NUNO GOMES GARCIA - Entrevista realizada pelos alunos da turma do 10º ano da Secção Portuguesa do LI

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Entrevista do escritor Nuno Gomes Garcia: 1-

Porquê usar vegetais no lugar de nacionalidades e etnias? Teria sido eventualmente para se

expressar livremente, sem receio, ou há outra razão particular? (EDOD) NGG: Eu exprimo-me sempre sem qualquer receio, é a vantagem de vivermos num continente onde a liberdade de expressão é um dos alicerces da nossa Democracia e da nossa cidadania. Recorri à antropomorfia de legumes por dois motivos. Por um lado, para que o leitor se conseguisse libertar de ideias pré-concebidas e, por outro, para tentar demonstrar que dividir a espécie humana em “raças”, etnias ou nacionalidades que se opõem, que são inimigas, é tão rídiculo como pensar em beterrabas falantes.

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Acha que se tivesse usado nacionalidades em vez de vegetais os leitores teriam reagido de

maneira diferente, teriam ficado chocados com o que estava escrito? (EDOD e CT) NGG: Não creio que os leitores ficassem chocados, mas julgo que a leitura seria mais linear e direta, mais confortável e logo menos rica. A Literatura, a meu ver, deve tirar o leitor, que é um ser inteligente, da sua zona de conforto, levá-lo a reflexão e ao questionamento.

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Inspirou-se de alguma forma de experiências pessoais para escrever o conto? Já sofreu

discriminação em França? (EDOD) NGG: Nunca me apercebi de qualquer discriminação para comigo. Um homem branco nascido na Europa ocidental e de matriz cultural judaico-cristã não costuma ser discriminado em França. O que eu vivi foi a discriminação experimentada por amigos (e mesmo deconhecidos) devido à cor da sua pele, orientação sexual ou religião, e, como sou um ser dotado de empatia, sinto que é o meu dever denunciar (neste caso através dos meus livros) qualquer tipo de discriminação.

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Na sua opinião, o fato de a França ser um país consideravelmente eclético intensifica as

discriminações que ocorrem com os estrangeiros? (EDOD) NGG: O problema não é o ecletismo da população francesa ou portuguesa. O problema é a falta de consciencilização das populações, daí a importância preponderante da escola pública e dos professores para levar a cabo esse trabalho tão dificil. Existem países etnicamente homogéneos (penso por exemplo na 1


Polónia) onde existem enormes discriminações, seja contra as mulheres ou a comunidade LGBT. O ecletismo das populações, pelo contrário, fomenta a tolerância. Basta por exemplo olhar para os mapas eleitorais de França ou de Portugal: normalmente são as regiões onde a homogeneidade étnica é maior que os votos em Partidos e Movimentos de índole anti-imigração e racista atingem números preocupantes. Desde sempre que as pessoas têm medo daquilo que não conhecem, tornando-as mais vulneráveis a tipos de discurso que promovem o medo e o ódio em relação ao “Outro”.

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Qual é, de entre os livros que escreveu, o seu livro preferido? (APdC)

NGG: Não tenho um livro preferido, gosto de todos porque parece que cada um foi escrito por um “Nuno diferente”. Quem escreveu “Zalatune” (o meu novo livro a sair em janeiro de 2021) não é a mesma pessoa que escreveu “O Dia em que o Sol se Apagou” há seis ou sete anos.

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Qual é a sua passagem preferida do conto e porquê? (APdC)

NGG: Gosto muito da passagem em que a Imaculada fica fascinada com o funcionamento do autoclismo, pois tal é sintomático do nível de pobreza que ainda atinge muita gente no nosso mundo. Existem milhões e milhões de pessoas sem acesso a saneamento básico por exemplo.

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Quem é o seu autor preferido. Foi uma fonte de inspiração? (APdC)

NGG: Na verdade não tenho um autor preferido. Sinto que aprendo sempre com cada livro que leio. Mesmo quando o livro é mau, pois aprendo que existem erros que não devo cometer.

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As suas experiências pessoais tiveram um impacto nas suas obras? (APdC) Inspirou-se na sua

vida pessoal para escrever alguma passagem desta história? (EG) NGG: Claro. Um ser humano é o resultado das suas experiências e aquilo que produz, neste caso obras de ficção, é consequência daquilo que ele se tornou. Se eu tivesse nascido rico em vez de pobre, chinês em vez de português, os meus livros seriam totalmente diferentes.

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Porque é que optou por escrever em paralelo as duas histórias de gerações diferentes? (AGS &

CT) NGG: Tal como referi na resposta à pergunta 2, eu, como leitor, não aprecio narrativas lineares e, por isso, é normal que eu escreva textos que gostasse de ler. Por outro lado, esse tipo de estrutura, multilinear, de enredos e subenredos que se cruzam, aumenta o leque de possibilidades diegéticas, enriquecendo a intriga.

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Costuma falar da emigração nas suas obras? (BN)

NGG: Quase sempre, sim, embora de maneira indireta e mais subtil. A emigração é algo que surgiu com a nossa espécie. A humanidade é uma espécie que sempre partiu rumo ao desconhecido em busca de uma vida melhor. No fundo, ser anti-imigração é ser anti-humano, pois ao proibir as migrações está-se a negar uma das principais características inerentes à humanidade. O meu próximo romance “Zalatune” terá a questão das migrações no âmago da sua intriga.

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Qual foi a sua experiência sobre a emigração? (BN)

NGG: Tem sido uma experiência muito positiva e enriquecedora. Mesmo em casa, no seio da família que criei em França, impera o multiculturalismo. A meu ver, e ao contrário do que dizem algumas vozes ligadas ao populismo, o multiculturalismo é uma das portas de salvação da humanidade de maneira a evitar conflitos.

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Temos que ler a sua obra pelo menos duas vezes antes de perceber de verdade, é feito de

propósito? (BN) NGG: Não é de propósito para forçar o leitor a ler duas vezes! Eu tento colocar, sim, alguma ambiguidade na leitura, algumas mensagens subliminares, mesmo alguma desconstrução narrativa, para fazer com que seja o leitor a construir na sua cabeça, como um puzzle, a história. Os romances ou contos que “entregam de bandeja” ao leitor a “papinha já feita” estão, na minha opinião, a menorizar a capacidade intelectual de quem os lê. A experiência de leitura é mais enriquecedora quando o livro obriga as meninges a um trabalho mais intenso. Um romance não tem de imitar um guião de cinema. Um romance não é um filme, que é, por natureza, mais fácil de assimilar.

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Não teve medo de ofender algumas pessoas com as ideias pejorativas que utilizou? (BN)

NGG: Uma obra de ficção não é um ensaio, é um texto criado por personagens, e as personagens falam por si. Um autor que utilize uma personagem como porta-voz para as suas próprias ideias é um péssimo autor. Uma personagem que tenha comentários racistas ou que não respeita a religião, por exemplo, não significa que o escritor se reveja nela. O protagonista do meu primeiro romance era um canibal psicopata… e eu não sou nem canibal nem psicopata. Mas é muito interessante essa ideia de “ofender algumas pessoas”. Um autor quando parte para uma obra de criação artística tem de fazê-lo em total e absoluta liberdade, sem pensar se vai “ofender” alguém. O pior que pode acontecer a um escritor, a um artista, é deixar-se levar pela autocensura. Os meus avós e pais viveram num país onde vigorou a censura durante 48 anos, e eu não quero nada relacionado com a censura na minha vida ou na vida dos meus filhos. O “medo de ofender” é uma sentença de morte antecipada para qualquer obra de arte porque ela já começa condicionada.

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Como se sentiu depois de ter terminado a sua obra? (BN)

NGG: Sempre que acabo um livro fico chateado porque sei que o divertimento acabou e se vão seguir meses de revisões e trabalho editorial antes de o romance ser publicado. Com um conto é muito mais fácil.

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Parece-lhe que as suas obras fazem as pessoas enxergarem realmente a realidade? (CT)

NGG: O meu objetivo não é retratar a realidade tal como ela é. O meu segundo romance fala de um Portugal quatrocentista onde o Sol desapareceu, remetendo o país às trevas, ou seja nada mais longe da realidade. O que eu pretendo nos meus livros é, através nomeadamente de metáforas e alegorias, levar as personagens aos limites do humanamente possível para que o leitor se possa, por um lado, surpreender e, por outro, analisar o comportamento humano à lupa.

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O senhor já teve problemas envolvendo os temas polémicos que aborda nas suas obras? (CT)

NGG: Não diria “problemas”, mas, sim, já tive reações adversas. O que é natural dada a propositada ambiguidade que coloco nos romances. Por exemplo, em relação ao “O Homem Domesticado” já fui atacado por homens misóginos que julgaram o romance de um inadmissível feminismo radical e, ao mesmo tempo, fui atacado por feministas que consideraram que o livro ataca as mulheres. O que não deixa de ter a sua piada. Eu fico contente com essas reações porque provam que são leituras que incomodam, que tocam em pontos sensíveis, em feridas abertas, que levam ao questionamento.

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Foi um conto fácil de escrever? (EBT)

NGG: Eu não gosto muito de escrever contos, porque é um texto curto e não dá para desenvolver as personagens. A mim, um conto parece-me sempre um romance inacabado. Não direi que é mais fácil, mas, sim, demora uma fração do tempo que demora a construção de um romance.

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Quando escreveu o seu conto, queria que fosse destinado a uma faixa etária específica? Se sim,

qual? (EBT) NGG: Não é um conto para crianças, claramente. Em 2021, vamos publicar um conto para crianças, e aí, sim, tenho uma faixa etária definida. Este conto “O Sobrinho” é para ser lido por adultos e jovens adultos.

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O fim da história é triste. Queria transmitir uma lição de vida com o acidente do Cândido?

(EG) NGG: Nunca escrevi um livro com aquilo a que se convencionou chamar “final feliz”. A minha experiência de leitor diz-me que um “final feliz” tem menor impacto emocional e acaba por não ficar a na memória. O acidente do Cândido, o crime cometido contra ele, é uma finta que o destino fez à sua tia. Uma espécie de

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lição de vida, sim: “lembra-te de quem és e de onde vieste antes de atacar aqueles que sofrem agora aquilo que tu já sofreste no passado”.

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Por que razão o senhor escolheu o mesmo destino trágico para Cândido e seu pai? (FB) Por

que é que Cândido fica paralítico como o pai? Qual é a razão? (JPF) NGG: A vida está cheia de ironias, e, neste caso, a literatura reproduz uma delas.

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- Os seus filhos já leram o conto? Perceberam o verdadeiro significado? (HM)

NGG: Os meus filhos ainda são muito pequeninos, mas nós falamos de muita coisa. Na minha opinião não há nada pior do que infantilizar as crianças.

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- O Senhor já pensou adaptar os seus contos em banda desenhada ou desenho animado? (HM)

NGG: Nunca pensei nisso, mas é uma boa ideia!

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Qual é a sua personagem preferida? Porquê? (JPF)

NGG: Não consigo escolher. Gosto de todas, mas tenho sempre um fraquinho pelo vilão.

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Alguma vez aprendeu algo com a crítica? Se aprendeu, isso mudou o seu jeito de escrever?

(JAC) NGG: Quando um livro vai para edição – ou seja, existem duas ou três pessoas que vão ler o livro, os editores, antes de o publicar -, o autor é confrontado com “sugestões editoriais” (na verdade são críticas) que são quase sempre ajustadas. Pessoalmente, eu aprendo sempre com os meus editores.

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Quando começa a escrever já tem a história toda pensada e esquematizada ou vai deixando a

imaginação fluir à medida que coloca as palavras no papel? (JAC) NGG: Ao começar, tenho sempre a premissa, algumas personagens, um início, um meio e um fim. Se um romance fosse um corpo humano, eu diria que começo com um esqueleto e, depois, durante o processo de escrita, vou inserindo os músculos, as artérias, os órgãos, a pele…

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Quando escreve uma obra, o senhor demora quanto tempo? (SG)

NGG: Depende, mas, no meu caso, demoro sempre mais de um ano. Depende se é um romance histórico, que demora sempre mais tempo.

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Quando o senhor tem que/quer escrever uma história, mas está sem ideias, o que o senhor faz?

Onde o senhor procura inspirações? (VO) NGG: O meu problema é escolher uma por entre dezenas de ideias. O que acontece, às vezes, é o bloqueio a meio da obra. Isso significa apenas que o tal “esqueleto” estava mal construído. Alguns escritores falam de um fenómeno que eu não compreendo: parece que é a caneta que escreve por ele, como se estivesse possuída. Eu não tenho essa sorte metafisica. Um conselho que vos deixo: antes de partir para uma história devem ter sempre, pelo menos, um bom começo, um fim mais ao menos definido e um punhado de personagens consistentes, caso contrário vão bloquear.

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Existe algum livro que o senhor já tenha escrito, mas que se arrependeu depois? (VO)

NGG: Não. Acho que isso nunca vai acontecer.

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Quando o senhor estava escrevendo o conto O Sobrinho, qual foi a maior dificuldade que

encontrou (se é que encontrou)? Quanto tempo o senhor demorou para escrever esse conto? (VO) NGG: Não encontrei dificuldades porque me mantive fiel ao meu estilo e registo. O mais importante para um escritor é encontrar logo no inicio da carreira um estilo original com o qual se sinta confortável. Eu construi a história de “O Sobrinho”, como me acontece sempre, durante as minhas corridas na floresta e coloquei-me em frente ao computador para escrever o conto já com a ideia bem consolidada. Devo ter demorado um par de dias.

Entrevista realizada por via eletrónica na sequência do encontro virtual, de 10 de novembro de 2020, entre o escritor Nuno Gomes Garcia e a turma do 10º ano da Secção Portuguesa do Liceu Internacional de St. Germain-en-Laye Dez. 2020

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