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CONSIDERAÇÃO DA CONFIABILIDADE HUMANA NAS MANOBRAS DE NAVEGAÇÃO EM ÁGUAS RESTRITAS

Danilo Taverna Martins Pereira de Abreu Marcos Coelho Maturana Marcelo Ramos Martins

Afiliados ao Laboratório de Análise, Avaliação e Gerenciamento de Risco (LabRisco) da USP

Quanto custa um acidente de navio em águas restritas? O encalhe do navio Ever Given no Canal de Suez em 2021 mostrou ao mundo que as consequências são significativas e não se limitam à embarcação. Os prejuízos afetam diretamente todos os usuários de um canal de acesso e, indiretamente, se estendem a toda a sociedade, que depende do transporte marítimo para o bom funcionamento do comércio internacional e de cadeias de suprimentos. Não obstante, a depender das características do acidente, podem ocorrer fatalidades e danos ambientais de grande impacto.

Num cenário com acidentes capazes de superar a cifra de milhões de dólares, é essencial compreender as potenciais causas de eventos perigosos e atuar de modo preventivo. No contexto da navegação em águas restritas, a praticagem atua com essa finalidade, de modo a prover níveis elevados de segurança ao tráfego aquaviário. O ambiente portuário e fluvial constitui, entretanto, um sistema sociotécnico complexo, ou seja, envolve interações entre seres humanos e estruturas físicas (por exemplo, o canal de navegação e os navios) que não podem ser compreendidas em sua totalidade de maneira simples. Nesse ambiente incerto, a despeito da excelência dos navegantes e outros stakeholders, acidentes podem ocorrer pela combinação de fatores outrora vistos como pouco relevantes.

Profissionais, pesquisadores e representantes de órgãos reguladores das indústrias de alto risco – como nuclear, de aviação, marítima, e de processos – se dedicam há anos a entender a dinâmica de sistemas sociotécnicos complexos a fim de mitigar seus riscos. Há cerca de duas décadas era comum atribuir a maior parcela de acidentes ao “erro humano”. Apesar de o conceito ainda ser usado tecnicamente, houve relevante evolução em relação ao seu significado. Atualmente compreende-se que as ações humanas passíveis de levar a um acidente não podem ser desvinculadas do contexto no qual os profissionais se encontram e que os fatores influenciadores devem ser levados em consideração em análises mais aprofundadas.

A análise de confiabilidade humana (ACH) é o campo dedicado tanto a entender como os seres humanos podem contribuir para a ocorrência de acidentes quanto a investigar os principais fatores influenciadores, de modo a prover discernimento para a tomada de decisão baseada em risco. Em parceria com o Conselho Nacional de Praticagem, o LabRisco desenvolveu um projeto de pesquisa para elaborar a ACH em operações típicas de navegação em água restrita, com o objetivo de compreender fatores que podem influenciar o desempenho de práticos e navegantes, bem como avaliar a contribuição do emprego do prático na redução do risco.

A metodologia de trabalho se baseou na modelagem das ações humanas e fatores influenciadores a partir do uso de redes bayesianas. Esse tipo de modelo teve origem no campo da inteligência artificial e permite a consideração de relações de dependência entre variáveis aleatórias. Na prática, isso permite identificar como diferentes fatores que influenciam uma operação atuam em conjunto de modo a contribuir para desvios e erros capazes de resultar em acidentes.

No estudo, quatro tipos de fatores foram levados em consideração, de acordo com o modelo genérico de dependência apresentado na Figura 1. Esse modelo pressupõe que as ações humanas são influenciadas pelas habilidades do operador. Por sua vez, as habilidades são influenciadas por fatores internos ao operador e fatores ambientais. Esses fatores internos, por sua vez, são influenciados por fatores gerenciais e organizacionais (referidos como MOFs da sigla em inglês management & organizational factors).

A metodologia de trabalho se dividiu em quatro etapas:

1) Familiarização : em que os pesquisadores presenciaram manobras reais e simulações, e entrevistaram os profissionais da área (práticos, comandantes de navios, oficiais de náutica, e comandantes de rebocadores).

2) Análise qualitativa: com base nas observações da etapa de familiarização, os pesquisadores desenvolveram uma rede bayesiana cujos nós representam ações humanas relevantes e os fatores que influenciam o desempenho, e os arcos (setas) indicam as relações de dependência – vide a Figura 2 para ilustração didática. Essa etapa envolveu ainda a modelagem de sequências de ações para três cenários acidentais: abalroamento e encalhe durante a navegação no canal e colisão durante a aproximação a um terminal.

3) Análise quantitativa: a partir de bases de dados da literatura, foram estimadas as probabilidades de erro em cada ação humana e foi realizada a calibração da rede bayesiana, de modo a quantificar o peso das influências mapeadas.

4) Incorporação: nesta última etapa foram gerados os resultados da rede bayesiana, que incluem a estimativa da probabilidade de erro humano em cenários acidentais típicos considerando o emprego de nenhum, um ou dois práticos a bordo; também foi realizada uma análise de sensibilidade a fim de entender quais fatores mais influenciam a probabilidade de erro.

Os detalhes técnicos da aplicação da metodologia foram publicados no periódico científico Reliability Engineering and System Safety 1 Em suma, para cada cenário de acidente, foram modeladas as principais atividades desempenhadas pelos profissionais envolvidos na navegação. A Tabela 1 apresenta as categorias de atividades consideradas em cada cenário e o profissional responsável. Para fins de análise, considerou-se o comandante de navio habilitado para atuar num cenário de isenção de praticagem.

Antes da análise quantitativa, já é possível notar algumas diferenças entre as diversas configurações de equipes. Em relação ao cenário com um prático a bordo, a presença de um segundo prático a bordo propicia uma redundância para a etapa de supervisão da manobra. Já o cenário com isenção de praticagem perde a redundância nesse aspecto. O efeito desse impacto na probabilidade de erro humano foi estimado a partir da quantificação do modelo. Em termos de fatores que modificam o desempenho, a Tabela 2 indica os elementos considerados em cada categoria. Os MOFs foram considerados para as seguintes organizações, sempre que aplicáveis: praticagem local, armador, e operadora de rebocadores.

O primeiro conjunto de resultados do estudo consiste na comparação entre as probabilidades de acidente nos diferentes cenários considerados. A Tabela 3 apresenta os valores obtidos. Essas probabilidades se referem à possibilidade de ocorrência de acidente dada a existência de cenário acidental (por exemplo, navio cruzando perigosamente com outra embarcação enquanto navega no canal).

Os valores não devem, portanto, ser interpretados de maneira absoluta ou isoladamente. Admitindo o caso com um prático a bordo como referência, tem-se que o emprego do segundo prático pode reduzir a probabilidade de ocorrência de um acidente em até cerca de 3,5 vezes. Já o cenário de isenção de praticagem, quando comparado com o cenário de um prático a bordo, aumenta em até cerca de sete vezes a probabilidade de acidente.

Outro resultado interessante do estudo envolveu a avaliação dos fatores que mais influenciam o desempenho durante as manobras. Trata-se de uma análise complexa de sensibilidade, que pode ser consultada em detalhes no artigo científico publicado, uma vez que foram levados em consideração todos os fatores em todas as combinações de cenários. Em linhas gerais, entretanto, destacaramse os seguintes fatores: a) Habilidade de familiaridade com a situação: muitas das tarefas envolvidas na navegação em águas restritas têm seu desempenho influenciado pela experiência local. A habilidade de familiaridade com a situação reflete esse conhecimento, e o seu estado influencia significativamente a probabilidade de erro nas ações mais importantes. b) Habilidade de trabalho em equipe: independentemente da configuração de equipe de passadiço, as atividades de navegação em águas restritas demandam a contínua interação entre os profissionais envolvidos. Problemas de comunicação (e.g., prático vs. timoneiro, prático vs. comandantes de rebocador) ou supervisão (e.g., comandante do navio vs. prático, primeiro vs. segundo prático) impactam em grande medida o desempenho da manobra. c) Fator interno de treinamento e experiência: como consequência da importância da familiaridade com a situação, o treinamento e a experiência constituem um fator que se mostrou importante na análise, visto que incorpora o conhecimento obtido pela repetição de tarefas cotidianas, bem como o efeito de atividades de treinamento que preparam o navegante para situações rotineiras ou inéditas. d) MOF de cultura de segurança: o conceito de cultura de segurança se refere ao modo como as organizações priorizam e implementam ações em prol da prevenção de eventos que podem ser danosos às pessoas, ao meio ambiente e ao patrimônio. Independentemente da organização considerada, o desempenho em ações de prevenção de acidentes é influenciado pela maneira como a organização enxerga esse fator.

Em suma, o projeto de pesquisa desenvolvido avançou em termos de auxiliar na compreensão da forma como o fator humano pode influenciar o risco das manobras de navios em águas restritas. Trata-se de uma primeira abordagem a fim de compreender o impacto das configurações de equipe de navegação (com um e dois práticos a bordo ou isenção de praticagem). Ainda há, no entanto, diversas questões a esclarecer por meio de trabalhos futuros como as maneiras pelas quais o navio sai de um estado seguro e se coloca numa situação de risco ou a aplicação do modelo desenvolvido em estudos de caso específicos de uma região portuária ou fluvial.

Fatores internos Habilidades

Fatores gerenciais e organizacionais

Fatores ambientais

Ações humanas

TABELA 1: VISÃO MACRO DAS ATIVIDADES CONSIDERADAS

Configura O De Equipe

Cenário acidental

Abalroamento durante a navegação no canal

Um prático a bordo

• Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão.

• Timoneiro: execução de comandos

Dois práticos a bordo

• Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Segundo prático: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Timoneiro: execução de comandos

Isenção de praticagem

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Timoneiro: execução de comandos

Encalhe durante a navegação no canal

Colisão durante a aproximação a um terminal

• Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Timoneiro: execução de comandos

• Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Timoneiro: execução de comandos

• Comandantes de rebocador: execução de comandos

• Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Segundo prático: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Timoneiro: execução de comandos

•Prático: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Segundo prático: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, supervisão

• Timoneiro: execução de comandos

• Comandantes de rebocador: execução de comandos

• Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

• Timoneiro: execução de comandos

•Comandante do navio: monitoramento, interpretação da situação, solicitação da execução de comandos

•Timoneiro: execução de comandos

•Comandantes de rebocador: execução de comandos

MOFs

• Gerenciamento de atividades

• Gerenciamento de pessoal

• Cultura de segurança

• Satisfação com o trabalho

• Disponibilidade de informação

• Adequação do local de trabalho

• Pressão comercial

• Treinamento

• Padronização do trabalho

Fatores ambientais

• Condições visuais

• Condições climáticas

• Qualidade do ambiente de trabalho

• Fatores que prejudicam a navegação

Fatores internos

• Estado físico

• Estado mental

• Situação percebida

• Atitude

• Treinamento e experiência

• Identificação com a equipe

Habilidades

• Avaliação da situação

• Consciência da situação

• Familiaridade

• Habilidades físicas

• Trabalho em equipe

• Resposta

• Visão Cenário

• Pressão de tempo

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