Entrevista arc o meu irmão (PT)

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ENTREVISTA EXCLUSIVA AFONSO REIS CABRAL autor de O MEU IRMÃO

A ARTE DE ESCREVER Escreve a horas fixas ou quando tem inspiração? AFONSO REIS CABRAL: Trabalho durante o dia como editor na Presença. Escrevo quando tenho tempo. Se escrevesse só quando tivesse inspiração, nunca escreveria. 93% de transpiração e 7% de inspiração.

Jornal do Lycée International Saint Germain-en-Laye

O que sente quando, aos 26 anos, tem um dos seus livros a ser estudado por alunos? ARC: Privilegiado por ter quem leia o que escrevo. Como é que nasceu a sua paixão pela literatura e pela escrita? ARC: O meu ambiente familiar sempre ajudou muito. Os meus pais são grandes leitores e por isso desde pequeno, na verdade, desde sempre, lido com livros. Inspirou-se em outros autores para se tornar escritor? ARC: Acho que não funciona assim. Tirei vida de tudo o que li, e quis reproduzir essa vida em coisas que eu escrevesse Onde é que encontra a sua inspiração para escrever? ARC: Por vezes parece que é debaixo de uma pedra. Mas a pedra pesa toneladas.

Como explica o seu sucesso como escritor, sendo ainda tão jovem? ARC: Não vejo as coisas nesses termos. Simplesmente tive a felicidade de escrever um livro, o resto verdadeiramente não é comigo. Como é que lhe veio a vontade de escrever assim tão novo? ARC: Naturalmente, sem que nunca tenha sido questionada por mim ou por ninguém. Quando é que decidiu que o que queria mesmo fazer era ir para a Universidade estudar literatura e tornar-se escritor? ARC: Desde os nove anos, talvez antes.

Quando escreveu a obra pensava em ganhar prémios? ARC: Não, escrevi sempre apenas para mim e para as pessoas que considerava parte de mim. Que sensação é que teve depois de ganhar o prémio LeYa em 2014 com este romance? ARC: Uma enorme alegria e responsabilidade para o futuro.

Se tem ainda a imaginação e a vontade, poderia escrever de novo?

ARC: Claro, não imagino a minha vida sem escrever. Que conselhos daria a quem queira, como o senhor, abordar na literatura este tema tão sério da síndrome de Down? Parecelhe que este livro/a literatura pode ser capaz de sensibilizar o público mais eficazmente para esta deficiência do que uma obra de teor científico? ARC: Não dou conselhos nem me parece que o público fique mais sensibilizado para esta deficiência a não ser durante a sua leitura… O ROMANCE O Meu Irmão Talvez o narrador seja mais deficiente do que o Miguel! Eu não percebo por que motivo o narrador mata a Luciana, por que é que ela não foi só ferida. Era importante para o seu romance matar essa personagem? Qual é a razão que o levou a criar um desenlace trágico? ARC: Porque na vida há muitas tragédias. Mas repare que o narrador no fim do livro não tem a certeza absoluta que a Luciana esteja morta. Talvez estivesse ferida e talvez tivesse sobrevivido. Também não sei. Considera essa obra um sucesso ou um livro de baixa qualidade? ARC: Não me cabe a mim fazer essas considerações, outros poderão fazê-las, como os leitores. Mas sucesso ou falhanço são termos estrangeiros à literatura. A redação da obra foi rápida e as ideias chegaram instantaneamente ou houve


grandes momentos de reflexão em certos pontos? ARC: Foram três anos de redação em que fiz, ao mesmo tempo o mestrado, trabalhei com uma bolsa de investigação, num alfarrabista e numa empresa de gestão hoteleira. Assim, durante três anos, não tive nem férias nem fins-de-semana. Será que se pode dizer que se inspirou ligeiramente na sua vida familiar ao escrever esse romance? ARC: Sim, é possível dizer isso, embora a ficção tenha uma voragem enorme. Come toda a realidade que encontra. Ao longo do livro todas as personagens têm um nome, menos o narrador. O que pretendeu com a ausência do nome do narrador? Quer que identifiquemos o narrador com o autor? Pretende fazer com que qualquer leitor se possa identificar consigo? ARC: Não há identificação entre o autor e o narrador. Não ter nome foi apenas uma coincidência que eu decidi estabelecer como normal em homenagem a Proust. O leitor faz da obra o que quiser, pode identificar-se até com o Loto.

Que mensagem o autor quer-nos transmitir através da obra? ARC: Verdadeiramente? Nenhuma! Pareceu-lhe importante para o romance existir esse laço de parentesco entre os dois protagonistas? ARC: Trata-se do ponto essencial do romance. Porque é que o narrador não foi verificar se a Luciana dava sinais de vida depois de a ter deixado no meio da floresta? ARC: Uma hipótese é perguntar ao próprio narrador. Eu não sei nada para além do que lá está escrito. A sua história é feita de flashbacks e de momentos presentes. Como é que devemos interpretar isso? Não lhe parece que, se tivesse optado por ordenar cronologicamente os factos da sua história, teria sido mais eficaz a contá-la? ARC: Se me tivesse parecido assim o teria feito.

ausência do nome do narrador levante essa possibilidade. Porque é que o narrador não consegue partilhar o Miguel com a Luciana, e sente tanta raiva dela? ARC: Porque tem ciúmes dela e sobretudo inveja da condição do Miguel que é feliz sem esforço. No seu livro, o narrador é misantropo. Como é que teve a ideia de criar um protagonista com esse caráter? ARC: Para ser o menos possível parecido comigo.

O narrador insiste tomar conta do irmão com a morte dos pais. Essa insistência não lhe parece exagerada? Sobretudo atendendo à maneira de ser do narrador até esse momento. ARC: O narrador quer redimirse da sua misantropia, quer redimir-se através do irmão.

Identifica-se com o narrador? Isto é “O meu Irmão” pode ser considerado um romance autobiográfico? ARC: Não me identifico com o narrador, pelo contrário. Pensa que se pode escrever sobre a síndrome de Down sem ter um parente ou amigo portador dessa deficiência? ARC: Conhecer a fundo essas realidades ajuda.

O título do livro é O Meu Irmão. Será que esta expressão também poderia designar o narrador, apesar de aparentemente referirse a Miguel? ARC: É uma excelente pergunta, mas não foi o caso, embora a

Porque é que as irmãs do narrador não se mantiveram em contacto com ele ou com o Miguel a partir do momento em que os dois rapazes começaram a viver juntos? Porque é que se afastaram?


ARC: Talvez porque já estivessem afastadas por mais de vinte anos de diferença. E o narrador não era um misantropo? Foi o próprio narrador a afastarse, mais do que as irmãs. É difícil viver com um irmão com a síndrome de Down? E escrever sobre ele? ARC: É. E escrever ainda mais. Sendo a obra inventada (ficção), porque escolheu um final tão triste? ARC: Penso que o final abre uma janela à esperança, a uma certa forma de paz. Estudou o comportamento dos deficientes para escrever este livro ou baseou-se na sua história familiar para o fazer? ARC: Não estudei, vivi. O livro não é sobre a deficiência, mas sobre um deficiente. E, mais do que isso, na minha perspetiva é sobre a inveja.

ARC: Enquadra-se na paisagem rural do final do romance e retrata a dor e a doença noutra família muito diferente. É como que um contraponto... Na obra, sentimos alguma solidão da parte do narrador. Essa solidão o autor que é também a viveu? Foi difícil viver sem apoio durante a infância a sua adolescência? Essa ideia que perpassa no romance tem um fundo verídico? ARC: Não. É uma solidão interior. Sobretudo uma solidão literária. Não é de todo reflexo de uma solidão autobiográfica. Porque é que escreveu esta obra, com este tema? ARC: Porque sentia uma enorme necessidade de escrever e um dia, depois de descer o rio Guadiana, o meu pai perguntoume «Porque é que não escreves sobre o teu irmão?». Esta pergunta cresceu em mim e deu um livro.

Porque é que decidiu criar um narrador misantropo, sem sentimento, frio? É uma escolha esquisita. Por que motivo, no livro, não temos muita compaixão pelo narrador? ARC: Não creio que o narrador seja frio, embora possa ter uma certa misantropia. A compaixão cabe ao leitor. Eu tenho uma certa compaixão por ele, mas isso sou seu também como leitor. Qual o interesse para um jovem da nossa idade ler esta obra? ARC: Interesse, no sentido de «proveito e utilidade», suponho que nenhum, porque a leitura não é especialmente proveitosa ou desvantajosa consoante a idade. A literatura transcende essas fronteiras e está muito além da utilidade.

Os comentários que faz ao longo do livro em letras mais pequenas representam a sua verdadeira opinião como autor? ARC: Não exatamente. Nesses momentos é como se o narrador, que nas outras ocasiões de certa forma sente que está a ser lido, estivesse e soubesse estar completamente sozinho. Tem a utilidade da técnica de um segredo. Os segredos também se dizem em surdina. Que fizeram o Miguel e a Luciana durante três dias enquanto fugiam? ARC: Amaram-se no pouco tempo que tiveram… Qual o interesse em contar neste romance a vida da família do Quim, Olinda e Aníbal?

Inspirou-se numa pessoa real para criar a personagem de Luciana? ARC: Talvez a Luciana seja a pessoa mais real de todas, sendo totalmente ficcionada.

Entrevista realizada pela turma do 10° ano da Secção Portuguesa Março de 2017 Saint Germain-en-Laye


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