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ALÍVIO E ESTÍMULO: POLÍTICA
MIGUEL DE FARIA E CASTRO*,
ECONOMISTA ECONOMIST
ALÍVIO E ESTÍMULO: POLÍTICA ORÇAMENTAL DURANTE E APÓS A CRISE PANDÉMICA
RELIEF AND STIMULUS: FISCAL POLICY DURING AND AFTER THE PANDEMIC CRISIS
Àdata em que escrevo este artigo, a Câmara de Representantes dos EUA acaba de aprovar um pacote de estímulo orçamental no valor de 1.9 biliões de dólares para apoiar a recuperação da economia americana da crise gerada pela pandemia de Covid-19, um dos maiores pacotes orçamentais da história dos EUA. Ao mesmo tempo, o Financial Times publica um editorial criticando os modestos planos de recuperação lançados a nível europeu, quando comparados aos do outro lado do Atlântico.1 A pandemia de Covid-19 foi o maior choque do período pós-2ª Guerra Mundial para as economias desenvolvidas: as economias da UE e dos EUA contraíram 14.2% e 9.5% no 2º trimestre de 2020. Para além da dimensão, o tipo de choque também não teve precedentes, o que gerou problemas a nível das políticas de resposta. A política macroeconómica moderna assenta no paradigma de estabilização do ciclo económico, estimulando durante recessões e “apertando” durante expansões. Rapidamente se percebeu que esta abordagem não seria a mais apropriada para lidar com uma crise de saúde pública que exigiu o fecho controlado de sectores inteiros da economia. Medidas tradicionais de estímulo tornam-se contraprodutivas, pois estimulam a actividade económica que se tentava agora propositadamente abrandar. O objectivo da política económica passou de “estímulo” para “alívio”, com vista a tentar minimizar o impacto sobre os agentes que mais dependiam dos sectores fechados, e preservar a estrutura produtiva destes sectores. Com taxas de juro muito baixas ou mesmo negativas, os principais bancos centrais viram-se limitados em termos de política convencional e reactivaram várias das medidas extraordinárias que tinham sido usadas durante a Grande Recessão. A sua actuação foi rápida e, possivelmente, evitou que o choque despoletasse uma crise financeira When I was writing this article, the US House of Representatives had just approved a $ 1.9 billion budgetary stimulus package to support the recovery of the American economy from the crisis caused by the Covid-19 pandemic, one of the largest packages in the US history. And at the same time, the Financial Times published an editorial criticizing the modest recovery plans launched at European level, when compared to the plans on the other side of the Atlantic. The Covid-19 pandemic was the biggest shock of the post-World War II period for developed economies: the EU and U.S. economies shrank 14.2% and 9.5% in the second quarter of 2020. In addition to the size, this type of shock was also unprecedented, creating problems as regards policies to address it. Modern macroeconomic policy is based on the economic cycle stabilization paradigm, stimulating during recessions and “tightening” during expansions. It quickly became clear that this approach would not be the most appropriate to deal with a public health crisis that required controlled shutdown of entire sectors of the economy. Traditional stimulus measures become counterproductive, as they stimulate precisely the economic activity that economies were doing their most to slow down. The objective of economic policy moved from “stimulus” to “relief”, in order to try to minimize the impact on those that depended the most on closed sectors, and to preserve the productive structure of these sectors. With very low or even negative interest rates, the main central banks found themselves limited in terms of conventional policy and reactivated many of the extraordinary measures that had been put in place during the Great Recession. Its action was swift and may have prevented that shock from triggering a financial crisis in March 2020.
1 “EUROPE SHOULD GO BIG ON FISCAL POLICY TOO”, FINANCIAL TIMES, 22 FEVEREIRO 2021 1 “EUROPE SHOULD GO BIG ON FISCAL POLICY TOO”, FINANCIAL TIMES, 22 FEBRUARY 2021
em Marco de 2020. Mas a política monetária estava já nos seus limites, para além de que não é facilmente direccionada para os sectores da sociedade que estavam a ser mais afectados pela crise. A maior parte do “alívio” teve necessariamente de vir da política orçamental. A Figura 1 mostra o “alívio total” oferecido por vários países em % do PIB. A intervenção é classificada em dois tipos: despesa directa e passivos contingentes. A despesa directa consiste em recursos directamente injectados na economia pelos governos, normalmente direccionados a famílias (transferências directas, programas de apoio a desempregados, etc.), sendo que os passivos contingentes consistem em garantias ou empréstimos concedidos por governos, normalmente direccionados a empresas. A figura demonstra que apesar de países europeus como a Alemanha e a Itália terem oferecido alívio substancial, foram no geral muito mais comedidos em termos de estímulos directos do que os EUA. Esta diferença é, até certo ponto, de esperar dado que os países europeus tendem a ter sistemas de segurança e protecção social muito mais generosos, o que significa que parte desse alívio provém de estabilizadores automáticos e não requer as medidas discricionárias que estão a ser medidas na Figura 1. A isto se acresce que as economias europeias tendem a ser menos dinâmicas do que a economia americana em termos de criação e destruição de emprego. Isto explica porque é que o desemprego nos EUA aumentou muito mais do que na Europa, mas também caiu rapidamente. Estes dois factos contribuem para explicar a composição diferencial da resposta à crise, e porque é que os governos europeus se focaram muito mais em apoiar empresas e na manutenção de postos de trabalho que não seriam rapidamente recuperados se destruídos. Apesar de a pandemia ainda não estar totalmente controlada, as campanhas de vacinação avançam em bom ritmo e a atenção vira-se para a reabertura das economias, e para as políticas que serão necessárias para garantir que estas recuperam de forma sustentada. Ao contrário das já discutidas políticas de alívio, estas serão políticas de estímulo mais tradicionais. Nos EUA, o pacote proposto de 1.9 biliões de dólares ainda terá de ser aprovado pelo Senado. Na UE, a recuperação será apoiada pelo Next Generation EU, com 750 mil milhões de euros a distribuir pelos estados-membros entre 2021-2023. But monetary policy had reached already its limits, along with the fact that it is not easily targeted at those sectors of society that were being most affected by the crisis. Most of the “relief” had to come from fiscal policy. Figure 1 shows the “total relief” offered by several countries as a % of GDP. The intervention is classified into two types: direct expenditure and contingent liabilities. Direct expenditure consists of resources directly injected into the economy by governments, normally directed at families (direct transfers, unemployment support programs, etc.), with contingent liabilities consisting of guarantees or loans granted by governments, normally directed at companies. The figure shows that although European countries like Germany and Italy offered substantial relief, they were generally much more moderate in terms of direct stimuli than the USA. This difference is to be expected, up to a certain extent, considering that European countries tend to have much more generous security and social protection systems, which means that part of that relief comes from automatic stabilizers and does not require the discretionary measures referred to in Figure 1. Furthermore, European economies tend to be less dynamic than the American economy in terms of job creation and job destruction. This explains why unemployment in the USA increased much more than in Europe, but fell also fallen rapidly. These two facts help explaining the differential aspects of the crisis response, and why European governments have focused much more on supporting companies and preserving jobs that would not have been quickly recovered should they have been destroyed. Although the pandemic is not yet fully controlled, vaccination campaigns are in full swing and attention is now focused on the reopening of economies and on the policies that prove necessary to ensure that they recover in a sustainable manner. Unlike the aforementioned relief policies, these will be rather traditional stimulus policies. In the US, the proposed $ 1.9 billion package has yet to be approved by the Senate. In the EU, the recovery will be supported by the Next Generation EU, with € 750 billion to be distributed among member states from 2021 to 2023.
FIGURA 2 | FIGURE 2
A dimensão e composição destes pacotes tem dominado o debate de política económica dos dois lados do Atlântico. Nos EUA, há quem defenda que o pacote é excessivamente grande, sendo que o argumento é o seguinte: as políticas de alívio discutidas nos parágrafos anteriores levaram a um aumento do rendimento disponível das famílias, que se encontra 15% acima do valor pré-pandemia. O rendimento disponível aumentou de forma anormal não apenas devido a essas políticas, mas também porque parte da economia se encontra fechada, e as famílias não podem gastar esse rendimento adicional em certos bens e serviços que normalmente comprariam (turismo, idas a restaurante, etc.). Existe, portanto, “procura acumulada” por bens e serviços, que não se materializa apenas porque a economia ainda se encontra fechada. Após a reabertura, haverá bastante rendimento disponível para gerar um grande aumento da procura agregada, na qual se baseará a retoma. Portanto, um grande estímulo orçamental não apenas não é necessário, como poderá causar problemas: implica um grande aumento da dívida pública, que já se encontra em níveis historicamente altos (130% do PIB), e possivelmente um grande aumento da taxa de inflação. Na Europa, por outro lado, como as políticas de alívio directo foram mais modestas, o rendimento disponível das famílias caiu, encontrando-se 3% abaixo do seu valor pré-pandemia (e com quedas maiores nalguns estados-membros). Logo, não há expectativas de que “procura acumulada” possa sustentar a retoma. A situação em termos de investimento privado é ainda mais chocante: queda de 10% na UE, comparada com 1.7% nos EUA. Estes dois factos levam vários analistas a crer que o ‘output gap’ na UE é bastante superior ao dos EUA, e de que a intervenção orçamental é muito mais necessária, o que coloca em causa o (relativamente) pequeno tamanho do pacote de recuperação europeu (ver Figura 2, que compara as quedas totais de PIB em 2020 aos pacotes de retoma propostos). Uma política de recuperação europeia pouco ambiciosa pode ter várias consequências políticas que vão muito para além da macroeconomia. Há uma relação causal entre estagnação económica e a ascensão de movimentos populistas, que se verifica em diferentes eras da história e regiões do mundo.2 Daqui se infere que evitar uma situação de recuperação anémica, como se registou após a Grande Recessão, e garantir uma retoma próspera para todos (principalmente para os mais afectados por este choque) possa ser essencial para garantir a sobrevivência da própria União Europeia. l The size and type of such packages has been at the core of economic policy debate on both sides of the Atlantic. In the US, some argue that the package is too big, and the reasons pointed out are the following: the relief policies discussed in the previous paragraphs have led to an increase in household disposable income, 15% above the pre-pandemic value. Disposable income has increased abnormally not only as a result of these policies, but also given that part of the economy is closed and households cannot spend that additional income on goods and services they would normally buy (tourism, eating out, etc.). ). There is, therefore, an “accumulated demand” for goods and services, which does not materialize because the economy is still closed. After the reopening, there will be enough disposable income to generate a large increase in aggregate demand and recovery will rest on this. Therefore, a large fiscal stimulus is necessary, but it can cause problems: it leads to large increase in public debt, which is already at historically high levels (130% of GDP), and possibly to a huge inflation rate increase. In Europe, on the other hand, and given that relief policies were more modest, household disposable income fell, and is now 3% below its pre-pandemic value (and with bigger drops in some member states). Therefore, there are no expectations that “accumulated demand” may sustain the recovery. The situation in terms of private investment is even more shocking: a 10% drop in the EU, compared to 1.7% in the USA. These two facts lead several analysts to believe that the ‘output gap’ in the EU is much higher than that of the USA, and that budgetary intervention is much more necessary, which calls into question the (relatively) small size of the European recovery package. (see Figure 2, which compares the total GDP declines in 2020 to the proposed recovery packages). An under-ambitious European recovery policy could have many political consequences that go far beyond macroeconomics. There is a causal relationship between economic stagnation and the rise of populist movements, which occurs in different times in history and regions of the world. It follows that avoiding a situation of anaemic recovery, as witnessed after the Great Recession, and guaranteeing a prosperous recovery for all (especially those most affected by this shock) may be essential to guarantee the survival of the European Union itself. l