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Lenita Stark

Lenita Stark, brasileira, mora em Ponta Grossa/PR/Brasil.

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Minha infância foi negada por uma violência doméstica. Feminicídio. Meu pai assassinou minha mãe quando eu tinha 3 anos, e minha irmã 6 anos. Fomos criadas pelos nossos avós maternos. Eles já tinham bastante idade, eram analfabetos e já haviam criado 15 filhos; desses, poucos sobreviveram devido às moléstias da época, que não foram poucas: febre amarela, gripe espanhola, entre outras.

Minha mãe era uma linda mulher, fina, educada e inteligente. Era professora, a única filha dos meus avós que estudou. Ela era muito querida por seus alunos, amigos e conhecidos. Eu não fiquei com lembranças dela, pois eu era muito criança. A minha irmã, como tinha mais idade, descrevia para mim como era nossa mãe e, desse modo, construí a memória não gravada, mapeei um território vivido, embora esquecido.

Depois da trágica tarde em que nossa mãe partiu, começou nossa “outra vida”: de muita ausência, dores e falta de afeto! As carências afetivas eram tantas que qualquer brincadeira que nos fizesse sorrir era uma felicidade imensa - invadia nossa alma fragilizada. Minha avó era muito amorosa e atenciosa conosco, porém, nosso avô era enérgico com a nossa educação, tratava-nos conforme os costumes que educara seus filhos. A época era outra, outra geração, mas ele não acompanhou a evolução do tempo. Autoritário e severo - assim, ele transmitia os ensinamentos para uma boa conduta, a metodologia funcionava através do medo e da intimidação. Por qualquer indisciplina nossa, apanhávamos muito. Os castigos eram frequentes.

No período fora da escola, nossa alegria era as brincadeiras de roda com as amigas da vizinhança, sempre no quintal da casa. Nosso avô não nos deixava sair para longe. Nossas cantigas de roda eram cantos de esperança. Passeios eram só com nossos avós. A igreja era uma atividade quase diária - terços, catequeses e missas aos domingos. O padre era autoridade máxima da família.

Vivemos uma infância de total incomunicabilidade - nada podíamos ler. Não tínhamos livros, apenas gibis e fotonovelas que emprestávamos das amiguinhas, sempre às escondidas. E quando meu avô encontrava, rasgava e jogava fora, dizia que eram coisas do demônio - ele não sabia ler e aquelas figuras que via eram muito estranhas: Zorro, Mandrake, Irmãos Metralhas e outras figuras de histórias em quadrinhos da época. E as fotonovelas tinham fotos de cenas de beijos… aquilo era obsceno, para ele era pornografia da época.

Nossas leituras eram apenas os livros didáticos, a bíblia, o catecismo e as cartas recebidas dos parentes distantes. Naquela época, o conceito de livro didático era outro, não havia dinâmica nas leituras. Apenas a cartilha era ilustrada. Não tínhamos televisão, nenhuma fonte informativa: escrita, falada ou figurada. Havia um Rádio Semp na nossa casa, porém, não tínhamos permissão para ligar, pois poderíamos “rebentar” a correia do “aparelho”- dizia meu avô.

interação era com as plantas, animais e com nossos caquinhos de louças das brincadeiras de casinha. Vivíamos isoladas e sem nenhum conhecimento - literário ou informativo sobre o mundo lá de fora. Comparo nosso cenário de infância com o famoso mito da caverna do filósofo Platão: éramos felizes porque não tínhamos conhecimento de outro mundo; para nós, todas as crianças viviam daquela maneira, divertindo-se com “sombras”... sem regalias e com castigos frequentes. Nossas asas eram podadas antes de alçarmos voos rasantes... Minha irmã tinha um pouco de lembranças da nossa vida com os pais, então, às vezes, ela se rebelava, e o castigo vinha em dose dupla, eu apanhava também pela revolta dela.

Depois que entramos no período da adolescência, ganhamos a liberdade da tutela do meu avô. Tudo o que ele fez para nós foi pensando no nosso bem. Não pôde transmitir ensinamentos para a nossa formação intelectual, todavia, nos transmitiu valores que permanecem conosco até hoje.

A adolescência não mudou muito. “A liberdade é apenas uma ilusão”. Em qualquer fase da vida, a falta da mãe compromete toda a estrutura emocional de uma pessoa. Nessa idade, também sofri muito por falta do amparo da família, estudos comprometidos com idas e vindas - um dia na casa de uma tia, noutro dia na casa de outro parente - e assim fiquei adulta com uma grande determinação: desejava ter uma família, ser esposa, mãe, e uma “dona de casa” excepcional. Queria muito ser e ter tudo o que tiraram de mim quando criança: uma família, um lar edificado com afeto amor e muito respeito. Meu desejo era protagonizar a reconstrução de uma história interrompida. Nada mais tinha tanto valor para mim...

Encontrei a pessoa que estava destinada para juntos construirmos essa linda história familiar de amor. Eu trabalhava durante o dia e estudava à noite, o tempo era escasso demais. Casamos. Então, nada mais me conteve e fui à luta como uma atleta preparada para a grande vitória! Eu e ele fundamos uma empresa, e trabalhamos muito, dedicação total. Muitas vezes nem hora para almoço tínhamos. Foram anos de trabalhos imensuravelmente cansativos, portanto, a vitória alcançamos!

O meu sonho estava começando a se realizar, já era uma empresária, e uma “dona de casa”. Tinha um marido afetuoso e amigo, estava faltando os filhos - essa foi a parte mais difícil para conseguir. Eu não engravidava. Já tínhamos uma situação financeira boa, faltava o personagem mais importante, o principal vestígio de uma história de vida. Estava ainda sem luz o meu universo familiar - a ausência ainda persistia.

Depois de muito tratamento, o grande dia chegou. Nosso primogênito estava a caminho. Logo mais viria seu irmão. Foi gratificante demais a concretização desse sonho, muito maior que uma defesa de doutorado, ou qualquer outra formação. Foram dez anos de trabalho e tentativas de ter filhos.

Fui uma supermãe, procurei dar o meu melhor em tudo para o bem estar de minha família. Claro, que pequei por excessos, sempre pecamos quando tentamos nos superar. Os filhos cresceram, se formaram, casaram, meu marido e eu nos aposentamos, porém, continuamos trabalhando. Eu sempre tive anseios por atividades artísticas; artes plásticas e escrita poética, mas esses anseios todos ficaram para um momento de ociosidade, que não aconteceu, então, mesmo em um meio turbulento me fiz artista e poeta.

Realizei mais de 4 dezenas de exposições coletivas e 12 mostras individuais. Conquistei vários prêmios e, entre eles, o de artista do ano em 2017, em minha cidade. Na escrita, participei em dezenas de edições coletivas. Publicação de um livro autobiográfico, “Tibúrcia”, memórias de infância - Texto e Contexto Editora, 2019

Minhas referências mudaram muito com o passar dos anos - passei a enxergar o dia de amanhã com mais certeza, mais confiança. Gratidão à minha família, amigos e a Deus pelas bênçãos recebidas.

Não mudaria nada na minha história, acredito que o caminho que percorri foi uma grande maratona de aprendizado, consciência e conquistas. As dores me fortaleceram, as ausências me fizeram confiante, a falta de afeto fez meu coração bondoso e caridoso com meu próximo. Nada foi em vão, tudo teve um propósito, as lesões foram escrituras para o meu futuro, hoje eu as leio e decifro cada página da minha história de vida. Carrego em mim a criança que fui. Minha avozinha, é minha fonte inspiradora!

Participo de movimentos culturais para me sentir integrada socialmente - transmitir meus sentimentos e conhecimentos através da minha narrativa artística literária. Na pintura, compartilho minha poética sobre patrimônios locais e estudos sobre a arte do retrato.

Não tenho desejos em alcançar objetivos maiores. Estou vivendo momentos atenuantes, dividindo meu tempo com casa e trabalho, literatura e pintura. Na minha idade já é excesso. Quero apenas dar uma pequena contribuição para a humanidade. Deixar algumas pegadas por estes caminhos percorridos.

Meus projetos hoje? escrever poéticas sobre sentimentos humanos. Tenho metas para alcançar um bom número de edições coletivas e um projeto de livro solo, sobre artes.

Creio que para o alcance e a realização de um sonho, precisamos sonhar, acreditar no sonho e planejar. A ação é fundamental.

O caminho para ser um escritor(a), inicialmente é ter uma boa história para contar. Tenho minhas convicções de que histórias reais são mais atraentes que as ficcionais. Muitas vezes nos abrigamos numa história, nos identificamos com o autor, com suas angústias e dores.

A receita para escrever um livro, é acreditar totalmente no roteiro da escrita, um cuidado especial com palavras e expressões, Eu, por exemplo, quando começo uma leitura e já nas páginas iniciais leio termos esdrúxulos, desisto da leitura. Participo de uma comunidade literária e, neste ano, recebi três livros com escrita dessa maneira. Acredito que os livros têm o sentido de nos transformar - trazer conhecimento e refúgio. Se ao lermos uma história e ficamos agoniados, a leitura não contribui em nada.

Para ser poeta é necessário parar um pouco... olhar para o céu, ver a luz do sol, ouvir os pássaros, sentir a brisa da manhã, passear pelo jardim, observar as flores… ah, um olhar especial para nosso semelhante e lembrar do criador de tudo isso. Assim nasce um poeta!

Minha obra - transito entre o desenho pintura e poesia. Permeio em meu passado, marcada pelas fissuras daquele tempo; dogmas, e forçadas cartilhas de catequese. Os percalços e dificuldades da minha infância, hoje, são temáticas poéticas, uma análise retrospectiva, contextualizando conceitos da época.

A carência de literatura na minha infância, despertou-me o interesse em escrever e ler obras nacionais, e estrangeiras. Hoje, sou uma apaixonada por literatura, desbravo o mundo através das palavras.

“Ao confirmar sua maturidade estética, Lenita Stark, recicla suas experiências visuais, pondo em discussão as aparências das conjecturas intimistas das questões morais. A exposição apresenta-se na ideia de Portraits realistas. A preocupação é com a relação entre homem e o mundo, onde a obra se põe em evidencia o caráter de personalidades em seus preceitos valorativos. Uma arte que se reflete através de sua personalidade, em sua própria existência, cujo objetivo é atingir a perfeição, senão da beleza, do propósito social e do prazer do fazer

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