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UMA OFERTA QUE EU PODIA RECUSAR

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EXPO 2020 DUBAI

EXPO 2020 DUBAI

FILIPE SANTOS COSTA,

JORNALISTA JOURNALIST

AN OFFER I COULD HAVE REFUSED

Em abril de 2020 recebi uma oferta que podia recusar: fazer um ‘podcast’ de entrevistas para um partido político. A proposta era do PS, e surgiu em pleno confinamento. O país estava fechado pela covid-19 e eu estava fechado em casa por isso, e por ter decidido, uns meses antes, demitir-me do jornal onde trabalhava. Ao fim de 13 anos na mesma redação, entendi em novembro de 2019 que chegava. Em 25 anos como jornalista profissional, foi a terceira vez que abandonei um emprego sem ter outro à espera. Foram anos confortáveis, os do Expresso: é o jornal mais prestigiado do país, e isso embala quem lá trabalha - abre portas, desbloqueia agendas, facilita cachas. Um jornalista razoável pode fazer uma carreira vistosa só à conta disto. Para um jornalista inquieto, isto não chega. Cito muitas vezes uma frase de James Baldwin: antes da viagem nunca sabemos o que vamos encontrar. Fazer um podcast para um partido nunca esteve nos meus planos. Objetei: não sou funcionário do partido, nem militante. E mesmo eleitor… tem dias. Sabiam disso, claro. Queriam um jornalista experiente, com um ponto de vista, capaz de fazer entrevistas sobre governação e políticas públicas, In April 2020 I received an offer that I could have refused: making a podcast with interviews for a political party. The proposal came from the Socialist Party and arrived at the height of lockdown. The country had stopped because of covid-19 and I was locked home for that reason, and for having decided, a few months earlier, to resign from the newspaper I worked in. After 13 years in the same newsroom, I decided in November 2019 that it was enough. In 25 years as a professional journalist, it was the third time I was quitting a job without having another one waiting. These were pleasant years, those at Expresso: it’s the most prestigious newspaper in the country, and this serves well those who work there - opens doors, makes it easier to make appointments and make headlines. A reasonable journalist can have a great career just because of this. But for a restless journalist, this is not enough. I often quote a phrase by James Baldwin: before the trip, we never know what we are going to find. Making a podcast for a party has never been in my plans. I objected: I am not a party official, nor a member of the party. And even as a voter... well not always. They knew that, of course. They wanted an experienced journalist, with his own perspective, capable of conducting interviews

mas também sobre o regime e a democracia. Sem agenda partidária. Com critério editorial. A ideia era estranha e arriscada. Mas desassossegou-me. Admiro quem corre riscos e estimo quem confia no meu trabalho. Um partido ao qual nada me ligava, a não ser anos de interação profissional - muitas vezes tensa - dava-me carta branca para escolher um entrevistado semanalmente e luz verde para fazer as perguntas que quisesse. Sem interditos e sem alguém a quem prestar contas pelas minhas opções. Entendamo-nos: isto é mais liberdade do que tive em qualquer das nove redações onde trabalhei. Porque não? Aceitei. Tomámos cautelas contratuais que protegiam os dois lados. Era garantida a minha autonomia editorial, e não se definia um número de entrevistas, apenas que qualquer das partes podia denunciar o contrato com pré-aviso de uma semana. Foi o que aconteceu ao fim de quase um ano: decidi sair quando recebi um novo desafio profissional. O PS decidiu continuar com o ‘podcast’ “Política com Palavra”, entregando-o a alguém com uma longa carreira jornalística e enorme experiência como entrevistador - e com uma abordagem bastante diferente da minha. O que só demonstra a enorme latitude dada pelo partido a quem conduz estas entrevistas, para o fazer à sua maneira. A pandemia acabou por impor boa parte das minhas opções: a atualidade e a centralidade das decisões executivas ditaram muitas entrevistas a membros do Governo, que era quem tinha respostas para dar aos anseios dos portugueses, desde a saúde à segurança social, da economia à educação... Foi fácil confirmar o acerto destas opções pelo impacto que as entrevistas tiveram: todas as semanas eram notícia nos jornais, rádios e televisões. Um ‘podcast’ feito para um partido político tornou-se editorialmente relevante e marcou o fluxo informativo. Sei de colegas de profissão que apostaram no falhanço desta empreitada, mas se viram forçados a reconhecer o seu valor, citando as entrevistas. Não vou fingir que não me soube bem. Vejo duas razões para este impacto. A primeira é o podcast ter seguido sempre critérios jornalísticos: escolher os entrevistados certos e fazer as perguntas que têm de ser feitas. A segunda, é ter dado aos entrevistados a possibilidade de serem ouvidos. Não nos faltam entrevistas feitas para o entrevistador brilhar e “entalar” o convidado. Entrevistas para ouvir o entrevistado não são assim tão comuns. Houve entrevistados que recusaram sê-lo, que desmarcaram em cima da hora, que não gostaram de algumas perguntas. Houve quem me dissesse - está gravado - que eu estava a dar voz a “teses liberais”, a “reproduzir acriticamente” acusações da oposição, a partir de pressupostos errados. Nada de novo na minha vida de jornalista. Do PS, não me chegou nem um suspiro de pressão. on governance and public policies, but also the regime and democracy. Without a party agenda. With editorial criteria. The idea was strange and risky. But it was causing unrest in me. I admire those who take risks and I cherish those who trust my work. A party I had no links with, except years of professional interaction - often tense - gave me carte blanche to choose a weekly interviewee and green light to ask any questions I wanted. No restrictions and no one I had to report to as regarding my options. One thing is clear: this means more freedom than I had in any of the nine newsrooms I worked in. Why not then? I accepted. We took contractual precautions to protect both parties. My editorial autonomy was assured, and the number of interviews was not defined either, only that either party could terminate the contract with one week’s notice. That’s what happened after almost one year after I decided to leave when I was invited for yet another professional challenge. The Socialist Party decided to continue the podcast “Política com Palavra”, handing it over to someone with a long journalistic career and enormous experience as an interviewer - and with a very different approach from mine. Which only proves the enormous freedom granted by the party to those who conduct these interviews, to do it as they see fit. The pandemic ended up imposing a fair deal of options for me: the timeliness and centrality of executive decisions dictated many interviews with members of the Government, those who could provide answers to what the Portuguese wanted to know, from healthcare to social security, from the economy to education... It was easy to prove these options right considering the huge impact of these interviews: they hit the news every week in newspapers, radio and television. A podcast made for a political party became editorially relevant and marked the flow of information. Some colleagues believed this endeavour was doomed to fail but were forced to acknowledge its value, quoting these interviews. I’m not going to pretend I didn’t feel good about it. I see two reasons for this impact. The first is that this podcast always followed journalistic criteria: choosing the right interviewees and asking the questions that need to be asked. The second is that it offered interviewees the chance to be heard. There are countless interviews designed are there for the interviewer to shine and to put the guest in a difficult position. Interviews that are there to hear what the interviewee has to say are not that common. Some interviewees refused to be interviewed, cancelling at the last minute, who didn’t like some of the questions being asked. Some told me – it’s recorded - that I was helping to share “liberal theses”, of “uncritically reproducing” the opposition’s accusations, based on wrong assumptions. Nothing new in my life as a journalist. But I didn’t feel the slightest hint of pressure from the Socialist Party. The problems came from where I least expected them. From the supposed guardians of journalistic integrity, gathered under the acronym CCPJ (The Commission of the Professional Journalist Card). We all know that there are no deontological

“NADA DE NOVO NA MINHA VIDA DE JORNALISTA. DO PS, NÃO ME CHEGOU NEM UM SUSPIRO DE PRESSÃO.”

Os problemas vieram de onde menos esperava. Dos supostos guardiões da integridade jornalística, reunidos sob a sigla CCPJ (Comissão da Carteira Profissional de Jornalista). É sabido que no jornalismo português não há problemas deontológicos nem más práticas profissionais (#alertadeironia), por isso a CCPJ vive há anos o sono dos justos. É um museu de cera onde gente que se lambuza com o seu passado dá pouca atenção ao presente. Limitam-se a cobrar exorbitâncias para que jornalistas possam ser jornalistas. Que pecado descobriu a CCPJ? Não pôs em causa a independência nem o profissionalismo com que eu fazia as entrevistas (o elogio saiu contrariado, mas lá teve de ser…), mas o facto de eu ter um contrato com um partido político. Se um jornalista trabalha para um partido, diz a CCPJ, é para fazer propaganda, não jornalismo. Ponto. Uma interpretação que contraria a história do jornalismo português desde que vivemos em democracia. Órgãos de comunicação social de partidos políticos existem há décadas, e os jornalistas dessas redações têm carteira profissional. O título profissional que a CCPJ decidiu retirar-me, nunca foi retirado aos jornalistas que fazem o Avante! para o PCP, o Ação Socialista para o PS, ou o Povo Livre para o PSD. O absurdo resume-se assim: se eu fizesse o mesmo ‘podcast’ no Ação Socialista, a CCPJ não me incomodaria… Seria eu mais independente se respondesse à direção do jornal oficial do PS?... Não creio. A CCPJ acha que sim. Paz à sua alma. Orgulho-me do que fiz, e de como o fiz. Impugnei nos tribunais a abstrusa decisão da CCPJ. E devo ao PS ter-me desafiado e ter-me dado condições para um projeto editorialmente independente e jornalisticamente relevante. Não me posso queixar de escolher caminhos difíceis e depois encontrar pedras pelo caminho... É como é. l problems in Portuguese journalism and bad professional practices (#ironyalert), and for that reason, CCPJ has been able to sleep the sleep of the just for years. It’s a wax museum where people who smear themselves with their past pay little attention to the present. They limit themselves to charging huge amounts to allow journalists to be journalists. What sin did CCPJ discover? It did not question my independence nor the professionalism in the conduction of the interviews (sorry for bragging about it, but I had to ...), but rather the fact that I had signed an agreement with a political party. If a journalist works for a party, according to CCCPJ, he is making propaganda, not journalism. Full stop. An interpretation that contradicts the history of Portuguese journalism ever since we live in a democracy. Social media outlets owned by political parties have been around for decades, and journalists from these newsrooms have a professional license. My professional licence that CCPJ decided to withdraw was never withdrawn from journalists who write for the Communist Party newspaper Avante!, for the Socialist Party newspaper Acção Socialista or the Social Democratic Party Povo Livre newspaper. The absurdity boils down to this: if did the same podcast at Ação Socialista, CCPJ wouldn’t bother me ... Would I be more independent if I was held accountable to the editors of the official Socialist Party newspaper? ... I don’t think so. CCPJ does think so. May its soul rest in peace. I am proud of what I did, and how I did it. I challenged the abstruse decision of CCPJ in the courts. And I owe it to the Socialist Party to have proposed that challenge to me and for having involved me in an editorially independent and journalistically relevant project. I can’t complain about choosing difficult paths and then finding stones along the way ... That’s life. l

“NOTHING NEW IN MY LIFE AS A JOURNALIST. BUT I DIDN’T FEEL THE SLIGHTEST HINT OF PRESSURE FROM THE SOCIALIST PARTY.”

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