
ilustrar pontos ou abordar ques-
tes e um olhar novo sobre uma
tões de sua própria ementa.
realidade outra, com a qual os alunos normalmente não teriam contato, esta possibilidade não pode ofuscar o olhar dos alunos espectadores sobre o filme em si, em suas evidências discursivas e estéticas. A ideia de integração ao currículo escolar é justamente a de que o filme pode, sim, fortalecer discussões que dizem respeito ao currículo escolar, mas deve, também, ser ele mesmo objeto de análise e reflexão. É preciso olhar os filmes além da história que contam e da temática que abordam. Transcorrido já um ano e meio de vigência da legislação, esta integração efetiva é, talvez, o grande desafio com o qual as escolas têm lidado. Pensar os filmes como fim e não como meio, traz à tona questões sérias, especialmente para a educação pública, como
A integração da atividade de exibição cinematográfica à proposta pedagógica da escola, a que se refere o artigo, precisa ser conquistada através do estabelecimento de uma programação de exibições que se relacionem, sim, com o currículo, mas que sejam propostas como atividades autônomas, onde a expressão cinematográfica esteja em evidência, com suas particularidades e imbricações, capazes também de trazer elementos para repensar outras artes com as quais o aluno tem contato na escola, como a literatura e as artes plásticas. Ser capaz de analisar e pensar o discurso cinematográfico, normalmente feito para enfeitiçar, envolver e suprimir a descrença e desconfiança do espectador, é um exercício crítico importantíssimo.
a criação de uma infraestrutu-
O cinema é uma expressão hu-
ra capaz de propiciar um espaço
mana à qual se atribui um enorme
de exibição adequado dentro da
potencial transformador dos in-
escola.
divíduos e das coletividades. As-
Compreender os filmes como fim em si mesmos também é im-
sim foi pra mim, individualmente, marcando de forma irreversível
portante para superar outra con-
minha trajetória de vida, e assim é
cepção equivocada do que possa
para uma determinada coletivida-
ser a tal integração a que remete
de, que produz e assiste seus pró-
o artigo legal: a de que a carga
prios filmes. Ela se transforma, ga-
horária prevista, de duas horas
nha uma dinâmica própria, e esta
transformação está diretamente relacionada à formação de uma identidade própria, comum, por parte de quem se expressa através do cinema e se vê espelhado nessa expressão.
nacionais em sala de aula, quanto desse potencial formativo do Cinema a escola tem conseguido aproveitar? É uma pergunta que merece nossa reflexão.
Assim como a música e a tradição oral e escrita de um povo, o cinema é um componente crucial do senso de pertença do indivíduo à coletividade que integra. Criticidade, senso de comunidade, sensibilidade artística. Neste primeiro ano e meio de vigência da lei que determina estas singe-
Gustavo Pinheiro é advogado, cicloviajante e foi laboratorista audiovisual do Colégio Medianeira. Formado em Direito e graduando em Cinema, desdobra-se entre a advocacia e a edição de vídeo. Integra o Água Viva Concentrado Artístico, grupo que realiza diversas ações culturais na cidade de Curitiba.
las duas horas mensais de filmes
Recomendações O que é cinema? André Bazin | Editora Cosac Naify Crítico e mentor intelectual da Nouvelle Vague, Bazin foi fundamental para entendermos a teoria do cinema. Esse livro, que é um importante recorte no trabalho do homem que ficou conhecido por dar voz a Godard, Resnais e Truffaut, coloca o leitor em contato com um momento importante do cinema mundial.
Conversas com Kubrick Michel Ciment | Editora Cosac Naify Obra seminal para quem gosta de cinema e, acima de tudo, para os amantes dos filmes de Stanley Kubrick, o livro é uma viagem na mente do diretor, responsável por produções como Laranja Mecânica, 2001: Uma Odisseia no espaço e O Iluminado. O prefácio, assinado por Martin Scorsese, é também uma peça inigualável para entendermos o universo de Kubrick.
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PEC Um projeto de aprendizagem integral
“Transformar centros de ensino em centros de aprendizagem”, esse é um dos objetivos do Projeto Educativo Comum (PEC), nas palavras do Pe. Mário Sündermann, SJ, Delegado para a Educação Básica da Companhia de Jesus no Brasil. Reportagem de Ketilyn Almeida
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. e P
Mário possui uma missão
perder a força de rede. “O projeto
ser colaboradores desse objetivo.
de gestão e governo.
se torna viável por meio de uma
“A instituição acolhe estudantes
Como Jesuíta e profissio-
gestão colaborativa, quando pen-
dos 4 aos 17 anos em média. Eles
nal da educação, acom-
samos em rede, como corpo e não
entram crianças e saem jovens. É
panha a Rede Jesuíta de Educação
como indivíduos isolados e desco-
claro que neste itinerário, mais do
(RJE) e seus projetos pelo Escritó-
nectados. Precisamos promover
que aprender a lidar com o co-
rio Central localizado na cidade
uma mudança de pensamento,
nhecimento, é preciso lidar com
do Rio de Janeiro. Concomitante-
com uma nova leitura da reali-
as mudanças no corpo que são
mente, realiza visitas às Unidades,
dade. Muitos professores foram
evidentes, acontece um amadure-
verificando o encaminhamento de
educados em um modelo linear e
cimento crítico, uma leitura mais
projetos e processos próprios de
estanque e alterar isso é um desa-
aguda do mundo etc. É importan-
uma instituição de ensino de Edu-
fio significativo e necessário. Mui-
te que os educadores consigam
cação Básica, mapeando necessi-
tos querem continuar repetindo
dades, desafios e procurando, em
os processos, porque é cômodo,
mapear as crises decorrentes das
conjunto com as equipes locais,
mas isso gera estagnação em vez
por estratégias para transformar
de gerar vida, dinamicidade e mu-
desafios em oportunidades de
dança. Acredito que mudar é cor-
crescimento.
rer risco, mas não mudar é correr
O contato constante com as equipes diretivas permite um olhar
um risco ainda maior”, comenta Pe. Mário.
bastante apurado sobre a realida-
O PEC segue o itinerário da
de de cada colégio, assim como
aprendizagem integral, que não
suas principais demandas e neces-
se confunde com a permanência
sidades. Pe. Mário lembra que a
em tempo integral do aluno na
RJE ainda é jovem, já que possui
escola, com atividades em dife-
apenas dois anos de existência e é
rentes turnos. Segundo Pe. Mário,
composta de 17 unidades de en-
o conceito está ligado ao apren-
sino e em torno de 30 mil alunos,
dizado constante e permanente,
sendo que mais de 5 mil são alu-
mesmo fora dos muros da institui-
nos de inclusão social. Esta diver-
ção de ensino. “A ideia é desen-
sidade de alunos e contextos é um
volver as diferentes dimensões do
rico desafio e exige contínua atua-
ser humano, afinal os alunos não
lização dos profissionais e diálogo
são cérebros aguardando e arma-
constante com a sociedade para
zenando conteúdo.
construir as melhores estratégias de aprendizagem.
A escola é chamada a cuidar do aluno como um todo. Tam-
diferentes fases da vida, ou algum problema em casa, na família e buscar soluções apropriadas para cada situação em conjunto com os pais e ou responsáveis”. O Delegado para a Educação Básica assume que será necessário abrir mão de algumas atividades e projetos, ainda que estejam dando bons retornos, a fim de abraçar as novidades apresentadas pelo PEC. As rotinas das escolas e colégios são bastante intensas e geralmente lidam na ótica do ensino; abraçar estratégias com foco na aprendizagem exige mudança de paradigma e isso se constrói pouco a pouco. Não é possível continuar fazendo tudo que já fazemos e ainda abraçar as novidades que o PEC propõe. Quanto ao documento PEC, após diversas leituras críticas, o
Apesar do que o nome pode
bém não somos apenas a dimen-
sugerir, o PEC não tem a missão
são somática e psicológica, mas
mesmo chega à sua versão final.
de padronizar ou engessar a edu-
também carregamos a dimensão
Aprovado nas instâncias de gover-
cação nas instituições da Rede
espiritual, que nos põe em movi-
nança da RJE e encaminhado para
Jesuíta. Construído de forma co-
mento constante, nos impulsiona
publicação. A versão impressa
letiva, com o levantamento de
ao infinito, nos abre à busca da
está prevista para fins de agosto
informações e discussões sobre o
Felicidade e da Alegria, a cami-
de 2016, num grande seminário
tema, o documento atende as ca-
nho da plenitude”. Sündermann
com profissionais da RJE em São
racterísticas de cada região sem
lembra ainda que todos devem
Leopoldo, RS.
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Como horizonte, objetiva-se
se do documento. Na sequência,
retor do Colégio Catarinense de
gerar expectativas de abertura e
será necessário reler à luz do PEC
Florianópolis e sei que cuidam da
acolhimento nos educadores, fa-
os documentos locais, tais como
contínua formação dos educado-
mílias e alunos: “os estudantes
o Projeto-Político Pedagógico, o
res sempre apoiando o desenvol-
geralmente amam o colégio, mas
Regimento Interno, ou mesmo
vimento dos profissionais que atu-
não gostam das aulas, por consi-
os Manuais de Convivência”. Pe.
am no Colégio. Outro aspecto a
derarem as mediações pouco di-
Mário recorda que o processo
ser destacado em relação ao Me-
nâmicas e diversificadas gerando
de construção da Rede não se
dianeira é a competência humana
cansaço em vez de encanto. O
restringe ao PEC, pois há outros
e acadêmica instalada e sua aber-
modelo focado mais no ensino
espaços de articulação como a
tura para contribuir na rede. O
do que na aprendizagem tende
plataforma Moodle, projetos de
ativo mais importante de uma ins-
a desconsiderar que o aluno mu-
Formação Continuada dos Profis-
tituição são as pessoas que nela
dou, que a realidade e contexto
sionais, e espaço de construção
atuam, são elas que qualificam a
são outros, principalmente com
e promoção do protagonismo e
missão e garantem uma educação
o advento da tecnologia. Mais
liderança juvenil dos alunos. Para
de excelência. A Companhia não
do que professores que ensinem,
nossos alunos, ainda em 2016,
conseguiria atender em torno de
queremos alunos que aprendam”.
está acordado um projeto de pro-
30 mil alunos sem a imprescindí-
dução textual coletiva da Rede,
vel contribuição de profissionais
feita por alunos e alunas dos 7º e
não Jesuítas, e um grupo signifi-
8º anos com o tema sustentabili-
cativo deles se dedica ao trabalho
dade, desafio transversal sempre
educativo no Medianeira. A todos
presente no dia a dia da escola,
eles, em meu nome e em nome
família, igreja e sociedade.
dos Jesuítas, minha gratidão”.
Ainda sobre os desafios e oportunidades referentes ao PEC, Pe. Mário lembra que ao apresentar seus projetos, a Companhia de Jesus sempre os faz considerando pessoas, tempo e lugar, o que garante um cuidado constante com
Quando questionado sobre o
o contexto local. Ele afirma que
Colégio Medianeira, Pe. Mário se
“necessitaremos de um período
define como um “apaixonado”
de implantação e adaptação ao
pela instituição. “Tive contatos
que o PEC propõe. Por isso, 2016
mais frequente com os profissio-
será um ano para ler e apropriar-
nais do Medianeira, quando Di-
Ketilyn Castro de Almeida é jornalista, blogueira, fotógrafa e pós-graduada em Mídias Digitais pela Universidade Positivo.
Recomendações Filme: Ao mestre com carinho – 1967 Direção de James Clawell Longa conta a história do professor Mark Thackeray que chega a uma escola repleta de problemas: delinquência, violência e alunos completamente desinteressados. Aos poucos e com muita insistência, Thackeray transforma uma turma de alunos rebeldes em uma classe produtiva e comprometida. A fórmula? O amor e a dedicação.
Liderança heroica Chris Lowney| Edições De Janeiro O autor apresenta, por meio de uma abordagem histórica, o conceito de liderança que tem marcado a Companhia de Jesus. Muito mais que um livro sobre uma ordem religiosa, Liderança heroica é um mergulho em uma análise inovadora e um estudo minucioso de um importante momento da história do catolicismo e de Inácio de Loyola.
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Currículo e aprendizagem: uma
abordagem jesuítica Por Fernando Guidini
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A problemática da aprendizagem integral – frente às questões de currículo – levanta o debate sobre o lugar das instituições de ensino como instâncias de formação e de educação do sujeito – como figura crítica, pensante e, claro, criativa. Portanto, é preciso compreender que ensinar e aprender, educar e educar-se configuram-se como par categorial que, em uma dimensão pedagógica, necessita ser pautado como horizonte da organização do trabalho acadêmico, bem como das convicções e prerrogativas do exercício da profissão docente. uito se tem falado e escrito sobre a relação entre currículo e aprendizagem, e existe uma diversidade de pesquisas e práticas sobre a temática. Aqui, nosso intuito não é dar receitas ou caminhos prontos sobre o que queremos ou compreendemos sobre Currículo, bem como sobre o que visualizamos como sendo aprendizagem integral. Nosso desejo é refletir sobre a questão, estabelecendo referenciais que nos possibilitem avançar e pensar sobre, lançando-nos sobre mares mais profundos, e não fazendo mais do mesmo. Sendo assim, por que voltamos a discutir currículo, como eixo teórico estruturante desta reflexão?
M
Frente ao currículo, partimos do pressuposto do que nos fundamenta como projeto pedagógico: a concepção/prática de um currículo integrado, cuja matriz é transdisciplinar. E o que isso significa? Partindo do referencial epistemológico do Pensamento
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Complexo, na qual se pressupõe a inter-relação entre os saberes e conhecimentos, um currículo integrado de matriz transdisciplinar é aquele que indisciplina a disciplina; que congrega o que é aparentemente diverso; que une e coloca em diálogo realidades desconexas; que resgata a ilusão, o erro, o uno e o múltiplo; aquele que problematiza o senso comum tanto como “senso comum”, quanto como sabedoria de vida, unindo sujeitos e conhecimentos; o que pluri, inter e transdisciplina conteúdos; o que resgata a ética das relações, a humanidade das pessoas, a dimensão social da existência; o que questiona e enfoca o que outros pressupõem como dado ou sem significado. Falar sobre Currículo na escola de Educação Básica é abranger a totalidade tanto do conhecimento quanto da existência/experiência dos sujeitos que fazem educação. Por séculos e décadas, fizemos educação partindo do conheci-
mento constituído, canônico, certo. Deixamos de lado o contexto e o mundo da vida e as experiências dos sujeitos. Como décadas, ainda, pensamos o que deveria ser ensinado em nossas escolas e colégios a partir do olhar catedrático do professor, desconsiderando aquilo que realmente é conhecimento presente nas dimensões científica e social. É de fundamental importância revisitar nossas concepções/práticas de currículo, daquilo que realmente estamos oferecendo aos nossos educandos em termos de conhecimento e ensino-aprendizagem. Se formos fiéis à raiz epistemológica que nos fundamenta em nível de projeto pedagógico, o questionamento, a leitura e a pesquisa são pressupostos para que levemos às nossas salas de aula aquilo que é portador de sentido, indo ao encontro do que compreendemos por aprendizagem ativa e significativa. Produzimos aprendizagens pelas vivências de educandos e educa-
dores, momento em que conceitos abstratos se tornam experiências concretas e motivadoras de novas aprendizagens. Ao falar em vivências ou experiências, mencionamos a necessidade de problematizar o Currículo em uma dimensão de justiça social. O Currículo nessa perspectiva deverá questionar o todo oferecido aos alunos; deverá problematizar planejamentos, projetos, planos de aula; deverá chegar ao método, às estratégias metodológicas, à avaliação; deverá dialogar com os conteúdos em sua espiralidade e verticalidade; deverá compreender as transições, partindo do pressuposto de que trabalhamos com escolarização básica; deverá nomear conteúdos, habilidades e competências específicas. Ao mesmo tempo, deverá ser crítico, criativo, leitor, atento à
multiplicidade de linguagens, à tecnologia e mediações pedagógicas que dialogam com as novas formas de ensinar-aprender. Produzimos aprendizagens pelas vivências de educandos e educadores, momento em que conceitos abstratos se tornam experiências concretas e motivadoras de novas aprendizagens. Resgatando Arroyo, pontuamos: qual a relação entre experiência social e conhecimento? Os currículos e as áreas reconhecem essa relação? As didáticas a explicitam ou ignoram? As tentativas dos professores de articular vivências sociais e o conhecimento são reconhecidas ou marginalizadas nos currículos das escolas? Por quê? (ARROYO, 2013, p. 115). Ao falar sobre Currículo e Justiça Social, é certo que a injustiça social se assenta na injustiça cognitiva (SANTOS, 2008, p. 117).
Sendo assim, lutar contra injustiças cognitivas deveria nos levar a uma distribuição mais equitativa do saber, reconhecendo que toda e qualquer experiência produz conhecimento. Ao mesmo tempo, reforçamos a dimensão prática do conhecimento, a qual constitui sujeitos de fato e de direito. Pensar o Currículo em termos de país é pensar em conhecimentos com significação social, com motivação, capazes de indagar as raízes humanas, ampliando significação de experiências, incorporando o real e o virtual, estabelecendo diálogos com a literatura, a física, a matemática, a história e a política. Currículos neutros inexistem e, de acordo com Bates, “o elemento crítico para a ampliação da dominação ideológica de determinadas classes sobre outras é o controle do conhecimento que
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preserva e reproduz as instituições de determinada sociedade” (1975, p. 36). Também é importante ampliarmos o olhar em termos de país para aquilo que se configura como as novas e atuais sensibilidades curriculares: as relações étnico-raciais e quilombola, o diálogo inter-religioso, as questões de gênero, sustentabilidade e educação ambiental, inclusão social, dentre outras dimensões que, ao entrar em contato com a legislação vigente, são apontadas como conteúdos advindos de políticas públicas e educacionais dos últimos dez anos. Aqui, é preciso lançar um desafio: nossa matriz de pensamento curricular é ainda um tanto “europeia”. É possível pensar em termos de epistemologias do Sul? É possível discutir o currículo a partir de autores, pesquisas e experiências locais? Que foco estamos dando ao nosso currículo? Ainda estamos compreendendo Currículo como conteúdo? Recentemente,
em
diálogo
com um grande sociólogo brasileiro, ele nos pontuou: “creio que em Colégios como o Medianeira, assim como em outras obras educativas dos Jesuítas do Brasil, o foco deveria ser educar as mentes e os corações para que se preocupem, efetivamente, com a construção de sociedades sustentáveis”. É assim que o Currículo tem alguns deveres expressos: ser currículo; ser problematizador e indagador daquilo que realmente
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é fundamento, conhecimento e aprendizagem para a vida humana na atualidade; congregar as dimensões acadêmica e humana; ser capaz de estabelecer diálogos e abertura consigo, com os outros, com a natureza, com Deus; reconhecer a dignidade do outro – combatendo preconceitos e estabelecendo diálogos; destacar a necessidade do cuidado com o meio ambiente e os recursos naturais; focar naquele que é o sujeito primeiro da aprendizagem: o aluno. Obviamente, a discussão apresentada neste texto nos remete ao conceito e à prática daquilo que, como obra educativa da Companhia de Jesus, compreendemos por aprendizagem integral. A aprendizagem integral, antes de tudo, permite que o educando trabalhe todas as dimensões do conhecimento, desenvolvendo a competência de se compreender inserido em espaços comuns, mas também de se enxergar como indivíduo próprio, capaz de agir por meio de ações fundamentadas nas questões éticas e na vivência de valores humanos e em respeito à diversidade. Nesse sentido, ao pensarmos que formação/aprendizagem integral queremos, precisamos ainda pontuar a fundamentação cristã da nossa pedagogia, da qual decorre uma determinada visão de Deus, de ser humano, de mundo. É dessa visão que resulta nossa missão que, quando posta em prática em um determinado contexto social, traduz nossa identidade, distinguindo-nos frente à
imensidão do oceano globalizador de outras identidades no qual nos encontramos. Assim, ao discorrer sobre o currículo e a aprendizagem integral, perguntamos-nos sobre qual é o nosso lugar na formação e educação dos sujeitos, diante de cenários educacionais, políticos, econômicos e religiosos tão adversos e excludentes. O que reatar, resgatar, afirmar? É a partir desde e de outros questionamentos que defendemos uma aprendizagem integral que congregue fundamentos, práticas e sujeitos; que seja processual e contínua no turno e contraturno, problematizadora, e que valorize o aluno; que cuide e responsabilize seus professores e supervisores; que atenda às ciências e seus critérios, capaz de nomear habilidades, competências e conhecimentos; que pesquise e inclua; que inter-relacione tecnologia, ciberespaço e aprendizagem; que esteja atenta aos resultados advindos dos diagnósticos avaliativos internos e externos, retroalimentando seu modo de proceder. A proposta educativa da Companhia de Jesus enfatiza que nossos projetos pedagógicos devem ser postos a serviço da humanidade. Propor uma educação que realmente problematize a centralidade do humano frente às dimensões da existência torna-se desafio e meta de toda e qualquer prática pedagógica desenvolvida em colégios da Companhia. Colocar o mundo a serviço do humano exige-nos comprometimento e responsabilidade.
Formar integralmente significa considerar todo conhecimento acadêmico como humano, o qual envolve o aprender/saber pensar, ser e agir nas dimensões cognitivas, socioemocional e espiritual-religiosa. Para aprender, mobilizamos conhecimentos e experiências mediatizados pelo conhecimento estudado ou mesmo por aquele vivido em sociedade. Atribuir sentido à educação e às práticas pedagógicas desenvolvidas em nosso colégio torna-se convite e desafio. Desse modo, podemos afirmar com segurança que formar e educar pessoas conscientes, competentes, compassivas e comprometidas ocorre por meio de
um projeto educativo cujo Currículo tematiza uma aprendizagem integral, na inter-relação entre conhecimentos de núcleos e disciplinas, na religação entre a ciência, os sujeitos, a realidade e a utopia que nos move. Um currículo integral – que seja capaz de formar e educar integralmente, pressupõe uma prática pedagógica também consciente, competente, compassiva e comprometida.
Referências ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2013. BATES, Thomas R. Gramsci and the Theory of Hegemony. Journal of the History of Ideas, XXXVI, abril/junho, 1975, p. 36. SANTOS, Boaventura de S. A gramática do tempo - para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.
Fernando Guidini é Diretor Acadêmico do Colégio Medianeira. Mestre (2010) e Doutor (2014) em Educação pela PUCPR, trabalhou como Orientador Pedagógico dos 6º e 7º anos, também no Medianeira.
Recomendações Pensar o contemporâneo Eduardo Wolfe e Fernando Shuler | Arquipélago Editorial O livro se propõe a uma reflexão aberta e variada sobre os temas importantes que marcam esse início de século. A escolha dos organizadores por temas como movimentos sociais, revolução moral e o papel da religião no mundo mostra a atualidade do debate. Entre os autores estão nomes como Manuel Catells e Luc Ferry.
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai Gonçalo M. Tavares|Editora Companhia das Letras Hanna é uma menina com trissomia 21 que, na Segunda Guerra Mundial, é afastada de seu pai. Marcus, um sujeito que transita entre o bem e o mal, acaba por encontrála e precisá-la entre os escombros do passado e do presente.
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Diretor Emérito do Centre National de la Recherce Scientifique, co-diretor do Centre D’Études Transdisciplinaires e Presidente fundador da Association pour la Pensée Complexe – com 87 institutos e universidades associadas no mundo todo. O Prof. Morin é indiscutivelmente um dos pensadores mais fecundos e controvertidos da atualidade. Suas obras, mais de sessenta, já foram traduzidas na maioria das línguas ocidentais. Apresentação por Jonatan Silva e Texto cedido pela editora Palas Athena
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E
dgar Morin nasceu em Paris, em 8 de julho de 1921. Sua infância enferma fez com que fosse um aficionado pela literatura, principalmente dos autores iluministas do século XVIII. O interesse pelo pensamento marxista começou a partir da década de 1940, quando fez parte da Resistência Francesa, ingressou no Partido Comunista e lutou na Guerra Civil Espanhola. O caminho de Morin como filósofo se fortaleceu na década de 1950 quando, com o apoio de nomes importantes como Maurice Merleau-Ponty, entrou para o prestigiado Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) – passo fundamental para seu primeiro livro, O Homem e a morte (1951), fosse publicado. Na visão de Edgar Morin, o mundo é formado por conhecimentos ambíguos e desordenados, criando a necessidade de um processo de retroalimentação. Por isso, o filósofo sugere uma abordagem multidisciplinar. A esse método chamou de Pensamento Complexo. Nesse sentido, Morin sugere que todo homem é duplo, possuindo um caráter racional e outro de demência.
A coleção O Método (19772004) é sua obra mais importante. Os seis volumes tratam de temas como a reação do homem com a natureza, com a vida, consigo próprio, com o pensamento, a ética e o conhecimento. Em obras mais recentes, como Os Sete saberes necessários para a educação do futuro (2000) e Educar para a era planetária (2003), Morin, aos 94 anos, mostra a atualidade de sua análise sobre o mundo contemporâneo. Prova disso está em sua passagem pelo Brasil em 2014. Ao ser inqui-
rido por um jornalista a respeito do conceito de conhecimento, respondeu enfático: “todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução.” Por isso, em um de seus questionamentos mais pontuais, Morin, em seu livro Ensinar a viver (2015), desfaz a noção do erro como algo nefasto. Para o filósofo, o erro é uma ferramenta de conhecimento, já que leva o sujeito a um resultado diferente do esperado. “Qualquer forma de criação surge como um erro em relação ao sistema no qual ela surgiu”, explica. O pensador, ao se colocar como homem de seu tempo, não faz restrições à tecnologia. Consciente da importância da internet, Edgar Morin não se furta em comparar os buscadores da web às enciclopédias. Para explicar esse conceito, usa a ideia de um circuito cognitivo que pode – ou não – ser ininterrupto, mas que, antes de tudo, é um reflexo do caráter globalizado da sociedade. O que se percebe, nesse ínterim, é a necessidade de um questionamento ético por parte do indivíduo, que deve ser capaz de ponderar a informação/conhecimento que lhe chega. Ao se colocar em xeque, o sujeito, acredita Morin, torna-se totalmente responsável e, ao mesmo tempo, totalmente irresponsável por aquilo que o cerca. Segundo o raciocínio explícito no texto abaixo, a partir do momento que o homens e mulheres se colocam em posição alheia à ética, o que resta é o regresso à barbárie. A educação que temos e a educação que queremos deve, necessariamente, dialogar com algumas das ideias propostas pelo autor.
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A Ética Do Sujeito Responsável1 Por Edgar Morin Nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que, nas nossas sociedades individualistas, a ética não se impõe imperativamente nem universalmente a cada cidadão; cada um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-ética. Estas finalidades podem ser particulares, voltadas a uma única pátria, a uma pessoa querida. Hoje, grande número de nós vive sob a influência das grandes religiões universalistas como o budismo, o cristianismo, o islamismo. A mensagem fraternalista dessas religiões foi laicizada e endossada pela Revolução Francesa, depois amplificada e universalizada pelo socialismo. A fraternidade e a compaixão foram incessantemente desmentidas pelas práticas cometidas em nome dessas religiões e do socialismo, mas permanecem o fundo subjacente do qual podemos retirar e eleger nossas finalidades. Eleger nossas finalidades, implica integrá-las profundamente em nossos espíritos e almas, jamais esquecê-las, jamais renunciar a elas, mesmo se perdermos a esperança de constatar sua realização.
Elas encontram-se primeiramente inscritas na trindade “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, sabendo-se que, entre esses três termos existe sempre não apenas complementariedade, mas também antagonismo, e que assumir a complexidade trinitária implica assumir uma estratégia complexa. A finalidade principal da trindade se realiza na fraternidade. Ela é simultaneamente meio e fim. Tem um significado antropológico universal. Civilizar a terra é uma finalidade inseparável da precedente. O DESAFIO Sabemos que nossas finalidades não vão inevitavelmente triunfar, e que a marcha da história não é moral. Devemos visualizar seu insucesso possível e até mesmo provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que somos conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida a inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e à estratégia que permite modificar a ação empreendida. A ESTRATÉGIA O maniqueísmo da ação política pode ser constatado apenas em seus escalões mais inferiores e tem por efeito camuflar o aleatório e a incerteza da ação. O problema consiste em evitar o realismo trivial (adaptar-se ao imediato) e o irrealismo trivial (subtrair-se às constrições da realidade). O importante é ser realista
no sentido complexo do termo (compreender a incerteza do real, saber que há o possível, mesmo que ainda esteja invisível no real), o que frequentemente pode parecer irrealista. A incerteza do real pode ensejar tanto o idealismo ético (agir de acordo com suas finalidades e ideais) como o realismo estratégico. Como na terrificante contenda de Jacó com o Anjo, tal como foi simbolizada no quadro de Delacroix, a estratégia luta contra o real, acabando por copular com ele. A estratégia elabora um cenário de ação que examina as certezas e incertezas da situação, as probabilidades e as improbabilidades. Na prática, ela se constrói mostrando-se disponível a todas as modificações em função das informações que recebe, dos acasos, contratempos ou boas novidades que reencontra. A estratégia deve ora privilegiar a prudência, ora a audácia e, se possível as duas simultaneamente. Ela pode e deve, frequentemente, efetuar compromissos. Mas até que ponto? Não há uma resposta geral para essa questão, mas qualquer desafio quase sempre contém um risco, seja o da intransigência, que pode conduzir à derrota, ou o da transigência que pode levar à abdicação. De modo singular, e em função do contexto e de seu próprio desenvolvimento, é na estratégia que se coloca o problema da dialógica entre fins e meios, entre a realpolitik e a idealpolitik.
Nota: 1. Este texto integra o ensaio “Da incerteza democrática à ética política”, incluído no livro Une politique de civilisation, de Edgar Morin & Sami Nair, Paris, Ed. Arléa, 1997, pp. 157-185. O excerto traduzido encontra-se nas pp. 181-185, e o direito de tradução foi gentilmente cedido pelos autores.
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IDEIAS-GUIA Uma ética política que se pretenda verdadeiramente humana supõe primordialmente a restauração do sujeito responsável. Lembremos que a eliminação do sujeito por uma elite científica e intelectual foi o delírio de uma subjetividade que se ignorava a si própria. A restauração do sujeito é uma pré-condição para o conhecimento objetivo (um conhecimento que ignorasse o sujeito do conhecimento não saberia ser objetivo, e isso porque ignoraria o fato que não pode haver conhecimento objetivo sem um sujeito que opere para atingir a objetividade). A restauração do sujeito comporta a exigência do autoexame, a consciência da responsabilidade pessoal, e o encargo autônomo da ética (auto-ética). O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos complexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas palavras, por seus escritos, por seus atos. De outro, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, como seus escritos são compreendidos, como seus atos são mal interpretados, distorcidos. Cada um, em suma, é 100% responsável e 100% irresponsável. Há uma outra responsabilidade, que é oriunda de nossa comunidade de destino planetário. E ela que sempre relembra nossa parcela de responsabilidade nesse destino comum, e não somente no que diz respeito ao
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presente, mas também ao futuro, como apontou Hans Jonas. Aqui ainda devemos nos sentir responsáveis – como se a luta por inteiro dependesse unicamente de nós –, mas também não-responsáveis por todas as barbáries cometidas por inconsciência ou vilania. A ética política deve conter algumas ideias-guia em suas formulações mais prioritárias: 1. A ética da religação A noção de religação engloba tudo aquilo que faz comunicar, associar, solidarizar, fraternizar; ela se opõe a tudo o que fragmenta, desloca, disjunta (corta qualquer comunicação), reduz (ignorância do outro, do vizinho, do humano, egocentrismo, etnocentrismo). A religação deve ser concebida como religião do que religa, fazendo frente à barbárie que divide (o diabo, diabolus, sendo o divisor). 2. A ética do debate A regra do debate é inerente às instituições filosófica, científica e democrática. A ética do debate vai mais longe ainda: exige a primazia da argumentação e a rejeição da anatemização. Longe de descartar a polêmica, ela a utiliza, mas rejeita todos os meios vis, todos os julgamentos de autoridade, assim como quaisquer tipos de rejeições pelo desprezo, quaisquer insultos sobre as pessoas. 3. A ética da compreensão A compreensão é complementar à explicação; esta utiliza os métodos adequados para conhe-
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cer os objetos enquanto objetos, e tende sempre a desumanizar o conhecimento dos comportamentos sociais e políticos; a compreensão permite conhecer o sujeito enquanto sujeito e tende sempre a reumanizar o conhecimento político. Acrescentamos a isso que a compreensão é necessária a tudo aquilo que possa tornar as relações humanas menos imbecis e ignóbeis. 4. A ética da magnanimidade Contra a ética atroz da vingança e a ética impiedosa da punição, o que importa é tornar exemplar a ética da magnanimidade. Esta última, ilustrada em tempos passados pelos atos soberanos de clemência, como o de Augusto por Cinna, foi ilustrada em tempos recentes por Vaclav Havel que, quando eleito presidente, afirmou para seus delatores: “Desde o momento em que me tornei presidente forneceram-me a lista de colegas que haviam me denunciado, mas eu a perdi logo depois do meio dia”. Clemência também foi demonstrada por Nelson Mandela para com os sul-africanos brancos que cometeram ou aprovaram a ignomínia moral do apartheid. O retorno da barbárie encontra-se claramente evidenciado pela renovação do ciclo infernal do ódio impiedoso, que transforma em inimigos todos aqueles que fazem parte de uma mesma etnia, religião, classe, nacionalidade, mantendo ativo o ciclo terrorismo/ tortura. O único meio capaz de tentar quebrar esse ciclo infernal
é a irrupção da magnanimidade, da clemência, da generosidade, da nobreza. 5. A inicitação às boas vontades Não existe mais nenhuma classe social privilegiada que seja capaz de cumprir uma missão histórica, assim como nenhuma elite que seja portadora de um saber verídico. Ao contrário, nossas elites filosóficas, universitárias, científicas, técnicas não dispõe de cultura que lhes permita religar os conhecimentos e enfrentar a incerteza, mas sim de um saber abstrato, parcelar e mutilante. Por tudo isso é que atualmente não podemos confiar na educação, pois antes de mais nada seria necessário educar os educadores, para que estes pudessem esclarecer os alunos. Por tudo isso, temos que voltar a apelar às boas vontades de todos, a solicitar que se associem entre si para salvar a humanidade do desastre. As boas vontades advirão de todos os horizontes e nelas estarão incluídos os inquietos, os bastardos, os órfãos, os generosos... 6. A ética da resistência A resistência, que constitui a primeira ou última das éticas para estes tempos de trevas, foi a única resposta possível ao nazismo e ao estalinismo triunfantes, e talvez constitua a única resposta que possa vir a ser dada de imediato à barbárie que se amplia, mesmo no interior de nossa civilização. O progresso, ética e politicamente indispensável, não consti-
tui mais uma necessidade histórica; pior que isso, é a regressão bárbara que parece cada vez mais provável. Quanto retrocesso em apenas algumas décadas! Nossa ética de religação, que todos pensávamos que fosse se transformar na vanguarda de um movimento histórico planetário, não é e, talvez, não será nada mais do que um pequeno instrumento de resistência contra a barbárie... Mas, de qualquer modo, a resistência às barbáries triunfantes sempre elabora um fermento, um germe para o futuro – quando ainda há um futuro.
mesmo modo que o político não pode se reduzir à ética. Não podemos opor esses dois termos de modo absoluto e nem complementarizá-los harmoniosamente. Estamos condenados à sua dialógica, ou melhor, a manter simultaneamente seu laço indissociável e seu antagonismo irredutível. Somente esta dialógica poderá fazer da política, essa arte de incerteza, uma grande arte que seja posta a serviço do ser humano. (Tradução do Prof. Edgard de Assis Carvalho).
Em conclusão, a ética não pode reduzir-se ao político, do
O texto de Edgar Morin foi gentilmente cedido pela editora Palas Athena e integra o livro Ética, solidariedade e complexidade.
Recomendações Coleção O Método Edgar Morin | Editora Sulina A coleção forma o principal conjunto de ideais do pensador e está dividida em seis volumes, abordando temas importantes ao nosso cotidiano como a ética, as ideias, a natureza, a vida, o conhecimento e a humanidade. Os livros apresentam o pensamento lúcido e atual do filósofo francês.
Ensinar a viver Edgar Morin | Editora Sulina Um dos livros mais recentes do escritor, Ensinar a viver é, como seu subtítulo afirma, um manifesto para mudar a educação. Ousado, o pensador desfaz paradigmas e traz à tona questões importantes como o valor do erro, como aquisição de conhecimento, e a internet assumindo o lugar das enciclopédias.
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Participe desse movimento sustentável do Colégio Medianeira, uma nova maneira de ser, pensar e agir no Planeta Terra.
A Terra é uma mãe generosa. Um superorganismo vivo que torna viável nossa existência e de todos os seres vivos. Explorada e exaurida, ela já não suportamais a voracidade insaciável dos homens. É preciso uma mudança urgente de consciência e de estilo de vida, de sociedade.
Abra seus olhos e veja coisas novas é uma iniciativa da Companhia da Jesus para a questão ecológica no mundo. Como instituição da Rede Jesuíta de Educação, o Colégio Medianeira é ciente do seu papel na formação integral de sujeitos capazes de transformação da realidade na qual estão inseridos. Acesse www.colegiomedianeira.g12.br/abra-seus-olhos e saiba mais sobre as ações desse movimento para ecologização da nossa comunidade.
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(41) 3218-8000 f colmedianeira | www.colegiomedianeira.g12.br
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Entrevista com
Carlos Alberto Jahn A trajetória de vida e ideias do diretor do Colégio Medianeira em um bate-papo sobre o compromisso da Companhia de Jesus com a educação, o papel da política na escola e o momento atual do jornalismo. Por Cezar Tridapalli
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s pais moravam em Corbélia-PR e nas últimas semanas de gravidez, a mãe retornou à Serra Gaúcha, para que ele nascesse sob os cuidados da avó materna. Por isso, mesmo sem morar no Rio Grande do Sul, tem o RG de lá. Tem um irmão, uma irmã e na infância e adolescência acompanhou as idas e vindas dos pais, nas suas transferências de trabalho. Quando perguntado de onde é, gosta de responder “sou do Brasil”.
O
Estamos falando de Carlos Alberto Jahn, padre jesuíta e diretor do Colégio Medianeira, em Curitiba, desde o início de 2015. Nascido numa família sem luxos, em plena ditadura e com pai militar. Traz como marca profunda de vida a corrente migratória dos anos 60-70. “Praticamente todos os tios, por parte pai e de minha mãe, vieram ao oeste do Paraná. Nenhum conseguiu posse de terras e todos seguiram adiante; uns pra Curitiba ou Foz do Iguaçu; outros ao Paraguai; outros ainda para o Mato Grosso ou Rondônia”. Sob o ponto de vista da trajetória acadêmica, fez a Educação Básica quase toda em escolas públicas. Gostava muito de literatura, do ler e escrever. “O romance transporta para outros tempos e fomenta a criação”. Mesmo que os pais não tivessem frequentado o Ensino Superior, tinham grandes expectativas na educação formal. “Por isso, além das aulas normais, me inscreviam em inúmeras atividades de contraturno. Cito, por exemplo, datilografia (risos), violão, línguas, e vários esportes coletivos”. É com ele que a revista Mediação bate um papo, para que o leitor conheça um pouco mais sua trajetória de vida e pensamento de Carlos Alberto Jahn.
Gostaria que o senhor fizesse um panorama de sua opção pela vida religiosa, a profissão de jornalista e a ligação com o magistério. O tornar-me jesuíta não tem uma causa, um fato pontual ou específico. Diria que foi sendo construído como uma opção de vida ao longo de uns 12 anos. Em 1987, com 20 anos, coloqueime mais seriamente essa possibilidade, iniciando um processo de escolha entre o que implicava e possibilitava o ser jesuíta. Esse processo culminou, em 2012, na incorporação à família religiosa Jesuíta, mais conhecida como Companhia de Jesus. Neste recorte temporal fiz as várias etapas da formação de um jesuíta e, paralelamente, uma formação na área de comunicação: graduação em Jornalismo, Mestrado e Doutorado em Comunicação. Estes processos de estudo ocorreram em instituições da
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mediação
Companhia de Jesus, públicas e pontifícias. Conjuguei formação de Jesuíta e trabalho em redação jornalística, em assessoria de comunicação e na docência no ensino superior. A decisão por seguir a vida como jesuíta se deu no contato com os muitos Jesuítas que conheci e pelos horizontes e tradição de apostolado dos Jesuítas. É uma visão que olha o mundo, as culturas e suas possibilidades e procura transformá-las para que haja mais vida. Tenho sido feliz fazendo isso desde o jornalismo, em especial na prática do jornalismo impresso e da comunicação visual (nas diferentes plataformas) e nas docências. Atuo como professor desde 1992, fato que me tem proporcionado muitas aprendizagens. Os processos de ensino, de orientação, as estratégias de repensar os planos de ensino, as reformu-
lações de Projetos Político-Pedagógicos, os planejamentos estratégicos de uma universidade, as muitas reuniões e trabalhos nos colegiados sempre me entusiasmam. São perspectivas e ações que mantém a pessoa viva e sintonizada com o tempo presente. Tem, também, os alunos e as alunas. A vida de uma instituição de educação tem seu sentido último neles, no que aprendem e vão se tornando. Quem de nós não lembra da escola, de professores, de livros, de projetos de pesquisa, das muitas amizades que fez? Por isso, a educação é um dos pilares da vida. No contexto da sociedade do conhecimento ela ganha novo status e assume novos papéis. Por falar em jornalismo, ele vive um momento ímpar na história, não? Diria que ele vive uma expansão sem precedentes, por um lado, e uma total falta de credibilidade e identidade por outro.
Ele saiu dos meios de massa e do controle das empresas. Hoje qualquer processo social ou instituição converte ferramentas em arquiteturas de mídia, produz fluxos de informação e os dissemina. Não penso que se trate da morte dos meios de massa, mas vejo reposicionamentos, com implicações que ainda não conseguimos avaliar direito. Hoje, as informações são produzidas por novos atores e consumidas numa infinidade de plataformas. Mesmo assim, ainda se espera que os meios de massa certifiquem uma informação. Esse cenário era algo impensado em 1992, quando me formei. A digitalização da cultura e das profissões, que ocorre na década de 90 e neste início de século XXI, é algo fantástico e ainda não conseguimos mensurar as novas reestruturações que virão em todas as atividades sociais. Tenho me perguntado: como isso afetará a educação, a escola e a sala de aula? Eu sou um otimista inveterado, pois acredito na capacidade humana de inventar usos para essas possibilidades que se descortinam.
De sua parte, a Companhia de Jesus tem se perguntado: ainda somos capazes de oferecer algo necessário à sociedade e que outras instituições não ofereçam melhor? Olhando o tempo presente, os jesuítas acreditam que aportam com algo específico. Identificamos oportunidades novas para o que vínhamos oferecendo na educação, na espiritualidade, junto aos refugiados e migrantes, por exemplo. Por isso, passamos a revitalizar a missão e visão e, consequentemente, reestruturar as estruturas jurídico-administrativas.
Qual o atual horizonte de missão da Companhia de Jesus?
Concretamente, os jesuítas e suas obras assumem a compreensão de que são um corpo apostólico, a serviço da fé e da justiça, em diálogo com as religiões e culturas. Entendem que têm algo novo a oferecer em face dos dilemas socioambientais, intolerância cultural, novos dilemas éticos, religiosos e sociopolíticos. Compreendem que suas instituições estão interligadas e que podem ajudar a mover mudanças na sociedade. Neste sentido, muitas atividades e projetos antes executados de forma mais isolada passaram a ser planejados desde redes, tanto em contextos nacionais quanto continentais ou mundiais.
De tempos em tempos, qualquer pessoa ou instituição precisa se autoavaliar e questionar: o que faço ainda tem sentido e demandas sociais? Ao longo do século XX, várias instituições religiosas tiveram suas ofertas supridas ou pelo Estado ou por iniciativas privadas. É o caso de famílias religiosas dedicadas ao cuidado de pobres e doentes, por exemplo.
Hoje a educação básica, por exemplo, se atualiza na Rede Jesuíta de Educação (RJE), em nível nacional, e na Federação Latinoamericana de Colégios Jesuítas (FLACSI), uma rede de redes, em nível continental. Propõe uma educação integral, a partir da noção de aprendizagem integral. As aprendizagens assim compreendidas buscam articular as dimen-
sões cognitivas, socioemocionais, psicomotoras, comunitárias e espirituais. Em outras palavras, espera-se que um egresso de um colégio jesuíta seja uma pessoa consciente, compassiva, competente e comprometida. Uma pessoa com e para os demais. Os Jesuítas atuam em Colégios desde 1556, forjando uma tradição educativa. Mirando o futuro, que educação é possível pensar e defender para o século XXI? Quando perguntas “que educação é possível”, a que te referes? Os colégios jesuítas trabalham atualmente com educação formal, experiências de educação, Educação Popular (Fé e Alegria), de jovens e adultos, técnica e superior. Neste sentido, ouso afirmar que os colégios Jesuítas atuam no horizonte que compreende a educação como um direito, um bem simbólico e uma necessidade para navegar no século XXI. Ela é um lugar, uma dimensão da vida e um espaço, que descreve, caracteriza, compreende e discute o nosso mundo contemporâneo. Sob esta perspectiva, não deveríamos esquecer as preocupações da tradição educativa jesuíta, atualizada hoje na urgente tarefa de inventar processos, estratégias novas para aprender. Nossas sociedades são mais urbanizadas, interconectadas, as diferenças estão mais próximas e nos afetam, nossas exigências de bem estar são maiores, os problemas socioambientais estão no cotidiano, as áreas de conhecimento cresceram e trazem novas problemáticas... Muitas vezes sou um crítico da educação jesuíta, pois olhamos a
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educação básica desde o retrovisor de nossa marcha acelerada, sobre questões do passado, mas queremos entregas de futuro, criatividade, preparar para o trabalho e o amanhã. O que significa aprender em um colégio da Companhia? Quais os grandes conhecimentos que hoje devem ser matéria de estudo e pesquisa em um colégio jesuíta? Não sou egresso de colégio da Companhia, mas percebo que os colégios jesuítas marcam profundamente seus egressos na formação do caráter, na oferta de uma postura crítica e proativa na vida. Como qualquer colégio, os jesuítas precisam atender às exigências que o MEC e as Secretarias de Educação propõem. Por outro lado, os colégios jesuítas têm sua forma de estruturar o Projeto Político-Pedagógico, metodologias de ensino-aprendizagem, conteúdos humanísticos, estrutura físicas, áreas verdes e experiências que vão além das exigências dos Planos Nacionais ou Estaduais. Cito, por exemplo, a formação humana, uma constante característica da tradição jesuíta. Em relação à segunda questão, penso que os grandes conhecimentos e suas estratégias de trabalho precisariam emergir das preocupações da sociedade, das ciências, do contexto de América Latina, de Brasil e de Curitiba. Deveríamos sempre poder nos perguntar: quais são os grandes temas que nos afligem e como podemos nos preparar para enfrentá-los? As respostas passam por um profundo conhecimento
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dos grandes legados dos conhecimentos das áreas, mas também suas contextualizações e reelaborações. Nestes movimentos será possível mapear emergências, novas sensibilidades e insensibilidades. Mais do que conteúdos, diria que uma escola jesuíta precisa dar conta do substantivo e do adjetivo que a compõe. O Colégio Medianeira tem seu projeto pedagógico e a Rede Jesuíta está elaborando um Projeto Educativo Comum. Como esses dois projetos dialogarão, em especial com os contextos locais? O Medianeira tem um projeto pedagógico muito consistente, do Infantil ao Ensino Médio. Tenho orgulho do trabalho que professores e educadores desenvolvem, sempre com a parceria das famílias, responsáveis e dos muitos interlocutores da sociedade. Sem essa parceria a educação não é exitosa. Hoje, mais que em outras épocas, há consciência da diversidade e necessidade de inclusão acadêmica. A inclusão acadêmica, certamente, é a parcela mais desafiadora, porque requer projetos, estruturas e competências que incluam os déficits e os excessos. Ouso afirmar que são aspectos em que o projeto do Medianeira pode crescer, como comunidade acadêmica. De 2014 pra cá – com a constituição da Rede Jesuíta de Educação (RJE) – 14 colégios jesuítas do Brasil iniciaram um processo de construção de eixos norteadores comuns, a partir do foco na aprendizagem integral. Espera-se que até meados de 2016 este Pro-
jeto Educativo Comum (PEC) esteja mais delineado. Localmente, o PEC revitalizará nosso projeto pedagógico e nosso planejamento estratégico. Por fim, cabe destacar o Sistema de Qualidade em Gestão Escolar (SQGE). Desde fevereiro de 2015, o Medianeira vem fazendo uma profunda autoavaliação, em quatro âmbitos: 1. Pedagógicocurricular; 2. Família e comunidade; 3. Organização, estruturas e recursos; 4. Clima escolar. No primeiro semestre de 2016 desenvolvemos dois projetos de melhorias: Currículo e Gestão de Pessoas. Juntos – Planejamento Estratégico, PEC e SQGE –, são instrumentos e ferramentas que trarão maior robustez ao que fazemos e nos projetarão nos próximos anos. Como o senhor encara a “Política na escola”, tema da última Mediação? Se entendo bem tua pergunta, me provocas uma opinião não sobre a discussão da política partidária (siglas e suas bandeiras, performers, estratégias do jogo político, tempo das campanhas, gestões...). Antes, sobre o papel da escola na formação para a construção do bem comum, da cidadania, do viver em sociedade com sentido. Como cidadão, penso que a mera discussão partidária é chata porque descortina muitas instâncias e estruturas ultrapassadas, muitos personagens com pouca capacidade de ação e um profundo descrédito de atores (os políticos). As demandas sociais
necessitam maior protagonismo e invenção social, expectativas que o corporativismo dos frágeis e ultrapassados partidos políticos não estão mais à altura. Como diretor de escola, entendo que a educação básica não pode deixar o tema política de lado. Viver é um ato político, com origens e implicações históricoculturais, econômicas, antropológicas e mesmo religiosas. O bem comum, a consciência cidadã, as experiências de construção dos destinos da cidade em que vivo são atos políticos. Numa sociedade cada vez mais interdependente, a vida individual e coletiva exige construção de consensos e contratos. Nesse sentido, diria que tudo em nossa vida tem causas e consequências políticas. Isso precisa reverberar na sala de aula. Mais do que nunca, o professor tem grande protagonismo na apresentação dos diferentes ângulos envolvidos num tema. O diálogo, o debate, a construção de argumentos e informações são primordiais. Isso é não é fácil, pois exige colocar-se no horizonte do outro. Isso não requer impor uma postura, causa ou ideologias, mas saber conviver, encontrar ações comuns, dialogar, viver em sociedade. O senhor teria alguma mensagem para alunos, pais e educadores?
consciência de que mais do que prédios, salas de aula, quadras, campos de futebol, bibliotecas, laboratórios ou o verde, o Medianeira é um espaço de vida, de aprendizagens, amizades, experiências de Deus e confrontos consigo mesmo. Nos últimos 59 anos, inúmeras gerações de grandes mulheres e homens aqui estudaram e conviveram, trabalharam e sonharam. Oxalá, nós estejamos à altura daquelas pessoas. Que possamos continuar a fazer da educação um espaço que possibilita formar geradores de vida. No início deste semestre fiquei observando os alunos se abraçando nos pátios, corredores e estacionamentos. Eram gestos de carinho, de encontros e cumplicidades. Que nosso ano letivo seja profundo, no sentido do Magis inaciano.
Cezar Tridapalli é formado em Letras pela UFPR, especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR) e mestre em Estudos Literários (UFPR). É professor da Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Positivo. Escritor, é autor dos romances Pequena biografia de desejos (7Letras) e O beijo de Schiller (Arte&Letra), vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura.
Primeiramente, gostaria de agradecer a acolhida nesta comunidade escolar e dizer da minha satisfação do fazer parte desta história. Em 2017 o Medianeira fará 60 anos de serviço à formação de homens e mulheres. Tenho
mediação
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Eu, vo cê,
o s s a e s p : s nó
onscientes, ompetentes, ompassivas e omprometidas Por Isabel Cristina Piccinelli Dissenha
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mediação
Em 1993, com o objetivo de
va e educativa, tendo em vista as
pessoal e coletiva, mediada pelos
responder aos desafios de
dimensões do pensar, do ser e do
valores da autotranscedência (éti-
uma sociedade em constan-
agir. O Pe. Kolvenbach descreveu o
cos, estéticos e religiosos), bem
te mudança, o então Supe-
aluno formado num colégio jesuíta
como, auxiliar na constituição de
rior Geral da Companhia de Jesus,
como uma pessoa “equilibrada, in-
um Projeto de Vida, fundado nos
padre
Kolvenbach,
telectualmente competente, aber-
valores cristãos tendo em vista a
propôs que as escolas jesuítas ti-
ta ao progresso, religiosa, amável
construção de uma cultura/mun-
vessem como meta formar alunos
e comprometida com a justiça
do solidário.
e alunas para serem pessoas cons-
no serviço generoso do povo de
cientes, competentes, compas-
Deus”. Ele também define o nos-
sivas e comprometidas, ou seja,
so propósito quando diz: “Preten-
promover a formação/educação
demos formar líderes no serviço e
integral da pessoa. A expressão
imitação de Cristo Jesus, homens
“formação integral” traduz a es-
e mulheres competentes, cons-
sência da missão dos colégios da
cientes e comprometidos na com-
Companhia de Jesus.
paixão”. Isso vai ao encontro do
E
Peter-Hans
A Federação Latino-Americana dos Colégios da Companhia de Jesus (FLACSI) conceitua a aprendizagem integral como um pro-
que destaca o documento “Pedagogia Inaciana uma proposta prática” (1993), ao afirmar que: “Tal objetivo requer uma formação
A partir destas dimensões da aprendizagem integral, do diálogo com o nosso currículo integrado de matriz transdisciplinar e com o Projeto Político-Pedagógico, da busca pela excelência acadêmica e humana, numa visão sistêmica e inspirada no Paradigma da Pedagogia Inaciana, o Serviço busca promover estratégias metodológicas da Educação Infantil ao Ensino Médio a fim de formar a pessoa
cesso sistemático de capacitação
total e profunda da pessoa huma-
toda, individual e coletiva. Alme-
para o desenvolvimento harmôni-
na, um processo educativo que
jamos que os nossos alunos e alu-
co e coerente de todas e de cada
aspire à excelência, um esforço
nas se conscientizem de seus pa-
uma das dimensões do ser huma-
de superação no desenvolvimento
péis como sujeitos na sociedade;
no: ética, espiritual, cognitiva, afe-
das próprias potencialidades, que
assumam compromissos pessoais
tiva, comunitária, comunicativa,
integre o intelectual, o acadêmico
e coletivos para ajudar a construir
estética, corporal e sociopolítica,
e todo o resto. Procura alcançar
uma sociedade mais justa, frater-
a fim de alcançar sua plena reali-
uma excelência que reflita o mis-
na e solidária; sejam competentes
zação na sociedade. Afirma ainda
tério e a realidade da Encarnação,
na forma de agir; tenham sensi-
que esta mesma aprendizagem
uma excelência que respeite a
bilidade para ver e responder as
integral integra as áreas acadê-
dignidade de todo o mundo, e a
necessidades do próximo e sejam
micas, pastorais e outras áreas de
santidade de toda a criação”. (Pe-
pessoas comprometidas com o
formação que são próprias de um
dagogia Inaciana uma proposta
bem comum, com a nossa casa
centro educacional associado à
prática, 2012, p.24).
comum.
Companhia de Jesus (p. 20, 2013).
É nesta perspectiva que o SOREP
O Serviço de Orientação Reli-
levando-se em consideração que
giosa, Espiritual e Pastoral (SOREP)
o ser humano é um ser de rela-
do Colégio Medianeira, como um
ções (consigo, com o outro, com
Serviço integrante da equipe pe-
o mundo e com o Absoluto), as
dagógica, busca contribuir com
quais são permeadas pelas di-
a formação/aprendizagem inte-
mensões da aprendizagem inte-
gral a partir da definição do tipo
gral (cognitiva, socioafetiva, espi-
de aluno que queremos formar
ritual-religiosa), busca contribuir
por meio da nossa ação formati-
com a tessitura de uma existência
o onscientes mediação
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O SOREP a partir de uma me-
de nós um gesto de interrupção, um ges-
Assembleias de sala: Promover
todologia que tem relação direta
to que é quase impossível nos tempos
momentos de reflexão, diálogo,
com a visão que temos de mundo,
que correm: requer parar para pensar,
empatia, compreensão e auto re-
de sociedade, de homem e pessoa
parar para olhar, parar para escutar, pen-
gulação, a fim de estabelecer rela-
se quer formar, busca caminhar
sar mais devagar, olhar mais devagar, e
ções horizontais entre professores
articulado com o Projeto Integra-
escutar mais devagar; parar para sentir,
e alunos e criar um ambiente de
do que a escola propõe em cuja
sentir mais devagar, demorar-se nos de-
aprendizagem cooperativa para
base está o pensamento comple-
talhes, suspender a opinião, suspender o
solução de conflitos.
xo e a relação entre os cinco sujei-
juízo, suspender a vontade, suspender o
tos do processo formativo: O con-
Projeto Magis: Ressignificar os
automatismo da ação, cultivar a atenção
texto: macro e micro; A utopia:
valores e a concepção do sentido
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
horizonte de pessoa e sociedade
da vida em dialogia com o contex-
falar sobre o que nos acontece, aprender
to contemporâneo mediante uma
que se deseja formar; O conheci-
a lentidão, escutar aos outros, cultivar a
ação sistêmica, via conhecimento,
mento: estudo da ciência/discipli-
arte do encontro, calar muito, ter paciên-
a fim de promover a formação/
cia e dar-se tempo e espaço”. (BONDÍA,
aprendizagem integral no desen-
2001).
volvimento de um Projeto de Vida
na, os conteúdos historicamente acumulados; O contexto formativo, as interferências no acompa-
humanizador. Encontrar o sentido
nhamento de aprendizagem; O
para a própria vida
educador: todas as pessoas que
“significa, antes de tudo, descobrir
trabalham na escola, as famílias
que o conhecimento da realidade e da
e os referenciais reflexivos/educativos ativamente participantes na formação; Os educandos: alunos e todos os agentes atuantes na
ompetentes
onscientes
e tal complexidade se acentua ainda mais
ção de ciência e conhecimento
quando se passa do plano da ação ao pla-
da seleção de nossas estratégias
no do ser. Assim sendo, o sentido da vida
metodológicas/avaliativas.
significativas
de
humanização,
de sensibilização, de busca pelo sentido (da vida, do próximo, da aprendizagem, do conhecimento, de Deus), de sustentabilidade ambiental do nosso planeta e de
ompassivas
reflexão de temas que articulam fé e justiça. Aqui, vale destacar nas palavras de Larrosa, o que a experiência nos requer: “A experiência, a possibilidade de que
algo nos aconteça ou nos toque, requer
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mediação
não está relacionado apenas às ações Sendo assim, exemplificamos
que praticamos. Ele está relacionado em
algumas das estratégias voltadas
primeiro lugar à própria existência, à pró-
à formação cristã, à formação so-
pria identidade pessoal, ao dar-se conta
cioambiental e à formação cultura
de que posso não apenas viver como
contexto, realizadas nas diferen-
os outros animais, mas pensar a minha
tes unidades (distribuídas entre as
existência e a minha Vida”. (RAMPAZZO,
séries, em diálogo com o currícu-
1996, p. 31-66).
omprometidas
ral, buscam propiciar experiências
mais. Portanto, o objetivo do conhecio ser humano é uma realidade complexa
dissociar método, utopia, concep-
tação Religiosa, quanto de Pasto-
descobrir que a pessoa conhece para ser mento é o bem do ser humano. Todavia
instituição, pois não conseguimos
As estratégias tanto de Orien-
verdade não é fim em si mesmo. Significa
lo), com os seus respectivos ob-
Projeto ser para e com os demais
jetivos, desenvolvidas a partir da
(direitos humanos): Refletir sobre os
realidade/cultura em que vivemos,
direitos humanos (principais vio-
da experiência na perspectiva da
lações identificadas no contexto
excelência humana e acadêmica,
contemporâneo) a fim de promo-
bem como, da busca pelo magis
ver ações que respeitem e valori-
inaciano (ser mais e melhor para e
zem o ser humano nas suas dife-
com os demais).
rentes manifestações culturais.
Semana Vocacional: Vocação,
importância do grupo e da comu-
qual é a tua? – Vida e obra de
nidade; pelos trabalhos fraternos,
Santo Inácio de Loyola: Apresen-
chegar ao serviço e à solidarieda-
tar a vida e obra de Santo Inácio
de; pela experiência da fé e do co-
de Loyola, para a partir desta mo-
nhecimento de si mesmo, chegar
tivação, explorar o significado de
à descoberta da própria vocação.
vocação, de profissão, de missão, do “magis”, da excelência humana e acadêmica, de sentidos (da vida, do conhecimento, da aprendizagem, das dimensões do ser, pensar e agir) a fim de estabelecer interfaces com a formação/aprendizagem integral e a tessitura de um Projeto de Vida.
Catequese de Primeira Eucaristia: Dar início à formação cristã das
ompassivas
crianças – catequese de iniciação cristã, a fim de favorecer a vivência da fé cristã, interna e externamente ao colégio. Perseverança na Fé: Preparar os alunos para o seguimento e compromisso pessoal/comunitário com
de vida e princípios cristãos, bem
Bate-papo: “Ciberespaço – hu-
Jesus Cristo e uma integração
como, experiência comunitária e
manização das relações”: Apro-
mais efetiva e consciente na sua
celebrativa, por meio da imersão
fundar os novos sentidos do
Igreja, a fim de formar para a vi-
social e pastoral, a fim de formar
saber/aprender a ser no ciberes-
vência dos valores cristãos.
líderes cristãos.
paço, estabelecendo relações com
Crisma: Desenvolver a habili-
Voluntariado (Projeto social e
dade e disposição para pertencer
convivência): Desenvolver a ca-
a uma comunidade, em especial,
pacidade de empatia pelo sofri-
através da participação ritual e
mento das pessoas em condições
sacramental da vida de fé que a
de risco, a fim de constituir uma
une; disposição de sentir com a
visão da vida com valor absoluto;
Acampamento de formação e
Igreja, desenvolvendo um vínculo
proporcionar momentos de convi-
Acantonamento: Oportunizar aos
de pertença e fidelidade à Igreja e
vência com o intuito de capacitar
alunos uma experiência de vida
sua missão apostólica; possibilitar
os estudantes ao acolhimento do
em comum, aprofundando valo-
o cultivo da vida interior, aprofun-
outro por meio do serviço e da re-
res como: amizade, liberdade, res-
dando uma relação saudável com
ferência cristã.
ponsabilidade, partilha, serviço,
Deus e com o outro na constitui-
contato e valorização da natureza,
ção de si mesmo.
as novas noções de espaço, de tempo, de território, de ser e não ser, de história e da imaginação, a fim de promover a humanização das relações neste ambiente.
Ações solidárias – Compromisso com o bem comum (sabonete e pasta
a fim de contribuir na formação/
Formação de monitores (Crisma):
de dente, brinquedo, agasalho, Inacia-
aprendizagem integral de homens
Garantir e proporcionar formação
nos pelo Haiti, gibi, papel reciclável):
e mulheres para e com os demais.
permanente nos valores e princí-
Oportunizar aos alunos a experi-
Grupo CaFE (Caridade, Fé e Es-
pios cristãos após o sacramento
ência da realização de um gesto
perança): Possibilitar espaço de
da Crisma, a fim de possibilitar a
concreto, a fim de expressar o
estudo e formação/desenvolvi-
inserção dos jovens na esfera for-
compromisso com o outro/com o
mativa do outro – princípio de res-
bem comum, na tessitura da fra-
ponsabilidade pelo/com o outro.
ternidade e da solidariedade.
mento humano e espiritual dos participantes em quatro dimensões: pelo contato com a natu-
Semana Santa: Oferecer aos
Celebração de Páscoa – Celebrar
reza, chegar ao Seu criador; pela
alunos experiências significativas
o sentido da Páscoa, a fim de que
experiência de amizade, chegar à
de aprofundamento dos valores
os alunos estabeleçam interfaces
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omprometidas
mo (subjetividade), com o mundo (objetividade), com o outro (intersubjetividade) e com o Absoluto (transcendência), bem como, estabelecer diálogos. É a partir destas relações que derivam as dimensões fundamentais da cultura humana, da ciência, do trabalho, da ética, da política, da arte e da religião, capazes de garantir a harmonia e tecer a cultura da soli-
com o significado de Paz e vida nova (compromissos pessoais e coletivos para a construção de uma sociedade mais humana e justa).
dariedade, abrir espaço em busca da liberdade e da verdade sobre si mesmo e sobre o que lhe cerca. Este é o grande desafio da sociedade contemporânea: encontrar meios para estabelecer e construir
Ação de Graças: Louvar e agra-
uma comunidade ética universal.
decer a Deus pela caminhada
Auxiliar os nossos alunos e alunas
evangelizadora junto à comuni-
na busca pelo sentido da vida, na
dade Medianeira, reunindo fami-
sua formação/aprendizagem inte-
liares e amigos dos alunos que
gral, na constituição da identidade
encerram o ciclo de série, a fim
pessoal, coletiva e de um Projeto
de apresentar ao Senhor os frutos
de Vida é o caminho para que se
conquistados.
concretize as relações necessárias
Em suas ações específicas, o
à natureza do ser humano, tendo
SOREP (em parceria com os pro-
em vista o compromisso com o
fessores e demais Serviços), ob-
outro.
jetiva por meio do conhecimento resgatar a importância das relações do ser humano consigo mes-
Referências: BOMDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Palestra proferida no 13 º COLE-Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001. Acesso em 14/03/16 http://www.miniweb.com.br/atualidade/info/textos/saber.htm COLÉGIO MEDIANEIRA: Planejamento do Serviço de Orientação Religiosa, Espiritual e de Pastoral. Curitiba, 2013 – 2014. COLÉGIO MEDIANEIRA: PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO. Curitiba, 2007. FLACSI. O sistema de qualidade na gestão escolar – uma estratégia de avaliação e melhoria na rede. Companhia de Jesus, 2013. MARGENAT, Josep M. Competentes, conscientes, compassivos y comprometidos: la educación de los jesuítas. Lima, Peru: CECOSAMI, 2011, p. 61. Pedagogia Inaciana: Uma Proposta Prática. São Paulo, Loyola, 2012. RAMPAZZO, Lino. Antropologia, Religiões e Valores Cristãos. São Paulo: Loyola, 1996, pp. 31-66.
Isabel Cristina Piccinelli Dissenha é formada em Pedagoga (Universidade Tuiuti do Paraná), com especialização em Psicopedagogia (IBPEX) e Currículo e Prática Educativa (PUCRJ). É Mestre em Teologia (PUCPR). No Medianeira, trabalha no Serviço de Orientação Religiosa, Espiritual e de Pastoral (SOREP) dos 6º e 7º anos.
Recomendações Querido Papa Francisco Papa Francisco | Editora Loyola No livro o Pontífice responde às cartas enviadas por crianças de todo o mundo, inclusive do Brasil. Ao dar voz aos pequenos, o Papa Francisco celebra com profundidade a espiritualidade e o contato com Deus. A correspondência é variada: cartas que levam aos risos e às lágrimas.
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E não é que o ambiente é também sujeito do processo formativo ?! Por Andressa de Oliveira Nascimento, Giovanna Farias Rodrigues, Isabelle Ridder, Larissa Ferreira Nunes, Mariana Terencio Cuduh e Sofia Padilha.
mediação
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reflexão sobre as práticas educacionais, em um contexto marcado pela degradação do ambiente e do seu ecossistema, cria uma necessária articulação entre processos educativos e de formação integral do indivíduo em todas as suas dimensões: éticas, sociais, econômicas, políticas e ambientais. Assim, existe uma busca educativa por facilitar a formação de um sujeito comprometido com as causas sociais e ambientais. A partir disso, acreditando que homens e mulheres são seres sociais e influenciados pelo contexto, o uso de práticas pedagógicas de uma educação para e pelo ambiente podem contribuir para a
A
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mediação
formação de um sujeito integral, que ao mesmo tempo terá condições de ser ecologicamente e socialmente justo.
que gostaríamos de apresentar
Foi por tudo isso, que o núcleo de Ciências Naturais e Exatas do Ensino Médio do Colégio Medianeira, desenvolveu uma atividade de imersão em ambiente natural, no CEA (Centro de Educação Ambiental), na qual além de avaliar a qualidade ambiental da água e do solo, contemplou (em pequena escala) a capacidade de geração de energias alternativas, utilizando-se de protótipos como, de uma roda d’água e um aquecedor solar.
tivos, escolhemos para mostrar
É com a intenção de compar-
Um salve à formação ecológica!
tilhar e fomentar novas pesquisas
um pedacinho do que foi trabalhado durante essas atividades. Dentre tantos trabalhos significaa importância do ambiente na formação integral dos nossos alunos, um artigo sobre a qualidade ambiental do solo no CEA, escrito por alunas do 2ª série do Ensino Médio do Colégio Medianeira. Convido-os agora a saborear a qualidade de conhecimento que os nossos alunos são capazes de produzir e ao mesmo tempo de se questionarem se o ambiente é ou não é um agente formador! Por Nicole Witt
O solo é indispensável para
ção dos processos biogeoquími-
terrestres já que tem papel fun-
a manutenção da vida na Terra
cos formadores e mantenedores
damental na decomposição da
e para o equilíbrio biológico de
dos ecossistemas. Debaixo da ter-
matéria orgânica no solo (que é
todos os ecossistemas. Devido a
ra, existe um vasto e desconhe-
basicamente a fonte de nutrientes
sua complexidade, os estudos de
cido mundo, ou seja, a vida no
inorgânicos das plantas). Nesse
biodiversidade se restringem ba-
solo é mais diversa e abundante
sentido, as minhocas destacam-
sicamente aos vertebrados que
do que na superfície. Isso devido
se, já que ajudam na formação do
habitam a superfície. No entanto,
às várias espécies que habitam
perfil do solo, redução da relação
os microrganismos e invertebra-
este local, como insetos, vermes,
carbono/nitrogênio e aceleração e
dos constituem cerca de 90% das
bactérias e seres microscópicos, e
reassimilação de nitrogênio pelas
espécies existentes, possuindo um
sem estes o solo não “vive”.
plantas.
papel determinante para a realização dos processos edáficos, tais
Qualidade do solo
como a fertilização do solo, filtra-
A qualidade do solo pode ser
ção de água, decomposição de
definida como o equilibro entre fa-
matéria orgânica, fixação de ni-
tores químicos, físicos e biológicos
trogênio, ciclagem de nutrientes,
e também a partir da capacidade
dentre outros.
de funcionar corretamente dentro
Porém, antes de tudo, é preciso compreender o conceito de biodiversidade, que pode ser entendida como a totalidade de variedade de formas de vida na Terra, ou seja, é o conjunto de todos os seres vivos que habitam o planeta. Por sua vez, o solo é um recurso natural básico, que cons-
do ecossistema, com a finalidade de manter a qualidade ambiental, saúde dos animais e das plantas e sustentar a produtividade biológica. E quando se encontra no solo um ambiente saudável com diversos animais e plantas saudáveis pode-se indicar que a qualidade do mesmo é boa.
A Análise da Qualidade Ambiental do Sistema de Solos foi realizada em julho de 2015 no Centro de Educação Ambiental do Colégio Medianeira (CEA), em Piraquara, e a partir daí desenvolveram-se outras análises. A coleta aconteceu em dois pontos distintos. O primeiro, o Córrego do Bruninho, apresentou temperatura de solo de 1,3°C e temperatura ambiente de 6,4°C, às 10h. O segundo ponto, a Floresta do Bruninho, apresentava temperatura de solo de 7°C e temperatura ambiente de 6,4°C,
titui um importante papel nos
O solo possui funções ecológi-
às 10h10. No dia da medição os
ecossistemas, tais como nos ciclos
cas muito importantes, já que pro-
índices de temperatura se encon-
naturais e reservatórios de água.
duz biomassa (energia, alimentos
travam baixos, menores de 10°C,
Os solos são formados ao longo
e fibras), é o habitat biológico e
entretanto, mediu-se também a
do tempo a partir das rochas que
reserva energética de diversos se-
temperatura da água: 11,4°C, que
sofrem influência das chuvas, do
res vivos (plantas, organismos e
se encontrava maior do que a do
gelo, de ventos, da temperatura
animais), filtra e transforma a ma-
ambiente – uma vez que a água
e de organismos vivos. Sendo um
téria para proteger o ambiente.
demora mais em perder calor. Ou
processo demorado, é essencial à
Há também animais que ne-
seja, conforme a física, o calor
vida humana já que muitas vezes
cessitam do solo para sua sobre-
específico – quantidade de calor
retiramos dele, entre outras coi-
vivência, como minhocas, vermes
que uma determinada substância
sas, a nossa alimentação.
e insetos, estes compõem a fauna
deve receber ou perder para variar
A biodiversidade de solos tem
edáfica e são extremamente im-
sua temperatura – da água é alto,
um papel fundamental na regula-
portantes para os ecossistemas
desta forma a água necessita de
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uma alta quantidade de calor para
dias anteriores, o que ocorre devi-
cia do meio aquoso e/ou úmido,
sofrer variação térmica.
do ao aumento da umidade do ar.
uma vez que as trocas gasosas
A baixa temperatura influen-
Algo notável na coleta foi a
cia diretamente no habitat, in-
abundância de organismos per-
terferindo no metabolismo dos
tencentes ao Filo Arthropoda (in-
invertebrados que lá estão pre-
setos, crustáceos, aracnídeos e
sentes, uma vez que quanto me-
miriápodes), isso pode ser explica-
nor é a temperatura menor será
do ao longo da história evolutiva
o metabolismo. Logo, são animais
dos animais, pois foram sendo
ectotérmicos, isto é, dependem
selecionadas características fisio-
da temperatura (°C) do ambiente
lógicas que possibilitaram a eles
para ativar o metabolismo.
melhores meios de sobrevivência
não dependiam mais da umidade da superfície corporal. Por esse motivo, 95% dos animais encontrados no CEA foram artrópodes, sendo cerca de 38,4% insetos, com estes representando 60% do número de espécies. E agora? O ambiente é ou não é sujeito do processo formativo?
no ambiente terrestre. O Filo Ar-
Resultados
thropoda é o filo mais numeroso
Após a análise dos dados e a
devido às novidades evolutivas
conclusão das características am-
que apresenta. Dentre estas, po-
bientais do local, desenvolvemos
demos citar a presença do exoes-
uma prática com os seres vivos
queleto de quitina, que serve de
que lá se pode encontrar. Notou-
proteção contra choques mecâni-
se a presença de um grande nú-
cos, além de atuar como isolante,
mero de invertebrados. A quan-
não permitindo a perda de água
tidade destes animais se elevou
para o meio. Esta característica
devido ao alto índice de chuva nos
possibilitou ao filo a independên-
Nicole Witt é professora de Biologia da 2ª série do Ensino Médio, especialista em Educação Ambiental e Desenvolvimento pela UFPR e “quase” mestre em Produção Vegetal pela UFPR. Andressa de Oliveira Nascimento; Giovanna Farias Rodrigues; Isabelle Ridder; Larissa Ferreira Nunes; Mariana Terencio Cuduh; Sofia Padilha são alunas da 3ª série do Ensino Médio do Colégio Medianeira.
Recomendações Sustentabilidade: o que é - o que não é Leonardo Boff | Editora Vozes O autor cria um resgate histórico do conceito de sustentabilidade desde o século XVI até os nossos dias, trazendo à luz a crise socioambiental generalizada que marca a atualidade. Em um discurso lúdico e crítico, Boff revê os modelos vigentes de desenvolvimento sustentável.
Saber ambiental: sustentabilidade , racionalidade , complexidade , poder Enrique Leff | Editora Vozes Na obra Leff apresenta ao leitor o “estado de emergência” em que estamos. O livro constrói um discurso que ressignica as concepções de progressos, desenvolvimento e suas ligações com o crescimento sem limites.
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a , r i e o p a o território
da diversidade Uma conversa com o professor de Capoeira do Colégio Medianeira Cleverson São João sobre esporte, educação e aprendizagem. Da redação
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Capoeira surgiu no Brasil, durante os anos de escravatura, como um grito de liberdade dos povos africanos que compunham as senzalas nas fazendas de café, algodão e cana-de-açúcar. Misturando elementos de dança, de ludicidade e, principalmente, de lutas, a Capoeira chegou a ser proibida em 1890. Quem fosse flagrado em rodas de capoeira era preso e, muitas vezes, mutilado pela polícia.
nas escolas públicas e particulares segundo a Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08.
Os “anos de chumbo” contra o esporte acabaram, e desde 2008 a capoeira é um bem cultural, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em 2014 a Unesco a reconheceu como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
A Capoeira propõe o jogo como forma de socialização e ludicidade; a dança como forma sutil de se expressar; a ginástica como técnica e preparação corporal; a luta como disciplina e defesa, e indo um pouco mais além, a música como condutora rítmica da gestualidade e transmissora de conhecimentos e a roda como momento máximo onde todos esses elementos se encontram. Já a questão esportiva da Capoeira vai depender da organização entre as federações e ligas nacionais e internacionais de Capoeira, grupos de Capoeira, Ministério e Secretarias de Esporte e outros setores que desejam fazê-la de uma maneira esportivizada.
Para saber mais da história da capoeira e suas potencialidades pedagógicas, a Mediação conversou com o professor Cleverson São João, responsável pela oficina de Capoeira do Colégio Medianeira. Como você trabalha a Capoeira na Educação Fundamental? Como todas as outras oficinas, a Capoeira conta com um projeto individual que se apoia no Projeto Político-Pedagógico do Medianeira e no Projeto do Integral. Neles busca uma base teórica que familiarize o conhecimento da Capoeira com a proposta cultural da Instituição para tornar realidade o projeto da Capoeira neste sentido reúne conteúdos que vão discutir a cultura africana e afro-brasileiras, obrigatórios
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As aulas são organizadas por meio dos planejamentos trimestrais que dividem os conteúdos ao longo do ano e oferecem segurança e clareza ao processo pedagógico do educador. Jogos, danças, ginástica, lutas e esporte caracterizam as atividades de Educação Física. Como a Capoeira se insere neste macro contexto da área da Educação Física?
Via de regra, a Educação Física trabalha com esportes tradicionais e você aposta numa Educação Física a partir da Capoeira. De onde partes e aonde queres chegar? O ponto de partida é uma reflexão justamente sobre currículo tradicional da Educação Física que considera os esportes práticas hegemônicas da cultura corporal, focando assim suas aulas nas habilidades motoras, aprendizagem
esportiva ou nas noções monoculturais de saúde e cuidado com o corpo, ou seja, um corpo que se prepara para o melhor rendimento, para a melhor forma de competir e que tenha saúde para estar no “jogo”. Esse modo de conceber determinadas práticas corporais diante de interesses dominantes e elitistas dificulta e, em muitos casos, impossibilita um diálogo aberto com questões de diversidade cultural do movimento. O ponto de chegada não seria um currículo para a Educação Física a partir da Capoeira, mas sim a partir da diversidade cultural do movimento. Qual a diferença entre Capoeira Angola e Capoeira Regional? Capoeira Angola é um estilo que se caracteriza por manter as tradições e costumes trazidos principalmente pelos negros de descendência angolana e o seu jogo é marcado por uma expressividade corporal envolvente de grande proximidade entre os jogadores que desenvolve toda uma encenação de luta ao som de uma bateria percussiva peculiar ao estilo. A Capoeira Regional segue tendências esportivizadas onde se apropriou de sistemas de graduação como forma simbólica de hierarquia, formalizou seus cerimoniais através de batizados, troca de graduações e campeonatos realizados geralmente em ginásios e teatros abertos ao público. Seu jogo impressiona pela velocidade de excussão dos movimentos acrobáticos e golpes principalmente de pernas que são
conduzidos por um ritmo musical intenso e emocionante. Como os praticantes de Capoeira leem esse trabalho de adaptação (música, ritmos, “cerimonial da roda de Capoeira”, Capoeira para turista ou elite branca)? A Capoeira nasceu das tradições deixadas pelos descendentes africanos escravizados no Brasil em meados do século XVI onde por muitos anos seus ensinamentos foram mantidos em sigilo pelo fato da repressão sobre qualquer manifestação cultural alheia a do branco, europeu, senhor, repressor. Depois de sair do código penal brasileiro em 1930, Governo Vargas, ao longo dos anos ela veio se adaptando ao modelo social e econômico de cada momento. Com isso, Mestres, Contramestres, Professores e principalmente os grupos de Capoeira a adaptaram a um modelo capitalista, ou seja, foi absorvida pelo mercado para ser um produto a ser consumido pelas elites brancas e é nesse momento que ela passa por um processo de embranquecimento. As músicas que traziam em suas letras mensagens sobre a religiosidade de matriz africana foram abolidas por serem consideradas negativas. Muitos dos cerimoniais saíram das ruas e dos fundos das casas dos velhos Mestres para se transformar em grandes eventos realizados em teatros e ginásios
esportivos como uma tentativa de relacionar a Capoeira ao esporte para uma maior adesão das elites. Com relação a Capoeira para turista foi, e ainda é, uma forma de explorar o turismo principalmente na região Nordeste, o que ajudou a divulgação da Capoeira para o mundo. Do ponto de vista de uma educação para as relações étnico-raciais, a Capoeira pode ser uma porta de entrada para um aprofundamento dos déficits culturais em relação à cultura africana e afro-brasileira? Esse é o ponto de partida, apoiado na legislação, para o debate da questão sociocultural do negro em aspectos micro e macrossocial que vão desde o trabalho escravo, passando pelas artes e esportes até chegar na conquista de espaço dentro das universidades. Outro ponto importante é relação histórica que a Capoeira tem no processo de formação da sociedade brasileira como cultura de resistência. É claro que esse debate a Capoeira não levantaria sozinha, convocaria outras áreas do conhecimento como a História, a Geografia, as Artes, a Ed u c a ç ã o Física, o Ensino Religioso, enfim, uma equipe interdisciplinar para discutir o assunto.
A partir de sua experiência, em quais pontos a educação básica (pública e privada) pode avançar para incluir a Capoeira no currículo? (Legislação, espaço, materiais e capacitação de professores...) Destaco quatro pontos. O primeiro seria a preservação do patrimônio cultural e ancestral que entra como memória na firmação da identidade cultural do negro no Brasil. O segundo ponto é a pedagogia que a Capoeira oferece, um conhecimento que pode auxiliar na transformação de uma realidade elitista dominante para uma realidade que considere o “outro” e suas diferenças. O terceiro ponto seria a formação e capacitação de professores em cultura africana e afro-brasileiras através de cursos, oficinas, congressos, seminários, fóruns e grupos de estudo que possam desmistificar ou até mesmo desmarginalizar a cultura afrodescendente. O quarto, e último ponto, é a conquista de espaços como, praças, museus, escolas, universidades, locais esses de identificação e de referências destinados exclusivamente a memória, práticas e desenvolvimento da cultura afrodescendente. Quais os fundamentos que você trabalha na oferta de Capoeira no Medianeira? Entende-se fundamentos como a base, aquilo que sustenta o trabalho. Destacam-se três pontos principais. Inicialmente, os projetos: a proposta da Capoeira se apoia no Projeto Político-Pedagógicos do colégio e no Projeto do Integral, para poder relacionar sua base teórica com a do colégio e do Integral. Depois a questão da
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cultura: preservação cultural da Capoeira e preservação da memória e ancestralidade da cultura africana e afro-brasileira. E, por último, pedagogia: somar os conhecimentos da Capoeira, junto com outras ciências, a missão da excelência educativa considerando a proposta da Companhia de Jesus na formação de pessoas competentes, humanas e academicamente inseridas em seu tempo visando à transformação solidária da sociedade. A etnografia agrega algum ponto ao teu trabalho? Na qualificação do projeto da Capoeira são utilizados métodos que auxiliam na análise das diferentes relações culturais que se estabelecem no cotidiano das aulas e na vida fora do colégio e essas mesmas diferenças culturais geram tensões, contradições, avanços e desafios que necessi-
tam de metodologias apropriadas que ajudem na leitura da realidade. Com a apropriação da etnografia, em março de 2014, foram realizadas filmagens. Esses vídeos tinham o objetivo de registrar o máximo possível de brincadeiras. Depois da coleta de dados as imagens foram editadas e assistidas em sala de aula com os educandos, com a finalidade de coletivamente escolherem uma das brincadeiras para que fosse adaptada ao contexto das aulas de Capoeira.
em Vitória-ES. Depois do aceite e apresentação do filme nos dois congressos, onde o trabalho e o nome do Colégio Medianeira foram divulgados a nível nacional e internacional, o vídeo foi solicitado pelo grupo de estudos do Currículo Cultural em Educação Física da USP e pelo grupo de estudo em Educação Física da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Em 2015 Alexandre Salomão, Professor de Educação Física e Doutorando em Educação pela USP, orienta o processo de submissão de um dos vídeos a sala de mídia e comunicação de dois Congressos, CONBRACE (Congresso Brasileiro de Ciência do Esporte) e CONICE (Congresso Internacional de Ciência do Esporte) realizado
Cleverson São João é graduado em Educação Física desde 2006 pela Universidade Positivo e Mestre em Desporto para Crianças e Jovens desde 2012 pela Faculdade de Desporto FADEUP/Universidade do Porto (UP), Portugal. Tem experiência com a Capoeira há 17 anos e leciona esta prática da Cultura Corporal há 11 anos. Para além de praticar e lecionar, conta com estudos publicados na área da Educação Física em congressos nacionais e internacionais.
Recomendações Capitães de Areia Jorge Amado | Editora Companhia das Letras O escritor baiano recria a vida de meninos pobres e delinquentes que vivem no cais de Salvador. Pouco a pouco cada personagem se revela, seja pelo caráter ou pelas ações. Capitães de Areia é o retrato fiel da periferia baiana sem pudor ao evidenciar suas crenças, culinária, música e superstições em torno do mar e da cidade.
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História além do óbvio
Perspicaz, o livro se desenrola em uma visão inteligente da infância, permitindo que grandes temas sejam abordados. Por Luciane Hagemeyer
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Famosa Invasão dos Ursos na Sicília, obra escrita sob a o peso da atmosfera da Segunda Guerra Mundial, é um dos mais belos textos da literatura infantil italiana contemporânea. Pouco conhecido no Brasil, o texto de Dino Buzzati (1906), dramaturgo, escritor, ilustrador, jornalista, designer gráfico e roteirista, aposta em uma visão inteligente de uma infância capaz de lidar com grandes temas. O autor colaborou por anos com uma grande diversidade de textos para o jornal Corriere della Sera. E assim como Carlo Collodi, autor de Pinóquio, que teve a primeira versão de sua obra publicada em capítulos em um suplemento infantil, Dino Buzzati recebeu a tarefa de fazer o mesmo para o jornal em que trabalhou por décadas. Aceitou-a, mas advertiu: “a conversa com os pequenos não é simples nem óbvia, pois a sua imaginação tem plena dignidade e é preciso nutri-la e surpreendê-la”. Embora A Famosa Invasão seja seu único livro infanto-juvenil, essa consciência a respeito de seus interlocutores trouxe notório reconhecimento a Dino Buzzati. Considerado um dos grandes autores italianos, ganhou a fama de escritor fantástico, mas ao mesmo tempo inclassificável pelas tendências literárias de sua época. A obra tem uma história capaz
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de integrar a natureza cômica e ao mesmo tempo trágica da vida, fazendo total uso da fantasia e apostando em uma simultaneidade de gêneros, o que torna o livro estruturalmente sofisticado e ao mesmo tempo acessível a muitas maturidades leitoras. É composto de uma narrativa apenas, mas que poderia ser dividida em duas. A primeira delas é épica e envolve a busca do Rei dos Ursos, Leôncio, pelo filho sequestrado por caçadores anos antes e a luta dos demais ursos por ele governados, que se veem obrigados a descer as montanhas em busca de comida e de vingança contra a tirania de um duque. Há ainda, o professor De Ambrosiis, um personagem mais esférico, como um mago conselheiro do duque e capaz de muitos feitos. O professor sabe que, mesmo com o auxílio de sua varinha mágica, detém a realização de apenas dois feitiços em toda a sua vida. Assim, cabe-lhe um papel fundamental nos principais eventos que amarram as duas histórias presentes na obra, pois é ele, antes servo fiel do Grão-duque, quem posteriormente alerta o Rei Leôncio da corrupção instalada entre aqueles mesmos ursos que outrora haviam descido a montanha na luta por justiça e igualdade de direitos. Todavia, a riqueza literária da obra não está somente no enredo, mas também se faz presente nas
estratégias multissensoriais utilizadas para fisgar o leitor. A partir de descrições iniciais e detalhadas das personagens e dos cenários, o autor entremeia o texto em verso e prosa, proporcionando um diálogo em vários níveis e vozes, com seriedade e, ao mesmo tempo, com a divertida galhofa italiana reconhecível ao estilo de Collodi e de Gianni Rodari, outro famoso escritor italiano para crianças. Essa diversidade de vozes, em uma obra que apresenta um misto de fábula e de literatura fantástica, exibe em seu interior algo que vai da prosa à poesia, da crônica jornalística ao teatro e também da música aos jogos verbais e imagéticos, que são favorecidos pelo fato de o livro ser provocativamente ilustrado pelo próprio autor, o que lhe confere risonhas e inovadoras formas de diálogo em uma espécie de hipertexto. Além disso, trata-se de uma história que apresenta encontros e desencontros e que aborda a contaminação sofrida pelos ursos ao tomarem contato com os homens, convidando a uma reflexão sobre o comportamento humano, facilmente cooptado pelos apelos do luxo, dos vícios e do poder. Há um aparente maniqueísmo que se dilui entre ursos e homens quando se assemelham entre si. Mas ao final, superam-se os desafios e os ursos retornam às montanhas, graças à sábia e confiável lideran-
ça do Rei Leôncio. Este personagem encontra uma correspondência a altura no exemplo do urso Baloo, personagem de O Livro da Selva (Rudyard Kipling), que assim como ele, personifica uma poderosa figura paterna. Vale lembrar ainda, o papel que os ursos desempenham no imaginário da literatura infantil, que vão desde os Contos de Fada registrados pelos Irmãos Grimm, aos famosos Teddy Bears e ao Ursinho Pooh (A. A. Milne). O livro traz também outros personagens do folclore e do imaginário popular, tais como monstros, fantasmas, gatos e serpentes marítimas.
A Famosa Invasão é uma obra completa, seja para as crianças, seja para os adultos. Em meio a uma representação problemática da realidade, apresenta para as crianças um delicioso enredo, recheado de personagens que amam e que ao mesmo tempo temem. É também uma história sobre as experiências emocionais e volitivas de cada um, sobre a coragem, a amizade, a morte e a vida e, principalmente, sobre a generosidade. Uma obra que oferece assunto e “brilho” para conversas durante e posteriores à leitura, levando a transcender
o circunstancial pelo seu alto teor simbólico, proporcionando um conhecimento que não se separa do deleite.
Luciane Hagemeyer é formada em Letras Português/Inglês e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Professora do Medianeira desde 1995, hoje é responsável pela oficina do Clube do Livro oferecida às crianças do período Integral. Na Escola de Arte do colégio, trabalha com literatura infantil.
Recomendações O Deserto dos Tártaros Dino Buzzati | Editora Nova Fronteira Ao alcançar o posto de tenente, o jovem Giovanni Drogo é designado para o Forte Bastiani, o que crê ser a primeira etapa de uma carreira gloriosa. A má impressão que tem ao chegar ao isolado forte o abala. A espera pelo inimigo, que justifica a permanência do comando militar na região, transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade.
As Aventuras de Pinóquio Carlo Collodi. Trad.: Marina Colasanti | Editora Companhia das Letrinhas As aventuras de Pinóquio é a obra original de Carlo Collodi, publicada pela primeira vez em 1883. Em seu percurso de transformação de boneco em menino, Pinóquio enfrenta as intempéries das noites longas e frias, se depara com a autoridade da lei, padece de uma fome terrível e descobre a solidão da condição humana. Fantasia, humor e ironia se combinam neste clássico da literatura, indicado para todas as idades.
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Diretor italiano usa de sua própria experiência para compor longa pungente, mas longe de ser piegas. Por Alexandre Rafael Garcia
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anni Moretti é um dos mais importantes diretores do cinema italiano em atividade. Nascido em 1953, ele lançou seu primeiro filme de longa-metragem em 1976. Suas obras geralmente misturam comédia, drama, psicanálise, longos diálogos, comentários socioculturais e autobiografia (não necessariamente nessa ordem), por isso muitas vezes Moretti é comparado com o realizador norte-americano Woody Allen. Mas o paralelo é superficial, pois leva em conta apenas esses interesses temáticos – a maneira como os artistas os trabalham é o que os diferencia.
N
O filme mais conhecido de Moretti é Habemus Papam, de 2011. Usando um tom bem-humorado, o filme retrata a crise de consciência no recém-eleito Papa. A obra conquistou diversos prêmios por sua contribuição artística, principalmente para o protagonista, Michel Piccoli. Sua temática coincidiu com a renúncia do Papa Bento XVI, que aconteceria dois anos mais tarde, em fevereiro de 2013. O filme mais recente de Moretti e 12º de sua carreira, Mia Madre, foi lançado no Brasil no final de 2015. A história apresenta Margherita, uma diretora de cinema em processo de filmagem, que precisa lidar simultaneamente com a pressão do trabalho, com a responsabilidade sobre a filha adolescente e com a angústia de sua mãe internada no hospital. Por meio da protagonista, somos apresentados a três gerações de mulheres em momentos decisivos de suas vidas.
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Para Moretti, o riso e a dor são indissociáveis da nossa existência. Mia Madre nos faz embarcar na bagunça que se torna a vida de Margherita e é radical na proposta do diretor, de alternar, do começo ao fim, momentos de fino humor com outros de extrema dor. O clímax do filme apresenta a epifania da protagonista, tão dolorosa quanto nossas perdas reais, mas também tão transcendental quanto nossas experiências podem ser. Moretti nos mostra que, como a finitude é uma condição humana, resta-nos valorizar nosso passado e nossas derrotas e conquistas; rirmos das trapalhadas diárias e aceitarmos que o amor está ao nosso redor – é nosso dever abraçá-lo e cultivá-lo. Nos filmes de Moretti, não é difícil enxergar intersecções entre realidade e ficção. Enquanto o diretor finalizava Habemus Papam, sua mãe, Agata, morreu. Assim como ela, a personagem da mãe em Mia Madre, Ada, era professora de latim. Além disso, o figurino de Ada foi construído com as roupas de Agata. Diversos outros elementos autobiográficos estão presentes nas obras de Moretti, mas a grande questão é que o diretor consegue combinar situações absurdas e cômicas com uma veracidade de sentimentos (talvez por sua própria experiência pessoal?), nos tocando de maneira singular. Se o objetivo essencial da arte é nos levar a conhecer outras situações e nos fazer enxergar de maneira diferente o nosso próprio mundo, então “Mia Madre” é bem-sucedido. Há um outro tipo de cinema que está em voga hoje; o de exploração da dor, da miséria e da
violência, em todos os sentidos: físico, humano e moral. O Regresso (“The Revenant”), escrito e dirigido por Alejandro González Iñárritu, representa essa tendência. O filme, que contou com um grande orçamento (135 milhões de dólares), é sucesso de crítica e de bilheteria em todo o mundo. Ao longo de 150 minutos, ele apresenta variadas e inimagináveis formas de agressão e tortura para o protagonista, que são filmadas com extremo rigor técnico e evidenciam o sadismo de seu diretor. Os espectadores que aderem à obra também revelam seu lado sádico, pelo prazer de observar a meticulosa encenação do sofrimento alheio. Mia Madre é também um ataque mordaz a esse tipo de cinema. O filme no qual Margherita está trabalhando trata das relações de classe em uma fábrica. Na primeira cena do filme dentro do filme, há um violento confronto entre operários grevistas e policiais, que impedem o acesso à fábrica com cassetetes e canhões d’água. A personagem-diretora interrompe a gravação e questiona o operador de câmera, sobre o porquê de ele estar aproximando demais a lente de um dos operários que apanha da polícia. Ele responde que quer fazer o “espectador entrar na ação”. A diretora o reprova, dizendo que esse não é o objetivo do seu filme. Ele retruca, dizendo que a imagem ficaria “muito bonita assim, sendo filmada à contraluz e com as gotas de água refletindo na câmera”, criando um espetáculo estético sobre algo que é humanamente condenável. A diretora fica estarrecida com o
que ouve. A situação é tragicômica. Mas é a declaração de Moretti sobre o mundo em que vivemos, no que diz respeito à produção e ao consumo audiovisual.
realidade, sonhos, música pop, humor, ironia, provocações, sensibilidade, discussões linguísticas, questionamentos ao ofício da arte... Enfim, o mais belo filme de 2015.
Mia Madre é um filme ficcional, mas com um pouquinho de
Alexandre Rafael Garcia é formado em cinema pela Faculdade de Artes do Paraná (Unespar) e Mestre pelo instituto de Artes da Unicamp. Dirigiu os filmes curtas-metragens Pastoreio (2009), Intervalo (2010), Memorias do meu Tio (2011), Sobrenatural (2012) e Pequenos (2012), dirigiu o média-metragem Dias de Trovão de 2015.
Recomendações Habemus Papam Dirigido por Nanni Moretti Após a morte do Papa, o conclave do Vaticano se reúne para escolher seu sucessor. Após várias votações, enfim há um eleito. Mas esse eleito não vem a público por não suportar o peso da responsabilidade. Tentando resolver a crise, os demais cardeais resolvem chamar um psicanalista para tratar o novo Papa.
“O Quarto do filho” (“La Stanza del figlio”) Dirigido por Nanni Moretti Giovanni é psicanalista. Ele é casado com Paola e eles têm dois filhos adolescentes. O filho mais velho morre num acidente e a família precisa lidar com a dor de sua perda, em meio aos sentimentos de culpa e de saudades.
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Um passeio público Por Cezar Tridapalli
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roteiro é esse: entram pela primeira vez em nosso apartamento e dizem, vendo a sala sem mobília, que sala enorme. É para pular e dançar melhor, brincamos. Fazem o reconhecimento da nudez da casa, ameaçam levar o corpo para os pufes que, como batatinhas que nascem, se esparramam pelo chão, mas os olhos ainda se detêm: as janelas. O corpo em pé, pendurado pelos olhos, janelões de fora a fora. Que janela enorme. O mundo lá fora é que é, brincamos ainda outra vez.
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É em frente a essa janela que faço meu filho dormir, como fiz com minha filha vezes sem conta. Olhamos pela rua de árvores enfileiradas cujas folhas amarelas devem ser medrosas porque, quando nevam, choram umas lágrimas amarelecidas que a vizinhança se apressa em limpar, alguma vergonha alheia, chorar sempre é feio e triste. Dizem que é sujeira, e mangueiras e vassouras fazem trabalho ligeiro, gastando água e escondendo as lágrimas-floressujeiras debaixo do tapete esburacado do asfalto, pelas bocas de lobo banguela. Eu mostro para o menino o que vemos lá fora, em nossa rua que tem nome de poeta parnanguara. Pensando bem ou mal, quem mostra são os olhos dele. Eu apenas repito nomes do que conheço: digo olha o carro, olha lá a árvore, veja: as pessoas. Grudo palavras nos objetos que me
aparecem e que talvez só eu veja, os olhinhos dele enxergando seilá-quê. No escuro, quando nos afastamos um pouco da janela, nos vemos refletidos no vidroespelho. Eu também não sei – ignoro tanto – se ele se vê ou continua vendo através do vidro para a caixa d’água iluminada, o alto da XV, linha do nosso horizonte, a nossa Nossa Senhora da Luz por onde senhores e senhoras passam esfregando pneus no asfalto. Aí penso que o mundo fora de nós entra na gente e acaba sendo a gente. E invejo o menino, que vê o que quer, com olhos livres, sem precisar pensar nessas bobagens que me fazem perder a paisagem, colando nomes às coisas, refém de códigos arbitrários. A paisagem vista, os olhos cansados. Chega de paisagem por hoje, hora de dormir. E ele pousa nos meus dois braços, sua cama. Começo a inventar canções, letra e música saindo no repente, associação livre, a primeira palavra que ganha o ar na voz desafinada fica esperando as outras, mas só se forem rimadas, como se ele dormisse melhor se elas combinassem ter o mesmo som final. Desde minha filha, já inventei muitas canções que se foram, rápidas como vieram. Como disco riscado, minúscula e insistente, uma delas persistiu. E agora? O mundo lá fora. Um dia vai embora.
O mundo lá fora já tinha ido embora dos olhos do meu filho, que dormia e enxergava só os mundos misturados do sono e do sonho. Mas eu continuei o mantra, a cada repetição uma avemaria a mais no rosário, novena perplexa. Eu pensava no agora e no dia em que o mundo fosse embora, presente e futuro, tempos reunidos pelo espaço. O dia, um dia, iria embora de mim, de nós. Mas o dia não morre, corre atrás da noite para não ser alcançado por ela. Entre o agora e o fim dos dias – dos dias, não dos meus dias – há, calculo, a distância de um infinito e meio. O tempo se veste de espaço e seria invisível se não usasse estas roupas. É no espaço que a tinta descasca, que aparece a ruga ainda ontem escondida. O corpo é um lugar e dá forma ao tempo. Que transforma e deforma e transtorna, no trocadilho fácil e poderoso. O mapa é a representação de um lugar. Representação é tornar algo de novo presente. Mapa é território atomizado. Se no grão de areia há o universo, no mapa é o território quem habita, encolhido. Um mapa afetivo é um território que me afeta. Meu filho já está no berço, deixo pra trás sua respiração pesada. Curitiba e seu molho de chaves a
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trancarem todos os narizes. Volto para a janela e logo ali na frente, cortando minha rua de poeta parnanguara, vejo um poeta alemão. Encontram-se, cumprimentam-se, e seguem seus caminhos. Fernando Amaro está separado de Schiller por 26 anos e um oceano, mas se encontram na esquina da minha janela. Esse é um encontro do território que me afeta. Mas mapas afetivos são cheios de ruas suspensas, becos sem saída, e entre as calçadas ruins em que tropeço me vejo levantando em outros chãos. Sou um sujeito de sobrenome italiano esdrúxulo, em que as pessoas tropeçam mais do que nas calçadas. E fui espremido, premido, por alemães. Se Schiller é meu agora, faltou-me falar de passado – o que rima com ontem, para inventar a próxima cantiga? Shhh, o menino dorme. Montem um ontem? Eu monto o meu: meu primeiro mundo, dentro dele abri os olhos pela primeira vez, a inauguração dos meus dias, foi uma vila discreta desta discreta capital. Hoje Vila Hauer virou só Hauer e Curitiba diz que é gente grande. Anda metida, fazendo calor de 33 graus, alinhada aos principais avanços do mundo, como o da temperatura global, por exemplo. Hauer. Hauer e Schiller, meus pêndulos alemães a balançar em mim o ontem e o agora. Ontem, quase anteontem, da janela lateral do meu quarto de dormir eu ouvia a igreja. Santa Rita de Cássia e o sinal de glória: um beijo de quatro minutos e doze segundos embaixo do altar encoberto por
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toalha branca, sob corpo e sangue humano divino, marcou meu território. Afetou, alfinetou meu mapa de afetos. Hauer da primeira comunhão e do primeiro sexo, também comunhão, também corpo e um pouco de sangue, divino humano. Sangue rubro, torcedor rubronegro. Errei o bonde e, em vez de levado aos caminhos da Baixada, saio do Hauer casado para os trilhos do Alto da Glória, de onde, ainda distante, o trem já se fazia ouvir. Rima sem solução: lá, na Mauá: crio meu primeiro mundo de papel, uma pequena biografia dos desejos de outro, eu. Faço da guarita do porteiro fortaleza e, no deserto dos tártaros, esperamos que algo surja, binóculos atentos ao futuro. Quando o desejo vai ao mundo, na primeira Arte&Letra, do Lucca Café, já tinha dado adeus às verdes coxas brancas do Alto da Glória e sua inseparável necessidade de Perpétuo Socorro. Do sétimo andar do poeta de Paranaguá – ele acostumado a interromper o trajeto e esperar o trem passar, réptil barulhento gemendo e se arrastando a duas quadras de casa – eu já acompanhava seu encontro diário com Schiller, encontro e despedida cada vez que eu olhava a janela. A rua Schiller me devolve uns pedaços de esperança, que não foi a última a morrer. A cidade é bonita lá. Se eu merecer paraíso depois que meu mundo lá fora um dia for embora, serei modesto: um Mojica da luz dos pinhais: pedirei apenas a rua Schiller. Foi
lá que houve um beijo? Perto da pista de skate? Emílio, o Meister, Aprendiz. Sou um Tridapalli, criador de um Desidério e de um Meister. Sou filho de mãe Eurich. Eu e meu Desidério cercados por três alemães, um 3 a 2 pró-deutsch nunca visto entre as duas seleções. Para não virar goleada, não falo do Pe. Germano Meyer, que Fernando Amaro encontra no quarteirão seguinte.
* – Você sabe o que seu nome significa em italiano? Desidério não estava mais lá. Nem os livros. *
Dessa vez não é o olho que apronta uma travessura. É tua boca, Menino. Mas dizei uma palavra e serei condenado. A voz sai fraca, contudo suficiente para ser ouvida pelos mais próximos. Eles se encarregam de passar a mensagem aos mais distantes: o menino pediu um beijo.
* Nem forjou desejo de maestria, nem me tornou mestre do desejo. Curitiba criou em mim duas asas. Mas as asas, ah, mazasasas. Ladeiam corpo de âncora. É voo de galinha, tiros curtos que me cansam, elástico a me puxar de volta para a cidade sempre
quando dela me afasto. Âncora dá lastro e afunda, estabiliza e imobiliza. Enterrado no território, afogado nele, vasculho jeitos de ganhar mundos. Minha cabeça de leitor, salpicada entre agora e ontem, Schiller e Hauer, abstraiu Curitiba. E conheceu a Rússia, a França. Portugal, Espanha. Passeou pela América e Japão, Moçambique e Angola. E sempre voltou de lá – curioso: tantos países, tantas pessoas, e os mapas mostravam sempre o mesmo lugar: tudo na Cândido Lopes 133. O planeta mora em Curitiba. A inutilidade de todos os atlas. Mapamúndi, Google maps, Google Earth, globos iluminados, parem de palmilhar territórios. Basta espetar o alfinete na Cândido Lopes 133, morada do mundo. Aí era sair do mundo e cair em Curitiba. Outra vez. Tropeçar nos mendigos, fugir dos crackentos e pensar neles como fatalidade, da mesma natureza que os fios elétricos amontoados entre os postes, os buracos com uma ou duas calçadas no meio, o grito silencioso entalhado a canivete nos vidros dos ônibus, a roda da SUV entalada a subir sem focinheira no meio-fio e morder o carrinho do bebê, os condomínios virando as costas para a cidade, a arquitetura salve-se-quem-puder-quem-fizera-coisa-mais-feia-ganha. E o mundo agora um dia foi lá fora.
O menino dorme. Do Italo Calvino, com suas cidades invisíveis: A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas. Essa é minha Curitiba, sempre imaginária, tanto quanto pode ser uma voltinha no “metrô curitibano, que, dessa vez, vai sair. Agora vai, ah, vai” (fala de uma autoridade qualquer, em qualquer ano de 1693 para cá). Esse é meu passeio livre, meu passeio íntimo, meu passeio público. A cidade é tão linda na hora do blecaute. Um nocaute técnico, Épico onde não existem heróis: só eu, só tu, só nós.
Cezar Tridapalli é formado em Letras pela UFPR, especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR) e mestre em Estudos Literários (UFPR). É professor da Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Positivo. Escritor, é autor dos romances Pequena biografia de desejos (7Letras) e O beijo de Schiller (Arte&Letra), vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura.
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Que espet áculo de céu!
e em Natureza viva amos rm Fo . movimento o. viv r se só um Harmonia do universo.
Mas estou ouvin do um som em desarm onia com o cosmo.
É um carro?
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Uma moto com escapamento aberto?
Vem vindo gente.
rcunda, Olhem a co postura, arrumem a sse natural o p façam uma afia. pra fotogr
Marcelo Weber
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Linha Verde – Av. José Richa, nº 10546 Prado Velho - CEP 81690 100 Fone 41 3218 8000 - Curitiba - PR www.colegiomedianeira.g12.br
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