Uma cidade transformada em sons e palavras

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Uma cidade transformada em sons e palavras

Andressa Monteiro Lucas Caprio


A sensação de estarmos apressados e sem tempo para nada pode nos deixar tensos e apreensivos ao andarmos pela cidade. Por consequência, acabamos estabelecendo uma relação e um ritmo com os espaços urbanos que nos perturbam e nos deixam desatentos. Desobedecemos ao ritmo interno de nossos corpos para nos adaptarmos ao ritmo imposto por um estilo de vida urbano desordenado, sem conseguirmos contemplar e participar de toda a beleza, histórias e momentos do nosso cotidiano citadino. As histórias dos indivíduos que habitam um determinado espaço podem dizer muito sobre o que uma cidade tem a nos oferecer. Logo, como podemos nos sentir bem e conectados com as pessoas ao nosso redor? Afinal, quem saberá que eu estive aqui? Qual é a minha história com esse lugar? Baseado no livro “Tentativa de esgotamento de um local parisiense”, de Georges Perec, nos estudos urbanos de Jane Jacobs e na teoria da “atitude blasé”, de Georg Simmel, o coletivo Micrópolis, em parceria com os alunos do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), criaram o “Mapa do Cotidiano”, que mapeou os entornos do Instituto, no bairro Vila Buarque, em São Paulo, levantando diferentes reflexões sobre questões de visibilidade e invisibilidade dentro dos espaços urbanos. Olhando para cidade por um ponto de vista sociológico, para entendermos quais são os diferentes tipos de relações que os cidadãos cultivam pelos lugares em que passam e habitam, a sensação de estar seguro também pode ter relação com o sentimento de pertencimento ao lugar onde se está. Se me conecto com pessoas perto de mim, se conheço suas histórias de vida e se paro para contemplar momentos e instantes que tenho com essas pessoas nos lugares, também posso sentir a sensação de estar seguro, calmo e relaxado andando pelas ruas da cidade.


Ao invés de selecionarmos quais acontecimentos urbanos merecem a nossa atenção, saímos do piloto automático e começamos a agir e a reagir modificando e criando novos significados aos espaços, além de entendermos como o mundo externo repercute no mundo interno do sujeito e da relação de identidade, memória e percepção que ele tem com os seus espaços de pertencimento. Parando para escutar histórias, percebendo todos os elementos, objetos e pessoas que constroem um lugar – além de fazer parte de um momento de conexão com a cidade, que pode durar segundos, horas ou dias, esse mapeamento deseja estimular, por meio do texto e do som, que o leitor aguce todos os sentidos que não apenas a própria visão – responsáveis também por guiar nossos corpos e ditar nossas experiências sensoriais dentro dos espaços urbanos. A percepção humana é extraordinária, sábia, impressiona e é variável. Os nossos corpos fazem parte da vida de uma cidade, que pulsa ativa e revigorante e que é constantemente costurada por diferentes fragmentos, momentos e experiências de quem vive nela. A proposta desse mapa é a de exercitar que o leitor se deixe levar pela intuição e pelas emoções ao caminhar pela cidade. Será que o cotidiano é tão sem graça e monótono quando começamos a prestar atenção a ele? Como as histórias encontradas nos mapas podem interagir entre si, integrando-se e envolvendo-se com as histórias de quem as lê? Mais do que responder perguntas sobre a construção e vivência humana dentro dos espaços construídos das cidades, os mapas, em forma de textos e de áudios aqui criados, desejam refletir e criar novos tipos de possibilidade de apreensão das informações espaciais presentes nos espaços urbanos que não sejam apenas visuais, além de possibilitar que os leitores desenvolvam uma visão mais lúdica e poética da cidade onde vivem.


Clique nas palavras em laranja para ouvir os รกudios.


Local: Sรฃo Paulo Data: 30 de janeiro de 2019 Bairro: Vila Buarque - Padaria Horรกrio: 15h40 Tempo: sol forte, tempo abafado, 35ยบC


1 Estou sentada ao lado de fora de uma padaria. Peço uma cerveja Budweiser. Vejo uma loja de fechaduras. Ao lado direito da loja, há um portão fechado, grafitado. Dois homens tentam abrir o portão. Agora, descobri. É uma loja de construção. Uma mulher vestida toda de preto atravessando a rua também está levando um carrinho. Os dois homens da loja de construção saltam à minha vista, novamente. De repente, percebo que um tenta jogar uma chave na mão do outro. A chave cai no chão da rua. Um dos homens atravessa a rua, passa ao meu lado e fala algo que não consigo escutar. Acho que ele estava perguntando alguma coisa ao outro homem. Pausa Volto o meu olhar para a loja do portão grafitado onde estavam os dois homens. Um deles está indo embora. Ele fechou o portão. Do lado direito da loja de construção, há um hotel chamado “Hotel Jardim”. Na fachada do hotel dois homens estão sentados no chão conversando. Um deles entra no hotel. O outro começa a olhar o movimento dos carros. Os dois homens da loja de construção do portão grafitado voltam à loja e abrem o portão novamente. Agora, ele fica meio aberto e meio fechado. É possível ver muitos sacos de cimento dentro da loja. O homem sai da loja e fecha o portão novamente. Uma outra senhora passa por mim. Ela parece estar com a mente cheia e se veste de forma alegre e colorida.


2 Estou em uma esquina. Há uma faixa de pedestres à minha frente. O sinal fica vermelho. Um senhor de boné vermelho passa mancando. Enquanto o farol não abre, uma senhora, que aparenta ter a mesma idade do senhor de boné vermelho, está na rua à minha direita, esperando o sinal abrir... Pisquei os olhos e fui tomar um gole de cerveja. Quando olhei novamente, a senhora havia sumido. Uma mulher com um cachorro passa por mim. Há um petshop na calçada da padaria. Passa um moço de camiseta regata carregando um cachorrinho, também na direção do petshop. Passa um moço de chinelo e bermuda brancos, camiseta listrada e cabelo cacheado passa ouvindo música no fone de ouvido. Um senhor com bicicleta e capacete vermelhos atravessa a rua. Uma mulher passa com passo acelerado e olha com o canto dos olhos. O que ela pensa de nós? Passa um homem com lata de cerveja e capacete nas mãos. Um segurança particular atravessa a rua levando envelope pardo dobrado. Reparei numa pessoa que passa carregando sacola plástica verde, já é a segunda com uma sacola dessas que passa por aqui. Será que existe um mercado virando a esquina?


3 Dentro da padaria onde estou, uma moça parece lavar a louça, conversar e escutar a TV ligada. Duas meninas passam por mim logo em seguida. Pego o copo e bebo mais um gole de cerveja. Um casal de senhores passa por mim. Ambos estão muito bem arrumados. Foram até o fim da rua e agora estão esperando o sinal abrir. O sinal fica verde. Atrás deles, uma mãe e uma filha também atravessam a rua. Um táxi passa. Um carro preto passa. Um carro branco passa. Todos eles são de marcas caras. Um homem de meia idade para na faixa de pedestres e espera o sinal abrir. O sinal abre e ele atravessa a rua. Uma motocicleta passa na minha frente. Olho para a faixa de pedestres que está à minha frente e a que está ao meu lado esquerdo. Ambos os sinais estão vermelhos. Mais duas senhoras passam por mim. Olho novamente para a loja de fechaduras e ferragens. O prédio é baixo, tem cores pasteis azul, amarelo e bege. É o único prédio da rua que se destaca por suas cores. Os outros edifícios e casas têm cores cinzas, escuras ou cor de asfalto. Dentro da loja, há fechaduras de todos os tipos e cores.


4 Termino de tomar minha cerveja. Acabo de ouvir um homem ao meu lado passando e dizendo que iria fazer arroz amanhã. Isso me dá uma súbita fome. Um outro senhor passa por mim. Corro para dentro da padaria. Começou uma chuva forte e uma moto acelera pela rua.


5 Uma mulher de meia idade com uma filha e um filho viraram Ă esquina. A filha saiu andando rĂĄpido e todos aceleravam o passo. Ao mesmo tempo, vejo um carro cantando o pneu.


Local: Sรฃo Paulo Data: 8 de fevereiro de 2019 Bairro: Vila Buarque - Lanchonete Horรกrio: 16h Tempo: tempo agradรกvel, calor moderado, 30ยบC


1 Há um homem de boné marrom usando um moletom cinza do filme “De Volta para o Futuro”. Ele está fumando e falando com uma mulher loira. Agora, a mulher está falando ao celular. Ela também segura uma sacola de lixo que está em cima da mesinha, que é alta e preta. Dentro da lanchonete, o funcionário lava a louça. Estão sentados na lanchonete um grupo de três amigas, outro grupo de três amigos. Um casal e um homem sozinho, vestindo um terno. Duas amigas e um grupo de jovens estão reunidos em outras mesas. Há mais alguém ali atrás do pilar. A cozinha fica logo atrás de um painel de vidro, rodeado por cartazes colados, splashes de tinta e graffitis.


2 Três mulheres acabaram de sair da lanchonete e atravessaram a rua. A porta da lanchonete se abriu novamente e dois homens entraram. Ao meu lado direito, dentro da lanchonete, onde as três mulheres estavam sentadas, uma moça limpa a mesa e arruma os temperos e os guardanapos. Lå fora, uma buzina de moto toca rapidamente.


3 Lá fora, na rua, um carrinho cheio de bananas é deixado em cima da faixa de pedestres. Em uma outra calçada, há uma padaria e um dos funcionários está sentado em uma mesa escrevendo. Ao lado dele, há um senhor de blusa vermelha e boné bege. Os dois estão conversando. O senhor começa a cutucar o nariz, se levanta, arruma o cabelo por debaixo do boné e entra na padaria. O funcionário continua sentado escrevendo.


4 Duas mulheres e um homem saem da lanchonete. O farol para eles estรก fechado. Ah, agora acabou de abrir. Alguns carros passaram. Um passou em cima de uma lombada. Agora, a rua estรก vazia novamente.


5 O senhor de bonĂŠ bege e camisa vermelha continua a conversar. Agora, com uma mulher que estĂĄ na padaria. Ele sai de novo do estabelecimento. Ele era o dono do carrinho de bananas. Ele pegou o seu carrinho e foi embora.


6 Há três motos paradas na frente da rua. Duas pretas e uma vermelha. Atrás das motos, há um homem, de camisa longa azul. Ele ascende um cigarro e uma pomba branca e marrom voa perto dele.


7 Um casal acaba de entrar na lanchonete. A moça está apressada e quer algo para comer rápido. Acaba de aparecer um grupo de skatistas passando na rua. O casal agradece pela atenção da funcionária e deixa a lanchonete. Pelo que eu entendi, eles são vegetarianos.


8 Um homem na rua aparece com uma planta alta, que está dentro de um carrinho de mercado. Ele anda por meio dos carros e vai até o final da rua. Paralelamente, um homem vendendo pirulitos compridos e grandes anda na mesma direção.


9 Um grupo de estudantes sai de uma escola. Param em frente a uma padaria e começam a conversar. Dentro da lanchonete, um homem está bebendo uma Coca-Cola, comendo um hambúrguer e falando no Whatsapp. Ele gesticula bastante e está vestido com uma calça jeans e uma camisa xadrez azul marinho. A capa de seu celular também é azul.


10 Uma funcionária da lanchonete está atrás de mim trazendo um cheesecake. Ela para em uma mesa e entrega a sobremesa a um casal e bate o prato na mesa. Eles vão dividir o cheesecake. São jovens, ele de bermuda, ela de vestido, jaqueta jeans e tênis.


11 Uma mãe passeia com o filho na rua. A mãe está vestida de azul e o menino de laranja. Ambos têm o mesmo tamanho e cor de cabelo.


12 Uma funcionária da lanchonete pergunta porque o bar da frente está cheio. Nesse momento, uma música toca ao fundo. A outra funcionária diz que as aulas voltaram. A primeira funcionária pergunta se há uma escola perto do bar. A outra funcionária responde: “Sim. É uma escola de arquitetos”. Em frente ao balcão, próximas ao caixa, uma garçonete faz dancinha com as mãos e outra mexe no cabelo no ritmo da música. Uma terceira garçonete, com braço tatuado, canta em voz baixa e, quando a música se encerra, vai ao encontro de um cliente. Dentro da lanchonete, uma mulher de uns 40 anos sentou sozinha onde os três amigos estavam. All Star amarelo, vestido preto, cabelo preto com luzes e brincos de pedra preta. Ela canta em voz baixa e dança com os ombros. Ainda não pediu nada aos garçons.


13 Uma mulher tenta jogar um lixo na lixeira e erra. O lixo cai no chão. Ela se agacha, pega o lixo novamente e joga no cesto. Logo depois, ela atravessa a rua e vai embora. Chegou a amiga daquela moça que sentou sozinha. Tem pele bronzeada, veste óculos dourados de lentes grandes, blusinha branca, jeans até a metade da canela, sandálias e mochila. Elas fazem um pedido e começam a pôr o papo em dia.


14 Uma funcionária da lanchonete fala sobre massas de pães com outros funcionários da lanchonete. Um garçom tatuado vem em nossa direção, olha pelo canto do olho e volta, reparei que já é a segunda vez que ele faz isso. Será uma novidade para ele ou será que está acostumado com clientes escrevendo e desenhando na lanchonete?


Local: Sรฃo Paulo Data: 8 de fevereiro de 2019 Bairro: Vila Buarque - Loja de xerox Horรกrio: 17h Tempo: tempo agradรกvel, calor moderado, 30ยบC


1 Há uma rua com faixa de pedestres à minha frente. Na calçada, há uma loja com um grafite falando sobre barras de apoio para chuveiros. Neste instante, uma moça passa pela rua carregando duas sacolas no ombro. Na outra quadra, há um lixeiro recolhendo o lixo da rua. Ele veste luvas de plástico para pegar o lixo. Um moço para em minha frente e ascende um cigarro. À minha direita, há uma loja de fechaduras com uma moto que passa perto da loja.


2 Duas moças atravessam a rua. Uma outra moça atravessa também, balançando as suas chaves e carregando um saco plástico de padaria. Pelo cheiro, parecia que ela tinha comprado mortadela. Passa um homem com roupa social carregando quadros dentro de uma sacola plástica. Será que eram pinturas ou telas em branco?


3 Um skatista acabou de passar correndo pela rua com o seu skate. Ele estava de boné, sem camiseta e com uma mochila nas costas. O skatista passou no sinal vermelho, rápido. Um ônibus acaba de passar por ele. Viram a esquina dois moços: um de calça e camiseta preta, outro de bermuda e regata colorida. Ontem estava frio em São Paulo, hoje fez sol e está bem quente aqui.


4 Uma moça de cabelo lilás, vestida de preto e toda tatuada passou na esquina. Ela esperou para atravessar a rua, colocando a mão na cintura, e atravessou. Um caminhão buzinou, logo em seguida.


5 Um menino pega delicadamente nos braços de uma menina. Ela parece estar triste ou preocupada e não devolve o carinho. Logo, uma outra menina chega e os três começam a conversar. Depois de um tempo, outro menino chega e os quatro começam a andar juntos e vão embora.


6 Uma pequena pluma acabou de voar em volta de um carro branco de uma companhia de telefone. Há uma escada em cima do carro que é azul e prateada. No meio do carro, há um adesivo escrito: “Atenção, veículo rastreado via satélite. O motorista não tem como evitar a ação da central e o bloqueio do veículo”. Uma moto passa na rua e toca uma buzina rápida.



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