Os casos dos alunos do 9º ano

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Novos casos do beco das sardinheiras


Os alunos do 9º ano da Secção Portuguesa do Liceu Internacional de SaintGermain-en-Laye, depois de lerem os Casos do beco das sardinheiras de Mário de Carvalho, resolveram dar ouvidos às reclamações de alguns residentes do beco a quem o autor fez orelhas moucas no epílogo da sua obra…

“ Eu fui-lhes explicando, de forma vaga, que isto de literatura tinha as suas exigências, os seus condicionamentos, que não se podia escrever tudo, que o autor também entrava com a sua própria maneira de ver, et coetera. Mas o Zeca da Carris não se calava: - Olhe, falharam-lhe várias. À uma – e ia contando pelos dedos -, aquela do boletineiro que andava sempre com as rodas da bicicleta debaixo do pavimento, à outra, aquela do tipo chamado Belmotrão que crescia e decrescia conforme ia e vinha, à outra, aquela da roca pintada de vermelho que se encontrou no sótão da Dona Délia, à outra… Sentado ao lado, o Chico Estivador, sorumbático, ia acenando com a cabeça que sim. Mas eu interrompi: - Meus caros, vejam lá se compreendem uma coisa. Um autor tem que se defender, estão a perceber? Eu cá fiz estas histórias porque simpatizo convosco, mas não podem exigir-me muito mais. Vocês não vêem que se eu continuo a fazer histórias a vosso respeito, depois fico dentro delas e não consigo sair? ”

In Casos do beco das sardinheiras, Mário de Carvalho, Porto Editora, 2015, pp. 82-83. (sublinhados nossos) (1ª edição, 1982)

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I aquela do boletineiro que andava sempre com as rodas da bicicleta debaixo do pavimento

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1.1 A Bicicleta UMA OCASIÃO, na esquina dos elétricos, o André Boletineiro falava com o Virgolino sobre negócios: - Virgolino! Meu grande amigo! - dizia o André - Preciso que me faças um favor... quer dizer, uma encomenda, pois só tu neste beco possuis tantos contactos e tenho a certeza que ma podes trazer! - Sou todo ouvidos - respondeu o Virgolino. - Como sabes eu sou boletineiro, transportador de telegramas se preferires, mas estou a ficar velho e como faço as minhas entregas a pé canso-me bastante e os meus clientes queixam-se da demora... queria então fazer-te a encomenda de uma bicicleta, para ser mais rápido e poder então fazer mais entregas. O que é que dizes? Encomendas-me o meio de transporte? O Virgolino não prestava muita atenção a todo aquele relato, mas respondeu: - Daqui a três dias terás a tua bicicleta, novinha em folha! O André, muito contente, voltou ao trabalho, mais motivado, pois pensava que eram os últimos dias em que entregaria telegramas a pé. O prazo não foi rigorosamente cumprido... mas passados cinco dias, estava o André sossegado na sala de estar da sua casa, sentado no sofá a fumar um charuto, quando lhe batem à porta: - Olha quem ele é! - disse o André, espantado ao ver o Zeca da Carris - o que é que te traz por aqui? - Tenho uma encomenda da parte do Virgolino p'ra ti. - esclareceu o Zeca da Carris - Tem cuidado, que é pesada e muita grande. O André agradeceu ao Zeca da Carris, que entrou em casa do boletineiro para beber uma amarelinha. O André, ao final da tarde, acompanhou o Zeca da Carris à porta entregando-lhe o dinheiro para pagar ao Virgolino a encomenda, diga-se de passagem um pouco mais cara do que previsto. Despediram-se e o André pôs a encomenda grande no seu quarto, desejoso de estrear a sua nova maquineta. No dia seguinte, levantou-se o boletineiro mais cedo do que o costume, muito entusiasmado. Abriu a encomenda fortemente protegida com cartão e fita-cola e viu uma bicicleta espantosa com um volante elegante e um banco de couro, mas o que mais o surpreendeu foram os pneus muito grossos: o André pela primeira vez estava desejoso de ir trabalhar! Tomou o seu pequeno-almoço e saiu de casa com a bicicleta ao seu lado. Subiu para cima dela com um sentimento de orgulho, mas mal pedalou dois metros... os pneus afundaram-se no pavimento de pedra: - MERDA! O que é que se passa!? O André ficou sem palavras... desceu da bicicleta para perceber o que estava a acontecer... mas de súbito teve uma ideia! Voltou a subir para cima da bicicleta e pedalou. Para seu grande espanto, a bicicleta andava na perfeição debaixo do pavimento! 4


Muita gente, como era hábito no beco, foi ver o que se passava: quinze minutos depois, a rua estava cheia com uma multidão espantada ao ver o que decorria diante dos seus olhos: uma bicicleta com os pneus enterrados no pavimento! Cada vez que o André andava com a bicicleta ouviam-se exclamações da parte da multidão: - Uau! - diziam uns. - Ena! - exclamavam outros. O André sentia-se o centro das atenções. - Isto deve ser obra do Andrade; desde que engoliu a lua, o chão ficou mais mole - disse o Manuel da Ribalda e todos se começaram a rir. -Ai Andrade... porque é que foste engolir aquela porcaria? - perguntou o Chico Estivador com um certo tom de gozo. - Irraaa!! Vocês não se calam com essa história!! Mas vocês podem-me dizer o que é que ISTO tem a veri com a lua?- inquiriu o Andrade enervado - P'ra mim vocês ‘tão praí "a confundiri a obra prima do mestre com a prima do mestre de obra". -Nem sequer é esse o provérbio que nós utilizamos, Andrade... "convém não confundir género humano com Manuel Germano". - corrigiu o Zé Metade conciliador. - Mas isso não interessa agora! – interrompeu-o o André - O que é que fazemos com esta bicicleta, Virgolino? Foste TU que causaste esta confusão toda, vendendo-me uma bicicleta escanifobética! - Hei! Calma aí! - retorquiu o Virgolino - eu só fiz o meu trabalho! - Pois, o teu trabalho... só cá faltava o tio Bento, que já faleceu, pois se ele 'tivesse aqui, já éramos dois a queixarmo-nos das tuas encomendas. Quando lhe vendeste aquele maldito trombone... - Ok, ok! - respondeu o Virgolino - Temos duas hipóteses: ou deixamos a bicicleta aqui onde está enterrada, pois não faz mal a ninguém, e passa a ser um símbolo do nosso precioso beco e tu continuas a fazer as tuas entregas a pé… (ideia esta que não agradou nada ao André, diga-se de passagem) ou, temos uma outra opção - prosseguiu o Virgolino - podes continuar a fazer as tuas entregas com a bicicleta, mesmo sabendo tu que esta bicicleta só pode andar debaixo do pavimento. O André pensou durante três segundos e respondeu: - A segunda opção! E lá foi ele transportar telegramas com grande alegria seguindo a bicicleta debaixo do pavimento. Enquanto a multidão saía do local do incidente, ouviu-se uma voz ao fundo: - Ai este André... que preguiçoso... ainda nos vai arranjar problemas com aquela porcaria a rastejar pelas ruas do nosso beco das sardinheiras.

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1.2 A bicicleta sem rodas UMA OCASIÃO, no beco havia um boletineiro chamado João Foguetão que era um homem pequeno, esquelético, mas muito enérgico, qualidade muito valorizada pelos Correios. Nunca andava atrasado e, por isso, era muito apreciado pelos moradores do beco. No entanto, tinha uma tineta que incomodava as velhitas do beco, pois, para ser pontual no seu trabalho, não tomava tempo para ouvi-las contar as suas vidas. João sempre circulava com a sua bicicleta e ia de uma ponta à outra do beco num piscar de olhos. Uma quarta-feira, já à tardinha, lá vinha o João, ainda mais apressado do que de costume pois tinha sido convidado nessa noite para os anos do irmão. Vinha na sua bicicleta pela rua dos Eléctricos com um telegrama importante para o Zeca da Carris. Mas não viu que, logo a seguir à esquina do beco com a rua dos Eléctricos, estava a Companhia das águas a calcetar o pavimento, depois de terem reparado uma canalização que tinha explodido durante a corrida louca do Zé Metade na sua carrinha aperfeiçoada e motorizada pelo padre alentejano. Lá vinha então o João a toda a velocidade, derrapando com um barulho estridente do pneu na pedra e enfiando-se pelo beco das sardinheiras. Ao passar por cima do pavimento que os calceteiros tinham acabado de pousar, a bicicleta começou a afundar-se e as rodas a desaparecer. No início, nem os empregados da Companhia das Águas que apregoavam contra o boletineiro-foguetão, nem o próprio João, que apenas lhes lançou um « Desculpem, meus senhores ! » se deram conta que a bicicleta avançava agora com as rodas enterradas no pavimento. O Zeca da Carris, que estava a conversar com o Zé Metade e o Andrade da Lua à porta de casa, quando viu o boletineiro montado na bicicleta sem rodas a avançar a toda a velocidade na sua direção deu um salto para trás e bateu na parede. - Aqui está o seu telegrama, Zeca. - disse o João Boletineiro com o ar mais calmo do mundo. - Obrigado João, mas, olha para a tua bicicleta, João… - gaguejou o Zeca. - Desapareceram as rodas ! – interrompeu-o o Zé Metade. - Deixem-se de parvoíces ! Uma bicicleta sem rodas, essa é boa! – retorquiu o João a rir, mas, ao virar as costas aos três homens que estavam ainda em estado de choque, viu por si mesmo que as rodas da bicicleta tinham, de fato, desaparecido. Ficou parado um minuto durante o qual não se ouviu um pio no beco, apesar de já se ter formado à volta dele e da sua bicicleta um espesso montão de pessoas depois do alarido que fizera a Micas Costureira ao descobrir da sua janela a bicicleta a andar sem rodas. - Como é possível! - lançou o João desesperado. – E a festa do meu irmão? Nunca vou chegar a horas!

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- Calma, João, empresto-te a minha bicicleta! – propôs o Andrade da Lua indo logo buscá-la à arrecadação. E o João que deixou a dele aos moradores que a examinaram atentamente. Primeiro, foi o Chico que com um pé de cabra tentou arrancar a bicicleta do pavimento, mas sem resultado. A seguir, o Zeca da Carris teve a ideia de puxar a bicicleta até ao lugar das obras onde pensava que seria mais simples tirarem-na da calçada. Com uma corda, todos os moradores tentaram arrancá-la do pavimento, mas, mais uma vez, nada conseguiram. Então o Chico, pensou em ir chamar o Pedro da pedra preta que estava na escola. Infelizmente, o Pedro apenas torceu um pouco o quadro da bicicleta. Perante o complicado da situação, alguém fez uma última proposta: chamar o tio Bento para tocar um pouco de trombone. Com a força da música talvez as rodas se desterrassem. No entanto, a ideia não foi aceite pelos outros que acharam que a solução era muito perigosa, porque ninguém controlava a força daquele instrumento. Foi nesse momento que o Tó Valente saiu da multidão, se aproximou da bicicleta e disse: - Cá por mim acho que essa bicicleta escanifobética traz muita confusão. Até quiseram utilizar o trombone. Não se lembram do que ele fez à minha casa? Não pensem em tal coisa! Com a agitação quase confundiram o género humano com Manuel Germano. Penso sinceramente que o caso dessa bicicleta não nos diz respeito. - Podemos chamar os das universidades, até podem trazer respostas ! - disse o Alves Mandrilador. - Nã, isso é uma perda de tempo e não traz nenhum lucro. – disse o Virgolino Alpoim. - Podemos devolver a bicicleta como está ao João que ela anda embora não tenha rodas! – propôs a Marta Taberneira que se avançara para a bicicleta.

E assim fizeram. Hoje ainda se pode ver por Alfama abaixo, ou Mouraria acima, o João Boletineiro a pedalar feito louco na bicicleta sem rodas, sem que ele alguma vez tenha tido tempo para resolver tal mistério.

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1.3 O boletineiro Abreu UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, estavam o Zeca da Carris e o Zé Metade sentados na esplanada da taberna da Marta a beber uma amarelinha, quando aparece do nada o boletineiro em cima da sua bicicleta, uma bicicleta velha e toda enferrujada. A ferrugem era tanta que a cor encarnada da bicicleta já tinha desaparecido, as rodas eram finas, estavam tortas e os pneus estavam sem ar. 7


- Olha, olha Zé! - disse o Zeca da Carris com um ar indignado - Vem ali o boletineiro! - Mas… mas que… - respondeu Zé Metade sem acreditar no que estava a ver - Sou eu que vejo mal ou as rodas da bicicleta do boletineiro estão mesmo a rolar debaixo do pavimento? Ficaram os dois de boca aberta a analisar aquele fenómeno. - Achas que lhe podemos perguntar o que se passa? - perguntou o Zeca da Carris. Sem esperar pela resposta o Zeca levantou-se da cadeira e avançou determinadamente em direção ao boletineiro: - Então, amigo Abreu, tudo bem? - Tá tudo… - respondeu o boletineiro antes de ser interrompido pelo Zé que não o deixou acabar de falar. - Nos queríamos fazer uma pergunta sobre a tua bicicleta. As rodas, elas andam debaixo do pavimento, isso é normal? - Pois, isso… é uma longa história. - respondeu o boletineiro tentando fugir da conversa. - Anda lá amigo, conta lá. Tu sabes que a gente gosta de saber tudo o que se passa aqui no beco. insistiu o Zeca. - Mas a história é esquisita e vocês não vão acreditar em metade do que eu vos vou dizer. - disse o boletineiro com algum receio. O Zeca da Carris e o Zé Metade olharam um para o outro sem perceber grande coisa. - Tu disseste “história esquisita”? – o Zeca da Carris e Zé Metade começaram a rir-se com dois risos um pouco forçados. - O que não falta aqui são histórias esquisitas, amigo, entre a máquina de costura que congela e a nuvem que chove dentro de casa ou mesmo o trombone do tio Bento, venha o diabo e escolha. Já nada nos surpreende – recordou-lhe o Zé. - Então se mais nada vos pode surpreender, vamos mas é sentar na esplanada da taberna para bebermos cada um a sua amarelinha e eu tento explicar tudo. - sugeriu o boletineiro. Foram os três para a taberna, o Zé e o Zeca da Carris atrás do boletineiro Abreu para poderem observar o estranho andamento da bicicleta. Com as suas rodas meias tortas e cheias de ferrugem, a bicicleta avançava com quase cinco centímetros de cada roda debaixo do pavimento. Chegando à taberna sentaram-se numa mesa deixando a bicicleta encostada contra a parede junto à entrada da taberna. - Prontos, visto que vocês estão tão interessados na história desta minha velha bicicleta, acho que o melhor é começar pelo início. Eu encontrei esta bicicleta quando tinha 12 anos, num canto da velha garagem do meu falecido avô. Estava um belo dia de sol e consegui tirar a bicicleta da garagem sem fazer grande confusão. Ela já estava nessa altura tão enferrujada como agora. Ainda a tentei lavar várias vezes, mas sem grandes resultados. Como naquele tempo era criança tinha sempre uma grande curiosidade pelas coisas, por perceber o que eram, donde vinham, por isso fui fazer estas mesmas perguntas à minha avó. - E afinal, essa bicicleta, o que é que ela tem de tão especial? – perguntou-lhe o Zeca da Carris já agitado 8


em cima da cadeira. - Calma, colega, que já lá vamos. Como eu estava a dizer, a minha avó explicou-me que esta bicicleta foi aquela que utilizaram no filme do Spielberg, o E.T, conhecem? Aquele filme do extraterrestre que era amigo de um rapazinho e os dois voavam na bicicleta... - prosseguia o boletineiro com um certo orgulho. Zé Metade e Zeca da Carris ficaram perplexos ao ouvir a história do Abreu e não acreditaram que aquela bicicleta fosse a mesma que tanto os fascinara na juventude. - Então é por isso que ela anda debaixo do pavimento? - perguntou incrédulo o Zeca. - Deve ser, deve, Abreu… - repetiu pausadamente o Zé Metade para concluir com alguma ironia – seria bom não confundir género humano com Manuel Germano, ó Abreu!

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1.4 A bicicleta enxofrada UMA OCASIÃO, à porta de casa do Zé Metade, eis que surge o Armando Boletineiro. Vinha agachado, carregado que nem uma mula, em cima da sua bicicleta que fazia um barulho muito escanifobético, mais parecia um arado a fresar a terra cheia de pedregulhos. Zé Metade, que nunca deixava escapar nada, deu uma pirueta para observar melhor e abriu a boca até se lhe verem os dentes do ciso todos esburacados. ̶ Ina cum caraças! Que se passa com a tua bicla? O Armando muito afogueado e a deitar os bofes pela boca, arregalou os olhos e arfou fortemente como se lhe tivessem espremido os pulmões. ̶ Fui promovido... deixei a minha bicicleta ontem perto da gateira e hoje é o que se vê. ̶ Foste promovido a toupeira? Deixa cá ver isso… Ná, aqui há enguiço e do bom! ̶ Cala-te mas é, que eu andei toda a manhã a distribuir papéis, estou farto de pedalar, já dei cabo das botas e esfarrapei o meu casaco todo. De olhos postos nos dois, estava a Marta, que da taberna podia ver tudo com clareza. Atirou o pano da louça pelo ar e como um furacão saltou para a rua. ̶ Mas que vem a ser isto? Olha para o chão todo escarafunchado! Quem é que vai compor isto tudo é que eu quero saber! ̶ Calma! ̶ disse o Armando já um bocado arreliado com tamanha confusão e o trabalho por fazer. 9


O Zé Metade, nesta altura, já estava agarrado à bicicleta, a puxar para cá e para lá. ̶ Arre diabo, é como se não tivesse rodas! O melhor é chamar o presidente da Junta porque isto aqui está complicado e alguém terá que compor esta buracada toda. Num instante já ali estava o presidente da Junta, o Andrade da Lua e mais uns quantos mirones a dar palpites e a querer experimentar a bicla que andava com as rodas debaixo do pavimento. ̶ Ora vamos lá explicari, quando é que isto começou ̶ exigiu o Andrade da Lua achando-se muito importante. O Zé Metade deu um impulso ao seu carrinho de rolamentos e começou a papaguear como se não houvesse amanhã. ̶ Eu sei, eu fui o primeiro a ver tudo. Ontem, o Armando deixou a bicicleta perto da gateira e hoje a gaja anda de rodas escondidas. Deve ter vergonha dos pneus carecas! O presidente da Junta, que já adivinhava sarilhos, mandou calar o Zé Metade para que não houvesse confusão. ̶ Ora é pra calar e pensar, nada de confundir género humano com Manuel Germano. A bicicleta ontem estava normal e hoje é o que se vê, ou melhor o que não se vê. Isto cheira a esturro, e logo perto da gateira… o melhor é arrancá-la do chão e metê-la na gateira até que desapareça de tanta ferrugem. O Armando dá um grito e atira-se à bicla com tal força que lhe fura os dois pneus com as unhas, mais parecia o Gigas em outros tempos. Solta-se um silvo esquisito, afiadinho e com cheiro a enxofre. ̶ Cautela que ninguém respire isso! ̶ gritou o Andrade e todos arredaram uns quantos metros para trás. Todos, menos o Armando que continuava agarrado como uma lapa às rodas da sua bicla. ̶ Ó homem, sai daí! ̶ ordenou o Zé Metade. Meu dito, meu feito, o Armando saiu do buraco num credo e a sua bicicleta apesar de ter os pneus esfarrapados, parecia perfeitamente normal. ̶ Pronto já está boa! ̶ esclarece o Armando todo desaprumado mas feliz. ̶ Aiii com o camandro! Que a bicicleta tinha mas é “ar” de gatos nos pneus. Vou mandar arranjar o pavimento e não se fala mais no assunto. E quanto à bicicleta, nada que uma boa barrela não resolva.- rematou o presidente da Junta. E lá continuaram as suas vidas, com algumas especulações, mas nada que um copo de amarelinha não abafasse. FM

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1.5 A Bicicleta do Boletineiro UMA OCASIÃO, um dia como outro qualquer no beco das sardinheiras, estava toda a gente na taberna a beber uma amarelinha, depois dos homens da companhia das águas se terem ido embora com a explicação sobre o chafariz “clandestino”. Ora enquanto uns estavam na taberna, outros preparavam-se para ir trabalhar como era o caso do boletineiro que, ao sair de casa, encontra à porta a sua bicicleta com as rodas debaixo do pavimento para distribuir as cartas. - Ai os malandros da companhia das águas, enterraram-me a bicicleta quando fecharam o raio do buraco! – exclamou olhando para as rodas - Se calhar bem posso sair por aí a pedalar... Esperou um bocadinho e depois de uma longa reflexão sentou-se no selim da bicicleta e experimentou pedalar nela. -Ai que o raio da bicicleta não quer avançar! Vamos lá, rapaz, depois vão dizer que és um fraco... – disse para si mesmo fazendo mais força com os pés nos pedais até que houve um terramoto tremendo. - Provoquei o fim do mundo! – exclamou assustado. Alguns minutos passaram e a Terra parou de tremer brutalmente. O boletineiro surpreendido tentou uma derradeira vez andar na bicicleta e... - Até que enfim que ela já anda! Começou a andar, surpreso com o esforço feito antes, e viu que não se passava nada. Foi andando e distribuindo as suas cartas. No dia seguinte, quando toda a gente foi para o seu trabalho, o boletineiro pegou nas cartas e na bicicleta e iniciou a distribuição. Começou a pedalar, saiu pela rua fora provocando gritos de espanto em muita gente. - O que é que vossemecês têm para gritar assim? – perguntou. - Então não vês que a tua bicicleta... - O que é que ela tem? - Ela... - Sim? - Não vês que ela tem as rodas debaixo do pavimento?! O Boletineiro dá então uma olhadela e vê a tremenda realidade: a sua bicicleta não andava sobre as rodas… - Mas como é que eu consigo andar? - Ora continua lá para vermos melhor! Recomeçou a pedalar e toda a gente perdeu o equilíbrio caindo estrondosamente no chão. - Ai, então porque é que toda a gente caiu, estão bêbedos ou quê? 11


O Zeca da Carris chegou nesse momento com uma picareta e anunciou: - Não mexa, seu malandro, que vou esclarecer tudo isto. Começou a escavar até que encontrou uma corrente. -Encontrei a corrente desta máquina infernal! Ufa! Ó boletineiro, pedala lá! Ele começa a pedalar e toda a gente vê a corrente a fazer mexer o chão. - Já compreendi! -exclamou de repente o Zeca da Carris - Não é a tua bicicleta que anda quando pedalas, mas sim o mundo inteiro! O boletineiro viu a tremenda verdade e foi obrigado a abandonar a sua bicicleta. Sabe se lá como é que os da companhia das águas tinham feito o trabalho deles, mas uma coisa era certa: confundiram completamente Manuel Germano com Género Humano!

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1.6 As rodas UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, o Deuzivaldo boletineiro apareceu com uma bicicleta nova e andava na distribuição dos telegramas gabando-se diante de todos, desafiando mesmo o Zé Metade que, na sua cadeira de madeira, não ultrapassava os 50 km/h. Este Deuzivaldo era conhecido por ser muito calado exceto quando lhe dava para comprar algo que os outros não tinham. Estando, certo dia, a taberna da Marta cheia, girava a discussão em torno da nova aquisição do boletineiro Deuzivaldo quando o Zé Metade comentou: — Já ‘tou farto deste gajo, sempre a gabar-se das suas coisas novas, quando eu nem sequer me consigo mexer! — Tu é que também ‘tás sempre a competir com ele em vez de o ignorar, o que só lhe dá mais vontade de mostrar a bicicleta! — ripostou o Chico Estivador depois engolir um copo de “amarelinha”. — Ele acaba sempre por me conseguir provocar... — admitiu o Zé Metade. — Deixem ‘tar que daqui a um tempo ele já se esquece disso! - comentou o Virgolino Alpoim - Ou então, no pior dos casos, pregamos-lhe uma partida para ver se ele…. Sem sequer ter tempo de acabar de falar, ouviu-se um grito vindo da rua, era o boletineiro que fez toda a gente sair da taberna para ver o que se passava.

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— Nem era preciso pregar partida nenhuma, até a bicicleta percebeu que tinha de lhe dar uma lição! disse o Zeca da Carris ao ver a situação. Estava então o Deuzivaldo a tentar distribuir a correspondência quando de repente as rodas da bicicleta desapareceram. Ficou ele ali a flutuar durante um minuto enquanto todos olhavam boquiabertos para o homem e para a bicicleta sem rodas... para surpresa de todos, as rodas estavam 4 centímetros abaixo do pavimento, o que fez o boletineiro cair depois do choque das rodas cravando o chão e espetando-se por baixo da calçada. Todos foram em auxílio do boletineiro que parecia ter partido um osso qualquer. Teve de facto que passar pelas urgências do hospital para se assegurar que não tinha partido nada. De regresso ao beco, viu o Chico Estivador e o Virgolino à volta da sua bicicleta nova, intrigados e a tentar perceber o que se tinha passado. - Ó meu caro senhor, não sei onde é que foi comprar isto, - disse o Chico Estivador com uma expressão de cansaço pouco comum na cara dele - mas eu não o deixo voltar a entrar nessa loja! - Eu estava simplesmente farto da minha velha bicicleta que não parava de chiar, e então decidi comprar uma nova e baratinha lá numa loja ao pé de casa! — Então na próxima vez que comprar uma bicicleta, pelo menos troque-lhe as rodas se não quer voltar a confundir género humano com Manuel Germano... já viu que ia indo desta para melhor? Dito isto, o Virgolino sacou do seu telemóvel e ligou para um amigo que era calceteiro pedindo-lhe que viesse pois tinham um trabalho complicado no beco para lhe confiar. O calceteiro veio imediatamente. Esteve a picar e a tirar calçada durante mais de uma hora e, no fim, chegou à conclusão que a bicicleta era inamovível pois tinha-se entranhado excessivamente no cimento. À vista da situação, sugeriu aos moradores do beco que pedissem uma grua para se desenterrar a bicicleta do boletineiro. Foi nesse mesmo instante que saiu a Marta da taberna aos berros: — Qual grua, qual carapuça, a bicicleta andava, não andava? Então toca tudo a sair daqui que já está a cidade inteira com os olhos em cima de nós e eu não quero cá escândalo nenhum à frente do meu negócio! Deuzivaldo, toca a pedalar esta geringonça que o mal dela é estarem aqui todos à volta! Ao ouvirem isto, os homens pisgaram-se com medo de levar com o copo que ela trazia na mão e todas as cabeças sumiram das varandas e das janelas, deixando as sardinheiras a balouçar sozinhas com a agitação da Marta. O Deuzivaldo pôs-se em cima do selim e já sem dores nenhumas no corpo, recomeçou a sua rotina de distribuição como se nada tivesse acontecido.

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II aquela do tipo chamado BelmotrĂŁo que crescia e decrescia conforme ia e vinha

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2.1 O Belmotrão dos tamanhos UMA OCASIÃO,

no beco das sardinheiras, o Belmotrão estava a andar na rua e, de repente, caiu. Ao cair

ouviu-se “Trssh”, como se algum objeto de madeira se tivesse partido. Os moradores do beco aproximaram-se dele, o Chico ajudou-o a levantar-se e o Zeca da Carris perguntou: - Homem, o que aconteceu? Tinhas alguma coisa contigo de madeira, quando caíste? Pareceu-me ouvir madeira a partir, há pouco... - Caí porque me desequilibrei, foi só e não tenho nada de madeira.- respondeu o Belmotrão desviando o olhar. - Mas parecia mesmo o barulho da ma... - insistiu o Zeca. - Já te disse que não tenho nem tinha nada de madeira comigo quando caí, pá! Deves estar a confundir género humano com Manuel Germano! - enervou-se o Belmotrão. - Calma! - disse o Chico que não queria confusão. - Havemos de encontrar a origem do pensamento do Zeca. - Enquanto vocês pensam eu vou andando que tenho mais que fazer. - disse o Belmotrão e, ao ir-se embora, o Andrade e o Zé começaram a bisbilhotar e afirmaram: - Ó Chico e Zeca, venham cá! - Que foi? – perguntaram ambos ao mesmo tempo. - Já repararam que o Belmotrão está a andari de forma estranha? - Tens razão, Andrade, está mesmo. Deve-se ter aleijado com a queda. – disse o Chico - Pois... – concordou o Zé. Mais tarde, nesse mesmo dia, os moradores do beco voltaram a ver o Belmotrão e ficaram espantados pois parecia estar diferente. - Estás melhor, Belmotrão? Não te sentes estranho? – perguntaram os moradores - Não, porquê? – perguntou o Belmotrão - Porque estás muito mais pequeno do que de manhã! – exclamaram todos. - Sim, eu sei... – e foi para a taberna da Marta para refrescar a garganta. - Marta, uma amarelinha se fazes favor! A Marta deu-lhe a bebida servida num copo de cristal pequeno, mas ele pouco contente: - Dá-me um copo maior, preciso de beber bastante porque estou com sede! - Quem tem sede bebe água da torneira e não aguardente, ó inteligente! – repondeu a Marta que não gostou da forma como o Belmotrão lhe pediu o copo maior. 15


- Prefiro a aguardente, tem um sabor melhor. - disse o Belmotrão que não estava com paciência para discutir. Depois de dois copos, pois já estava bêbado, e pronto para armar confusão. Expulsaram-no logo da taberna da Marta. Decidiu voltar para casa, mesmo se já não conseguia andar normalmente. No dia seguinte, o Vírgolino, que o tinha visto na taberna, perguntou: - Como é que tu cresceste tanto durante a noite? Não és criança para crescer ao dormir… Ele respondeu: - Sou mágico! – gozou o Belmotrão - Não és nada mágico, eu conheço-te o suficiente para saber isso... – respondeu o Virgolino. - Pronto, está bem, eu conto-te: tenho andas que utilizo para parecer maior pois sou bastante pequeno e não quero que as pessoas gozem comigo por causa do meu tamanho. Podes ir contar ao Chico e ao Zeca para ficarem a saber. – confessou o Belmotrão um pouco triste - Se é isso que queres, vou contar-lhes. – disse o Virgolino.

A ideia do Belmotrão não era má, usar andas para parecer maior, por isso foi dizer ao Zeca e ao Chico para que estivessem informados sobre aquele assunto. PS ***

2.2 A « vermelhinha » UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, à noite, o Belmotrão saía da taberna da Marta, e dirigia-se para o seu carro. Procurou as chaves durante alguns minutos, arrancou e começou a regressar a casa. Morava com a mãe à saída do beco. Nessa noite estava bêbado como um gambá e conduzia de uma maneira muito perigosa. Ocorreu então o acidente: Belmotrão não tinha reparado na Rita, irmã do Marcelino Droguista, que atravessava a estrada. A pobre mulher acabou no hospital. Passou uma semana até a família da Rita receber os resultados dos médicos: ela nunca conseguiria andar de novo. Belmotrão, o único responsável da desgraça, ficou quase mudo e, traumatizado, já nem conseguia sair de casa. - Mas então, filho, como é que isso aconteceu? - perguntava a mãe do Belmotrão numa pequena e fraca voz. - Não sei, não sei… – respondia o filho. - Conduzias bêbado? – insistia a mãe. - Não sei, não sei… – repetia Belmotrão. 16


- Pobre mulher… – comentava a senhora benzendo-se. O familiar da Rita mais enraivecido com todo o sucedido era o Marcelino e tinha agora uma única preocupação: vingar-se. Todos os dias procurava encontrar um plano para castigar o homem responsável do desastre. Só três anos depois do acidente, o Belmotrão conseguiu voltar à taberna da Marta. Um só detalhe não tinha mudado em Belmotrão: bebia sem limites, como sempre fizera no passado. Ele tinha esquecido todos os rostos e todos os nomes dos moradores do beco que também deixaram de o reconhecer. Diziam que tinha viajado para França, iniciando uma nova vida. Outros diziam que tinha acabado por morrer de tristeza. Mas nesse dia, alguém o esperava com determinação, a única pessoa que ainda se lembrava da sua cara: o Marcelino! Belmotrão estava sentado numa cadeira alta, junto ao bar, olhando o seu copo de “amarelinha”. Talvez a única coisa que ainda não esquecera. Foi no momento em que Belmotrão se virou para poder ver a televisão, que o Marcelino Droguista, vestido com um grande casaco preto e de chapéu na cabeça, se aproximou dele e introduziu uma espécie de pó no seu copo desaparecendo da taberna tão discretamente quanto tinha entrado. A bebida mudou imediatamente de cor, tornando-se encarnada. Logo a seguir, o Andrade, que estava ultrapassando o seu recorde de 13 “amarelinhas” num só dia, berrou com voz grave para a Marta: - Então?! O pessoal vende agora “amarelinhas” encarnadas e não informa o Andrade? Que ideia é essa?! – perguntou apontando com o dedo o copo do estrangeiro que em dois segundos desapareceu pela goela abaixo. - ‘Tás a alucinar, Andrade! É melhor voltares já pra casa que daqui a pouco confundes género humano com Manuel Germano. – respondeu a Marta enquanto o Belmotrão saía da taberna sem ligar nada à discussão. Começava, isso sim, a sentir, pouco a pouco, uma dor forte na barriga e achou óbvio ir para casa beneficiar dos cuidados da mãe. No dia seguinte, Belmotrão já recuperado, regressava à taberna. Parecia ser um dia normal, como todos os precedentes, até que algo aconteceu. No caminho, todos os transeuntes olhavam Belmotrão de uma maneira muita estranha, afastando-se dele. - Vem cá, filho, não te aproximes do senhor – murmurou alguém. - Que homem escanifobético… – diziam outros. Belmotrão estava todo confuso, não conseguia responder às perguntas que colocava a si próprio. Logo a seguir, sentiu uma sensação estranha ao nível do joelho. Só nesse momento percebeu as reações da gente na rua. A sua camisa ia-lhe até aos joelhos! E olhando no vidro da porta da taberna, viu uma criança com roupa demasiado grande e barba de homem idoso! Ele tinha-se transformado. - Não pode ser real, não pode ser! Deve ser o álcool de ontem! – exclamava Belmotrão, tentando fugir daquele “pesadelo” terrível. Começou a fugir, corria pela rua sem parar, não podia acreditar naquela desgraça. Mas, enquanto corria, pouco a pouco parecia recuperar a sua estatura, sentindo um grande alívio. Mas o seu pesadelo não estava terminado, rapidamente ultrapassou o seu tamanho normal! Começava a atingir a altura de 17


dois metros e quarenta, estava um verdadeiro gigante! Belmotrão apercebeu-se então que crescia e descrecia conforme ia e vinha no beco. Nos dias que se seguiram, contactou todos os médicos de Lisboa, mas nenhum encontrou a origem do problema. Belmotrão, desesperado, encontrou uma única solução: acostumou-se e viver com essa doença. Todos dias saía de casa com um pequeno saco onde guardava roupa de diferentes tamanhos. Nunca percebeu como esta desgraça aconteceu, convencendo-se que se tratava de um castigo de Deus.

MG

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2.3 O Belmotrão UMA OCASIÃO, todo o beco das sardinheiras estava reunido perto da rua dos Eléctricos para comemorar a chegada de um novo habitante. O Virgolino, sempre muito simpático, foi meteu conversa com o novo habitante: - Ora bom dia, seja bem-vindo, como se chama? - Belmotrão Gigante. - Gigante não parece, tem quase o mesmo tamanho do Zé Metade, aquele nosso vizinho que anda sempre sentado. - Sim, mas você verá, quando eu voltar de viagem, vou parecer maior! - Tá bem... mais um louco do género do padre alentejano... Aquele Belmotrão era na verdade um grande marinheiro que viajava há muito para descobrir novas ilhas. Regressava uma vez por mês ao domicilio, entre duas viagens. O beco, perto dos cais do Sodré foi por isso uma excelente escolha para a sua nova residência. Após os dois dedos de conversa, o Virgolino foi rapidamente falar com o presidente da Junta. - Esse Belmotrão que aqui desaguou no beco não tem um problema qualquer? Parece meio louco como o padre alentejano. - Virgolino, não te faz ideias tanto rapidamente esperamos um pouco e se é um caso sério eu tratarei do problema. - Hum, compreendo… Sem ver qualquer reação expressiva do presidente da Junta, o Virgolino foi contar a alguns residentes, na Taberna da Marta, o que receio que tinha de que Belmotrão fosse o novo cientista louco do beco, como o padre alentejano, aparentemente capaz de mudar de tamanho, fazendo fé no que lhe tinha dito. Muitos riram e 18


pensaram que o sol de verão tinha afetado irremediavelmente o Virgolino para lhes estar a contar uma história tão escanifobética. O tempo passou e o Belmotrão, o novo habitante quase anão, partiu para mais uma expedição marítima. Os residentes do beco não viram o marinheiro durante dois meses. Mas quando voltou, muitos ficaram surpreendidos pois o Belmotrão parecia maior! Muitos pensaram que, como não o tinham visto durante dois meses, não podiam lembrar-se realmente do tamanho do homem e desligaram do assunto, só o Virgolino é que não pois acabara de compreender as palavras que o Belmotrão lhe tinha dito ao chegar ao beco e foi falar com o Andrade da Lua que fazia sempre reflexões sobre tudo e todos. Só que, desta vez, o Andrade, depois de ouvir o Virgolino, não se interessou pela história achando que o aumento do tamanho não era importante, afinal o problema era só do Belmotrão! E os dias passaram com as expedições do Belmotrão que parecia crescer e decrescer a cada regresso de viagem, era conforme! Certa vez, estando ele de partida para uma nova expedição, o Virgolino acompanhou-o até ao cais do Sodré e ao embarcar perguntou-lhe: - Como é que fazes para mudar de tamanho? - Eu não mudo, o tamanho do mundo é que muda. E de boca aberta, o Virgolino viu o Belmotrão partir para nunca mais voltar. AR

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2.4 Belo Belmotrão UMA OCASIÃO, Belo Belmotrão - um anão e não passava do metro de trinta, sempre considerado como uma criança - saiu do trabalho e foi à taberna da Marta, onde encontrou o Zé Metade e o Andrade da Lua, o que certa vez tinha desengolido a Lua. - Que coisa mais escanifóbetica! - dizia o Belo ao Andrade - Como é que desengoliste a Lua? - Da mesma maneira que a engoli! - respondeu o Andrade - Saiu-me da goela sem eu dar por ela! - Marta! - chamou o Zé - Trazes-nos três amarelinhas, se fazes favor? - Tá a chegar! - respondeu a taberneira. Quando acabaram de beber e de conversar, Belo Belmotrão voltou para o seu lar pois tinha a mulher à espera. Ao sair da taberna, começou a crescer cada vez mais à medida que se aproximava da porta de casa. Todos o olharam com espanto no beco:

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- O que se passa? - perguntavam uns – ‘Tá a crescer! - respondiam outros. - Eu sei que estou a crescer. - dizia o anão - A pergunta é: porquê? - Se calhar já não és um anão e estás a começar a ficar com um tamanho normal. - sugeriu a Marta. - O quê? -perguntou com espanto o Belmotrão. - Não te preocupes Belmotrão - começou o Zé – A Marta anda a confundir género humano com Manuel germano… - Pois é, não se pode perder o ânimo. - prosseguiu o Andrade. - Eu vou mas é sentar-me que isto de crescer torna-se um bocado pesado. Em vez de entrar em casa, Belo voltou para a taberna da Marta e ocupou de novo o lugar onde se tinha sentado inicialmente. Foi aí que começou a decrescer: uma surpresa para toda a gente! Passado meia hora, ao aproximar-se da porta de saída recresceu de novo. Aproximou-se do fundo da taberna e decresceu. Recresceu e decresceu várias vezes, agora tinha sede de descobrir o que lhe acontecia. Farto dos comentários do pessoal, e cansado de mudar de tamanho, o Belmotrão decidiu deixar a taberna e saiu porta fora. Já na rua, reencontrou o seu tamanho normal, percebendo então que era a taberna que o transformava em elástico. Assim sendo, tomou a iniciativa de jamais tornar a pôr o pé lá dentro, para grande infelicidade dos seus compinchas do beco. A Marta, desolada por ter perdido um cliente, logo encontrou a solução de lhe propor o serviço da taberna ao domicílio. Belmotrão encantado, aceitou imediatamente a proposta e logo combinaram como fazer. Foi instalado um sininho na varanda do Belo Belmotrão de maneira que a Marta fosse avisada da sua vontade de beber uma “amarelinha”, e lá fosse levar-lha. Embora o Zé Metade e o Andrade tivessem ficado desolados com a perda de um dos companheiros de taberna, ficaram os dois conformados por terem um amigo que já não era uma vítima dos casos do beco.

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2.5 O guarda da Lua UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, durante uma bela manhã de domingo, como de costume o Virgolino Alpoim, ainda de pijama, foi fumar um cigarro à janela. Foi então que ouviu um barulho, vindo de longe, parecia ser passos de gigante fazendo tremer o chão. Continuou a fumar, sem prestar muita atenção. Logo a seguir decidiu ir fazer um café e relaxar na varanda. Observava as pessoas saírem de casa a irem buscar o pão à padaria da Dona Helena, um cão que ladrava e corria atrás de um garoto, um casal que se abraçava… De 20


repente, ao fundo da rua, apareceu um tipo que crescia e decrescia conforme os passos que dava, no meio da rua dirigia-se à padaria da Dona Helena. Virgolino Alpoim acabou rapidamente de beber o seu café antes de descer precipitadamente para a rua, onde já havia muita gente à volta do tipo. - Comé qu'te chamas? - perguntou o Zé Metade olhando para o ar em direcção ao senhor. - O meu nome é Belmotrão, preciso de espaço. Podem todos abrir alas, por favor? As pessoas afastaram-se como o senhor Belmotrão pediu e ele correu até o meio das pessoas, deu um pulo enorme, e apanhou algo que estava suspenso no ar, mas que ninguém podia ver. - Ena! O homem tá pendurado no céu! - comentou alguém. - O que é que está a fazer o tipo lá em cima? - perguntou uma mulher que saía de casa nesse momento. O Zeca da Carris que tinha chegado há pouco interveio: - Aaah ! Eu sei, o tipo está agarrado à corda que o Virgolino viu vir lá de cima há umas semanas! - A corda estava aqui? - perguntou o Zé Metade com muita seriedade. - Sim, sim! Eu recordo que ela estava exatamente neste lugar ! - confirmou o Virgolino Alpoim que tinha sido o primeiro a ter visto a corda que parecia pendurada no céu. Entretanto, o Belmotrão já tinha desaparecido por cima das nuvens, para aparecer instantes mais tarde no antigo lugar onde se encontrava a Lua quando tinha sido engolida pelo Andrade. Nesse momento, abriu o saco e sacou uma nova Lua que pousou no lugar da Lua engolida. - Ele tinha a Lua no saco? – perguntou atónito o Zé Metade. - Não, deve ser outra Lua, não pode ser a antiga, essa o Andrade engoliu-a. – esclareceu o Virgolino Alpoim. Enquanto os habitantes do beco, reunidos no meio da rua, conversavam sobre o sucedido, o Belmotrão desceu da corda e foi comprar uma bolacha na padaria da Dona Helena, antes de ir falar com o Virgolino e com os outros residentes para perguntar o que se tinha passado com a Lua que deixara de iluminar a noite alfacinha. - Podem explicar-me porque é que a Lua desapareceu aqui há umas semanitas? Parece que vossemecês sabem o que se passou e eu quero explicações sobre o ocorrido! Sou o guarda da Lua, preciso de saber tudo o que se passa com ela. Chegou então o Andrade que ouvira o discurso do Belmotrão em silêncio e propôs-se explicar o caso do desaparecimento da Lua. - Caro guarda, fui eu que fiz desaparecê-la, engoli a Lua! - Fizeste desaparecer a LUA? Imaginas as consequências dos teus atos? Tenho quase a certeza que fizeste de propósito, SÓ para ficares famoso! Mas agora tens de pedir desculpas e pagar pelo que fizeste! avisou o Belmotrão, já muito zangado com o Andrade por causa da sua passividade aparente. - Não fiz de propósito, peço imensa desculpa, mas PAGAR? Não há nenhuma razão para isso! - Deves pagar, sim senhor! Não posso aceitar as tuas desculpas, a Lua é cara! Nesse momento, interveio o Chico Estivador, muito divertido com a ideia do Andrade pagar a Lua que 21


tinha comido: - Se me permite, o senhor está a confundir género humano com Manuel Germano. É que o Andrade, não fez realmente de propósito para engolir a Lua, portanto não há nenhuma razão para o condenar. Ao ouvir isto, Belmotrão pensou mais um pouco e decidiu não condenar o Andrade: - Bom se vocês me garantem que foi assim que se passou, não há problema, mas na próxima vez prestem mais atenção e por favor, ponham a mão à frente da boca para não comerem o que não é para comer!

JV

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2.6 O biscoito UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, o Belmotrão Nadador-Salvador passeava com os seus amigos. Nessa altura tinha o seu tamanho grande. Alguns miúdos que brincavam por ali perguntaram-lhe porque estava sempre a mudar de tamanho. O pessoal, que gosta de saber da vida uns dos outros, juntou-se à volta do enorme Belmotrão que, encantado com a atenção dos moradores, começou a explicar a origem desse fato: - Um dia, tinha eu sete anos, estava em casa da minha tia Alice Pasteleira, mãe da Lecas Pasteleira, a minha prima favorita, e passava na televisão o filme preferido delas: «Alice no país das maravilhas». Elas conheciam-no de trás para a frente! Mais do que isso, a casa delas lembrava a casa da rainha de copas e viviam com essa fantasia. A tia Alice fazia muitas receitas escanifobéticas e eu, guloso como era, gostava muito de experimentar os bolos e os biscoitos dela. Depois de me avisar que não devia comer os biscoitos que tinha acabado de tirar do forno, a minha tia pô-los em cima da mesa a arrefecer… mas eu não esperei e meti um à boca. Paguei caro a minha gula! Comecei a crescer, crescer, crescer e quebrei o teto da casa! A tia Alice, de boca aberta, ficou muito feliz com o resultado do ingrediente secreto que usara, mas também bastante preocupada por não conhecer que ingrediente deveria usar para eu poder voltar ao normal. A partir daí fiquei sempre gigante! - Mas atão, porque chega sempre a casa muito pequenino, como se fosse um anão? - atirou-lhe um miúdo. - Isso já é outra história… - Conta! Conta! Faz favor!

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O Belmotrão não se fez rogar muito e descreveu-lhes uma ida à praia de Cascais com os seus amigos Zeca da Carris e Zé Metade. Para caber no comboio que tinha apanhado no cais do Sodré tivera que ocupar quatro lugares e pôr a cabeça fora da janela como uma girafa. Nesse dia fazia muito calor e não tinham resistido a um mergulho no mar azul da baía. Quando o Zeca da Carris saiu da água, não encontrou o Belmotrão em lado nenhum. O Zé Metade, que esperava na areia, ouviu também alguém a gritar. Ambos perceberam rapidamente que era o Belmotrão, muito mirrado e encolhido, que pedia ajuda depois de ter descoberto a maneira de diminuir de tamanho! O pior é que não sabia como regressar a casa. Os amigos logo resolveram a situação levando-o no bolso das calças! Só depois de chegar a casa, Belmotrão se lembrou da famosa receita do biscoito mágico da tia Alice que o fazia crescer. Como tinha cozinhado como ela, pôde tornar a comer o biscoito e aumentar de tamanho. - Desde esse dia, decidi ser nadador-salvador, pois chegava sempre à praia enorme, o que me dava força para enfrentar as ondas do mar e assim salvar muita gente. Mal saía da água, ficava pequenino por secar ao sol. - Ó Belmotrão, você parece um yô-yô sempre a esticar e a encolher! – gritavam uns miúdos depois de ouvir a história. - Deixem-no lá sossegado! Qual yô-yô, qual carapuça! Só falta confundirem Manuel Germano com género humano! - alvitrou a Marta Taberneira, de mãos nas ancas. - Não faz mal! - retorquiu Belmotrão - Vocês sabem porquê? Porque penso que tenho um delicioso biscoito que me espera em casa a cada regresso a casa, e isso é fixe! - Ai, Belmotrão guloso! - responderam as crianças em coro. A partir daí, os moradores do beco olhavam com outros olhos o Belmotrão que continuava a fazer as suas idas e voltas cais do Sodré-Cascais, pra lá gigante e pra cá anão.

MD ***

2.7 Belmotrão Medonho UMA OCASIÃO, estava lá na rua dos Elétricos o Zé Metade, a brincar com o carrinho de rolamentos. Às sextas tinha por hábito subir para dentro de um eléctrico que o levava até ao topo da colina e depois descia a alta velocidade pela rua abaixo. Fazia isto até ao anoitecer. O Zé andava naquilo porque queria disfrutar da vida, e o seu jogo decorria às sextas porque era o único dia em que não estava sempre a ser incomodado pelos outros que faziam dele a sua vítima, como o leitor já o sabe, porque olhavam a bola na televisão da Marta, na taberna. Numa sexta, o Belmotrão Medonho passava pela rua dos Elétricos. Era um jovem rapaz de cerca de vinte anos, pequeno, forte, de olhos azuis. O seu problema é que tinha medo de tudo o que apresentasse o 23


mínimo risco, partir a perna descendo as escadas ou cortar a mão no trinco da porta. Tinha, no entanto, o Belmotrão uma vontade louca de imitar o Zé Metade nas suas descidas rápidas, mesmo se chegou a resmungar: - Que jogo escanifobético o do Zé Metade! Ainda por cima é perigoso! O Virgolino Alpoim, ouvindo o comentário do Belmotrão enquanto bebia uma boa amarelinha e comia azeitonas, na taberna da Marta, disse-lhe com um tom de quem está a ralhar: - Ó Medonho, porque é que tens tanto medo de tudo? As pessoas como tu nunca conseguem fazer nada na vida por terrem medo de tudo. Estás a ouvir-me? Tira da porcaria da tua cabeça o medo que lá tens dentro. Espera aí que já te vou arranjar um carrinho bem jeitoso. Num nadinha consigo-te isso! Meia hora depois, lá vinha o Virgolino com o prometido carrinho. Era bem jeitoso. Chegava acompanhado do Andrade da Lua e do Zeca da Carris. Já sabiam o que iam fazer: tinham decidido organizar uma corrida entre o Zé Metade e o Belmotrão, para acabar com os medos! O Zé Metade não queria fazê-lo porque a sua experiência com a super-carrinha do padre alentejano não lhe tinha agradado. Por isso, às sextas, quando fazia as suas descidas, havia sempre dez colchões para ampará-lo à chegada. Aceitou contudo participar na corrida, porque o vencedor iria receber uma dúzia de amarelinhas oferecidas pela Marta Taberneira e um carrinho novo e rápido do Virgolino. - Amarelinhas!? Mas o Belmotrão ainda é muito jovem para beber álcool! - declarou a beata Antónia que passava por ali. - O Belmotrão nunca vai ganhar, não se preocupe, vá lá à sua vida - sossegou-a o Andrade. Nervosos, os dois concorrentes subiram num elétrico e chegaram alguns minutos depois ao topo da colina. Toda a gente estava às janelas para poder assistir à descida. O Zé Metade e o Belmotrão já estavam nos carrinhos, preparados para descer a colina. O Virgolino berrou: - Prontos? Do que é que estão à espera? Vá lá! A corrida pode começar! Um, dois três! Partida, largada, fugida! Os dois concorrentes deram uma pancada louca no chão para puxar os carrinhos de tão nervosos e excitados que estavam. O Zé Metade, que já conhecia bem o percurso, e também era mais pesado do que Belmotrão, por ser mais velho e gordo, seguia na frente. O Belmotrão, ao ver que ficava para trás, desconcentrou-se, saiu do percurso, destabilizou-se, perdeu duas rodas e foi parar, a alta velocidade, a um banco que ficava lá em baixo, no fundo da rua. Bateu tão forte que voou, ficando entalado nos cabos elétricos. Levou um choque sério! - Ena! Pobre do rapaz! Vão lá ver! O que resta dele deve ser omelete torrada! - espantou-se o Zeca. - Cala-te e vai mas é ver tu como está ele. - respondeu o Virgolino. Quando se aproximaram do Belmotrão, retiraram devagarinho o seu corpo e pousaram-no no chão. Não apresentava feridas, mas tinha o cabelo, o nariz, e as mãos um pouco queimadas e negras. Quando o Belmotrão se levantou deram-se gritos, não por causa das queimaduras, mas porque o rapaz, ao levantar-se, tinha crescido e agora media cerca de cinco metros de altura! Deu mais um passo e nesse instante decresceu e passara a ter um 24


metro de altura. Com o choque elétrico, Belmotrão tinha adquirido um poder mágico: ao andar, a sua altura variava entre um e cinco metros. - Olha que, quando ele anda, parece uma onda a avançar ! - repetia o Virgolino. - E como é que se repara isso? - perguntou o Zé Metade. - Se for como o caso do Quim Ambrósio que levou com a telha é preciso dar-te de novo um choque elétrico. - esclareceu o Andrade. - Não se arranja nada! Se for assim, ele morre! Estás mas é a confundir género humano com Manuel Germano! – lançou logo a Marta Taberneira. O Belmotrão tremeu de medo, pois não queria levar novo choque elétrico. Dez homens seguraram-no com força. O Virgolino foi buscar tesouras de cortar cabos. Instantes depois aproximaram a cara do Belmotrão de um dos cabos elétricos e deram-lhe novo choque. Apesar de ter ficado zonzo e com mais queimaduras não o levaram hospital para não complicar mais a situação, já que o Belmotrão Medonho voltara a andar normalmente sem crescer nem decrescer. Quanto ao Zé Metade, o grande vencedor da corrida, já tinha bebido a meia dúzia de amarelinhas do prémio e já tinha experimentado o novo carrinho oferecido pelo Virgolino descendo a rua dos Elétricos. Agora procurava novos adversários…

ADC

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2.8 O xarope UMA OCASIÃO, no fundo do beco das sardinheiras, à beira da Taberna da Marta, esta distribuía copos de « amarelinhas » aos trabalhadores que estavam ali a trabalhar por causa de uma fuga de gás criada pela famosa pedra preta. A dada altura ouviram um berro que vinha da casa do Belmotrão, toda a gente olhava para a janela dele com uma cara aturdida. Era o Belmotrão que estava a gritar e a sofrer, estava deitado, coberto de lençóis brancos a gritar com toda a força, porque bloqueado entre a cabeceira e os pés de cama. Falava sozinho repetindo que quando tinha ido dormir, tinha conseguido entrar na cama, e não percebia que nessa manhã estivesse preso por ter crescido durante a noite. Quando conseguiu soltar-se, arranjou-se e saiu. Na rua os trabalhadores e a Marta Taberneira conversavam. O Zé Metade especou a olhar para o Belmotrão de boca aberta, nem conseguia falar, pois acabara de ver este a crescer e a decrescer. Quando o 25


Belmotrão viu o Zé Metade de boca aberta ficou surpreendido e perguntou ao Zé Metade o que é que ele tinha: - Euh...euh... não estás a ver? Estás a crescer e a decrescer à medida que andas pela rua. Nunca vi isso – disse-lhe. - Para mim é melhor ires ver um médico, acho melhor porque isso é muito escanifobético, nunca vi nada assim!- gritou o Zé Metade com algum pânico na voz. - Ó homem, só estou grande, eu sei que eu cresci muito durante a noite, mas também nunca fui pequeno o que é que tu queres?- exclamou o Belmotrão. - Olha, deixa lá, não fales mais comigo! - disse o Zé Metade algo chateado. Mais ou menos ao meio-dia, o Belmotrão foi a correr até casa para confirmar no espelho como estava a sua estatura. Quando chegou a casa e se viu no espelho, viu-se demasiado alto, mas ao aproximar-se do espelho decresceu e ficou de boca aberta. Não estava a perceber, porque quando se levantou ficou grande outra vez até não conseguir sair do quarto. Coçando o queixo, pensava em como ia conseguir sair daquela situação. De repente, teve uma ideia fantástica. Foi ter com o Virgolino para lhe perguntar se tinha algum xarope para resolver o seu problema. O Virgolino era a pessoa que todos iam ver quando tinham um problema ou quando as pessoas queriam algum objeto em particular. Ele anotava num caderno de capa preta, com umas garatujas esquisitas o que lhe pediam e dias mais tarde entregava as encomendas. Belmotrão foi pois até à casa do Virgolino com um ar confiante. Quando chegou à porta, bateu e o Virgolino abriu e convidou-o a entrar: - Conta cá, ó rapaz... - Tenho um pequeno problema, Virgolino, quando ando cresço e decresço, é um pouco insuportável! Queria saber se me podes arranjar um xarope… - Oh, Belmotrão, acho que estás a confundir género humano com Manuel Germano! A minha casa não é nenhuma farmácia, não tenho xaropes. Mas se quiseres ajudar-me, se calhar ajudo-te a encontrar um xarope, ok? - propôs o Virgolino. - Ok! Mas ajudar-te em quê? Como? - Tu dissestes-me que não paravas de crescer e de decrescer, não é? - Sim, sim é isso mesmo. - Então podias decrescer para entrar no buraco da minha parede para ver se não há lá ratos, por favor? Porque já há alguns tempos que oiço barulhos e alguns objetos apareciam parcialmente comidos. - Sim, eu vou fazer isso por ti, porque és boa pessoa. O Belmotrão preparou-se para entrar no buraco, estava pequeno e preparado. Entrou pelo orifício muito escuro, não conseguia ver nada, tinha medo de ser mordido ou mesmo, pior ainda, de ser comido pelos ratos. Nisto, nem teve tempo de falar, um rato à frente dele, era preciso matá-lo, tirou do bolso uma mini faca, levantou-a e espetou-a no rato. O rato morreu e a missão do Belmotrão ficou cumprida. Saiu a correr do buraco escuro e quando fora dele cresceu outra vez. Disse ao Virgolino: - O rato está morto, nunca mais vais ter problemas! Mostra-me agora onde é que posso encontrar o xarope ou algo do género. 26


-Vamos lá ! - disse o Virgolino. Ao chegarem à farmácia, o Virgolino e o Belmotrão verificaram que não havia nada para resolver os problemas de crescimento de Belmotrão. O Virgolino reconheceu que não sabia onde encontrar uma solução. Belmotrão ficou triste, e o farmacêutico ao vê-lo triste disse-lhe que seria melhor chamar o presidente da Junta para perguntar se ele não conhecia algum fulano que o pudesse ajudar. O Virgolino reagiu à sugestão do farmacêutico dizendo que não era preciso chamar o presidente de Junta coisa nenhuma porque isso só dava chatices. E perante a falta de soluções para resolver o seu problema, o Belmotrão resolveu criar uma associação para ajudar as vítimas de crescimentos inexplicáveis.

HS

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2.9 O Belmotrão UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, estava o Tó Valente sentado à secretária, no seu pequeno apartamento do primeiro andar, a escrever uma história, como todos os domingos, para depois enviar ao Mário de Carvalho. Nesse dia, por não ter inspiração, decidiu ir para janela espreitar os vários grupos de turistas que estavam a tirar fotografias aos velhos, e cheios de histórias, edifícios do beco. Quando reparou que um dos seus bons amigos, o Belmotrão, que tinha por hábito correr ao fim de semana, deslocava-se de uma maneira escanifobética. Mas o que mais o surpreendeu foi reparar que o seu caro amigo à medida que se afastava do centro do beco, o sacana, ficava mais pequeno. Muito admirado e antes que o Belmotrão mudasse de rua gritou: - Ó Belmotrão, meu amigo, anda aqui, pá! E o Belmotrão ouvindo estas palavras, muito admirado, regressou em direção ao seu compadre que tinha saído de casa e já o esperava com uma mão na testa a pensar. O Belmotrão perguntou-lhe: - Que se passa, ó meu sacana, ganhaste a lotaria? - Não, infelizmente! Mas reparei que algo se passou no teu corpo conforme te afastavas do beco. explicou-lhe o Tó Valente. - Não estou a perceber-te! – disse o Belmotrão, já preocupado com as palavras do Tó. - Ó meu amigo, o que observei é simples: quando te afastas o teu corpo fica mais pequeno, mas quando te aproximas ficas maior! Enquanto os dois homens falavam, o Pedrinho, um miúdo do beco, cheio de genica, depois de ter ouvido o essencial da conversa, foi avisar num abrir e fechar de olhos mais da metade da vizinhança que deixou tudo o que fazia para ir ouvir a conversa dos dois amigosentretanto interrompida pelo Virgolino:

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- Ó Belmotrão, em vez de falares, vai até ao fundo do beco e a gente já te diz se o Tó ‘tá a confundir género humano com Manuel Germano! - Olha m’este ... – murmurou o Belmotrão já a começar a ficar enervado e intimidado. Mas lá foi andando devagar tal como o Virgolino lhe sugerira. Ao regressar, percebeu que estavam todos agitados a olhar para ele, de olhos esbugalhados. E quando o Presidente da Junta chegou, o Virgolino lamentou: - Ó Belmotrão, o Tó tem razão! - Mas que se passa aqui ? – perguntou o presidente. - Ó presidente, o Belmotrão fica mais pequeno quando se afasta do centro do beco e cresce quando está perto do centro, temos que mandá-lo embora senão isto ainda se torna contagioso! – prosseguiu o Virgolino. - Nem pensar! Aqui há lugar para toda a gente! Não vamos expulsar do beco quem está doente. Isto passa! É questão de tempo! Agora todos para casa que já começa a anoitecer e amanhã é dia de trabalho. – argumentou o presidente. No dia seguinte, uma segunda-feira de trabalho como tantas outras, antes de irem trabalhar, todos se afastaram do centro do beco prestando atenção ao corpo na expetativa de perceber se aumentavam ou diminuíam de estatura como o Belmotrão. Mais ninguém cresceu nem decresceu pelo que o caso Belmotrão acabou por cair no esquecimento do beco.

DR

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III aquela da roca pintada de vermelho que se encontrou no sótão da Dona Délia

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3.1 A roca vermelha UMA OCASIÃO, chegou ao beco uma campónia vinda duma terriola perdida lá nos montes para os lados de Vale de Cucujães. Ela acabava de herdar a casa da D. Délia. A D. Délia, melhor dizendo D. Maria Adélia da Maia de Vasconcelos, era a última representante duma das mais antigas e ilustres famílias do beco, que tinha batido as botas há uns meses atrás, logo após o Carnaval. As más-línguas dizem que morreu do susto que lhe pregou o Zé da Esquina com o seu disfarce de Joaquim Agostinho. Este ter-lhe-á lembrado o namorado, o famoso Manuel Ceguinho, que tinha preferido as corridas de bicicleta ao próprio casamento. A velha donzela, filha única, nunca tinha casado e por isso a casa tinha ficado vazia longos meses à espera dum herdeiro. E foi assim que chegou ao beco uma estrangeira, supostamente prima (por via duma tia-tetravó qualquer) para descobrir o que lhe tinha deixado a parente desconhecida de Lisboa. A herdeira, de nome D. Inês Pires da Maia, acabava de chegar do seu cú de judas com armas e bagagens acompanhada duma ninhada de filhos: a Camila, o João, o José e a Carlota. Enquanto ela arrumava as malas nos quartos, os garotos resolveram explorar a casa e acabaram por descobrir o sótão. – ’Tá aqui uma grande bagunça! – exclamou o José – Será que vamos achar alguma coisa de jeito? – Só saberemos depois de ter dado uma vista d’olhos – disse a Carlota – Vamos a isto? Encontraram caixotes e mais caixotes cheios de roupas velhas e antiquadas, móveis antigos, e poeira, muita poeira. – Que raio é isto? – perguntou o João, apontando para um estranho objeto de madeira pontiagudo e vermelho. – É uma roca – respondeu-lhe a Camila – Antigamente servia para fiar a lã, antes da Revolução Industrial. É estranho, não sabia que as rocas podiam ser coloridas... – Será que ela ainda funciona? – perguntou a Carlota – Gostava tanto de saber fiar... Pegaram na roca e levaram-na para a sala de estar. Foram perguntar à mãe se ela sabia como utilizá-la. Infelizmente, ela não sabia, e não tinha tempo a perder com aquelas brincadeiras. D. Inês sugeriu-lhes que fossem pedir à vizinha, D. Elmira, que segundo lhe tinham dito passava os dias na soleira da sua porta. Os garotos foram logo ter com ela que ficou toda animada por alguém precisar da sua ajuda: – Claro que eu sei fiar, tragam-me cá a roca. – pediu-lhes a D. Elmira. Elas trouxeram-lhe a roca, e a velha senhora observou-a com atenção. – É muito bonita, nunca tinha visto nenhuma vermelha. – comentou ela – Está em excelente estado, serve perfeitamente… mas para fiar, preciso de lã. Apressaram-se em ir comprar lã e voltaram sem tardar para a casa da D. Elmira.

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– Vossemecês estão a confundir género humano com Manuel Germano. Eu preciso de lã que ainda não tenha sido fiada. – E onde é que havemos nós de encontrar lã para fiar? – perguntou a Carlota. – O António Pastor, primo do Chico Estivador, tem um rebanho de ovelhas... Não foram precisas mais explicações. Em poucos dias, os garotos encontraram o tal António Pastor e conseguiram a dita lã. Trouxeram-na à D. Elmira e ela começou por fim a fiar. Já estava ela a fiar há algum tempo, já o resultado do seu trabalho maravilhava os garotos que observavam com admiração a habilidade da senhora, quando algo de estranho aconteceu: – Que coisa mais escanifobética – comentou a velhota, sem parar de fiar – Nunca senti uma roca tão quente... – Ai! Que quente! – gritou a Camila ao tocar-lhe – Pare de fiar ou vai queimar-se! – Não consigo parar, as minhas mãos não me obedecem mais! – replicou a D. Elmira aos gritos. Enquanto a Camila tentava tirar a roca das mãos da D. Elmira, a Carlota foi buscar ajuda. Em breve, todos os moradores do beco se encontraram em frente da casa da fiadeira. – Temos de levá-la para o hospital! – gritavam umas mulheres. – Com a roca? – pergunto o Virgolino. – Não há escolha, ela está presa à roca. – observou a Marta Taberneira enquanto a D. Elmira continuava fiando e gritando de dor. – Temos de transportá-la rapidamente pró hospital... – sugeriu o Zé Metade. – É preciso é calma! – gritou o Zeca da Carris e a D. Elmira fiava sem parar, cada vez mais rápida até que apareceu uma fumaça que foi escurecendo. – Lancem-lhe água! Rápido! – gritou a assistência aflita. Mas não tiveram tempo de ir buscar a água. A lã tinha acabado, e a roca parara simplesmente de fiar. Levaram a pobre vítima da roca amaldiçoada para o hospital, para tratar das queimaduras e do susto. A Camila e a Carlota tornaram a arrumar a roca no sótão onde a tinham encontrado e nunca mais quiseram saber da arte de fiar sem que a mãe se tivesse apercebido do ocorrido!!!! CDC ***

3.2 O coração de pedra UMA OCASIÃO em que a Dona Délia ia à drogaria na rua dos Elétricos, encontrou uma roca. A roca estava pintada de vermelho. A Dona Délia, toda curiosa, pegou na pedra e levou-a para casa. À hora do almoço, 31


estava ela a contar a sua descoberta à Marta Taberneira, quando chegou um homem que para a malta do beco era estrangeiro. Aproximou-se dele, desconfiado, o Zé Metade, e perguntou-lhe: - Boa tarde, está à procura de qualquer coisa ? O homem respondeu fazendo uns movimentos estranhos com as mãos imitando um objeto mais ou menos redondo. Começou a pensar-se que procurava uma bola, e foram procurar uma bola que năo o satisfez de todo. Quando estavam quase a desistir de adivinhar o que o sujeito procurava, e estando já este a ficar mais agitado, repetindo os mesmos gestos, Virgolino tentou dar lhe um bolinho, depois arranjou lhe um pneu, mas nada disso o homem queria e foi-se embora, descendo a rua dos Elétricos. - O gajo é mesmo escanifobético! - comentou o Virgolino. - Se calhar estava simplesmente bêbado! - sugeriu o Zé Metade. E voltaram todos às suas vidas. De novo em casa, na cozinha, a Dona Délia examinou de novo a roca vermelha que tinha encontrado. Donde poderia vir ? Intrigada não deixava de pensar naquilo até que se convenceu de que se tratava provavelmente do que o estrangeiro procurara na taberna! Procurou logo o Virgolino e explicou-lhe a situação. - O que posso eu agora fazer? - perguntou o Virgolino. - Por favor, entrega a roca ao dono. Ele parecia tão triste. – pediu-lhe a Dona Délia. - Mas aonde é que eu o vou agora encontrar? - queria saber o Virgolino - Não vou andar pela cidade toda para devolver a um bêbado a sua roca vermelha! A Dona Délia continuou de insistir, dando-lhe diferentes argumentos, sugerindo inclusivamente ao Virgolino que fosse à rua dos Elétricos, talvez ainda o encontrasse porque o homem não parecia muito rápido. E lá acabou por descer o Virgolino, à procura do bêbado. Depois de uma hora, regressou ainda com a pedra na mão. - Não o encontrei! - informou o Virgolino. Toda dececionada, a Dona Délia regressou para casa. No dia seguinte, voltou a falar sobre o assunto com o Virgolino que reagiu mal, já farto daquilo tudo: - Você está a confundir género humano com Manuel Germano, Dona Délia? Se ele já não estava pelas redondezas ontem, por que razão é que eu o encontraria hoje ? O Zé Metade que ouvia por acaso a conversa na taberna da Marta entretido com as amarelinhas que lhe iam descendo calmamente pela goela abaixo, propôs que fosse procurar perto dos bares do cais do Sodré, que o homem era capaz de lá estar. Sugestão aceite, lá foram a Dona Délia e o Virgolino entrando e saindo, percorrendo todos os bares e cafés da zona sem sucesso. Mas quando voltaram para o beco, ficaram perplexos: o gajo que tanto haviam procurado tinha voltado ao beco ! A Dona Délia foi logo dar-lhe a pedra, e rapidamente o homem foi se embora. Nos dias seguintes a malta do Beco ainda comentava o comportamento esquisito do estrangeiro que por ali passara.

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- Quem será que era? - perguntou o Zeca da Carris, que tinha acabado de ouvir a história da pedra vermelha. - Se calhar a cabrona da pedra até era valiosa. Deve ter um diamante escondido dentro. - propôs outro. - Mas então, o que é que o homem queria fazer com a pedra? - perguntou-lhes o Virgolino. - Venham cá ver! - chamou o Andrade da Lua. O Virgolino não o deixou chamar a segunda vez. Efetivamente, o Andrade tinha algo para mostrar… - Isto é o livro de contos e lendas que lia quando era criança. Agora venham, e olhem para isto – propôslhes o Andrade. - E qual a relação com a pedra? - perguntou o Virgolino sem perceber nada, olhando para o Zeca, que parecia já ter começado a ler. - “O coração da Lua caiu ao chão, e transformou-se numa pedra vermelha que poderia dar sorte ao dono.” - leu o Zeca em voz alta para todos. - Aquilo é demasiado valioso para ficar nas mãos de um homem misterioso! - indignou-se. E lá decidiram todos ir procurar do estrangeiro. Uma semana depois encontraram-no, morto, com uma faca na garganta. - Ui, não vou olhar para isto nem mais um segundo. - disse o Zeca. O Virgolino aprovou e foram os dois para casa em silêncio.

A partir daquele dia, nunca mais ninguém quis falar da roca vermelha. Quando a Dona Délia perguntava pela pedra, o Virgolino e o Zeca diziam que o gajo devia ter desaparecido com a pedra. Diga-se de passagem que o Zeca e o Virgolino andaram muito tempo com a morte do vagabundo na cabeça, causando-lhes horrorosos pesadelos que tentaram esquecer por todos os meios. Quando tudo foi contado ao Zé Metade, este não se mostrou nada surpreendido: - Eu sabia! Aquela pedra tinha algo de especial. Vejam o lado positivo deste caso: se a Dona Délia tivesse ficado com a pedra, se calhar era o que lhe teria acontecido. Ainda bem que foi teimosa e quis dar a pedra ao homem. Bendita seja! PV ***

3.3 A roca pintada de vermelho UMA OCASIÃO, no beco das sardinheiras, o Zé Metade andava pelas ruas do beco acompanhado do Virgolino a debater uma história de crianças. Estavam em desacordo por causa de uma roca que existia no conto da “Bela Adormecida”. Um dizia que as rocas estavam enfeitiçadas e o outro dizia que era tudo mentira. 33


- Ó Virgolino, por amor de deus, como podes pensar que as rocas estão enfeitiçadas? – insistia o Zé Metade - Esses contos são só para adormecer as crianças! - Mal sabes tu os poderes das rocas, eu vi uma quando era criança. Um amigo meu tocou na ponta, e caiu no chão, como no conto! – repetia-lhe o Virgolino cheio de convicção. Enquanto os dois brigavam um com o outro apareceu o Zeca da Carris que tinha acabado de ir ao droguista. Percebendo que os dois amigos debatiam com vivacidade meteu-se na conversa: - O que é que está a acontecer? Porque é que estão enervados? - Olha, este gajo está a fazer uma confusão entre género humano e Manuel Germano… - Para ti, é possível uma roca ser enfeitiçada? É que o Zé Metade não acredita em mim. O Zeca de Carris olhou para ambos com um ar escanifobético como quem vê dois malucos a discutir sobre o sexo dos anjos e levou algum tempo a responder: - Cá pra mim vocês estão os dois doidos, porque discutir sobre algo tão pouco importante não vale a pena… - Cada um discute sobre o que lhe interessa, ora essa! – interrompeu Virgolino virando as costas ao Zé Metade e prestando atenção ao que o Zé Metade lhe dizia. - Espera, mas eu ainda não tinha acabado. Só vou acreditar em ti com provas dadas, Virgolino, não posso acreditar sem ter visto antes uma roca enfeitiçada. O Virgolino lembrou-se entretanto que a Dona Délia tinha uma roca em casa e, no domingo seguinte, decidiu levar o Zé Metade e o Zeca da Carris até casa da Dona Délia para provar que tinha razão. Quando chegaram, Dona Délia, como sempre, estava a costurar sentada ao lado da janela cantando canções de amor. - Dona Délia, Dona Délia! É o Virgolino! Pode vir abrir-nos a porta cá em baixo! – gritava Virgolino no meio do beco. A Dona Délia apanhou um susto com os gritos, mas quando viu quem a chamava desceu e abriu a porta. - Então, o que o traz por cá, amigo Virgolino? - Olhe, queria saber se ainda tem a sua velha roca que tanto usava antigamente? No momento em que o Virgolino fez a pergunta, repararam os três que a Dona Délia ficou com um ar preocupado e, intimidada, nem respondeu. Levantou-se e com um gesto do braço mandou-os segui-la até ao sótão. Ali encontraram montes de objetos antigos, fotografias e livros com valor. No fundo do sótão, estava uma roca pintada de vermelho, um vermelho cor de sangue que não passava despercebida. - Aqui tens o que querias, Por favor tenham cuidado e nunca toquem na ponta da roca! – avisou a Dona Délia antes de sair. Os três homens ficaram curiosos querendo saber por que motivo não se podia tocar na roca e aproximaram-se dela com cuidado. Quando já estavam perto da roca, Virgolino observou-a com uns olhos cheios de respeito, enquanto o Zé Metade não dava qualquer importância ao objeto.

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- Bem, eu só estou a ver uma roca normal que não tem nada de especial. Podemos ir embora, eu tinha razão! – afirmava o Zé Metade preparando-se para ir embora. - A única maneira de saber qual dos dois diz a verdade é tocando na ponta da roca. – propôs a ambos o Zeca da Carris. E assim foi, o Zé Metade concordou e aproximou-se da roca lentamente tocando na sua ponta sem que nada acontecesse! - Eu tinha razão, estás ver? A única coisa que aconteceu foi esta pinga de sangue que caiu do dedo! afirmava o Zé Metade num tom vitorioso.

Mas é bem verdade o adágio que diz que não devemos cantar vitória antes de tempo pois alguns minutos mais tarde, o Zé Metade caiu e desmaiou deixando os dois amigos sem palavras e em pânico. Chamaram rapidamente um médico e o beco veio todo em peso a casa da Dona Délia para saber o que é que tinha acontecido. Quanto ao Zé Metade acordou dois meses mais tarde porque uma rapariga o beijou tal como no conto da Bela Adormecida. A partir daí, o Zé Metade passou a não duvidar tanto da existência de feitiços e a acreditar no amigo Virgolino. KC ***

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IV Apocalipse ou o fim do beco?

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4.1 O apocalipse UMA OCASIÃO, o beco das sardinheiras estava até tranquilo demais para todos os bizarros acontecimentos que sempre ali causavam o pandemônio. Quando de súbito, aquela corda surgia de novo pendurada no céu. Ela mexia-se da direita para esquerda num movimento pacífico. Todos os moradores do beco saíram de casa para admirar a corda. Entretanto, o vento levantou-se e a corda começou a encostar-se à carreta do Zé Metade arranjada pelo padre alentejano e moveu a peça em que o padre tinha mexido. Logo a carreta iniciou uma corrida em círculos no beco numa velocidade incrível, quase atropelando a Marta da Taberna. O Tó Valente gritou: - Temos que voltar para as nossas casas! Depois de vários minutos, as rodas giravam tão rápido que esta cavava um enorme buraco circular no centro do beco. Cavou tanto que quando foi bater na pedra preta, desintegrou-se instantaneamente. Mas os problemas não se ficaram por ali. O Aníbal, que estava dormindo no cruzamento da rua dos Elétricos desde o seu último turno de vigia, recordando sua “aventura”, no sono, abriu o marco do correio. Saiu lá de dentro o gato-pantera do Manuel da Ribalda que tinha ali chegado antes do buraco junto do Texas Bar ter sido fechado. Devorou o Aníbal e correu em direção ao beco. Quando o Zeca da Carris viu o gatão, ordenou que fechassem a entrada principal do beco. Infelizmente o Quim não conseguiu e o gato entrou no beco. Diante do Virgolino, fez com que este começasse a retroceder na frente daquele monstro, mas tropeçou numa pedra e caiu em cima da gateira, destruindo-a. Levantando-se num gesto rápido girou a roda dentro da gateira, o movimento foi tão rápido que choveu num círculo do diâmetro do buraco cavado pela carreta do Zé Metade. O gato fugiu porque odiava a água, como muitos gatos, e nunca mais voltou. O buraco começava a encher-se e o Virgolino com um ar muito divertido: - Aquele gato estava a confundir o gênero humano com Manuel Germano. Daqui a pouco vamos ter um lago só para nós e podemos ir todos a banhos no beco! Pouco depois, a erosão causada pela água fez inclinar a casa do Zeca da Carris e dela saiu a máquina de costura que, ao contacto com a água, gelou o “pequeno lago” e com ele a roda que permitia interromper a chuva. O gelo quebrou também as tubulações do chafariz e aquela escanifobética nuvem que estava junto ao céu a despejar águas que congelavam no beco. Todos os moradores do beco estavam desesperados já que, depois do gato fugir, o Andrade cuspiu um pedaço de Lua que tapou a saída do beco. Todos pensavam que iriam morrer afogados e congelados. Ninguém podia sair do beco, quando viram o Tio Bento que não se importava muito com toda a tragédia e começou a tocar outro pot pourri. Foi então que o Andrade disse: - Ó homem, agora não é hora de tocar, há assuntos mais importantes para resolver! Mesmo se o Tio Bento não ligava ao que o Andrade dizia, o Zé Metade zangou-se com o Andrade: - Cala-te, ele pode ser a nossa única esperança! 37


O Tio Bento começou nesse momento a tocar numa frequência particular. O beco vibrava, parecia um terramoto, as janelas do beco inteiro rebentaram num barulho ensurdecedor, e o Tio Bento continuava tocando quando... Uma explosão no céu projetou uma luz intensa no beco, todo mundo ficou cego por alguns segundos. A nuvem, a chuva do que vinha do céu e a sua “torneira”, a pedra preta, o gato-pantera, a máquina de costura, o pedaço de lua, a corda e o túnel que desembocava no marco do correio desapareceram. O Virgolino chegou à conclusão que o trombone tinha engolido toda a magia do beco. Todos os moradores já não tinham como demonstrar que todas as peripécias do beco tinham realmente acontecido. Os danos foram concertados e a vida retomou o seu curso normal. Ainda hoje narram algumas estranhas histórias que aconteceram nesse beco há muitos anos, mesmo sem poderem apresentar provas. Pode ser que os moradores tenham razão! Com tantas coisas escanifobéticas que aconteceram nesta vida, o único que não podemos fazer é confundir género humano com Manuel Germano!

FB

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Índice I.

Página

1.1 A bicicleta …………………………………….…………..…………………. ACR

4

1.2 A bicicleta sem rodas…………………………..………………………………. LS

6

1.3 O boletineiro Abreu ……………………………………………………...……. DA

7

1.4 A bicicleta enxofrada ……………………………………………….………… FM

9

1.5 A bicicleta do boletineiro ……………………………………………………… LN

11

1.6 As rodas ……………………………………………………………………….. HO

12

II. 2.1 O Belmotrão dos tamanhos ………………………………………………….…. PS

15

2.2 A «vermelhinha» ………………………………………………………...…… MG

16

2.3 O Belmotrão ……………………………………………………………….….. AR

18

2.4 Belo Belmotrão …………………………………………………………..…….. ID

19

2.5 O guarda da Lua …………………………………………………………….…. JV

20

2.6 O biscoito ……………………………………………………….……………. MD

22

2.7 Belmotrão Medonho ………………………..……………………………….. ADC

23

2.8 O xarope …………………………………………..…………………………... HS

25

2.9 O Belmotrão ……………………...…………………………………………… DR

27

III. 3.1 A roca vermelha ……………………………………………………………... CDC

30

3.2 O coração de pedra ……………………………………………………………. PV

31

3.3 A roca pintada de vermelho …………………………………………………… KC

33

IV. 4.1 O apocalipse …………………………………………………………………….FB

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Marรงo 2016 Turma de 9ยบ ano Professora Isabel Pereira da Costa

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