Livro de respostas a jorge de sena

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Os alunos da turma de 3e, depois de terem descoberto o poema de Jorge de Sena, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” através da respetiva declamação, da leitura e da reflexão coletiva sobre o texto realizada na sala de aula, foram desafiados a responder a Jorge de Sena. Aqui estão 19 respostas suscitadas por este poema:

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I Carta de agradecimento ao meu Pai Quinta-feira, 5 de maio de 2016 Caro pai, Escrevo-lhe esta carta em forma de agradecimento. Obrigada por sua carta. Obrigada pelos seus conselhos. Obrigada também pelo seu amor, de pai para filho, que você transmitiu nessa carta, para mim e meus irmãos. Nós também lhe amamos e lhe desejamos o melhor, meu pai ! Sua carta emocionou-me muito! Uma carta, cheia de amor, de alegria, e ao mesmo tempo, cheia de tristeza e de sofrimento. Aborda diversos temas, como a esperança, o futuro, o amor, mas também a dor e a morte. Ao ler a parte do poema que falava sobre o seu amor por nós, meu pai, onde você só nos desejava o bem, um mundo e um futuro excelente, achei muito bonito e fiquei muito emocionada. Senti-me também mais forte e mais corajosa, ao ler que você escreveu que tudo na vida é possível e que é só querer e lutar para conseguir. No entanto, a parte do poema sobre a dor e o sofrimento, fez com que eu me sentisse triste, e fez-me pensar diretamente na morte. Porém, ajudou-me muito, para saber o que nos pode acontecer na vida e que temos que tomar cuidado. Mesmo abordando temas mais delicados, meu pai, como os fuzilamentos de Goya, você sempre tentou dar-nos coragem dizendo que “isto nada é, meus filhos”. Durante a leitura do poema, como você pôde perceber, identifiquei algumas partes tristes e outras mais alegres. Ao ver como você é forte psicologicamente e que nada lhe assusta, meu pai, sabendo também que o otimismo é melhor, tentei esquecer a morte e a tristeza, lembrando-me da passagem da carta, sobre a esperança e o amor. Você, meu pai, sempre está presente quando precisamos de ajuda. Você nos protege das coisas que nos assustam e você nos passa toda sua experiência de vida! É muito bom ter um pai como você, sempre disposto a me receber, de braços abertos, com sorriso na cara e sempre disposto a receber minhas angústias e queixas. Você sempre está presente e participativo, sempre com bons conselhos para me instruir e me orientar e sempre disposto a me dedicar todo o carinho do mundo! Graças à sua carta, aprendi que nunca devemos desistir. Você me ensinou a vencer os obstáculos. Meu pai, se há algo que faz a diferença na personalidade e na vida de uma pessoa, é o amor que ela recebe. Você escreveu essa carta, com amor e carinho. Desejou o melhor para a minha vida e para a vida dos meus irmãos e que tudo seja na vida como formos imaginando. Por isso, só tenho motivos para lhe agradecer, meu pai!

Um beijo de obrigada, MB

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II Saint-Germain-en-Laye,

19/05/2016

Caro Jorge de Sena, Depois de ter lido e ouvido o seu poema várias vezes, eu decidi exprimir claramente os meus sentimentos sobre este poema e sobre como ele me permitiu pensar melhor sobre a vida. Inicialmente senti uma enorme tristeza e injustiça pelo que aconteceu no passado, pelas pessoas que morreram durante a guerra seja em combate ou nos campos de concentração por “serem diferentes”. Lembro de ter me perguntado: porquê contar estes acontecimentos tão horríveis aos pobres filhos? Ainda por cima escrevendo uma carta e não falando diretamente com eles? Depois de muito pensar sobre a razão do porque tinha feito aquilo, eu entendi. Porque os amava tanto, tinha muito medo da reação que teriam quando descobrissem em que mundo horrível vivemos. Acho que, como eu, os primeiros sentimentos que eles iriam sentir seria: raiva, injustiça, traição, dor e tristeza. Raiva, porque estas pessoas que não tinham nenhum problema em matar outros seres humanos por serem um pouquinho diferentes, deu-me vontade esses carrascos no campo de concentração. Injustiça porque matar para todas estas pessoas era totalmente injusto, eram apenas seres humanos como nós todos. Esta injustiça que senti associou-se à dor e à tristeza. As pessoas morreram por razões diversas e inúteis, é triste ver alguém morrer sendo torturado antes de ser assassinado. Coloquei-me no lugar destas pessoas torturadas e senti uma horrível dor por todo o meu corpo. A traição foi sentida no mais profundo do meu ser, ao lembrar-me que muitos morriam por terem sido denunciados pelos vizinhos, amigos… Só para ter certeza de que eu tinha entendido bem o poema, eu o reli de novo. Na verdade, eu não tinha entendido nada dele… enfim, quase nada. Este poema é sem dúvida uma poesia de intervenção social. Toda esta guerra, toda esta violência e toda a opressão tinham realmente acontecido. Muitas vezes os seres humanos não aprendem com os erros dos outros, eles precisam o fazer de novo as asneiras para aí entender o seu erro. Muitos cometeram o mesmo erro da guerra. Em vez de escolher resolver pacificamente os problemas do mundo, eles decidiram impor as suas ideias sem aceitar nenhuma outra opinião. Mas o senhor não escreveu esta carta para os seus filhos para falar dos imundos acontecimentos históricos do passado. Eu acho que, pelo contrário, escreveu a sua carta com a esperança de que os seus filhos tentem explicar um dia o que já aconteceu no passado para parar este ciclo vicioso. Porque tem esperança num mundo melhor onde os seus filhos poderão viver. Esta carta é meio brutal, mas acho que ela pode fazer a diferença no mundo!

Cordialmente, GC

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III

Carta de 6 de maio de 1975 O mundo não é meu, tudo não é possível, mas acredita, meu pai, que é só neste mundo que eu me sinto realmente feliz. Neste mundo os passarinhos cantam, o mar sobe e desce, os animais comem e eu vivo neste mundo feliz, cheio de cor. Escrevo uma carta de resposta, hoje, porque esperei ter alguma experiência na vida para poder dar-te a minha opinião sobre tudo o que abordas no teu texto. Já tenho certa idade, já houve montes de coisas que me surpreenderam, que me afligiram, de que gostei, ou não - hei de contar isto tudo mais tarde! -, mas agora vou falar desta situação em que vivo. Tenho filhos, e portanto posso compreender o objetivo da tua carta. Deste uma explicação da vida com a esperança de tornar o nosso futuro melhor, procuras preparar-nos para a vida antes de nós a conhecermos. Compreendo e pus em prática os teus conselhos, não deixei o mundo corromper-me e pensei no futuro, nos outros e nos meus objetivos sem escutar os mal-intencionados. Hoje posso dizer com vaidade que acabei por fazer o que queria fazer, e isso não acabou, até à morte vou continuar a fazer tudo o que posso fazer para viver a minha vida o mais felizmente possível, com mais outras ambições. Quando eu era pequeno, era um bocadinho gordo e pequeno e davam-me nomes estranhos, mas não foi um problema eu sabia defender-me com as palavras, «Quando o mundo inteiro te persegue, tu deves perseguir o mundo». Sempre que havia um problema defendia-me com as palavras, e nunca abandonei um amigo que tivesse problemas. Essa foi e é a minha filosofia. Algumas vezes penso nos horrores que houve no passado, nos nazis, no fascismo ou noutros... É realmente difícil compreender o que aconteceu. As pessoas tinham problemas e fizeram o que acharam o mais fácil de fazer… Espero que os meus próprios filhos não façam os mesmos horrores. Também posso dizer que não fiz nada de que me possa envergonhar. Esta tua carta foi útil para o desenrolar da minha vida, para as minhas decisões. Esta tua carta ensinoume, chorei muito, mas levantei-me, lembrei-me e fui de novo viver a minha vida, sempre com esta alegria de têla. O mais importante é isto, esta alegria de viver. Sei agora que sofrer faz parte disto tudo, a morte faz também parte disto tudo. É preciso ser honesto com toda a gente para ver o menos sangue possível nesta vida pequena que nos foi dada. Na tua carta perguntas «Serão ou não em vão ?». Acho que não é em vão o que fazemos, as boas ações dos outros para embelezar o mundo com o pouco tempo que temos para viver nunca será em vão. Mesmo se não há Julgamento Final que nos devolva o tempo perdido, é nosso dever ajudar as gerações futuras, os nossos filhos. E foi o que fizeste connosco quando dedicaste algum tempo para pensar e escrever-nos esta carta. Não sei dos meus irmãos, continuaram cada um o seu caminho e decidiram no que quiseram fazer, ou não fazer, para as gerações futuras. Quero no entanto agradecer-te pelo tempo que perdeste e pelos anos que me fizeste ganhar a compreender o mundo e o que me rodeava. Agora penso em viver e não importa quais são os obstáculos, eu posso enfrentá-los! JV

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IV

Resposta à carta escrita por Jorge de Sena

Fiquei triste e com pena das pessoas evocadas no poema, pelo simples facto de não conseguir perceber como é que seres humanos humilharam outros, só por estes serem diferentes em termos religiosos, raciais ou culturais. Na minha opinião, os carrascos que efectuaram estes actos deviam ter vergonha do que fizeram pois sacrificaram, espancaram, humilharam, torturaram, gazearam e queimaram pessoas: isto, para mim, é desumano e simplesmente horrível. As vítimas ficaram sem nada, tudo lhes foi roubado. Para estes Homens, que foram vítimas, o Mundo foi injusto, e a liberdade foi condicionada. A vida hoje em dia continua a ser assim, não corre sempre bem a toda a gente, é mais fácil para uns pois são ricos ou não têm muitos problemas e é mais difícil para outros que são pobres ou que têm dificuldades para “tratar de si”, gerir as despesas e saber poupar. Um dos outros problemas na sociedade atual é, do meu ponto de vista, o facto de muitos jovens fumarem ou beberem mesmo sabendo que o tabaco, faz mal à saúde, aumenta o número de mortes por cancro… mesmo sabendo que beber, - muitos jovens o fazem sem autorização dos pais, às escondidas - após algum tempo fica-se viciado e acaba-se no hospital para se ser curado. A nossas geração não é uma má geração, pelo contrário acho que é melhor do que era esperado, mas pode vir a ser melhor e eu espero que isso aconteça porque se o mundo continua com assim, com os atentados, os refugiados a chegarem de várias nações, em grande escala e os problemas financeiros de alguns países persistirem, uma grande guerra acontecerá e será talvez a maior de todos os tempos. Para acabar esta carta agradeço-te, pai, por me teres explicado o teu passado!

PS

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V Caro Jorge de Sena, Depois de ter lido a sua carta, senti a obrigação moral de lhe responder. Primeiro queria dizer-lhe que não é em versos que lhe vou escrever, nem com comparações ou com metáforas complicadas, mas com as palavras de um adolescente. Todos estes acontecimentos que infelizmente marcaram a história, conhecemo-los bem. Neste domínio, a escola não deixa de nos informar e de nos preparar para a nossa vida futura. Ainda há três semanas, Francine Christophe, uma judia que escapou à morte durante a Segunda Guerra Mundial veio à nossa escola para falarnos dessa época. Para dizer a verdade, o que ela nos contou, traumatizou-me. É incrível como o Homem possa ser cruel com outros seres humanos. Francine Christophe explicou-nos muito bem o papel das testemunhas que, como ela, aceitam hoje a missão de nos dizer exatamente o que se passou para que esses acontecimentos horríveis não recomecem de novo. No entanto, não lhe vou falar do passado, que já o conhece, mas sim do presente. Na sua carta, começa por escrever: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.” Compreendo, portanto, que esperava progresso para o mundo das gerações futuras. A bem dizer, este progresso que esperava foi o tema de um exame oral de português que tive recentemente, e acho que posso esclarecer alguns pontos sobre essa questão. É preciso que saiba que hoje já não há censura em Portugal e que disfrutamos de liberdade de expressão. Tudo isso foi possível com a revolução do 25 de abril que acabou com a ditadura salazarista e que deu origem a um novo regime democrático. Em Portugal já se pode dizer o que se pensa do governo e da situação do país sem correr o risco de ir para a prisão ou ser forçado a exilar-se. Contudo, não é o caso no mundo inteiro e todos esses acontecimentos que relata no seu texto parecem ter-se deslocado para África e para os países mais pobres do mundo. Ditaduras, guerras civis, genocídios, racismo, etc. Estes países reúnem todos estes problemas. Até podemos encontrar neles organizações criminosas e terroristas como DAESH. Os islamistas que dizem pertencer à religião muçulmana são, na realidade, pessoas sem moralidade. Por sua causa, os muçulmanos são vítimas de injustiças no mundo inteiro. A violência extrema desses grupos terroristas reforça o racismo de muitas pessoas que não se sentem protegidas porque esses islamistas até cometem atentados na Europa. O resultado de tudo isso é uma onda de extremismo político que cai de todos os lados sobre a Europa. No entanto, tudo o que acabo de lhe escrever não é uma generalidade. No outro dia, estava no autocarro, ia encontrar amigos com os quais ia brincar toda a tarde. Havia nesse autocarro uma grande mistura de culturas, brancos, negros, amarelos, vermelhos, homens e mulheres, cristãos, judeus, muçulmanos. Alguns dos antepassados dessas pessoas tinham sido perseguidos, assassinados por causa dessas diferenças. Mas nós estávamos juntos nesse autocarro e falávamos uns com os outros. O mundo dos adultos atuais é bem complicado e espero portanto que a nossa geração construa outro mundo melhor. Queria terminar dizendo-lhe que quando vi o título da sua carta não esperava um tal conteúdo. Quando os pais falam com os filhos, falam do seu futuro e da sua vida profissional, do saber necessário para lá chegar. Os pais têm esperança e a sua maior felicidade é ter orgulho dos filhos. No entanto, se os filhos decidirem não respeitar o percurso traçado pelos pais, estes ficarão contrariados. Que sentimentos experimentaria ao ver a evolução do nosso mundo? Será que ele evoluiu como esperava? LS 6


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Resposta à carta de Jorge de Sena

19 de maio de 2016

Meu Pai,

tomei agora mesmo conhecimento desta carta que me deixou. Tenho muita pena por tudo que se passou nesse seu tempo. Tanta violência sem razão, tantas mortes de pessoas inocentes e assassinos que ficaram impunes dos seus crimes.

Peço-lhe para não se preocupar quanto aos dias de hoje. Agora a paz governa. As ditaduras, as censuras e as restrições à liberdade são cada vez mais raras. Mas a violência ainda existe nos tempos de hoje, vários países estão sob a ameaça do terrorismo, ataques que fazem várias dezenas de vítimas.

Enfim, peço-lhe para não se preocupar connosco pois aqui a vida é um longo rio tranquilo. Despeço-me de si, meu pai, com um grande abraço deste seu filho que o ama.

Adeus Pai! Do seu filho, DA

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VII Resposta à “Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”

Obrigado, meu pai, pelo apoio e ajuda que nos dás. No nosso mundo, longe de ser perfeito, temos oportunidades e vontades que se podem realizar, pois afinal, tudo é possível, basta trabalhar para alcançar. Na humanidade cada um tem a sua luta! Tenho uma grande noção daquilo que nós fizemos, sim “nós”, pois o Homem é um ser único todos os homens forma uma família que deve ser aproveitada até ao último dia. Muitos foram torturados, mortos, violados, vítimas de uma justiça mal interpretada, palavra que muitos deturpam. Aquilo que aconteceu na Espanha de Goya, acontece todos os dias noutros países que os “ricos” nem sempre conhecem. Há quem diga que estamos em paz, mas não ficaria surpreendido se, um dia destes, alguém que se achasse mais inteligente ou mais rico, tentasse conquistar a mente do mundo para seu proveito pessoal. Em vão, nenhuma, ou toda morte é! Quem sabe se amanhã nós ainda estaremos aqui “sãos e salvos”. Tratar do mundo não é algo pessoal, é algo mundial, que todos devem fazer naturalmente. HO 8


VIII Caro Jorge,

eu também não sei se toda a crueldade que os seres humanos fizeram foi em vão, se o futuro é apenas uma repetição do passado, ou não. Entramos numa espécie de “3ª Guerra Mundial”, depois do nazismo, temos de combater terrorismo! Quando é que as guerras vão acabar? Com o fim da humanidade? Eu gostava de acreditar que não, que todos os problemas podem ser resolvidos pacificamente... Mas infelizmente, não é assim que o mundo funciona. Alguns indivíduos estão dispostos a matar inocentes só pelo poder ou pelas suas “convicções”, e com pessoas dessas nem vale a pena tentar dialogar. Só nos resta não negociar como eles, respeitar-nos uns aos outros, respeitar o planeta e todos os seres. Temos de o fazer, pelo menos pelos que não tiveram tempo de o fazer. Tu desejaste-nos um mundo ideal, que corresponde ao que queremos, onde ninguém seja perseguido pelas suas crenças, origens ou ideias. E mesmo se o mundo não é exatamente como nós gostaríamos que fosse, paciência, temos de viver tentando ser felizes e amando a vida. Também escreveste que não existe nenhum “Juízo Final” para devolver o que perdemos, quando morrermos. Por isso temos de viver a vida com respeito pelas pessoas que não tiveram a mesma sorte que nós, considerando todas as vidas sagradas. Lendo a tua carta, pus-me a refletir sobre a minha vida. Como cada vez que estudo ou penso na Segunda Guerra Mundial e nos campos de concentração, lembro-me que, afinal, a minha vida é muito boa (pois é, ainda a tenho !). Mesmo tendo uma vida feliz, a vida nunca é fácil, e o que eu acho triste é que para alguns viver seja sobreviver. Se todos nós tentarmos ajudar-nos uns aos outros, talvez seja possível vivermos no teu mundo imaginário. Nunca esqueceremos o passado, e os horrores que somos capazes de fazer. Vamos tentar não estragar o planeta como sempre o fizemos. Com a mesma motivação que foi a tua nesta carta, criar um mundo melhor para as gerações futuras. Temos de tentar devolver a Terra às gerações futuras como a encontrámos. Seria talvez mais fácil se parássemos de ser tão egoístas, e pensássemos mais em toda a humanidade, todos somos importantes! Todos nós temos liberdades (mesmo se nem todos temos a mesma liberdade), mas também deveres. Todos temos o dever de viver, e não impedir os outros de viver. Não sei se percebi bem a mensagem que quisestes transmitir-nos, interpretei como pude e quis. Se um dia nos encontrarmos do outro lado, e pensares que eu errei na interpretação, explicar-me-ás onde falhei ?

Um dos teus muitos sobrinhos, CDC

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IX Saint-Germain-en-Laye, sábado 14 de maio de 2016 Caro Jorge de Sena, muito agradeço a carta enviada, todos os conselhos, todas as preocupações e todo o bem que nos deseja. Reconheço que o mundo poderá ser mais simples, natural e mais livre, segundo os nossos desejos e o nosso respeito pelos outros. Também, reconheço que tudo é possível, se tudo fizermos para preservar a vida. É uma enorme honra estar vivo e poder lutar. Já começámos a saber que a Humanidade nem sempre se lembra daqueles que morreram por amor, pela sua pátria e para conquistar a liberdade. Essas pessoas deixaram a sua vida para trás e graças a elas, deram um pequeno passo no longo e lento caminho da liberdade. Eu não estou a dizer que tem de haver mortos para obter a liberdade! Estou a dizer que os sacrifícios assim permitem abrir os olhos das gerações seguintes para que não se repetirem os mesmos erros. É por isso que gosto das pessoas que testemunham sobre situações difíceis que viveram. Elas passam uma mensagem de paz a partir do que aconteceu no passado. Infelizmente, não era o que o Jorge queria, não aconteceu. Os povos continuam a dizer o que pensam, sim, mas se há pessoas que não concordam com as suas ideias, podem sofrer. Continua a haver ditaduras. Não existe só a ditadura. Existem também pessoas que defendem a sua religião de forma extremista e quem não pratique a mesma religião dedicando-se a atividades ou prazeres diferentes é considerado rebelde e insultante contra um suposto Deus muito vingativo. Por isso alguns decidem eliminar todos aqueles que não acreditam no mesmo Deus: e assim temos o terrorismo na sociedade atual. Não te preocupes, Jorge, isso vai melhorar. Podemos esperar um futuro melhor para os nossos filhos que tudo farão para o ter. Esses atos não podem parar o nosso modo de vida, e, mesmo se é difícil digerir essa violência que nos rodeia hoje, temos de lutar juntos para sermos mais fortes. Tem um provérbio que diz que “A união faz a força”, temos de o aplicar, temos de o viver! Para os meus filhos, à maneira da tua carta, Jorge, só quero dizer que podem, e devem, aproveitar a vida como ela é e como ela nos foi oferecida! Não se preocupem! A preocupação não vai melhorar nada! Então, vivam a vida da maneira mais alegre e feliz que a possam viver! De qualquer jeito, só temos uma vida, então, não vale a pena aproveitar? MD 10


X Querido pai, Acabámos há uma hora atrás, meus irmãos e eu, de receber a carta que nos escreveu sobre os fuzilamentos de Goya. Hoje é sexta-feira, por isso estávamos descontraídos a divertir-nos, cantando fado na casa do meu irmão, Filipe, e jogávamos às cartas. Mas durante a ceia, veio o carteiro entregar-nos a dita carta. Começámos a ler, ao princípio a leitura deixava-nos felizes, pois referia que a vida podia decorrer conforme as vontades e prazeres das pessoas, porque que tudo é possível! Estas primeiras linhas da carta motivaram-nos, pois dão coragem visto que referem que tudo o que desejamos pode acontecer e melhorar a nossa vida. O problema foi que, ao continuar a leitura da carta, muitos aspetos alertaram-nos e chocaram-nos. Pai, o que escreveu na carta é objetivamente muito sinistro, triste e depressivo. Ao ler, percebi que o facto de tudo ser possível incluía a possibilidade de a vida não decorrer como a gente imagina. Pessoalmente, fiquei primeiro chocado com os argumentos que escolheu para provar que a vida não é sempre fácil. Falou-nos do facto de gostarmos dos outros só por interesse, buscando neles qualidades que nos podem ser úteis. Evocou os graves castigos que se fizeram ao longo dos séculos, como a repressão por parte da religião, na época da Inquisição, ou então a maneira como foram tratados os prisoneiros com torturas, e todas as formas dolorosas e lentas de morte que se usam infelizmente para castigar. Os seres humanos são monstros, concordo! Mais tarde percebi por que é que o título da carta era “Resposta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”. Este pintor ficou, como nós os dois, chocado com a crueldade e com a maldade do mundo. No tempo dele, esta crueldade manifestou-se com a execução por fuzilamento de rebeldes, em Espanha, durante a noite de 2 para 3 de maio de 1808: espanhóis houve que foram castigados injustamente pela razão humana e totalmente normal de não terem aceite como rei deles o irmão de Napoleão. A crueldade e a dor física não são as únicas formas de repressão. Os insultos e a injustiça são também dores, mas dores mentais. Mesmo se pareceu esquisita por causa do seu conteúdo, a carta mostrou ter, na realidade, uma grande utilidade por me ter ensinado morais novas. O final da carta explica que não devemos permitir que a maldade nos conquiste, e temos que guardar e proteger a nossa vida como se ela fosse o que de mais importante existe no universo. Compreendi, com o final da carta, que não devemos e não podemos viver sem objetivo nenhum, não podemos viver e só para o enriquecimento da maldade. Permitiu-me perceber que a vida não pode ser desperdiçada, porque assim que se morre, não se pode recomeçar uma nova vez. Temos que fazer escolhas que possam guiar-nos à felicidade. Obrigado, pai, pelas lições que a sua carta me trouxeram. Os meus irmãos não compreenderam como eu o real objetivo da carta, apenas se lembraram dos aspetos negativos que figuram nela e que os chocaram mais, como as exterminações de inocentes. A Mariana está emocionada, o Paulo chora e Aníbal está sem falar com o traumatismo pós-leitura. Escrevi esta carta para que fique tranquilo, visto que a percebi muito bem, e compreendi o que devíamos evitar fazer, ou seja não desperdiçar a vida e não deixar o mal entrar em nós, devido à maldade presente no mundo. Não se preocupe, já vou explicar aos meus irmãos o que não perceberam. Também avisarei todas as pessoas de quem gosto das morais que acabei de aprender. Até breve meu pai! O seu filho, ADC

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XI Caro Pai,

recebemos a tua carta e queremos agradecer-te por nos teres enviado um documento tão belo. A tua carta nos marcou muito e nos mostrou em que mundo vivemos. Um mundo com um passado cheio de maldade, crueldades e exterminações contra pessoas que eram simples inocentes. Elas eram consideradas diferentes, especiais, mas na realidade eram como todo mundo: simples homens e mulheres que queriam disfrutar um pouco mais da vida. Os exemplos na tua carta são bem marcantes: desde os campos de exterminações dos judeus aos fuzilamentos em Espanha imortalizados com a pintura de Goya e muitos outros. O que mais nos marcou foram as tuas descrições. Elas foram tão bem feitas que começámos a pensar em imagens. Como se estivéssemos presentes para assistir à morte de todas essas pessoas que evocaste. Chorar a morte dessas pessoas após tudo ter voltado ao normal, como se nada tivesse acontecido. Nos nossos dias, muitas pessoas se esqueceram desses horríveis acontecimentos, mas os teus filhos não. Após a leitura da tua carta não conseguimos viver um dia sem pensar em todos os pobres inocentes que morreram por serem diferentes ou não falar uma certa língua. Esses pensamentos estão claramente ligados na tua carta. No início da carta falas de um mundo melhor. Queremos também evidentemente um mundo melhor no futuro porque a tua carta nos assustou tanto que não queremos um futuro parecido ao passado da tua carta. Esse passado cheio de violência e de horrores. Se queremos um mundo melhor, todo o mundo tem que ser informado do nosso passado. A tua carta não deveria ser unicamente reservada aos teus filhos, ela deveria ser universal. Porque muitas pessoas esquecem ou não querem pensar nesse passado, mas para ter um mundo melhor temos que todos saber o que se passou no passado para não voltar a fazer os mesmos erros no futuro. Para que nunca mais, no mundo novo, horrores como esses aconteçam novamente. Por o que nos disseste, queremos novamente agradecer-te. Vamos falar da tua carta à família, aos amigos e a todas as pessoas que conhecemos. Tudo isso para sensibilizar o máximo de pessoas e assim a informação será divulgada mais rapidamente. Nós esperamos que estejas bem! Atenciosamente,

Os teus filhos. AR 12


XII Há muito tempo que me enviaste a tua carta, há mais de 40 anos... Tenho hoje a audácia de te responder a algo que me deixou sem palavras. Quero dizer-te que... Eu sei meu pai! Tudo o que me dizes, eu sinto-o no dia-a-dia. Estas maldades, crueldades e injustiças que inocentes como tu e eu sofreram, as terríveis consequências... Mas eis a questão! Não fomos nem tu nem eu, meu pai, foram outros a partir... Guerras, Holocausto, fuzilamentos, massacres e por aí fora. Meu pai... dizes-me na tua carta, que recebi com tanto amor: "Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la." Esta frase da tua carta fez-me pensar no quanto, eu e meus irmãos, que receberam o texto ao meu lado, somos sortudos! Viver numa época de paz na nossa querida Europa e lembrar-me que foi aqui, neste palco da morte, que foi o continente europeu, durante séculos e séculos, mas sobretudo durante o século passado: O século da morte... Acredito, como tu, que nenhum "Juízo Final" poderá retribuir as vidas perdidas, estas vidas que foram roubadas e o amor que foi levado... Não te preocupes, meu pai! Não seguirei o exemplo de pessoas cruéis nem de ditadores (Hitler, Estaline...) Mas sim de heróis! Personalidades que souberam dar valor à vida: Nelson Mandela, Aristides de Sousa Mendes ou mesmo tu, meu pai, que apenas escrevendo, soubeste iluminar o meu espírito! "(...) o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado(...)" Sim, claro! O mundo em que viver não voltará a conhecer nem horrores, nem massacres, nem genocídios. Eu e meus irmãos lutaremos por aqueles que partiram, não em vão, pois nunca serão esquecidos. Lutaremos por um mundo melhor! Espero respostas tuas, meu pai. ACR Lisboa, 7/07/2001

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XIII Caro pai,

Recebi a tua carta com muito prazer e agrada-me muito a tua visão do mundo atual e vindouro. Porém, eu queria dizer-te que mesmo se eu respeitasse toda a gente, mesmo se eu fosse pacífico e mesmo se eu não provocasse guerras, uma outra pessoa do outro lado do mundo, conseguiria fazer, ponto por ponto, o que eu não fiz. Mesmo se eu passasse a ser um santo, o mundo não iria parar as suas abomináveis atividades. Para que o mundo mude, o mundo inteiro tem de ter vontade de mudar e isto nunca acontecerá porque os homens gostam deste clima de guerra. Para muitos deles, a guerra é uma ocasião para enriquecer à custa de milhares de vidas humanas. O mundo em que eu vou viver será exatamente igual ao teu, a eterna fidelidade dada a um país ou a um deus sempre destruiu e sempre destruirá nações inteiras e a eterna e cruel justiça a que os homens juraram fidelidade sempre esteve do lado do mais forte, do perseguidor e não dos perseguidos. Toda esta maldade foi e será em vão porque nenhuma pessoa, nenhuma nação desistirá de perseguir e de ser perseguida, ninguém parará este jogo infernal onde o mundo é a peça, e a maldade o jogador. Eu quero acreditar que um dia o mundo ficará em paz para sempre, mas isto nunca acontecerá, porque o homem foi criado para se autodestruir e nada poderá parar esta corrida onde a morte é o prémio. Pai, eu cumprirei todos os meus deveres, amarei todas as pessoas que um homem pode amar, respeitarei todos os homens e mulheres que tenho de respeitar, mas nunca conseguirei perdoar ao mundo este instinto de morte e de destruição que herdamos dos nossos antepassados. Por todas estas razões, eu quero ficar no meu canto, longe de todas estas maldades, com a minha pequena família. Nunca mais voltarei a ver as grandes cidades que um dia se tornarão vestígios de uma civilização destrutora e cruel. A minha luta contra a maldade acabou antes de começar e eu não quero entrar nesta espiral infernal que aspira e engole todos os homens que tentaram mudar o mundo. As mudanças nunca foram aceites pelo resto do mundo e os autores destas mudanças foram criticados, exilados e às vezes assassinados, só por terem usado a única boa coisa que nos foi dada para tentar melhorar o nosso mundo. Tentaram o impossível ao mudar o que nunca tinha sido mudado com o saber e a inteligência. Cada ideia, cada crença, cada sonho pode ser alvo de destruição, de guerras intermináveis e de massacres sem nome. Os homens são incapazes de viver juntos e é por causa disto que a humanidade morrerá tão lentamente como foi criada, nascemos do pó e voltaremos ao pó. Por isso, pai, respeitarei os outros e amarei na medida do possível, mas eu nunca participarei neste jogo. Se a humanidade tiver de morrer, eu não participarei a sua execução. Adeus Pai! L.N

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XIV Querido Pai, é o teu filho mais velho que te escreve. Recebemos a tua carta ontem. Só eu tive o tempo de a ler por enquanto. Queria dar-te o meu ponto de vista sobre o que nos escreveste. Queria, em primeiro, agradecer-te. Obrigado pela tua honestidade e pela coragem de falar de um episódio cheio de violência que aconteceu em Espanha e de que não tinha conhecimento. É verdade que ainda há atrocidades, e todos os homens não são bons, mas eu tive a sorte de nascer naquele mundo que tu desejavas para nós. ''Um simples mundo (…) Um mundo em que tudo seja permitido'' conforme os nossos gostos, as nossas vontades e o nosso prazer. É uma realidade que aprendi graças a ti e contigo. Não sabia quem era esse pintor chamado Goya. Fui procurar num livro informações sobre o seu quadro chamado ''Três de Maio'' e comparei-o a um outro ''El quitasol''. A diferença é flagrante. Um homem cheio de amor pode mudar com eventos horríveis. Essas pessoas, que morreram sem nenhuma razão, ficariam contentes se soubessem que tu e outras pessoas sentem uma amargura inconsolável quando pensam nesses séculos cheios de opressão e crueldade. Eu penso que tudo isto é devastador... Muito obrigado por tudo. Por tua sinceridade nas palavras que escreveste. O tédio de um mundo feliz que me persegue e que nunca tenho tempo para admirar vai ganhar com a minha tomada de consciência: a partir de hoje vou dar mais atenção ao que me rodeia. Quando os meus oito irmãos chegarem a casa, podes estar certo de que a primeira tarefa que vou efetuar é dar-lhes a ler a tua carta. Toma conta de ti e de minha mãe. Com carinho, João 27/06/1959, Lisboa RA 15


XV CARTA A MEU PAI Terça-feira, 23 de maio de 1978 Caro pai, Espero que estejas bem-disposto e que tudo esteja a correr bem contigo. Tenho saudades tuas, quero ver-te logo que possível. Bem percebi que o futuro do nosso mundo é ambíguo. Também tenho o mesmo desejo que tu, acredito num mundo simples e generoso para todos. Entendi a tua mensagem, meu pai, é claro que tenho muita sorte de viver nesta época, ou talvez não, como disseste, tudo é possível, tudo pode acontecer, nunca estamos protegidos de qualquer perigo. Mas há uma coisa que eu sei, este mundo é o meu, e o papel da nossa nova geração nunca foi tão decisivo e importante. Precisamos de pensar, agir, comportarmo-nos bem e evoluir de uma maneira diferente. Hoje, a diferença, a raça, a cor de pele, a religião, a maneira de pensar e as ideias das pessoas não podem ser o motivo ou a justificação de uma perseguição. Isso já não pode acontecer, não é possível cometer a mesma atrocidade e a mesma injustiça que ocorreram no passado. O sangue, a violência, a crueldade devem desaparecer. Também tenho essa mesma amargura, que me submerge, fico inconsolável, e posso responder-te, meu pai, não viverei em vão. Servirei o nosso mundo. Mas, este mundo, ainda é o teu, e preciso de ajuda para poder percebê-lo, para compreender os meus erros, os dos outros, e não os reproduzir. Neste novo mundo, quero amar e ser amado, quero aprender e não ignorar, para depois ser justo e ajudar, quero poder sonhar e imaginar, quero querer, tudo o que eu quiser, quando quiser. Como o pintor, Francisco de Goya, tenho um coração muito grande, cheio de fúria e de amor, mas sobretudo, cheio de esperança e de vontade: Quero ser a Maja nua e não a Maja vestida. Quero ser livre. Do teu, Tiago de Sena MG 16


XVI Lisboa, 13 de dezembro de 1977

Caro pai, Nunca soube, ainda não sei e nunca saberei Se tudo é mesmo possível Ou se não é. Pergunto-me às vezes, se tenho culpa Ainda que mínima, ou indireta, nos acontecimentos. Porque somos humanos, e o ser humano sempre foi assim. Desde o início que tem prazer em matar quem é mais fraco do que ele. A perfídia é tanta, que até ele próprio não consegue Lidar com as consequências. O meu amigo, grande amigo, o senhor João Adiba, ajudava-me, como qualquer outro amigo, mas tinha qualquer coisa de especial: era judeu! Aquele detalhe marcou a sua existência. Para ser honesto, o senhor Adiba não ligava nada à religião que os pais lhe tinham transmitido. Ai! Que pobre destino! Foi levado a 16 de junho de 1942, enquanto estava de férias em França. Estive semanas à espera dele Antes de saber que tinha sido levado até à sua morte, e que, antes de morrer, disse ao comandante que ia executá-lo: Podes matar-me fisicamente, mas lá em Portugal, nunca morrerei. Tu estás na Califórnia. A sociedade portuguesa começa a ficar agitada estou a sentir um cheiro novo um cheiro que não cheiro há muito tempo que é proibido cheirar e que promete. As tropas estiveram com problemas. Não conseguem manter a paz nas colónias. Os meus vizinhos, pouco contentes estão. Sinto, que vai haver mudança, mas não sei bem aonde nem quando Ah que tristeza! Aqueles que sofreram, Vi esse horror de perto. Indiretamente, Por um amigo. 17


O mundo nunca será melhor! Continuaram a morrer, Executados pela hipócrita justiça. Foi no passado, é hoje, E se calhar também será amanhã. Não te posso desejar um mundo melhor para ti. Lá, no país onde vives, Não há esses problemas. Estarei eventualmente errado? Ingenuamente? Sim, pai, Podemos concluir que no final, Os acontecimentos não foram inúteis E espero que o futuro seja melhor, Para mim, para ti e Para os outros! PV

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XVII

Forte de Peniche, 24 de novembro de 1956 Querido pai, recebi a sua carta há pouco tempo, não estou seguro que a minha chegue a sair das redondezas do meu novo palácio. Não é tão aconchegante quanto a sua casa mas tenho que admitir, eu nunca senti um cheiro a maresia tão forte quanto este, tão intenso que molha a face de quem adormece ao lado dele. Infelizmente a sua carta não me trouxe muitas facilidades, acabou por me envolver de tal forma que me tiraram o tapete mesmo antes de terminar de ler o seu testemunho. Tive que me mudar para uma zona mais distante onde me prometeram uma suite com vista para o mar. Durante o verão até que é tolerável tal luxo, mas no Inverno é uma tortura elaborada durante meses a fio. Foi no dia 24 de junho, estava na cozinha a preparar um jarro de sangria para ir descansar para o jardim, os dias de verão em Oeiras são relíquias incandescentes, até que, num ruído discreto e suave, o carteiro bateu no portão. Agarrei no tabuleiro de charão e desci a escadaria para o jardim, pousei a jarra e fui abrir o portão. Encarei o pobre homem que reluzia naquele calor infernal. Parecia-me nervoso, as suas mãos queimadas tremelicavam desesperadamente. Não dei importância, talvez fosse cansaço, passar um dia inteiro naquela bicicleta de rodas quadradas, certamente não relaxaria aquelas pernas de cristão. Tirei o lacre gentilmente e pus-me a ler a sua carta. Numa mão segurava o copo e na outra o seu testamento. O pai tem um jeito muito especial de escrever, compreendi cada verso e a sua ironia escondida nas numerosas catacumbas. Pois bem, eu percebi a sua explicação, mas creio que não fui o único. Certos indivíduos sem a mínima decência ou escrúpulos resolveram, também, deliciar-se com as verdades da sua carta. Se pensa que o seu filho iria ser o único a decifrar as suas letras, esqueceu-se que há muitos lobos vestidos de cordeiro por este país fora. Dois homens com lápis azuis nos bolsos das camisas estavam a estudar a minha reação enquanto lia as suas injúrias. Quando dei conta da sua presença era tarde demais. Fui automaticamente declarado como opositor ao reino do menino que dormira no berço real de Santa Comba Dão. Fui gentilmente expulso da minha residência e convidado a passar umas férias paradisíacas com direito a água do mar. No fim da rua lá estava o santo, escondido entre os arbustos. O seu olhar de inquietação e desespero chamou-me a atenção; não fora ele quem arrancara a minha dignidade, ele só fora obrigado a colaborar, se tivesse segundas intenções, um sorriso falso sobressairia na sua face. Enfim, o mal já está feito, nada me poderá libertar. Ficarei aqui trancado como o meu pequeno rouxinol que, por estes dias, sofre mais que eu. Se a vida é assim tão sagrada, muita gente à minha volta irá um dia parar à barca das chamas, e mesmo que não tenham sensibilidade suficiente, espero que lhes fique um grande peso na consciência. Um abraço do seu filho,

José Eduardo Dos Prantos FM 19


XVIII Caro Pai, Espero que esteja tudo bem consigo. Através desta carta queria responder ao seu maravilhoso poema que me afetou muito…

A sua carta marcou-me particularmente. Através desse poema quiseste proteger-nos e alertar-nos para que mais tarde tenhamos um futuro seguro e com paz. Muitas emoções diferentes atravessaram a minha cabeça. Primeiro, uma passagem no qual exprimes o teu mundo, um mundo com sofrimento, em guerra, com ditadores e mortos que foram torturados ou perseguidos. Essa passagem fez-me perceber como o mundo pode ser violento Eu ainda não passei por nada de difícil na vida e o teu poema transmite-me um sentimento de injustiça, porque vejo tantas pessoas que sofreram pela pátria ou para conseguir satisfazer a família e não tiveram a minha sorte de ter nascido numa época de paz. Fiquei interpelada pelo teu “aviso”, conseguiste com um poema testemunhar o que aconteceu no teu tempo, e não só, e assim nós poderemos tentar remediar aos erros que se cometeram.

Esta força e esta esperança vamos usá-las e transmiti-la aos nossos filhos, para que eles vivam num mundo melhor. Gostei da homenagem que fizeste aos teus predecessores, referindo o acontecimento pintado por Goya que nos mostra o heroísmo dos combatentes e o horror daqueles fuzilamentos. Os séculos que nos precederam ficam no passado, mas gravados na cabeça de todos. Esses episódios são uma demonstração de como o mundo e os seres humanos podem ser cruéis, uns para os outros e sozinhos conseguem destruir casas, cidades, países... Ensinaste-me que a vida tem de ser vivida no momento, porque pode ser-nos roubada, dum dia para o outro podemos desaparecer e ficar com remorsos por não termos aproveitado o nosso tempo. Tentarei através dos conselhos que nos deste tornar este mundo frágil num mundo com paz, em que as pessoas se respeitem mais, porque o respeito é um dos aspetos fundamentais no seio da população, deste mundo. Espero que os objetivos que nos deste consigam ser alcançados em memória de todos aqueles que perderam a vida sem razão nenhuma. Tenho algum receio que este mundo que vamos tentar construir nunca exista por causa da estupidez humana que só quer vingar-se e exteriorizar a sua dor contra os outros. Será que é este o mundo que vamos ter? Ou será que a nossa mentalidade vai mudar? Estas questões estão sem resposta neste momento, mas espero que tenham resposta brevemente. Queria agradecer, caro pai, por esta carta que escreveste, e que só nos pode ajudar e fazer-nos avançar na vida com algum reconforto por termos alguém que se preocupa connosco e que nos faz pensar no futuro. Grandes beijinhos desta tua filha, KC 20


XIX Carta a meu pai sobre o mundo de hoje

Já sei, meu caro pai, que mundo será, e é o meu. É Possível, como tudo não é possível, que ele não seja como o desejavas. Um complicado mundo, onde tudo parece ser simples, mas ao fim e ao cabo tudo é bem complicado. No entanto, neste mundo meu, tudo é permitido, podemos fazer o que gostamos e o que nos dá prazer sem nunca o ter. Muitas coisas mudaram neste mundo meu, mas nem tudo mudou: o respeito é, para alguns, um conceito muito complicado. Neste mundo menos complicado que o teu, Meu pai, minha vida, consiste em lutar contra as injustiças deste lugar, que acontecem a muitas pessoas. No entanto, as injustiças do meu e do teu mundo são diferentes. No passado que evocas, as pessoas eram torturadas e mortas, por serem ou pensarem diferentemente, No meu mundo, as pessoas são julgadas e perseguidas psicologicamente por simplesmente também serem diferentes! Espero que este mundo em que vivo, seja apenas um episódio, como foi o teu episódio curto que acabou após a ditadura. o teu, um episódio de tortura, e o meu, um episódio de bullying. Agora, meu pai, este mundo, ainda que com muitas injustiças, tem muitas coisas bonitas. Não sei, meu pai, que mundo será o dos meus Filhos! ID 21


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