e b a s ĂŞ Voc de on de eu venh
o
Tabajara Ruas
VocĂŞ sabe
de ond
e eu ve
Tabajara Ruas
nho
1. Ataque no mar do Nordeste Costa da Bahia, 15 de agosto de 1942
S
eu Antenor, o chef, consultou o relógio de pulso, 19 em ponto, lançou um olhar crítico para a pequena vela de cera azul fincada no centro do bolo sobre a mesa e orde-
Ta ba j ar a Ru a s
nou: “Leva, Pedrinho.” O rapaz saiu como um raio por entre o pessoal da cozinha, desviou de dois garçons que vinham entrando e subiu em três saltos a escada que levava para o salão. Ainda ouviu a voz de seu Antenor não vai derrubar o bolo guri, quando os acordes da orquestra chegaram até ele. Tocavam Carinhoso e junto aos acordes vinha o burburinho do salão, aquele ruído de vozes de gente que tinha jantado e bebido com prazer e que agora sussurravam uns aos outros coisas mornas enquanto deslizavam pela pista de dança e a luz das lâmpadas amarelas caía sobre eles. Não podia ter outra temperatura o que os homens sussurravam com lábios úmidos rente às orelhas perfumadas das mulheres, pensa Pedrinho equilibrando o bolo e olhando os
5
casais dançando suavemente, parecendo flutuar na temperatura sensual, os corpos se roçando com delicadeza e trocando calor, o calor que dava esse desejo lânguido de sussurrar coisas mornas e que acompanhava o balanço do Baependy ao som de Carinhoso.
6
Voce sabe de onde eu venho
Pedrinho passou perto da orquestra, percebeu o olhar guloso e cômico de seu Oscarito, o flautista, que lhe piscou o olho e aproximou-se da mesa do capitão Silva. “Fósforo, fósforo” sussurrou o capitão em voz áspera e vários fósforos e isqueiros foram ligados e logo uma pequena chama crepitava na ponta da vela azul. Algumas palmas se ouviram, mas o capitão Silva levantou um braço, olhando para a orquestra. Com um gesto o maestro encerrou bruscamente o Carinhoso, os casais pararam de dançar e olharam na direção da mesa do capitão, que batia com uma colherinha na sua taça de champanhe. “Vamos fazer um brinde ao nosso imediato, senhor Antônio Diogo de Queiroz, que hoje cumpre 32 anos, 15 dos quais vividos como legítimo homem do mar.” Palmas e vivas, as taças foram erguidas e os camaradas do imediato Queiroz disseram piadas e bateram nas suas costas e começaram a cantar Parabéns a você no exato momento em que Harro Schacht, comandante do submarino alemão U-507, observando pelo periscópio o perfil iluminado do Baependy ordenou, com leve tremor de excitação na voz, “Preparem os torpedos.” O Baependy era um navio do Lloyd Brasileiro que fazia a linha costeira regular da empresa, e tinha saído de Salvador às 7 da manhã, com destino a Recife. Estava prestes a atracar no seu primeiro porto de parada, Maceió. O navio tinha 4.801 toneladas de deslocamento, camarotes confortáveis para passageiros e certa imponência um tanto pesada, fruto de sua origem: fora fabricado na Alemanha. Era antigo troféu da Primeira Guerra Mundial, herdado pelo Lloyd numa nebulosa questão diplomática decidida a favor do Brasil. Enquanto os amigos do imediato Queiroz entoavam o Parabéns a você, o Baependy navegava a
Pedrinho parou para olhar e seu coração deu um pulo: Maria Rita, vestido cor de rosa e grande orquídea no cabelo estava diante do microfone. A orquestra começou a tocar Besame mucho e o coração de Pedrinho se contorceu de algo que era bom e angustiante, quando sentiu um toque no ombro, “Vai fazer tua obrigação, guri.” Era o cabo Dico, seu irmão mais velho que lhe arrumara este emprego e que arrumara empregos para mais sete membros da família em diversos navios do Loyd. Quando Pedrinho descia as escadas de volta à cozinha o comandante Harro Schacht, debruçado sobre o periscópio, ordenou “Fogo.” O experiente korvetkapitän sentiu no corpo o leve tremor do submarino quando os dois torpedos foram acionados. No fim da escada, no corredor que ligava à cozinha, Pedrinho viu pela escotilha a lua cheia surgindo no céu e associou-a à voz de Maria Rita, que começara a enfeitiçar o ar com as palavras do Besame mucho quando percebeu a coisa brilhante que avançava em direção ao Baependy, alguns centímetros abaixo da superfície do mar. “ Golfinhos”, pensou, mas sabia que esse pensamento era uma grande besteira, a coisa brilhante que avançava para eles não eram golfinhos nem nada parecido. “Dico” gritou com desespero, “Dico!” Foi arrebatado pela explosão e ensurdecido pelo estrondo pavoroso. Sentiu a roupa arrancada do corpo pela lufada queimante que corroeu sua pele e logo mergulhava na água morna do oceano e achou que estava bem, tudo ia ficar bem, afinal era o fim, pensou em Dico e em sua mãe, sentiu revolta e dor e pensou
Ta ba j ar a Ru a s
20 milhas marítimas do farol do rio Real e transportava 233 passageiros. Desses, a maior parte eram militares do Exército. Era o 7º. Grupo de Artilharia, comandando pelo major Landerico de Albuquerque Lima, que conduzia seus comandados de Dorso a Recife, para exercícios de tiro. Os tripulantes do Baependy eram 73 homens, fora os 12 da orquestra, que nesse momento fazia menção de retomar a atividade.
7
8
Voce sabe de onde eu venho
outra vez que era o fim, melhor se deixar levar para o fundo sem pensar em nada e de repente estava outra vez na superfície respirando com ânsia e desejando ferozmente viver e se agarrou a um pedaço de tábua que flutuava na sua frente, a tábua bateu em sua testa, deixando-o dolorido e humilhado, com vontade de gritar e de chorar. Por um instante se aquietou, achando estranha a quietude do mar, olhando os destroços flutuantes, ouvindo sons e vozes que não decifrava. Então o mar começou a se agitar bem perto, um ruído veio subindo do fundo, o pavor se apoderou dele quando a menos de dois metros começou a surgir a ponta de aço do submarino, quando a enorme máquina emergiu respingando água, brilhante e cinza, um monstro marinho insensível e poderoso. Numa súbita alucinação lembrou as baleias que via no inverno de sua infância em Imbituba, SC. Mas aquilo não era uma baleia. Era um submarino e estava com o dorso todo acima da água. O garoto de 16 anos pode ler as iniciais U-507 e, pintada no casco, viu a enorme e assustadora suástica. Uma tampa circular foi levantada e surgiram três marinheiros, armados de metralhadoras. Fizeram gestos para ele se aproximar. Um deles jogou uma bóia salva-vidas presa a um cabo. Pedrinho vacilou, mas os homens gritavam sem parar e apontaram as metralhadoras. Pedrinho colocou o salva-vidas e se deixou rebocar. Ao ser içado, sentindo sob os pés o casco duro do monstro, percebeu que estava completamente nu. Foi empurrado escada a baixo.
2. Esqueçam essa guerra! Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1942, Gabinete do Ministro da Guerra
“
baleeiras ao mar, foi tudo muito rápido, dois torpedos em cheio no casco”, disse o major Brayner, com uma folha de papel na mão. “No Baependy estima-se 270 mortos. Uma hora depois, foi a vez do Araraquara, também navio de passageiros, senhor ministro, 131 mortos. E depois, o Aníbal Benévolo, 154 pessoas a bordo, 4 sobreviventes. Três navios em oito horas, senhor ministro. E nos dois dias que se seguiram, o Itagiba, o Arará e o Jaciba. Todos com a bandeira brasileira pintada nos dois lados do casco. Pode haver sobreviventes agarrados a destroços, a Marinha está buscando, mas já contamos 607 mortos até o momento”. O ministro da Guerra general Dutra mexeu sem saber o que fazer com os papéis sobre a mesa. “Capitão Marcos, o que a Inteligência
Ta ba j ar a Ru a s
O Baependy, senhor ministro, afundou em três minutos e meio, o radio- telegrafista não teve tempo de mandar uma mensagem de socorro, não houve tempo de lançar botes e
9
10
Voce sabe de onde eu venho
tem a nos dizer?” O capitão Marcos, sentado numa poltrona a um canto da sala, sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro. “Senhor ministro, desde o princípio deste ano Hitler é dono de um território que vai do Círculo Ártico às praias do Mediterrâneo. Hoje ele é senhor da Noruega, da Dinamarca, Holanda, Bélgica, França, Luxemburgo, Iugoslávia, Grécia, Tcheco-Eslováquia, Polônia, Ucrânia e pelo menos quase metade da Rússia. O adversário da vez é os Estados Unidos. Ele sabe que na prática nós somos aliados dos Estados Unidos”. “Somos?” interrompeu o ministro. “Senhor, Adolf Hitler tem grandes planos para o continente sul-americano, não esconde isso e, na minha opinião, vai atacar com tudo”. O major Brayner, de frente para a janela, olhando o mar, se voltou e disse: “Já está atacando, capitão”. O ministro da Guerra suspirou. “Mesmo que nos ataquem, como vocês dizem, o que podemos fazer? Se nós vamos comparar nossas forças com as da Alemanha é até humilhante. Temos uma costa de 8 mil quilômetros de comprimento e vocês sabem quantos navios? Claro que sabem: dois encouraçados velhos comprados de segunda mão, dois cruzadores nas mesmas condições, um submarino, sete contratorpedeiros, dois navios hidrográficos, um navio-escola, e por aí vai. Tudo velho e obsoleto. 1.400 homens é o efetivo da nossa Marinha. É ridículo! Como vamos entrar em uma guerra? A Alemanha tem milhões de soldados bem preparados! E temos indústria para construir armamentos? Nada. Nada de nada. Essa é a realidade, senhores. Esse é o nosso país. Não temos o que fazer nessa guerra. Esqueçam essa guerra”. “Não temos como esquecer, senhor ministro”, disse o capitão Marcos esmagando o cigarro no cinzeiro com gesto um tanto pedante, marca do seu estilo, “o povo não deixa”. O ministro tornou-se pálido num repente. “O povo não deixa?” “O povo está nas ruas protestando”, disse o capitão, “os estudantes organizam passeatas, os sindicatos estão tramando ações, os políticos... O ministro interrompeu-o com um sussurro que foi crescendo: “Os políticos que se danem, os estudantes que se danem, os sindicatos que se
danem. Não temos marinha, não temos aviação, não temos sequer infantaria. Me surpreende que vocês, dois dos mais inteligentes oficiais do meu gabinete, venham com essas insanidades. Guerra! Vamos fazer guerra com o quê? Com as mãos? Jogando pedras no maior exército da História de todos os tempos?” O capitão Marcos e o major Brayner tomavam cafezinho, melancolicamente, na cantina dos oficiais. “O pior é que ele tem razão”,
Ta ba j ar a Ru a s
dizia Brayner, “entrar nessa guerra é uma insanidade”. “Então qual é a alternativa, major? Assistir ao massacre de braços cruzados, botar a culpa nos americanos ou nos comunistas ou sei lá em quem?” “Estamos numa sinuca de bico, meu amigo”, disse o major. Sorriram com amargura, o capitão Marcos consultou o relógio de pulso:”Bem, preciso ir, vou interrogar um dos sobreviventes”. “Onde?” “Aqui. Foi encontrado boiando perto da praia, bem em frente ao quartel”. “Mas como? Os ataques foram no nordeste”. É isso que eu quero por em pratos limpos. O rapaz foi recolhido por uma patrulha costeira. Ele diz que veio dentro de um submarino”. O capitão Marcos notou medo nos olhos do rapaz. Já conhecia a sombra nos olhos de quem sentava naquela cadeira, mas a expressão do rapaz denotava que ele tinha visto algo bem mais assustador do que a polícia secreta do Getúlio. “Bom dia, jovem, eu sou o capitão Marcos. Vamos conversar um pouquinho. Qual é seu nome?” “Pedro”. “Só Pedro?” “Pedro Diax”. “Você é de onde, Pedro Diax?” “De Imbituba”. “Imbituba, Santa Catarina?” “Sim, senhor”. “Então somos vizinhos. Eu sou gaúcho. De Porto Alegre”. “Sim, senhor”. “Você estava no Baependy, Pedro?” “Sim, senhor”. “Você fazia o quê no navio?” “Eu era garçom”. “Que idade você tem, Pedro?” “Vou fazer 17 na semana que vem”. “Você sabe, Pedro, que a maioria das pessoas que estavam no Baependy morreu?” “Sim senhor, eu tinha um irmão a bordo, não sei se ele está vivo ou morto”. “Vamos ver isso para você, Pedro. Mas me diga uma coisa, como foi que você se salvou?” “Eu caí na água quando houve a explosão e me agarrei num pedaço de tábua”. “E depois? Apareceu o subma-
11
12
Voce sabe de onde eu venho
rino e eles me jogaram uma bóia. Me levaram lá para dentro”. “Quanto tempo você ficou lá dentro, Pedro?” “Não sei com certeza”. “Pelos nossos cálculos você ficou dois dias, o Baependy foi afundado diante de Maceió e você foi recolhido aqui no Rio de Janeiro. É importante, Pedro, que você nos conte tudo o que aconteceu lá dentro”. “Sim, senhor”. “Como vocês se comunicaram?” “Eles tinham um oficial que falava nossa língua”. “Falava bem?” “Mais ou menos, dava para entender”. “O que ele queria saber?” “Sobre mim, de onde eu era. Depois sobre o navio, sobre o Lloyd, quanto tempo eu trabalhava nele. Sobre o porto de Imbituba, quando eu falei que era de Imbituba. Me perguntou o que eu achava da Alemanha, eu disse que não sabia. Perguntou se eu conhecia algum alemão em Imbituba ou em algum outro lugar”. “E você conhece?” “Não senhor, quer dizer, conhecer conheço, mas não são alemães de verdade, são brasileiros”. “Ele disse alguma coisa especial, mandou algum recado?” “Ele disse que o povo alemão é nosso amigo, que nós não precisamos ter medo de nada, que nosso inimigo são os americanos”. “E você o que disse?” “Eu não disse nada, mas fiquei pensando que ele era meio louco”. “Meio louco? Por que, Pedro?” “Tinham acabado de afundar nosso navio, matado todos meus amigos e nem ligava para isso”.
Ta ba j ar a Ru a s
13
Voce sabe de onde eu venho
14
Ta ba j ar a Ru a s
15