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Eugênia de Azevedo Neves$ O FEMININO NA CONTEMPORANEIDADE: “UM TETO TODO SEU” AINDA AMEAÇADO
from Revue cultive n° 16
by Cultive
por Eugênia de Azevedo Neves$
Tema: O feminino na contemporaneidade: “Um teto todo seu” ainda ameaçado
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Ansiamos todos por nossa morada, um canto, um lar. Virgínia Woolf, lá atrás, na década de 1920, reivindicava por um teto, um espaço, por um lugar no qual a mulher pudesse produzir literatura, trabalhar sem fronteiras demarcadas, sair do mutismo, e morar na alegria do existir como ser humano em seus diversos potenciais, em especial, em seu potencial criativo. No livro “Um teto todo seu” (1929), de sua autoria, predizia “uma mulher precisa ter dinheiro”, necessita de “um ambiente de liberdade pessoal que lhe permita exprimir-se sem sujeição.
Naqueles tempos, a inglesa divagava ao pensar como resultaria um texto de “uma mulher se ela escrevesse como uma mulher”, pois ao gênero feminino sobravam, até então, penas, castigos, pecados, todos destinados a ela. Ela que desejava ir além de ser posse de um outro alguém, que se dizia senhor do que lhe pertencia, seu corpo, seu pensar e seu pretenso imaginar.
Ela tocou e desmascarou assuntos de larga incidência ainda nos dias de hoje, como as dificuldades da expressão do livre pensamento feminino, o lugar e o papel da mulher na sociedade e, ao pôr fim à sua própria vida em um lago, submersa entre as pedras, colocou em pauta o suicídio que se propaga em inimaginável escala no século XXI, chegando a se tornar um problema de saúde pública. “Viver uma vida livre na Londres do século XVI significaria para uma mulher poeta e autora de peças de teatro um estresse e um dilema que poderiam matá-la.” Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, “A ordem do discurso” (1970), assevera que o discurso que circula é o discurso do desejo e do poder, por sua vez sustentado pelas instituições que garantem o fluxo da ideologia que lhe serve de base. “O discurso é uma violência às coisas”. E, no poder do discurso, restou atravessada a “fantasia” da inferioridade feminina, violência que avançou na subjetividade de todos nós, sentença condenatória proferida no caldeirão cultural que perdurou por milênios.
A cultura nada mais é do que um pacto de supressão de desejos em prol do bem maior da sociedade, segundo se extrai do texto “Mal-estar da civilização” (1930), já que, para Freud, há que se controlar o
homem em sua individualidade, replicando o pensamento hobbesiano, segundo o qual “o homem sem lei é o lobo de si mesmo”. Ocorre que algumas categorias vivenciam um aprisionamento maior de suas pulsões em favor de outras classes sociais e, dentre elas, encontramos as mulheres, encaixadas em um papel de vozes destituídas, roubadas.
A psicanálise reconhece a força do simbólico, de modo a naturalizar situações que nada tem de naturais. Lacan nos disse que a primeira interação que temos, antes mesmo da intersubjetividade, é com o “Grande Outro, com a Cultura que nos assujeita. E, parafraseando-o, quando nos diz que é “o inconsciente é um capítulo censurado da nossa história”, assevero que o feminino é, sem dúvida, um capítulo censurado da história da humanidade. Difícil foi encontrá-lo pelos dados da cultura, até mesmo para Freud, que, após quase 40 anos de estudos, desistiu de lhe desvelar, deixando o tema relegado à ciência, às próprias mulheres e aos poetas. Hoje vive-se um processo de intenso resgate do feminino, vindo à tona maravilhosas e fantásticas mulheres.
Maud Mannoni, psicanalista francesa, lembra Virgínia Woolf destacando, em 1968, na obra “Elas não sabem o que dizem”, que a sua “veemência em afirmar a existência de dois sexos, quando a psicanálise fala apenas de uma única libido, a fálica, só se equipara à sua luta para que as mulheres deixem de servir de espelho aos homens. ”
Com o tempo, que não cessa de nos interpelar, o feminino, quase em silêncio, em sussurros, de forma tímida, escreveu letras no espaço da beleza, seu único lugar de palavra. “Belas, cultas, não!” Neste espaço de beleza, foi construindo sua casa, colocando seu teto e sua fala foi sendo dita, ouvida, propagada, semeada, e já não se cala mais.
E eis que, sobretudo na hipermodernidade, o verbo chegou ao feminino, pronunciado em um grito, “porque há o direito ao grito”, conforme Clarice Lispector, e, hoje, ocupa a canção, sonetos, falando em poesia, em prosa, sobre o que ficou soterrado, em uma transgressão sem volta. Hoje, há que se falar de Medéia, Antígona, Ofélia, Jocasta, fora das amarras de um complexo histórico, elas mesmas falando por elas, já abrigadas em seus tetos. dade, a irmã de Shakespeare, idealizada por Virginia Woolf como de igual talento, já estivesse entre os grandes, com direito a ser detentora de várias moradas, fossem elas profissional, pessoal, social e literária.
Sim, estamos em um momento de transição e consciência de uma carência", assenta Edgar Morin.
Mas, no deslumbre do cume, muitos tetos despontam ameaçados, ao tempo em que outros decaem, eliminados pela força do poder, templo fraterno da raiva. “A raiva é de alguma forma o usual, o espirito auxiliar do poder?,”, pergunta Woolf.
E a questão que nos cabe: qual a maior falta do feminino hoje?
Talvez um espaço de paz, pois, em seu ambiente íntimo, a mulher continua sendo abolida pela força bruta da violência em suas relações domésticas, em uma morada, inicialmente pensada amor. O feminicídio assume proporções assustadoras, revelando a mesma face daquela velha tirania histórica.
Masculino e feminino devem andar juntos, somos todos, todas. “Um certo casamento dos opostos deve ser consumado; é preciso haver liberdade, é preciso haver paz”, protestava a escritora ainda no século 20.
E, hoje, ano 21 do século 21, o feminino aflito, submetido a pulsão freudiana dita de morte, na agressividade constitutiva do ser humano manejada por mãos masculinas, pede por uma mudança nas palavras: que as mulheres possam sentar-se à margem de um rio vivo de águas mansas. O sangue não pode ser o seu “gran finale, seguido de silêncio e chuva caindo”, como anotava a brasileira Clarice Lispector, ao decidir o destino da personagem “Macabéa”, no romance “A Hora da Estrela”, de 1985.
Juntos como humanos, em um mesmo abrigo, em um mesmo teto, sem o temor da agonia e da queda, próprios do paço das clássicas tragédias. A resistência é uma cena escrita e deverá ser reescrita na literatura até que a palavra feminina deixe de ser golpeada, até que deixe como rastros horror e angústia. Até que a casa se sustente em harmonia, até que seja morada de todas nós. Até que a morte não nos separe.
Algemira Mendes
tema: A literatura moçambicana escrita por mulheres