SUMÁRIO
Apresentação ....... 7
1. Diálogos estabelecidos com o poema Via Láctea, de Olavo Bilac............. 11 de Houéfa Carine Chanceline Sobako e Mariana Meléndez De Oliveira
2. A Intertextualidade musical 23 de Nyvia Isabelle Rangel Barbosa e Paloma Camiele dos Santos Martins
3. Diálogos estabelecidos no universo dos jogos digitais................................ 28 de Ana Clara Da Silveira Pinhalves e Matheus Pardini Costa
4. Dom Casmurro entre marcas intertextuais de Shakespeare e Mitologia Grega................................................................................................................... 39 de Maria Clara Canuto Santana e Yasmim Paulina da Silva
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1. Introdução
Roland Barthes (1994), citado por Fiorin (2014) em seu texto Interdiscursividade e Intertextualidade, entende que um texto é um processo de construção, um trabalho, onde se sobrepõem as vozes do eu e do outro e onde também está implicado o contexto onde essas vozes estão inseridas. Essa constatação de Barthes também é associada às reflexões de Kristeva (1967), ao estudar a problemática da Intertextualidade presente na obra de Bakhtin. Para esse filósofo russo, como nos explica Fiorin, a conceituação do dialogismo representa as relações entre discursos, relações estas que se utilizam do sistema da língua – o que pressupõe ser cabível o estudo de suas unidades.
Para estabelecer os contornos que identificam a interdiscursividade e a Intertextualidade, Fiorin mostra como a primeira está ligada às relações entre enunciados, enquanto que a última está inserida num âmbito maior por se referir às relações entre textos: “Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro” (FIORIN, 2014, p. 181). Podemos traçar um paralelo dessa explicação com a nossa análise, identificando quais são os pontos de interdiscursividade (na comparação entre versos de um poema que são tirados de outro, por exemplo) e como esses diálogos entre as unidades do texto formam um contexto maior – que é, efetivamente, o da Intertextualidade.
Com isso, podemos afirmar que os textos são tecidos continuamente através de processos intertextuais: um texto pode se derivar de outro, fazer-lhe referência, alusão, o resgatar explícita ou implicitamente, o modificar, o imitar, etc., mas sempre
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Diálogos estabelecidos com o poema Via Láctea, de Olavo Bilac
Houéfa Carine Chanceline Sobako Mariana Meléndez De Oliveira
vai ser um texto único, totalmente novo. Tendo isso em mente, analisaremos a Intertextualidade presente no poema Uvi Strella, do poeta Juó Bananére, assim como na música Divina Comédia Humana, do compositor Belchior, e o diálogo estabelecido entre essas obras com o soneto XIII da Via Láctea, o soneto mais famoso desta coletânea de Bilac.
2. O soneto Ora (direis)
ouvir estrelas e sua presença em outras obras
A coletânea Via Láctea do poeta parnasiano Olavo Bilac está inserida na antologia intitulada Poesias, publicada pela primeira vez em 1888. De seus 35 sonetos, o 13o (conhecido popularmente como Ora (direis) ouvir estrelas, ou simplesmente Ouvir estrelas) é o mais famoso, tendo em vista seu caráter universal que tem na experiência de estar apaixonado a sua representação mais humana e sublime. O soneto é tão conhecido que é dele que surgem as duas Intertextualidades aqui analisadas, presentes nas obras Uvi Strella e Divina Comédia Humana. A temática das duas obras, mesmo sendo distinta, retoma em certos pontos elementos do poema de Bilac, como o amor, os astros, a descrição das ações do eu lírico apaixonado, entre outros. Da sondagem destas unidades do(s) texto(s) é que expiaremos a transformação de sentidos que eles impõem ao Ora (direis) ouvir estrelas de Olavo Bilac.
Antes de iniciarmos, é importante ressaltar que para podermos compreender os sentidos propostos pelos textos de Bananére e Belchior, faz-se necessário que recorramos também ao contexto em que estes foram construídos. Isso porque cada texto traz consigo uma carga histórica que, como demonstra Fiorin (2014), está presente nas relações entre e dentro dos discursos.
Leite (1996), tomando o leitor de Juó Bananére como exemplo para chamar a atenção da importância de se ter um conhecimento prévio sobre determinada obra, nos diz que:
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A popularidade do texto-matriz é requisito imprescindível à eficácia da produção paródica; diluídas as referências intertextuais, é possível apenas uma compreensão parcial do texto, que perde a identidade, transformado num outro texto, com o desvirtuamento de seus propósitos. Os poemas parodiados por Juó eram bastante populares ao tempo da publicação das paródias; era hábito corrente serem decorados e declamados sonetos de Olavo Bilac [...] (LEITE, 1996, p. 169).
2.1 A paródia de Bananére
O personagem Juó Bananére (entenda-se “João Bananeira”), por si só, já era uma figura que remetia ao gozo e à zombaria. O pseudônimo foi criado pelo escritor Alexandre Ribeiro Marcondes Machado em 1911 e usado para assinar em uma coluna na revista semanal O Pirralho, criada por Oswald de Andrade e dirigida por ele até a chegada de Machado. Para o referido periódico, Bananére escrevia textos nos quais imprimia sua marca pessoal: o dialeto macarrônico criado por ele, que imitava o falar dos imigrantes italianos recém-chegados ao Brasil.
É sabido que na primeira metade do século XX uma enorme quantidade de imigrantes veio para o Brasil, o que causou um boom no crescimento populacional do país. Entre a massa de pessoas, muitos eram italianos que passaram a se estabelecer em bairros paulistas, tornando a cidade o maior centro de imigração italiana do país. Nesse cenário, Machado (que não era descendente de italianos) se envolveu com sua cultura e sua forma de falar, que era uma tentativa por parte dos italianos de assimilar o português, mas mantendo muitas palavras da língua itálica. Suas obras, assim como seu personagem, mais do que identificar uma classe de imigrantes marginalizados, retratou todo um contexto vivido na sociedade paulista da época, como nos mostra a pesquisadora Sylvia Leite:
A persona criada por Alexandre Ribeiro, mesmo tendo também desempenhado uma função integradora com relação ao ítalo-paulista (pois são dele a expressão macarrônica e também alguns dos pontos de vista explanados), visa fundamentalmente a outros fins: é recurso para a sátira da vida política, social e literária de São Paulo e do Brasil na década de 1910; a. persona não constitui, portanto, um fim em si, mas é utilizada como instrumento para a crítica. (LEITE, 1996, p. 147).
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Com um estilo irreverente e debochado, Bananére utilizava o dialeto macarrônico em seus poemas para ironizar nomes da alta sociedade da época, assim como parodiar grandes movimentos literários. Ele próprio foi, posteriormente, associado ao pré-modernismo, por sua representação do cenário imigrante e pelo tom bem-humorado que incutia aos seus escritos – ainda que haja discordâncias quanto a essa associação de Bananére com tal movimento, como defende o professor Carlos Eduardo Capela, Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano. [...] Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. (CAPELA, 2015).
Em Uvi Strella, temos uma paródia literária feita ao soneto XIII de Via Láctea, de Bilac. O gracejo já começa pelo título: “Uvi Strella” pode ser entendido como “Ouvir estrelas”, a forma como é conhecido o soneto XIII de Via Láctea. Em seu texto, Bananére retoma o estilo próprio dos sonetos – ambos os textos têm quatro estrofes, com quatro versos nos dois primeiros e três nos dois últimos – mas muda o conteúdo – que, em Bilac, versava sobre o amor, e Bananere o transforma em um contexto totalmente humorístico:
Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?”
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E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas.” (Soneto XIII de Via Láctea, de Olavo Bilac)
Che scuitá strella, né meia strella! Vucê stá maluco! e io ti diró intanto, Chi p'ra iscuitalas moltas veiz livanto, I vô dá una spiada na gianella.
I passo as notte acunversáno c'oella, Inguanto che as otra lá d'un canto Stó mi spiano. I o sol come un briglianto Nasce. Oglio p'ru çeu: Cadê strella?!
Direis intó: Ó migno inlustre amigo! O chi é chi as strellas ti dizia Quano illas viéro acunversá contigo?
E io ti diró: Studi p'ra intedela, Pois só chi giá studô Astrolomia É capaiz de intendê ista strella. (Soneto Uvi Strella, de Juó Bananére)
Como podemos ver, o estilo de Bilac é mantido por Bananére, ainda que a proposta seja outra. A “transformação” pela que passa o texto de Bananére pode ser explicada a partir da transtextualidade de Genette, que as autoras Koch, Cavalcante e Bentes (2007) explicam pontualmente: a partir do texto-fonte (ou “hipotexto”, para Genette) constrói-se um outro texto (o texto derivado, ou “hipertexto”), e assim estabelecem-se transformações e/ou imitações, e delas o autor vai explorando novos sentidos. Esse é o chamado processo de derivação do texto, localizado como hipertextualidade por Koch et al.
Em Uvi Strella, o enunciador, nas três primeiras estrofes do soneto, segue cronológica e com certa fidelidade as ações descritas em Ora (direis) ouvir estrelas: o eu lírico conversa com um interlocutor, que o acusa de “perder o senso” por estar ouvindo estrelas. O eu lírico então, confessa que muitas vezes acorda e abre as janelas para melhor ouvir o que lhe dizem as estrelas:
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Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto...
(Soneto XIII de Via Láctea, de Olavo Bilac)
Che scuitá strella, né meia strella! Vucê stá maluco! e io ti diró intanto, Chi p'ra iscuitalas moltas veiz livanto, I vô dá una spiada na gianella.
(Soneto Uvi Strella, de Juó Bananére)
A presença de um interlocutor no soneto de Bilac é demarcada pela utilização de aspas, abrindo uma citação para dar espaço a essa voz diferente – o que é uma marca da Intertextualidade restrita, evidenciada por Koch et al. (2007), onde se vê a presença de um intertexto alheio, uma vez que essa voz não é referenciada. No texto de Bananére, no entanto, não existe essa utilização das aspas para evidenciar que o eu lírico dialoga com outra pessoa, senão que a voz de ambos se confunde dentro dos enunciados. Em Fiorin (2014) podemos perceber que isso faz parte do discurso indireto livre, que é quando o narrador, no texto, tece seu discurso entremeado com outra(s) voz(es), e essa distinção não é expressa com os recursos linguísticos que normalmente são utilizados no gênero literário para diferenciar as diferentes vozes num texto (como dois pontos, aspas, travessão, etc.).
Outra questão muito latente no soneto de Bananére é a forma como o dialeto macarrônico mescla o português com a pronúncia e maneira de falar italianas. O autor por trás de Bananére utilizava o macarrônico para transmitir a representação italiana enquadrada na língua portuguesa; é por esse motivo que para nós, falantes do português, os escritos de Bananére são compreensíveis, ainda que num primeiro momento eles possam causar certa estranheza. A mudança de letras nas palavras –como entanto para intanto, você para vucê, espiada para spiada, janela que vira gianella, assim como outras tantas – é uma forma de marcação escrita que representa a oralidade dos imigrantes italianos. Como explica o colunista da Folha Pasquale Cipro Neto, a magia de Bananére está em transformar as palavras para que tenham uma “raiz portuguesa e terminação italiana.” (NETO, 1999).
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Continuando, na seguinte estrofe de ambos sonetos temos as mesmas ações do enunciador: ele comenta que conversa a noite toda com as estrelas, porém, ao amanhecer, se depara com o fato de que não é mais possível ver as estrelas:
E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
(Soneto XIII de Via Láctea, de Olavo Bilac)
I passo as notte acunversáno c'oella, Inguanto cha as otra lá d'un canto St'o mi spiano. I o sol como um briglianto Nasce. Ogliu p'ru çeu: Cadê strella?!
(Soneto Uvi Strella, de Juó Bananére)
É no último verso desta estrofe que Bananére reforça sua troça: ao colocar a expressão popular “Cadê”, referenciando que não se veem mais as estrelas, ele deixa o sofrimento romântico de Bilac de lado para retomar com mais leveza esse momento.
Na terceira estrofe, Bilac e Bananére reintroduzem a voz do interlocutor, que questiona o eu lírico sobre o que ele conversa com as estrelas, o que elas dizem a ele. É notável que as aspas se mantêm em Bilac, enquanto que Bananére utiliza um travessão para introduzir a fala do outro. Além, a forma como o interlocutor se refere ao eu lírico – em Bilac, “tresloucado amigo”, e em Bananeré é um bem humorado “migno inlustre amigo”:
Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?”
(Soneto XIII de Via Láctea, de Olavo Bilac)
Direis intó: Ó migno inlustre amigo! O chi é chi as strellas ti dizia Quano illas viéro acunversá contigo?
(Soneto Uvi Strella, de Juó Bananére)
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No desfecho do soneto temos, em Bananére, a compreensão da brincadeira. É nos últimos versos de sua Uvi Strella que entendemos que o eu lírico nunca estava falando sobre amor, como o faz o enunciador do soneto de Bilac. Bananére coloca, à maneira de piada, um eu lírico que estuda Astronomia, motivo pelo qual ele pode entender as estrelas:
E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas.”
(Soneto XIII de Via Láctea, de Olavo Bilac)
E io ti diró: Studi p'ra intedela, Pois só chi giá studô Astrolomia É capaiz de intendê ista strella.
(Soneto Uvi Strella, de Juó Bananére)
Se Bilac, em sua afirmação final “‘Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas’” refere o sentimento da paixão, da contemplação da via láctea em lembrança da mulher amada (pois há toda uma ambientação romântica e sentimental relacionada ao céu noturno), Bananére quebra com a expectativa do leitor e pontua um final cômico para seu soneto. Sant’Anna (2003), apoiando-se no dicionário literário de Shipley, poderia definir esta paródia de Bananére como sendo de cunho temático, aquela “em que se faz a caricatura da forma e do espírito de um autor” (SANT’ANNA, 2003, p. 12), neste caso, de Bilac.
Finalmente, vemos como as estratégias tecidas por Bananére deram uma nova configuração ao seu texto. O dialeto macarrônico em que é escrito sem dúvida é o ponto que primeiro chama a atenção em Uvi Strella, porém, a quebra de expectativa no final e o tom cômico e leve que o autor imprime ao seu soneto parodístico certamente é um atrativo que prova a habilidade e capacidade literária de Marcondes Machado. Sant’Anna, em seu livro Paródia, Paráfrase & Cia., relembra elogios cabíveis ao movimento de parodização, que podem muito bem servir ao escritor paulista, uma vez que “a maturidade de um discurso se revela quando o autor, atingindo a
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paródia, liberta-se do código e do sistema, estabelecendo novos padrões de relação das unidades. [...]” (SANT’ANNA, 2003, p. 28). Bananére, em Uvi Strella, realiza um deslocamento da obra de Olavo Bilac; utiliza-se dela, de suas descrições e do diálogo entre interlocutores, mas ao mesmo tempo vai-se distanciando consideravelmente. Como já dito, o dialeto macarrônico aparece como primeira modificação explícita do soneto Ouvir estrelas, além de ser a marca pessoal do personagem Bananére; o desfecho engraçado, jocoso, é a segunda. Banánere transforma o texto de Bilac, o traduz para novos contextos, novos propósitos. É assim que “a paródia, por estar do lado do novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma. De avanço em avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmaticamente.” (SANT’ANNA, 2003, p. 27).
2.2 A alusão de Belchior
A canção Divina Comédia Humana foi lançada em 1978 e é um dos maiores sucessos do músico Belchior, que na década de 1970 obteve muito destaque em sua carreira musical. A letra da música reflete sobre as paixões casuais, as vontades humanas e o realismo das relações. Isso porque Belchior era um artista que imprimia a suas composições toques de realismo e filosofia que fugiam ao romantismo, mas sem cair nos amores superficiais.
O título da canção referencia duas importantes obras da literatura mundial: A Divina Comédia, de Dante (Intertextualidade incluída até mesmo dentro da música, com a alusão “Eu quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno”), assim como A Comédia Humana, de Balzac. As obras a que Belchior remete no título da canção dizem respeito a duas condições distintas, que são o divino versus o humano. A escolha por colocar estes dois aspectos juntos pode refletir o contexto filosófico da canção, no qual a paixão humana é um contraponto à esfera divina, que é eterna.
A Intertextualidade que Belchior faz ao soneto de Bilac se situa na seguinte estrofe:
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Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso Eu vos direi, no entanto Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não Eu canto, ora direis (A Divina Comédia Humana, de Belchior)
Nela, a Intertextualidade corresponde a uma alusão feita ao primeiro e segundo versos do soneto XIII de Bilac. Como a alusão aqui é feita de maneira implícita (sem mencionar o autor), podemos nos basear em Koch et al. (2007) para demarcar que este é um caso de Intertextualidade restrita. Belchior assume a voz do eu lírico do soneto, ao mesmo tempo que chama um interlocutor (Ora direis) que o repreende por ter “perdido o senso” – ao igual que Bilac.
A escolha por esta Intertextualidade que não menciona seu autor original contribui para o sentido da canção, que nesta estrofe específica discorre sobre o “espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não / Eu canto” – como se a paixão cantada por Belchior fosse sinônimo de loucura, associada em Bilac a ouvir estrelas. Assim também, a alusão feita por Belchior pressupõe que exista um conhecimento prévio do leitor acerca do soneto Ouvir estrelas, de Olavo Bilac. Se o leitor (ou ouvinte, neste caso) não conhece o famoso soneto do poema de Bilac, assim como não identifica a relação do título da música com obras de escritores renomados como Dante e Balzac, dificilmente poderá se apropriar completamente dos sentidos desta canção.
3. Conclusão
Para finalizar, percebemos como o exercício intertextual cumpre uma função de aproximação, que explicita as relações dialógicas que existem entre os textos. Como demonstra Bakhtin, “Toda enunciação, fazendo parte de um processo de comunicação ininterrupto, é um elemento do diálogo, no sentido amplo do termo, englobando as produções escritas.” (BAKHTIN, 2006, p. 16-17). Portanto, podemos ver como autores como Bananére e Belchior tecem diálogos com o texto de Bilac, se apropriando dele – seja reproduzindo-o fielmente ou modificando-o – para construir produções distintas.
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Como podemos ver através deste artigo, cada obra propicia achados diferentes de pontos de ligação entre textos. A Intertextualidade insere as produções escritas (assim como as orais, também) numa vasta teia de significados e contextos sócio-históricos que, como um organismo vivo, vão se renovando ao longo do tempo. Trabalhar com a Intertextualidade em sala de aula pode ser uma dinâmica eficaz para ensinar aos alunos como ocorre o dialogismo na prática, incentivando-os à leitura e à exploração de diferentes textos. Como conclui a pesquisadora Barcellos:
[...] a Intertextualidade, [serve] para ilustrar a importância do conhecimento de mundo e como esse fator interfere no nível de compreensão do texto. Pois, embora o aluno-leitor não identifique o intertexto, vai entendê-lo. Mas ao relacionar um texto com outro, compreenderá o texto lido na sua profundidade e por consequência será capaz de refletir sobre o recurso adotado pelo autor para quando for compor textos. (BERCELLOS, 2008).
Acreditamos que, como o exemplo trazido aqui – as Intertextualidades provenientes do poema Via Láctea, de Olavo Bilac – possamos fomentar o exercício da análise intertextual, de modo a desenvolver leitores mais maduros e conhecedores dos processos dialógicos que unem cada texto como o qual interagimos.
Referências
BAKHTIN, Mikhail; VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª edição. Editora 34, 2006.
BARCELLOS, Renata da Silva de. A Intertextualidade e o Ensino de Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno0902.html. Acesso em: 16 de jun. 2021.
FIORIN, JOSÉ Luiz. Interdiscursividade e Intertextualidade. In: BRAITH, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014, p. 161-193.
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KOCH, Ingedore Grünfeld Villaça; CAVALCANTE, Mônica Magalhães; BENTES, Anna Christina. Intertextualidade: Diálogos Possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.
LEITE, Sylvia Helena Telarolli de Almeida. Chapéus de palha, panamás, plumas, cartolas: a caricatura na literatura paulista, 1900-1920. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1996.
LETRAS. Divina Comédia Humana, de Belchior. Disponível em: https://www.letras.mus.br/belchior/44454/. Acesso em: 25 de mai. 2021.
NETO, Pasquale Cipro. Língua de Bananére ainda é real. Uol Folha de São Paulo. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac23059902.htm Acesso em: 31 mai. 2021.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. 7ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2003.
SETTE-CÂMARA, Pedro. Uvi strella. Blog O Indivíduo. Disponível em: https://oindividuo.com/2007/03/04/uvi-strella/. Acesso em: 25 mai. 2021.
SUL21. Os cem anos de um clássico desconhecido: La Divina Increnca, de Juó Bananére. Disponível em: https://sul21.com.br/em-destaque/2015/11/os-cemanos-de-um-classico-desconhecido-la-divina-increnca-de-juo-bananere/. Acesso em: 16 jun. 2021.
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A Intertextualidade musical
1. Introdução
Neste capítulo, analisaremos a Intertextualidade presente nas músicas. Achamos interessante salientar um texto descontraído capaz de mostrar de maneira lúdica como a Intertextualidade está presente em diferentes campos do dia a dia, a fim de despertar o interesse das pessoas e provocar o olhar das mesmas para a análise sobre a Intertextualidade.
É importante dizer que a maneira como essas músicas e trechos podem ser debatidos, estudados e questionados, por todos, é diversa, por isso, delimitamos nossa análise a um único viés de estudo, dando abertura para que também sejam feitas e questionadas outras formas de abordagem.
2. Intertextualidade presente na música Monte Castelo
A música Monte Castelo foi lançada no ano de 1989 pela banda Legião Urbana. Essa canção foi composta pelo cantor Renato Russo, que utilizou a Intertextualidade para criar os versos da canção:
Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece
O amor é o fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente
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Nyvia Isabelle Rangel Barbosa Paloma Camiele dos Santos Martins
É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor É um ter com quem nos mata a lealdade Tão contrário a si é o mesmo amor
Estou acordado e todos dormem Todos dormem, todos dormem Agora vejo em parte Mas então veremos face a face
É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade
Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria (Monte Castelo, de Legião Urbana)
O compositor utiliza dois textos muito conhecidos que possuem como temática o sentimento do amor, esses textos são: o capítulo de número 13 do livro de 1ª Coríntios da Bíblia Sagrada e o soneto de número 11 do poeta português Luís Camões.
O texto de cunho religioso se faz presente em vários versos da canção, em que o compositor o utiliza fazendo pequenas alterações:
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. (1ª Coríntios 13: 1-4)
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Alguns versos deste capítulo são utilizados nos seguintes versos da canção:
Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece (Trecho de Monte Castelo)
O poema de Luís Camões é utilizado de forma diferente do texto de 1ª Coríntios. O compositor utiliza os versos de Camões de forma direta, sem realizar alterações:
Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar se de contente; é um cuidar que ganha em se perder
É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor? (Luís Vaz de Camões)
A junção destes textos resultou na composição da canção Monte Castelo, que reúne as ricas propriedades da Bíblia e de Camões sobre o amor, possibilitando o ouvinte ou leitor a fazer diversas reflexões a respeito deste sentimento.
3. Intertextualidade presente na música “Flor da idade” (trecho - Chico Buarque)
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A música Flor da Idade foi lançada em 1975 pelo cantor e compositor Chico Buarque. A canção utilizou do poema de Drummond de Andrade para promover a Intertextualidade entre os dois textos, como pode ser visto no seguinte trecho:
Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora que amava Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha (Poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade)
O cantor utiliza do mesmo formato que o escritor Carlos Drummond de Andrade quando escreveu seu poema “Quadrilha” publicado em 1930, na sua obra “Alguma poesia”, fazendo a mesma “brincadeira” que ele para produzir o efeito de sentido na música, como pode ser visto a seguir:
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrada na história.
A Intertextualidade presente na música do cantor Chico Buarque e no poema de Carlos Drummond de Andrade é, além da estrutura, o fato da música ser uma releitura que troca o nome das personagens, mas passa a mesma mensagem da paixão e dos desencontros amorosos. Dessa forma, a música apenas traz a “ideia”
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presente no poema, remetendo ao mesmo pela forma como a sua melodia e a leitura são elaboradas para a construção desse sentido.
Referências
BÍBLIA Sagrada 1ª epístola de Paulo aos Coríntios. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/1co/13. Acesso em: 25 de set. 2022
LEGIÃO Urbana Monte Castelo. Disponível em: https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22490/. Acesso em: 25 de set. 2022 Luis Vaz Camões Soneto 11. Disponível em: https://www.culturagenial.com/poema-amor-e-chama-que-arde-sem-se-ver-deluis-vaz-decamoes/#:~:text=O%20famoso%20poema%20foi%20publicado,obra%20Rimas%2C% 20lan%C3%A7ada%20em%201598. Acesso em: 25 de set. 2022
BUARQUE, Chico. Letras. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chicobuarque/84969/ Acesso em: 24 de set. 2022.
BUARQUE, Chico. Análise da música. Disponível em: https://analisedeletras.com.br/chico-buarque/flor-da-idade/ Acesso em: 24 de set. de 2022.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cultura Genial. Poema “Quadrilha”. Disponível em: https://www.culturagenial.com/quadrilha-carlos-drummond-de-andrade/ Acesso em: 24 de set. de 2022.
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Diálogos estabelecidos no universo dos jogos digitais
1. Introdução
Ana Clara Da Silveira Pinhalves Matheus Pardini Costa
Neste capítulo, analisaremos a Intertextualidade presente nos jogos digitais, onde iremos utilizar a obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e o jogo Dante’s Inferno, da desenvolvedora Visceral Games para criarmos uma ponte entre essas duas obras.
Antes de darmos início a essa análise, iremos introduzir um pouco sobre os jogos digitais e como esses são importantes para a construção de grandes obras que muitas das vezes superam em questão de lucro as grandes obras do cinema, sendo assim um mercado extremamente rentável e de grande destaque no ambiente do entretenimento.
2. O universo dos jogos digitais
O universo dos jogos digitais é um ambiente incrível, pois tira o consumidor de conteúdos de entretenimento de uma posição de mero espectador e o transporta para a posição de um sujeito ativo que interage com a obra, que participa na tomada de decisões, que precisa muita das vezes pensar rápido, usar um raciocínio lógico e assim colocar em prática diversos conhecimentos adquiridos dentro e até mesmo fora do jogo.
Além disso, o universo dos jogos digitais permite com que os seus desenvolvedores trabalhem narrativas de uma maneira que jamais poderia ser trabalhada em um livro ou em uma tela de cinema. Isso se deve ao fato de que é
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aberto, ao desenvolvedor de jogos digitais, um leque enorme de opções, possibilitando assim caminhos únicos e com bastante interatividade dentro do desenvolvimento do projeto. Por exemplo, o desenvolvedor pode permitir que o jogador tome diversas decisões e assim mude completamente o andar da história, deixando que algumas personagens vivam ou morram e assim impactando no desfecho da narrativa.
Outro fator interessante que merece destaque, é o fato de como diversos desenvolvedores de jogos digitais, trouxeram novas releituras para certos acontecimentos históricos, como a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais, além de releituras envolvendo mitos, lendas urbanas, dentre outros projetos de ficção.
Enfim, iremos introduzir a obra literária A Divina Comédia e depois o jogo Dante’s Inferno para finalizarmos com uma comparação intertextual entre essas duas obras.
3. Dante Alighieri e sua obra “A Divina Comédia”
Nascido em Florença, Itália, no ano de 1265, filho de Alighieri e Bella, de uma importante família de origem aristocrática, Dante Alighieri foi o maior poeta da literatura medieval. Em 1302, foi exilado de Florença devido a sua participação política na cidade. Por fim, sua morte sucedeu-se no ano de 1321.
Dante perpetua-se com sua Comédia, no entanto não só dessa obra ele foi autor. Seu primeiro grande feito foi o livro La vita nouva, dedicado à sua falecida amada Beatriz, tratava-se de um conjunto de poemas sobre a magnitude de seu amor. O poeta objetivava repassar todo seu conhecimento de época no livro Convívio, o qual deveriam ser escritos quinze livros, no entanto, somente quatro foram de fato concluídos e publicados. Em De vulgari eloquentia defende a língua italiana, entretanto, curiosamente foi escrita em latim. Além disso, há as Éclogas, as Epístolas e A disputa da água e da terra
Dado que este capítulo se refere à Intertextualidade contida no jogo Dante’s Inferno, o enfoque será a clássica obra A Divina Comédia. O poema foi dividido em três
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partes, denominadas Inferno, Purgatório e Paraíso, as quais foram lançadas em épocas distintas, sendo em 1317 a primeira parte, a segunda em 1319 e a terceira após a morte do autor. Com a edição de Gabriele Giolito passou a ser chamado de Divina Comédia.
Dante, o narrador, encontra-se perdido em uma floresta que personifica o pecado. Na sexta-feira da Paixão do ano de 1300, se depara com o finado poeta Virgílio, encarnando a razão, que o salva e o leva ao Inferno. No início do caminho, Dante lê uma advertência no portal do Inferno: “Perante mim, não há coisa criada / sem ser eterna, e eu eterno duro / Deixai toda esperança, vós que entrais!” (Inferno, III, 7-9). Passando pelo Purgatório, ambos se atentam ao tormento dos pecadores que ali purgam seus erros. Em uma forma crescente de pânico e terror, os círculos visualizados por Dante vão se estreitando conforme o aumento da punição dos condenados.
Orientado por Virgílio, Dante atravessa os nove círculos do Inferno,onde habitam os condenados e os separa conforme a classificação gregoriana dos sete pecados capitais e as três disposições viciosas da alma: a incontinência, a violência e a fraude.
O nono círculo é dividido em quatro áreas, as quais situam-se os traidores. Objetivando mostrar a visão política segundo os ideais monarquistas de Dante, é apresentado Brutus que, por sua vez, foi um líder político que se rebelou contra o poder de Júlio César.
O Purgatório de Dante é uma enorme montanha constituída de sete patamares, onde se punem os pecados capitais. A permanência das almas neste local se dá pela gravidade do pecado cometido. É um extenso e acrescente caminho a ser percorrido, até a chegada ao Paraíso.
Adiante, chegam ao paraíso, no entanto, devido a profanação da era pré-cristã, Virgílio é proibido de receber a gloriosa graça e separa-se de Dante. Seguindo o caminho, o relator topa com a ciência divina, simbolizada por Beatriz.
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Visando retratar a experiência por ele vivenciada, acerca da passagem do pecado ao estado da graça, Dante narra o cenário político e econômico por ele vivenciado na Itália, em especial na cidade em que foi exilado, Florença.
Assim, a maioria dos personagens criados pelo autor eram pessoas de seu próprio convívio, mesclados a figuras do passado histórico.
Com efeito, A Divina Comédia retrata um julgamento moral e político de Dante, baseado em suas próprias experiências de vida, cujas quais, apesar de possuírem cunho extremamente severo, retrata o anseio de mostrar suas novas descobertas, com o fito de tornar melhor a humanidade por ele conhecida.
4. O jogo Dante’s Inferno
Dante’s Inferno, um jogo desenvolvido pela empresa Visceral Games e publicado pela empresa Electronic Arts, foi lançado no ano de 2010 e é classificado como um jogo de ação em terceira pessoa. A narrativa é baseada na primeira parte do poema de Dante Alighieri, onde essa parte é nomeada de “Inferno”.
Em relação ao tempo, o jogo se passa em torno de 1190, época em que ocorreu a “Terceira Cruzada”, a qual, naquele contexto histórico, foi liderada por monarcas europeus que tinham o intuito de retomar Jerusalém após a sua sua conquista pelos muçulmanos. Esse mesmo contexto será utilizado como plano de fundo para o início da narrativa, onde Dante estará retornando de uma cruzada a qual ele se dedicou e batalhou por muito tempo.
Continuando a comentar a relação do espaço, no início da narrativa, Dante será morto por um inimigo e assim se deparará com a Morte, dando início a uma tensa batalha e logo em seguida entrando no primeiro círculo do Inferno, chamado de Limbo, onde a partir daqui irá começar uma conexão bastante forte com a primeira parte da obra de Dante Alighieri.
Continuando a comentar de maneira geral, onde iremos aprofundar a questão do intertexto em breve, é importante ressaltar que o jogo utiliza os mesmos
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personagens do poema original, introduzindo apenas um novo, que é o irmão de Beatrice.
Por fim, vale ressaltar que, assim como o espaço, diversos personagens foram reinterpretados, passando assim por uma releitura interessante e dando uma nova roupagem para a obra de Dante, uma nova roupagem a qual iremos descrever e mostrar como foi criada essa ponte intertextual.
5. A Intertextualidade presente no jogo Dante’s Inferno
Em relação a algumas das principais personagens de ambas as obras, temos como principal personagem o Dante, o qual será também aquele que narra, presencia e participa dos eventos da narrativa. No início da obra A Divina Comédia, Dante, diferente do jogo, aparece como um personagem fisicamente mais humano e mais frágil, porém assim como no jogo, esse personagem demonstra ter um pavor do obscuro, um medo do desconhecido, mas acima de tudo, o medo do mal, o que encaixa bem com a fala do autor Gustavo de Souza Oliveira:
[...] a imagem do diabo dos séculos XI e XII assusta, mas são por algumas vezes, tanto ridículas e divertidas quanto terríveis. O momento do grande medo do diabo vai se estender pelo século XIII e XIV e a marca dessa mudança foi a obra de Dante Alighieri A Divina Comédia (OLIVEIRA, 2012).
Ainda dissertando acerca do personagem Dante, esse grande medo do diabo se comprova logo no início da obra, no seguinte trecho:
A meio caminhar de nossa vida fui me encontrar em uma selva escura: estava a reta minha via perdida
Ah! que a tarefa de narrar é dura essa selva selvagem, rude e forte, que volve o medo à mente que a figura.
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(Trecho do Canto 1 de A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Já no jogo, o personagem Dante carrega também os mesmos medos e temores presentes no personagem da obra principal, porém no jogo, o mesmo é um personagem agressivo, forte e se utiliza de uma força brutal para poder eliminar todos os seus obstáculos. No jogo, o mesmo se utiliza de uma foice que representa a figura da morte.
Em relação a Virgílio, em ambas as obras, o mesmo se apresenta como uma espécie de mentor, pois guiará Dante em um longo percurso pelo Inferno, onde na obra original, Virgílio irá guiar Dante até Beatriz, outra personagem de extrema relevância na narrativa, que se encontrará na terceira parte do poema, o “Paraíso”:
“És tu aquele Virgílio, aquela fonte que te expande do dizer tão vasto flume?”, respondi eu com vergonha fronte,
“Ó de todo poeta honor e lume, valha-me o longo estudo e o grande amor que me fez procurar o teu volume
Tu és meu mestre, tu és meu autor, foi só de ti que eu procurei colher o belo estilo que me deu louvor.
Mas vê essa besta que me fez volver. Dá-me, meu sábio, socorro e coragem contra ela que meus pulsos faz tremer.”
“A ti convém seguir outra viagem”, tornou-me ele ao me ver lacrimejando, “para escapar deste lugar selvagem, [...] (Trecho do Canto 1 da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Dentro do jogo, Virgílio irá oferecer ao Dante recursos para que ele possa passar por todos os círculos do Inferno, dando magias para Dante, como um poder milagroso capaz de invocar gelos e assim ferir oponentes. Note como que aqui, Virgílio ainda atua fortemente com o papel de um mentor, porém concedendo a Dante um caráter mais ofensivo e ativo ao se deparar com o que se encontra nos círculos do Inferno.
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Além disso, é importantíssimo ressaltar como Virgílio descreve brevemente do que se trata cada círculo antes do jogador, no papel de Dante, entrar em cada um. Aqui Virgílio também dá o seu juízo de valor e julga os pecadores, dizendo o que acha sobre cada círculo. Lembrando que diferente da obra, no jogo o Dante é mais indiferente em relação ao que se encontra em cada círculo, pois o maior foco dele é resgatar a Beatrice, onde devido a isso, Virgílio acaba sendo aquele que mais disserta acerca do que se encontra nos círculos do Inferno.
Já em relação a Beatrice, temos uma diferença crucial da mesma na obra original e no jogo, pois dentro da obra A Divina Comédia, Beatrice é quem deseja salvar Dante do perigo em que ele se encontrava, designando Virgílio para ser o seu mentor, seu guia, seu mestre. Além disso, Beatrice se encontrava já no céu:
Vai então, e co’ a tua fala ilustrada e o que mais de salvá-lo for capaz, ajuda-o pra que eu seja confortada.
Eu sou Beatriz, que peço que tu vás, venho de aonde retornar almejo, amor moveu-me, que falar me faz.
Quando do meu Senhor ao bom bafejo voltar, irei de ti falar-lhe bem’. (Trecho do Canto 2 da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Diferente da obra original, no jogo a Beatrice se encontra no Inferno, onde ela foi levada por Lúcifer, o qual precisa de uma alma inocente (no caso a de Beatrice) para poder escapar do Inferno. Aqui Beatrice toma a posição da famigerada “princesa encantada”, a qual precisa ser resgatada pelo “príncipe encantado” (Dante). A título de curiosidade, no jogo a Beatrice, depois de ser levada por Lúcifer, toma uma aparência um tanto quanto assustadora, remetendo ao pavor, ao medo, à destruição que o Inferno pode causar às almas que se encontram por lá.
Por fim, em relação ao último personagem que iremos destacar aqui, temos Lúcifer. Na obra original de Dante, Lúcifer aparece no canto XXXIV, onde o mesmo apresenta-se como o rei do Inferno. O mais interessante dessa personagem, é o fato de que ele se apresenta como uma criatura com uma aparência não tão humanoide,
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apresentando grandes asas, três rostos, onde cada um desses tem como conceito o de se opor a divina trindade, simbolizando a impotência, a ignorância e o ódio:
Se belo foi quão feio ora é o seu modo, e contra o seu feitor erguer a frente, só dele proceder deve o mal todo.
Mas foi o meu assombro inda crescente quando três caras vi na sua cabeça: toda vermelha era a que tinha à frente, e das duas outras, cada qual egressa do meio do ombro, que em cima se ajeita de cada lado e junta-se com essa, branco-amarelo era a cor da direita e, a da esquerda, a daquela gente estranha que chega de onde o Nilo ao vale deita. (Trecho do Canto 34 da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Comparando com a figura no jogo Dante’s Inferno, Lúcifer tem uma aparência mais humanoide, apresentando apenas um rosto e sem as asas citadas na obra original, porém ainda assim com uma aparência bastante demoníaca, remetendo a um ser maligno. Na obra A Divina Comédia, Lúcifer aparece apenas ao final da mesma, o qual surge no último círculo do Inferno (o qual será abordado aqui em breve), porém no jogo, Lúcifer já se apresenta logo no início da narrativa, onde o mesmo, como já dito, leva Beatrice para o Inferno e a deixa como sua “posse”, algo que não acontece na obra original. Além disso, Lúcifer aparece constantes vezes durante a narrativa do jogo, em uma forma esfumaçada e imaterial, sem interagir diretamente com o jogador, porém trazendo barreiras constantes para o mesmo.
Em especial, nessa personagem, vemos uma releitura bastante significativa da mesma, principalmente pelo fato de que ela conduz a jornada do herói, propondo desafios constantes e um objetivo para o personagem Dante, o de resgatar a sua amada. Além disso, é interessante ressaltar como mesmo diante dessa releitura, os desenvolvedores do jogo mantiveram a característica maligna de Lúcifer, deixando claro a sua natureza extremamente cruel e perversa.
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Para finalizarmos este capítulo, iremos abordar dissertar brevemente acerca dos círculos, porém com um foco maior no primeiro e último círculo. Em ambas as obras, há nove círculos, e cada um representa um tipo de pecado ou sofrimento: no primeiro círculo, habitam as almas das crianças que morreram antes de receber o batismo; o segundo círculo, representa a luxúria; o terceiro, a gula; o quarto, a ganância; o quinto, a raiva; o sexto, a heresia; o sétimo, a violência; o oitavo, a fraude e o nono, a traição.
Em relação a todos esses círculos, temos tanto no jogo quanto na obra original, as mesmas nomenclaturas, buscando representar cada um de sua maneira os nove pecados. A título de exemplificação iremos trazer, como já explicado, o primeiro e o último círculo, dando início através do primeiro:
Meu Mestre a mim: “Não te ouço perguntar que espíritos são esses que tu vês: eles, te explico antes de mais andar, não pecaram, mas não têm validez, sem batismo, seus méritos, e isto faz parte dessa fé na qual tu crês;
e os que tenham vivido antes de Cristo não adoraram Deus devidamente, e eu dessa condição também consisto. (Trecho do CANTO 4 da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Em ambas as obras, nós temos a figura dos bebês que não foram batizados antes de morrerem (quando ainda bebês), mostrando o sofrimento desses e o destino cruel que tiveram ao parar no primeiro círculo. O grande diferencial no jogo é trazer esses mesmos bebês como oponentes para o Dante, onde os mesmos são criaturas desfiguradas e atormentadoras, versões demoníacas deles mesmos.
Já o nono e último círculo, se apresenta tanto no jogo quanto na obra de uma maneira bastante semelhante, buscando replicar uma espécie de lugar gelado, frio, sem vida, mais atormentador do que qualquer outro círculo:
Fomos adiante, onde o gelo maltrata
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os pecadores bem mais duramente: voltos pra cima aqui seus rostos ata,
com que o seu pranto chorar não consente, e a dor, que encontra nos olhos barreira, revolve, e faz que mais a angústia aumente;
porque o primeiro pranto, qual viseira de cristal, congelando-se, ao inundá-lo lhes preenche do olho a cava inteira. (Trecho do CANTO 33 da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri)
Os seus “moradores”, as almas aqui presas são daqueles que realizaram o maior pecado, o da traição. Fazendo uma rápida menção, além de Lúcifer, aqui aparece o frei Alberigo, o qual é um residente desse círculo e no jogo, o jogador acaba tendo a opção de o perdoar. A principal diferença desse círculo no jogo é o fato de que Dante enfrentar Lúcifer em uma batalha mortal, onde na obra original, Lúcifer aparece mais como uma parte do cenário, sendo utilizado como uma ponte para que Dante escape com sucesso daquele lugar.
Assim como nos outros círculos, os ditos pecadores são transformados em oponentes, em obstáculos dentro do jogo, onde o jogador tem a oportunidade de perdoar ou culpar os mesmos.
6. Conclusão
Diferente da obra, vemos que o jogador consegue atuar de forma ativa no jogo a um ponto de mudar pequenos detalhes na narrativa, saindo daquele papel passivo de leitor e tendo assim um papel mais ativo. Mas, apesar das diferenças, nesse caso, vemos como é totalmente possível replicar cenários descritos na obra de Dante e assim criar uma atmosfera bastante fiel, pegando assim a essência da obra original.
Podemos então ver como os jogos funcionam como uma ponte extremamente importante para um diálogo intertextual, funcionando como uma poderosa ferramenta, possibilitando releituras extremamente interessantes e diálogos que jamais seriam possíveis de serem criados em outras mídias.
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Referências
Dante’s Inferno. Disponível em: https://www.ea.com/games/dantes-inferno Acesso em 24 de set. de 2022.
Dante’s Inferno Fandom. Disponível em: https://dantesinferno.fandom.com/wiki/Dante%27s_Inferno/. Acesso em 29 de out. de 2022.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. 1ª edição. Editora 34, 1998.
Third Crusade. Disponível em: https://www.worldhistory.org/Third_Crusade/. Acesso em 29 de out. de 2022.
OLIVEIRA, Gustavo de Souza. História medieval. Viçosa, MG: UFV/CEAD, 2012.
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Dom Casmurro entre marcas intertextuais de Shakespeare e Mitologia Grega
1. Introdução
Dom Casmurro, obra de Machado de Assis, foi publicada no ano de 1899 e, desde então, é conhecida como uma das mais importantes obras da literatura brasileira. Narrada em primeira pessoa, Dom Casmurro conta a história de Bento Santiago, apelidado de Bentinho, que relembra suas memórias e seu passado, começando de sua juventude, quando se descobre apaixonado por sua amiga de infância Capitu.
Responsável pela icônica pergunta presente em muitas das discussões literárias do país, “Traiu ou não traiu?”, Dom Casmurro não apenas serviu de palco de inspiração para várias produções, como também desfrutou de várias obras através de aspectos intertextuais que ajudaram a elaborar a grande criação de Machado de Assis. Em virtude disso, no capítulo a seguir será analisada a presença intertextual de aspectos das obras shakespearianas e da mitologia grega em Dom Casmurro.
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Maria Clara Canuto Santana Yasmim Paulina da Silva
A Intertextualidade é um recurso importante na construção de obras literárias. Por meio do diálogo que se estabelece entre diferentes obras, pode-se obter diversos resultados na produção de sentido, bem como obter um aprofundamento nas reflexões encontradas. Segundo Bakhtin (1986):
O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos.
De acordo com essa perspectiva, Greimas (1966) identifica que todos os textos são intertextos, variando-se somente o grau de reconhecimento dos diálogos que os atravessam. Portanto, o foco deste trabalho é apresentar uma análise de como os textos shakespearianos e mitológicos, estabelecidos em uma relação de Intertextualidade de grau explícito, influenciam na construção da obra de Machado de Assis.
2. A ópera e o teatro da vida dialogam
A primeira ocorrência do estabelecimento de uma relação intertextual entre Dom Casmurro e as obras shakespearianas ocorre no capítulo “A Ópera”. O narradorpersonagem Bentinho, em um diálogo com o tenor Marcolini, ouve sobre sua perspectiva metafórica da vida como uma ópera, que se encena na disputa constante entre o tenor e o barítono (homens) pelo soprano e o contralto (mulheres), as quais também estão em disputa. É nessa perspectiva, então, que se adiciona a carga discursiva da comédia As alegres comadres de Windsor, citada na obra em seu outro título: Mulheres patuscas de Windsor.
Para que se entenda o papel assumido pela obra shakespeariana na construção do capítulo, é importante se observar todo o processo metafórico da ‘ópera da vida’. Marcolini apresenta a Bentinho a teoria de que a vida é a ópera que surge da escrita pelo poeta Deus e inserida na partitura composta pelo maestro Satanás, mas
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executada no mundo dos homens. Em um primeiro momento, a comédia é apresentada como uma obra genuína, a qual Satanás teria copiado em sua ópera: “O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor”, mas depois Marcolini conclui sua analogia definindo Shakespeare como um plagiário, que somente traduziu em seu teatro a encenação que sempre esteve em curso em seu mundo. De acordo com essa analogia, Goulart (2005) afirma que: A referência à comédia de Shakespeare, Mulheres patuscas de Windsor, vista pelos amigos do poeta como o texto que a ópera de Satanás quis imitar. Está evidenciada, aí, a ironia machadiana. A acusação de plágio que se imputa a Satanás – uma imitação desqualificativa, porque imita uma obra patusca – é respondida com a própria acusação, ou seja, à época da composição da ópera, nem a farsa nem o poeta inglês eram nascidos. Assim, Shakespeare não passa de um plagiário. Ora, o que subjaz nesta passagem é a reafirmação de que a ópera que se representa tem lugar num teatro especial que é este planeta, contando “com uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos”. Quer dizer, Shakespeare apenas imitou o que já existia: o mundo onde se desenrola a vida humana com suas virtudes, seus vícios, seus contrastes e seus paradoxos. (GOULART, 2005, p. 15).
É interessante destacar a importância que esse processo de construção da narrativa, em diálogo com a comédia de Shakespeare, estabelece na estética da obra, produzindo uma bela forma de se iniciar a trama principal do romance. Como já anunciado pelo narrador no capítulo precedente: “Agora é que eu ia começar a minha ópera”. A ópera de Bentinho de fato dialoga com a encenação de Shakespeare, traduzindo mais uma das disputas existentes na realidade humana.
2.1 O espelhamento da tragédia no romance
Outro processo intertextual de grande importância em Dom Casmurro é o intertexto com a tragédia Otelo. O diálogo explícito entre as duas obras ocorre em três momentos: capítulos LXII, LXXII e CXXXV.
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No capítulo Uma ponta de Iago, estabelece-se o primeiro diálogo entre as duas obras. A figura de Iago, apresentada no título, desempenha o papel de principal antagonista na tragédia, armando a desconfiança de Otelo para com Desdêmona. Em Dom Casmurro, a figura de Iago se faz presente em José Dias, que atua, assim como expressa o título, como uma “ponta de Iago”. José Dias acaba por despertar o ciúme de Bentinho, que residia ainda no seminário, por Capitu, com seu comentário:
Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela... Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziume aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvi-lo. (ASSIS, 1899, p.78).
Esse momento marca o início da aproximação entre as obras, que se aprofundará com o desenvolvimento da narrativa.
O segundo diálogo estabelecido com a obra ocorre no capítulo “Uma reforma dramática”, em que Bentinho propõe uma nova organização da tragédia. Segundo o narrador, Otelo deveria começar pelo fim, já no assassinato de Desdêmona e sua morte, e os demais atos apresentariam, de forma decrescente, o conflito causado pelo estímulo de Iago aos ciúmes de Otelo. Ao se contextualizar a proposição de reforma com o trecho inicial do capítulo:
Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os espectadores vão dormir. (ASSIS, 1899, p. 88).
Pode-se perceber então, que ele ocorre a recorrência à Intertextualidade, para se ilustrar o desejo de se conhecer o que virá a seguir. Como apresentado no trecho, na peça da vida não se pode prever o desfecho que o destino reserva, portanto, seria melhor já conhecer o final e ir decrescendo até que só se restasse os bons tempos.
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Esse pensamento na obra, se encerra com a perspectiva de que Otelo, posto como exemplo, se encerraria de modo a deixar “uma boa impressão de ternura e de amor”, encerrando-se assim o capítulo com a versificação de uma passagem da tragédia: “Ela amou o que me afligira/Eu amei a piedade dela”.
Por fim, o último momento de encontro entre as obras ocorre no capítulo que compartilha do mesmo nome que a tragédia “Otelo” ao qual Bentinho vai ao teatro para assistir à peça. A tragédia então desempenha um papel definitivo para o final do romance. Ao ver seu desfecho, Bentinho, em um primeiro momento, considera que Capitu devia morrer, por considerá-la culpada (diferentemente de Desdêmona). Mais à frente, ele pondera em findar sua própria vida, mas acaba mudando de ideia ao ser surpreendido por Ezequiel. Por fim, ele decide envenenar a criança, a quem considerava ser fruto da traição de sua esposa e seu melhor amigo, mas desiste em seu último momento. Capitu, vendo o conflito entre seu marido e o menino, decide então se separar.
2.2 Shakespeare sob o olhar de Machado
Como visto, em “Dom Casmurro”, Shakespeare é apresentado como um ‘plagiário’, por suas obras teatrais que traduziram tão bem a ‘ópera’ da vida e dos conflitos humanos. “Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário”. (ASSIS, 1899, p. 21)
Do mesmo modo, Dom Casmurro é uma obra que também representa a realidade, que busca também traduzir a partitura das disputas humanas. Portanto, pode-se observar que a aproximação feita com as obras do dramaturgo não é feita ao acaso, mas elas possuem uma aproximação temática a traição tema presente em todas as obras mencionadas. E, não somente nas obras analisadas, mas também em outras que são mencionadas brevemente (Júlio César e Macbeth).
Bentinho é atravessado por todas essas figuras representadas por Shakespeare. No entanto, ao contrário das encenações, que possuem a certeza dos
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fatos narrados, na obra de Machado é dada a incerteza. A incerteza também é um fator que torna a obra realista, pois a vida humana é cercada por ela.
3. A Mitologia Grega em Machado de Assis
A mitologia grega se refere a um conjunto de narrativas, histórias, mitos e lendas pertencentes ao convívio da civilização da Grécia Antiga, com um repertório mitológico composto por deuses, criaturas fantásticas, como ninfas, centauros, sereias, dentre outros, e também, heróis lendários, como Aquiles e Hércules, por exemplo. E, se relacionando com a religião, a mitologia grega também buscava explicações para diversos fenômenos da natureza, do universo e da vida.
Surgindo por volta do século VIII a.C., a mitologia grega se baseou principalmente nos relatos de histórias fantásticas encontradas em diversas narrativas, partindo da unificação de histórias e mitos antigos do povo grego. E cabia aos poetas gregos da época, registrarem as lendas e mitos conhecidos pelo povo, assim como Homero quando escreveu a Ilíada no século IX a.C., um poema épico onde é narrada a Guerra de Tróia.
Dirigindo-se a Dom Casmurro, estão evidentes momentos em que Machado de Assis manipula a mitologia grega para a construção de sua obra, obtendo assim, um processo intertextual entre os clássicos mitos gregos e o romance de 1899.
3.1 Criaturas fantásticas e os cabelos de Capitu
No momento em que Bentinho estava penteando os cabelos de Capitu, no capítulo XXXIII, ele compara a jovem com uma ninfa, uma criatura da mitologia clássica grega, que são seres majoritariamente femininos que possuem forte ligação com a natureza, vivendo em lagos, rios, bosques, montanhas, e sendo símbolos de graça, fertilidade e beleza.
Além das ninfas, Bentinho também utiliza Tétis para comparar Capitu, porém, na mitologia grega, há a existência de duas personagens com o nome, ambas
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conhecidas por sua graça e beleza: a primeira, um titã, esposa do também titã Oceano, e mãe das ninfas de nascentes e riachos; e a segunda, que possui familiaridade com a primeira sendo sua neta, é uma ninfa, mãe do herói grego Aquiles. Assis utiliza da Tétis neta em sua Intertextualidade mitológica. Bentinho então, compara Capitu com essas criaturas fantásticas, a fim de destacar a graciosidade e beleza presentes na jovem, que trazem a admiração e paixão do rapaz pela sua futura esposa:
[...] Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. (ASSIS, 1899, p. 47).
3.2 Dom na Ilíada
A Ilíada de Homero, escrita no século IX a.C., é uma narração dos acontecimentos que envolveram a Guerra de Tróia, e um dos personagens principais do poema épico é um dos grandes guerreiros da mitologia grega: Aquiles. Quando nasceu, sua mãe Tétis o mergulhou nas águas do rio Estipe para que se tornasse imortal, porém, esqueceu dos calcanhares, os tornando, assim, seu principal ponto fraco.
No capítulo CXXV, estando no enterro de Escobar, Bentinho faz uma comparação deste momento, com o episódio da Ilíada, em que Príamo, último rei de Tróia, tem que beijar a mão de Aquiles, quem assassinou seu filho, Heitor, para conseguir o corpo dele de volta para que ele tivesse um enterro digno. Porém, Machado de Assis produziu os conflitos de sua obra de maneira disfarçada, manipulando os acontecimentos detrás das cortinas, diferentemente dos ocorridos no mundo épico e, por causa disso, apresenta esse aspecto intertextual a fim de enaltecer o sentimento que Bentinho constatou haver naquele momento.
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Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera defunto aqueles olhos… É impossível que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos procuram a sombra e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e serenas; os discursos são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor. (ASSIS, 1899, p. 135).
3.3 A guerra de Tróia e Bentinho
No capítulo XVII de Dom Casmurro, Bentinho faz uma ligação de uma citação da Bíblia com um acontecimento de Aquiles durante a travessia para a Guerra de Tróia:
Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelista. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles. (ASSIS, 1899, p. 29).
Eurípedes, também um dos grandes poetas gregos, escreveu muitas tragédias envolvendo a mitologia grega, e também produziu, no meio de diversas de suas obras, histórias baseadas em Homero sobre a guerra de Tróia. Entre seus trechos, destaca-se que durante a travessia dos gregos pelo mar para chegar à Tróia, o povo grego se perdeu e chegou à Mísia, onde Télefos era o rei e estava ao lado da cidade troiana. Após perderem em um conflito contra a Mísia, os gregos decidiram voltar para suas terras e se preparar novamente para a nova expedição, porém, Télefos foi ferido por Aquiles, e, seguindo as instruções do Oráculo de Apolo, que dizia que “somente quem ferira poderia curar”, entrou no palácio grego pedindo ajuda em sua cura em troca do caminho correto para Tróia. Aquiles então, ajudou a curar a ferida de Télefos, colocando sua lança sob a ferida espalhando sua ferrugem, assim, os gregos seguiram viagem e conseguiram chegar à Tróia.
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Assis busca desfrutar dessa Intertextualidade, através do momento em que Aquiles cura Télefos, e ressalta o versículo de Jó, “Pois é ele quem abre a ferida, mas ele mesmo a trata; ele fere, mas com suas próprias mãos pode curar.” (Jó 5:18), a fim de estabelecer uma comparação entre a cultura grego-latina e a cultura judaico-cristã, de forma que Bentinho seria capaz de entender a metáfora apresentada. A figura do oráculo também é utilizada em Dom Casmurro, como aspecto intertextual, de modo a estender a procura de Bentinho pela origem de ambas as culturas. O oráculo, segundo crenças dos pagãos, eram quem representava as respostas dadas pelos deuses. E, nessa busca do narrador de entender as origens, os vermes dos livros o fazem mudar de ideia.
Referências
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