Revista Dispositiva

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Daniella Lopes Dias Ignácio Rodrigues Laura de Sá Drummond; Márcia Stefane Gomes Castro e Silva; Palloma Tayná Landim Gontijo Gabriela Fernandes Cunha; Caroline Machado Gomes; Ricardo Bibiano Dias Filho Os autores Lívia de Freitas Acipreste; Raimundo Romildo R Oliveira; Thúllio Salgado Santos Vieira Paula Woyames Costa Leite; Rodrigo Marinho dos Santos; Maria Luísa Rodruigues Sousa Google Imagens

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DISPOSITIVA Revista da disciplina Leitura e Produção de Textos em Ambientes Digitais • Curso de Letras • Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

LINGUÍSTICA


Dispositiva é uma publicação semestral da disciplina Leitura e Produção de Textos em Ambientes Digitais • Curso de Letras • Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO......................................................................................................................... 5 Laura de Sá Drummond Márcia Stefane Gomes Castro e Silva Palloma Tayná Landim Gontijo

RELAÇÕES DE INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE PRESENTES NA OBRA "AMOR DE CAPITU" .............................................................................................. 8 Paula Woyames Costa Leite

A INTERTEXTUALIDADE E O PROJETO LITERÁRIO DE RUFFATO ..................................... 15 Isadora Barbosa da Silva Lucas Daniel Ferreira

COMO SE DÁ A EVOCAÇÃO BÍBLICA NOS POEMAS RELIGIOSOS DE GREGÓRIO DE MATOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE .................................................. 25 Talytha Cristina da Trindade Victor Oliveira Aparecida

A DIMENSÃO DISCURSIVA DA CRÔNICA JORNALÍSTICA DE ANTÔNIO PRATA ............. 40 Anne Caroline de Oliveira Glicério Fabiana Camargo Laura de Sá Drummond

VAMBORA PRO INVERNO, CARIOCAS .................................................................................... 50 Roberto Carlos Gonçalves de Souza

COMO A INTERTEXTUALIDADE E A INTERDISCURSIVIDADE SÃO IMPRESCINDÍVEIS NA CONSTRUÇÃO DO HUMOR NAS TIRINHAS DA MAFALDA ............................................ 61 Maria Luísa Rodrigues Sousa

O USO DOS PRONOMES DEMONSTRATIVOS EM TEXTOS DE PRÉ-VESTIBULAR............. 76 Bruna Motta Debarry Caroline Machado Gomes Gabriela Lapa Almeida Araujo

O DISCURSO DE OUTREM .......................................................................................................... 86 Tiago Almeida Assumpção


Linguística

APRESENTAÇÃO Laura de Sá Drummond Márcia Stefane Gomes Castro e Silva Palloma Tayná Landim Gontijo

Esta edição da Revista Dispositiva, de temática livre, reúne textos de linguística com diferentes abordagens e recortes, materializados em gêneros também variados: artigos, ensaios e resenha. Todos os autores que aqui, com prazer, compartilharam conosco dos seus estudos e pesquisas são alunos ingressos no curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Cada autor e cada texto tem sua individualidade discursiva, mas todos compartilham do mesmo desejo e paixão de caminhar pelas teorias linguísticas que tanto nos são fascinantes. À luz dos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade, frequente nos textos compreendidos nesta revista, passearemos pelo barroco e assertivas religiosas de Gregório de Matos, pelo realismo e discutida Capitu, de Machado de Assis, pelos cavalos de Luiz Ruffato, pelas polêmicas crônicas jornalísticas de Antônio Prata, pelas canções de Adriana Calcanhoto e pelas tirinhas de Mafalda. Nossa gramática não ficou de fora e também veremos na leitura dos textos aqui presentes a corriqueira dúvida na escrita de pronomes demonstrativos em redações. Referenciado em muitos dos textos que aqui estão, Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov e suas caras contribuições para a linguística ganha seu espaço único em uma resenha sobre o discurso do outro. Popularmente conhecido como Boca do Inferno, Gregório de Matos é corpus teórico do artigo de Talytha Cristina da Trindade e Victor Oliveira Aperecida. O ilustre nome da literatura barroca se apresenta, interessantemente, no texto Como se dá a evocação bíblica nos poemas religiosos de Gregório de Matos: uma análise à luz da intertextualidade, para compor, na verdade, um estudo linguístico sobre os traços de intertextualidade em três poemas de uma antologia do barroquista. Os poemas em estudo são de ordem religiosa e bebem em outros textos bíblicos, colocando em evidência a relação intertextual que ali se encontram. Também retomando os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade teorizados por Ingedore Villaça Koch e Mikhail Bakhtin, Paula Woyames Costa Leite faz uma instigante análise intertextual entre o livro Amor de Capitu, de autoria do mineiro Fernando Sabino e Dom Casmurro, do realista Machado de Assis no artigo Relações de interdiscursividade e intertextualidade presentes na obra Amor de Capitu. São fundamentados na análise entre as obras, importantes conceitos que demonstram, segundo a autora, que “em todos os discursos

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existem outros dizeres. Em todas as “vozes” existem outras ‘vozes’. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse. O discurso é sempre vinculado a outros.”. Contista, romancista e poeta mineiro, Luiz Ruffato compõe o corpus de estudo intertextual no artigo A intertextualidade e o projeto literário de Ruffato, escrito por Isadora Barbosa da Silva e Lucas Daniel Ferreira. Os autores elencam dois fragmentos e as duas epígrafes do seu não convencional e premiado romance Eles eram muitos cavalos para compreender como o escritor, através dos processos intertextuais materializados em movimentos de alusão e referência, anuncia o seu projeto literário. Para alcançar o objetivo desse estudo, os autores voltam aos conceitos de Ingedore Villaça Koch e José Luiz Fiorin, reunindo ao arcabouço teórico um estudo de Ivete Walty e Raquel Junqueira Guimarães sobre a escrita de Ruffato. A análise do discurso de linha francesa é a abordagem teórica do ensaio intitulado A dimensão discursiva da crônica jornalística de Antônio Prata, de autoria de Anne Caroline, Fabiana Camargo e Laura Drummond. Nesse trabalho, as autoras debruçaram sobre os possíveis efeitos de sentido provocados pela historicidade dos discursos na leitura do gênero crônica jornalística. São apresentadas, de forma concisa, as principais categorias teóricas usadas pelo analista de discurso Dominique Maingueneau, tendo como objeto da análise a crônica de um reconhecido cronista brasileiro que aborda questionamentos atuais e de grande relevância. Por fim, as autoras refletem sobre a formação leitora e discursiva dos possíveis interlocutores. Outro convidativo artigo envolvendo as discussões acerca dos movimentos intertextuais é Vambora pro inverno, cariocas, da autoria de Roberto Carlos Gonçalves de Souza. De modo a fundamentar sua pesquisa, o autor recorre à autores como Ingedore Villaça Koch, Mikhail Bakhtin, José Luiz Fiorin, entre outros, para analisar a dialogicidade da linguagem presente em canções de uma das grandes vozes da MPB: Adriana Calcanhoto. As músicas que elucidam a atualização de discurso nessa envolvente análise do autor são “Inverno”, “Vambora” e “Cariocas”. Ainda no campo da Linguística Textual no que diz respeito aos eixos da intertextualidade

e

interdiscursividade,

o

artigo

Como

a

intertextualidade

e

a

interdiscursividade são imprescindíveis na construção do humor nas tirinhas da Mafalda, da autora Maria Luísa Rodrigues Sousa, comtempla os teóricos Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e José Luiz Fiorin para analisar e discutir os discursos e enunciações contidas nas tiras de nossa querida personagem Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, popularmente conhecido como Quino. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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Aspectos gramaticais da nossa singular língua portuguesa foram contemplados pelas autoras Bruna Motta Debarry, Caroline Machado Gomes e Gabriela Lapa Almeida Araujo, no artigo O uso dos pronomes demonstrativos em textos de pré-vestibular. Nesse texto, o leitor compreende a dificultosa e duvidosa aplicação desses pronomes que desafiam os estudantes na escrita de redações para pré-vestibular e em especial para o ENEM, avaliação tida como de maior relevância pela maioria dos pré-vestibulandos em nosso país. Para clarificar o assunto, as autoras recorrem às gramáticas normativas de Leila Lauar Sarmento e Domingos Paschoal Cegalla e, como fim de análise, tomam produções de alunos cadastrados na plataforma online de redação Imaginie. Para fechar nossa atual edição, contamos com um dos grandes pensadores do círculo bakhtiniano sendo resenhado por Tiago Almeida Assumpção. O capítulo O discurso de outrem, da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, torna-se objeto de uma síntese clara sobre os principais conceitos e ideologias vigentes do pensamento de Valentin Volochínov. Categorias como discurso citado, discurso direto e indireto são revisitadas para uma clara compreensão do leitor sobre a representação do discurso alheio. Como se percebe, os textos que formam o quarto volume da Revista Dispositiva entregam reflexões importantes para a área de linguística, produzidos por alunos ingressos do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. São evidenciadas as diferentes frentes de reflexão contidas no ensaio, resenha e artigos, que podem ser de grande importância ao serem divulgadas para o público, visto que aprofundam o debate intelectual e teórico para novos olhares e perspectivas sobre o funcionamento da língua e da linguagem. Esperamos que a leitura seja instigante e de grande contribuição para estudos de iniciantes no percurso acadêmico-científico da área aqui contemplada.

Belo Horizonte, 30 de novembro 2020.

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RELAÇÕES DE INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE PRESENTES NA OBRA "AMOR DE CAPITU" Paula Woyames Costa Leite

RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar o livro intitulado “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino,e a relação de intertextualidade presente com a obra “Dom Casmurro” de Machado de Assis. A obra analisada se trata de uma releitura da obra de Machado de Assis que mantêm o enredo da obra base, apenas alterando o narrador e algumas expressões a fim de atualizar o discurso machadiano e possibilitar que o leitor chegue a uma conclusão da suposta traição de Capitolina (Capitu). A base teórica para a elaboração do artigo foram Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e Affonso RomanoSant’anna. Palavras-chave: Intertextualidade; Paráfrase; Alusão; Atualização do discurso; Citação.

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe uma análise teórica das relações de intertextualidade e de interdiscursividade presentes na obra “Amor de Capitu”, escrita por Fernando Sabino, em relação à obra de Machado de Assis intitulada “Dom Casmurro”. O livro a ser analisado, lançado no ano de 1998, é uma releitura da obra machadiana do ano de 1899e mantêm o enredo da obra inspiradora, alterando apenas o narrador e palavras para que as referidas se adequem ao tempo no qual a releitura é publicada. Além dessas alterações mencionadas, o autor também tem o objetivo de fazer com que o leitor possa chegar a uma conclusão da suposta traição da personagem Capitolina (Capitu), posto que ele, relendo a obra machadiana, não chegou a nenhuma. No próprio livro, Fernando Sabino deixa clara sua intenção ao reescrever a famosa história de Machado de Assis. Na página 228, no livro “Amor de Capitu”, Fernando Sabino diz que:

Ultimamente ando de novo intrigado com o enigma de Capitu. Teria ela traído mesmo o marido, ou tudo não passou de imaginação dele, como narrador? Reli mais uma vez o romance e não cheguei a nenhuma conclusão. Um mistério que o autor deixou para a posteridade. (SABINO, 2001, p. 288).

OBJETO DE ESTUDO O objeto de estudo a ser analisado será o livro intitulado “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino no ano de 1998. A obra se trata de uma releitura da obra literária “Dom Casmurro”, de Machado de Assis escrita em 1899.

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O artigo irá analisar os processos de intertextualidade presentes na composição de “Amor de Capitu”. O objetivo do estudo é analisar, por meio de explicações, a função discursiva a partir da presença do intertexto no texto em estudo, usando exposições de trechos das duas obras mencionadas de citações comparativas e que justifiquem afirmações feitas nesse estudo. Será analisado, também, em qual contexto e com qual finalidade o autor, Fernando Sabino, reescreveu a obra de Machado de Assis. O artigo foi estruturado tendo como base teórica os estudos de Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e Affonso RomanoSant’anna para justificar os processos de intertextualidade presentes no estudo da obra como a paráfrase e alusão. De fato, os três linguistas citados apresentam conceitos certeiros em relação aos processos de intertextualidade presentes na obra de Fernando Sabino os quais embasam todo o estudo. O artigo pretende, por fim, comprovar a importância da intertextualidade e seus processos na composição de novas obras literárias e como elas são organizadas no tempo e contexto em que são escritas, sendo influenciadas por obras já feitas a anos ou séculos passados.

DESCRIÇÃO DO CORPUS O corpus do artigo é constituído fundamentalmente pelo livro “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino no ano de 1998. Em relação à referida obra, será estudada a publicada pela editora Ática, 4aedição do ano de 2007, possuindo 295 páginas. Em sequência, será analisada a forma como o livro foi estruturado tendo como base a obra sob a qual foi inspirado: “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, escrito em 1899, lançado pela editora Garnier, no ano de 1992 que contêm 236 páginas.

ABORDAGEM TEÓRICA

Fernando Sabino tem como objetivo fazer uma releitura do romance entre Bentinho e Capitolina (Capitu) sem a presença do narrador em 1ª pessoa, que, no caso em questão, é o próprio personagem, Bentinho. Estruturando a história dessa maneira, o autor tenta dar mais espaço ao leitor para que se possa analisar de maneira mais subjetiva a tão suposta e famosa “traição” de Capitu, a fim de se chegar a uma possível conclusão sem as opiniões expressadas por quem o narra na obra machadiana.

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Na capa do livro de Fernando Sabino, há o título e, abaixo, sobre o que ele irá falar. Há, também, a descrição: “Leitura fiel do romance de Machado de Assis sem o narrador Dom Casmurro”. Pressupõe-se, então, que o leitor conheça previamente a obra machadiana à qual a releitura faz alusão. Segundo o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin (ano), em todos os dizeres existem outros dizeres, um discurso é sempre vinculado a outros. O discurso machadiano em “Dom Casmurro” será percebido na releitura de Fernando Sabino por meio de diferentes formas que manterão a essência da obra inspiradora. No caso da obra em pauta, um discurso narrativo irá apresentar marcas que são fundamentais para a autenticidade de um discurso introduzido a outro, pois transferem uma enunciação dita do domínio da construção linguística para o contexto desejado pelo falante. O autor, ao reescrever a obra de Machado de Assis, realiza uma paráfrase. Esse recurso de interpretação textual consiste na reformulação de um texto alterando e trocando algumas palavras e expressões originais da obra inspiradora para facilitar o entendimento do leitor e atualizar a obra ao tempo em que ela é reescrita. Porém, a ideia principal do texto base é mantida. Quanto a essa alteração de palavras e atualização da obra machadiana, no capítulo “E BEM, E O RESTO?”, na página 233 de “Amor de Capitu”, Fernando Sabino diz que:

Algumas expressões idiomáticas da época, ou de flagrante herança lusitana, que pareciam desusadas ou mesmo chulas ao leitor de hoje, foram substituídas por vocábulos de sinonímia ou acepção equivalente que não trouxessem a marca do tempo – como “lábios” em vez de “beiços”,” rosto” em vez de “cara”, “é verdade” em vez de “é deveras”, “encabulado” em vez de “enfiado”, “estupefato” em vez de “estúpido”, “zombeteiro” em vez de “chocarreiro”, “raspado” em vez de “rapado”, etc. Só não me pareceu adequado substituir por “amante da própria esposa” o supramencionado “comborço”- feio substantivo que, segundo o dicionário, quer dizer “aquele que é amante de uma mulher em relação ao marido ou outro amante dessa mulher” (um pouco difícil de entender). Procurei moderar também o uso do ponto-e-vírgula, um tanto excessivo como recurso de estilo machadiano. (SABINO, 2001, p. 233).

Ao contrário de “Dom Casmurro”, em que o narrador é o personagem Bentinho (narrador em 1ª pessoa), Fernando Sabino estrutura sua obra sem sua a presença e, assim, tornao observador (narrador em 3ª pessoa). Logo, os diálogos entre narrador e leitor são suprimidos, e, fazendo isso, o autor expande a possibilidade de dúvidas e análises quanto à suposta traição de Capitu, posto já que, na obra machadiana, o leitor é levado a uma conclusão quase que imparcial por parte de quem narra os fatos.

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Fernando Sabino foca no romance entre as personagens Bento e Capitu, alterando a posição de capítulos do livro para que a narrativa romântica fique linear. Ele dedica um capítulo final, o apêndice, intitulado “O CRONISTA DOM CASMURRO”, somente aos capítulos que contêm as interveniências e digressões do narrador, que são constantes na obra machadiana. Ressalta-se que não houve nenhuma alteração na estrutura desses capítulos quando reescritos, isto é, o autor apenas tenta organizar a estrutura do romance para que a leitura fique mais fluida. Encontram-se, ali, os capítulos “DO TÍTULO”, “DO LIVRO”, “TIO COSME”, “D. GLÓRIA”, “É TEMPO - A ÓPERA”, “O ADMINISTRADOR INTERINO”, “O IMPERADOR”, “O SANTÍSSIMO”, “PANEGÍRICO DE SANTA MÕNICA”, “UM SONETO”, “CHAMADO”, “O DEFUNTO”, e por fim, “A POLÊMICA”. Anterior ao capítulo mencionado, há um cujo título é “E BEM, E O RESTO?”, em que se percebe clara a intertextualidade com o último capítulo de “Dom Casmurro” nomeado “É BEM, E O RESTO?”. Nesse capítulo, Fernando Sabino faz suas considerações finais acerca de sua releitura e o porquê de tê-la feito. Assim como Machado de Assis, na perspectiva de seu personagem Bentinho, o autor da releitura o usa para concluir sua obra: Fernando Sabino conclui seu livro e, Bentinho, a traição. Usando o mesmo título (entre aspas, visto que, há alusão à obra machadiana), Fernando Sabino coloca o sentido do título em questão e o deixa à deriva para outros usos e interpretações. Ele dará voz para a personagem que cria em “Amor de Capitu”. Depois de analisados esses dois capítulos, analisar-se-á a estrutura da reescrita e releitura do romance entre os personagens. Um dos processos da intertextualidade presente na obra “Amor de Capitu” é a paráfrase. Esta ocorre quando existe uma “ligação” de um texto a outro que serve como alusão para a execução de um novo conteúdo, sobre o qual Sant’Anna (1985, pag. 24) afirma: “ocorre um jogo de diferenciação em relação ao texto original, sem que, contudo, haja traição ao seu significado”. Em sequência, define-se intertextualidade como: “os diálogos entre textos como relações de transtextualidade, a transcendência textual, tudo o que põe em relação ainda que “secreta”, um texto com outros e que inclui qualquer relação que vá além da unidade textual em análise.”(KOCH, 2003, pág 119). Os temas das duas obras irão pelo mesmo caminho, mesmo os autores sendo diferentes. Sant´ana, mencionado no texto do capítulo 6, “Intertextualidade – outros olhares”, da obra “Desvendando os segredos do texto” de Ingedore Koch, ainda diz que “a paráfrase é uma

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reiteração de uma ideia e opera como uma intenção esclarecedora do texto-fonte, daí por que muitas vezes se manifesta de forma mais extensa que ele”. (KOCH, 2003, p 142). Koch (1997, pag. 46) afirma que a paráfrase “revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, retoma, alude, ou a que se opõe”. Ao construir um narrador em 3ª pessoa, o autor mantém a ideia central, isto é, do romance e da suposta traição, porém insere no texto o discurso indireto livre. Uma vez que o narrador é deslocado à terceira pessoa, o que não existe na obra base, uma vez que o narrador é em 1ª pessoa, faz-se com que a história seja contada por um ponto de vista único. Para mais, a mudança de capítulos e palavras confere à obra estatuto de atualizada, estando em consonância com a linguagem atual. Para Bakhtin, o discurso indireto livre é uma variação do discurso indireto e: tem uma tendência inerente a transferir a enunciação citada do domínio da construção linguística ao plano temático, de conteúdo. Entretanto, mesmo assim, a diluição da palavra citada no contexto narrativo não se efetua, e não poderia efetuar-se completamente: não somente o conteúdo semântico mas também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis, de tal forma que a substância do discurso do outro permanece palpável, como um todo auto-suficiente. Manifesta-se assim, nas formas de transmissão do discurso de outrem, uma relação ativa de uma enunciação a outra, e isso não no plano temático, mas através de construções estáveis da própria língua. (BAKHTIN, 1990, p. 148).

Para perceber essas mudanças e a presença dos recursos textuais mencionados, apresenta-se um trecho retirado do livro “Amor de Capitu” e o mesmo trecho retirado de “Dom Casmurro”: TRECHO 1, pág. 19, “Amor de Capitu”:

Com que então ele amava Capitu, e Capitu o amava! Realmente andavam sempre juntos, mas não lhe ocorria nada que fosse secreto entre os dois. Antes de ela ir para o colégio, eram só travessuras de criança; depois que saíra do colégio, é verdade que não haviam restabelecido logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco e no último ano fora completa.

TRECHO 2, pág. 33, “Dom Casmurro”:

Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa.

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No 1º trecho, percebe-se o discurso indireto livre ausente no 2º trecho. Nota-se, também, a mudança de palavras na obra reescrita. A palavra “mocetona” em especial chama a atenção quando se lê “Dom Casmurro”, posto que se refere à Capitu. Em “Amor de Capitu”, Fernando Sabino a substituirá pela expressão uma “moça e tanto”. Apresenta-se, aqui, o trecho na página 157, de “Amor de Capitu”, em que há a alteração da palavra e, em seguida, o trecho original da obra machadiana, situado na página 174: “Moça e tanto” era vulgar. José Dias achou coisa melhor a dizer. Foi a única pessoa que os visitou na Tijuca, levando abraços dos parentes e palavras suas (..) (AMOR DE CAPITU, 1998, p. 157). “Mocetona era vulgar; José Dias achou melhor. Foi o único a nos visitar na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas (...)” (DOM CASMURRO, 1899, p. 174).

Quanto a essa mudança de palavra, Fernando Sabino diz que: Quanto a ser ela chamada de “mocetona”, não achei a palavra apenas vulgar, como qualificou José Dias, mas grosseira sugestão eufônica de uma parte da anatomia feminina. Em vez de substituí-la por “mulherão”, ou equivalenteemenda pior do que o soneto-, preferi respeitar a eufonia com uma expressão de significado semelhante: uma “moça e tanto”. (AMOR DE CAPITU, 1998, p. 234).

Além da paráfrase, a alusão também está presente na releitura de Fernando Sabino. No que diz respeito a esse recurso, Koch, citando Cavalcante, diz que:

Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não dito. (cf. Cavalcante, 2006: 5) (KOCH,1997, p. 127).

Koch, quanto a alusão, também afirma que: Na alusão, não se convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar diretamente. (KOCH, 1997, p. 127).

A alusão se faz por meio da suposição e percepção do co-enunciador: espera-se que haja o reconhecimento do texto-fonte que foi introduzido na obra lida. O enunciado supõe a percepção de uma relação entre ele e outro ao qual remete tal ou tal de suas inflexões, que só são reconhecíveis para quem tem conhecimento do texto-fonte.

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CONCLUSÃO

Todo o processo de construção de uma nova obra literária é influenciado diretamente por discursos já ditos em outros tempos: não há discursos homogêneos. Segundo o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, em todos os dizeres existem outros dizeres, um discurso é sempre vinculado a outros. Para o estudioso: O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. (BAKHTIN, 1929, p. 150).

Em todos os discursos, existem outros dizeres. Em todas as “vozes”, existem outras “vozes”. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse. O discurso é sempre vinculado a outros. Logo, ao trazer o discurso do outro para um determinado enunciado em um contexto específico, há a apropriação deste ao modo de quem o irá fazer. Porém, tal fato não faz com que a essência do discurso incorporado seja perdida, fato demonstrado por Fernando Sabino ao realizar uma paráfrase em seu livro tendo como base a obra machadiana. O discurso que foi introduzido será percebido por meio de diferentes formas que manterão tal essência.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. Ed. Contexto,1997. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. 168p. SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e CIA. Série Princípios, 2ª ed. Ed. Ática, 1985. SABINO, Fernando. Amor de Capitu, 4ª ed. Ed. Ática, 2007. DE ASSIS, Machado, Dom Casmurro, 2ª ed. Ed. Garnier, 1992.

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A INTERTEXTUALIDADE E O PROJETO LITERÁRIO DE RUFFATO Isadora Barbosa da Silva Lucas Daniel Ferreira

RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar a presença da intertextualidade, como a citação, alusão e referência, na obra “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato, indicando como esse processo contribui para a criação do projeto literário do autor brasileiro. Para tanto, tomamos como base teórica para a elaboração das análises os estudos de Koch (2007), Fiorin (2006) e Walty e Guimarães (2017). Palavras-chave: Projeto literário; Citação; Alusão; Referência; Ruffato.

INTRODUÇÃO

Este artigo analisa as relações de intertextualidade e a interdiscursividade presentes no romance “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato, publicado em 2001 pela Companhia das Letras. O livro analisado é composto, além de duas epígrafes, por 70 fragmentos que narram, cada qual com sua especificidade, a vida cotidiana dos moradores da cidade de São Paulo. A fim de estudar tais processos de textualização, selecionamos as epígrafes de Cecília Meireles e o Salmo 82, o fragmento 6, intitulado “Mãe”, e o 14, cujo título é “Um Índio”, para compor o corpus de análise. O objetivo é identificar e descrever as intertextualidades presentes nesses textos e indicar como essas funções são usadas pelo autor para construir seu projeto literário. Desse modo, em termos de fundamentação teórica, recorremos aos trabalhos de Koch (2007), a fim de explicitar as questões de intertextualidade, e ao de Fiorin (2006), para discutir a interdiscursividade. Focaremos especificamente nos processos de citação, referência e alusão, visto que são os mais recorrentes no corpus escolhido.

ESPECIFICANDO A BASE TEÓRICA O capítulo “Intertextualidade – outros olhares” é a sexta parte que integra o livro “Intertextualidade: diálogos possíveis”, elaborado por Anna Christina Bentes, Ingedore Koch e Mônica Cavalcanti. Ancoradas sobretudo nas observações do crítico literário e teórico da literatura francesa Gérard Genette, desenvolvidas na obra Palimpsestes (1982), as autoras têm como principal objetivo analisar e definir as diversas maneiras com que ocorrem os

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diálogos entre os textos, de modo a apresentar, como o próprio título do capítulo sugere, outros olhares sobre a intertextualidade. Para tanto, dividem o tema da transtextualidade, desconsiderando as considerações finais, em quatro tópicos: A intertextualidade restrita de Genette; paratextualidade e arquitextualidade – para além do texto, mas nas bordas da intertextualidade; a metatextualidade e a hipertextualidade e as relações de derivação. Em cada tópico, as autoras explicam e exemplificam os tipos de intertextualidade, como a alusão, referência, o pastiche, a paródia, o travestimento burlesco, entre outros. Todavia, atentaremos para os processos de intertextualidade apreendidos no material de análise deste artigo.

Citação

Segundo Koch (2007), a citação classifica-se como uma intertextualidade restrita, ou seja, trata-se de uma relação de co-presença em que há a efetiva integração de um texto em outro, sendo indicada pelo uso de aspas, itálico ou negrito, e podendo ter ou não a indicação da autoria. Quando acompanhada pela expressão da autoria, é chamada de intertextualidade explícita. A citação, quando bem integrada, têm o valor discursivo de autoridade e de ornamentação. O primeiro reforça o “efeito de verdade de um discurso, autenticando-o", e o segundo, “no contexto da obra literária, uma citação bem escolhida pode lançar luzes ao romance, enriquecendo seus significados, expondo as intenções dos personagens por meio de inúmeros recursos estilísticos”. (Koch, p.121, 2007).

Alusão De acordo com Genette (1982), a “alusão se dá quando um enunciado supõe a percepção de uma relação entre ele e um outro ao qual remete tal ou tal inflexões, que só são reconhecíveis para quem tem conhecimento do texto-fonte". Posteriormente, Koch alega que a alusão, por não invocar literalmente as palavras do texto, é evocada de forma indireta e até mesmo implícita.

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Referência

A referência, assim como a alusão, supõe a presença de outro texto que necessita do conhecimento prévio do leitor. Entretanto, diferencia-se desta por ser relatar-se diretamente ao texto-fonte, como um todo ou uma parte, sendo assim, uma intertextualidade explícita de copresença.

Paratextualidade

Corresponde a relação do texto com seus segmentos ou complementos, como os paratextos, as notas de rodapé, epígrafes e posfácios. O ensaio “Interdiscursividade e Intertextualidade”, escrito pelo linguista José Luiz Fiorin, é o oitavo que integra o segundo volume da obra “Bakhtin - Outros Conceitos”, organizado por Beth Brait. A obra é composta por um conjunto de ensaios que tem como objetivo situar os pontos fundamentais da teoria do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Neste ensaio, Fiorin situa os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade por meio de suas origens, dispersão e análises de poemas e sermões a fim de descrevê-los e explicitá-los. Para tanto, retoma constantemente às obras bakhtinianas usadas como fonte, bem como recorre ao auxílio de outros aparatos teóricos, como o texto de Júlia Kristeva. O linguista define e diferencia os termos intertexto, interdiscurso, intertextualidade e interdiscursividade, apresentando ainda as ligações que estabelecem. Além disso, diferencia texto e enunciado; enunciado e discurso. Para a análise aqui estudada, faz-se necessário a relação entre interdiscursividade e intertextualidade. Assim, como aponta Fiorin (2006), a intertextualidade pode ser entendida como

a

“relação

discursiva

materializada somente em

texto”;

enquanto

que

a

interdiscursividade pode ser entendida como “qualquer relação dialógica, na medida em que é uma relação de sentido”, ocorrendo entre enunciados. Desse modo, pode-se achar a interdiscursividade materializada na intertextualidade. A fim de complementarmos nossos estudos, selecionamos o artigo “Ruffato: um escritor e um projeto de nação”, de Ivete Walty e Raquel Guimarães, publicado na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, em 2017. Nesse artigo, as autoras examinam o projeto de escrita de Luiz Ruffato, a partir da análise de “Eles eram muitos cavalos”, com foco na relação da literatura com a sociedade, além de discutirem a intervenção do escritor no espaço público. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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DESCRIÇÃO DO CORPUS

Como dito anteriormente, para a realização deste artigo foram analisados os textos do romance “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato, publicado no ano de 2001 pela Companhia das Letras. Luiz Ruffato é um escritor brasileiro nascido em Cataguazes, Minas Gerais, em 1961. Publicou seu primeiro livro “Histórias de Remorsos e Rancores” em 1998 e ganhou, com “Eles eram muitos cavalos”, o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Além disso, seus livros foram traduzidos para o alemão, espanhol, francês e Italiano, e o autor participou da Feira do Livro de Frankfurt, em 2013 na Alemanha, onde fez um discurso - tido como polêmico - na abertura da feira. O livro aqui analisado é um romance composto por 70 fragmentos que, apesar de serem independentes entre si, estabelecem um elo por narrarem acontecimentos que estão situados em uma mesma data, 9 de maio de 2000, e no mesmo espaço, a cidade de São Paulo. Ao contrário dos romances tradicionais, caracterizados pela narrativa longa em prosa, a obra de Ruffato apresenta-se em fragmentos e com uma estrutura não-linear, de modo que o autor mescla outros gêneros literários – como a propaganda e o roteiro de cinema – para construir a pluralidade presente na narrativa. Por vezes, essas narrativas possuem enunciados e finais inacabados; o que faz com que o livro do escritor mineiro seja um romance que experimenta formas distintas das convencionais. Nota-se, em alguns desses fragmentos, a presença de intertextualidade, materializada na forma de alusão e referência, e um interdiscurso com outras obras da literatura brasileira. Esses movimentos ocorrem na medida em que o autor indica, mesmo que de forma sutil, que seu projeto literário foi construído com base em seus antecessores literários. A análise aqui realizada focou nas epígrafes, de Cecília Meireles e Salmo 82, que abrem a obra, e nos fragmentos 6 e 14, a saber: “Mãe” e “Um índio”, respectivamente.

ANÁLISE DO CORPUS

Prefácio Ruffato inicia o romance “Eles eram muitos cavalos” com dois prefácios. O primeiro trata-se dos versos da obra “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles: DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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“Eles eram muitos cavalos, Mas ninguém mais sabe seus nomes Sua pelagem, sua origem...”

Tais versos compõem o poema “LXXXIV ou dos cavalos da Inconfidência", em que o eu lírico coloca em evidência as pessoas comuns que participaram do movimento revolucionário mineiro e, por não serem figuras heroicas, tornam-se desconhecidos tanto no nome quanto na origem. Ao incorporá-los no romance, Ruffato anuncia que, assim como Meireles, pretende escrever sobre aqueles que ninguém conhece e que, por serem comuns, passam despercebidos perante a sociedade. Do mesmo modo, essas figuras não possuem nome, o que se constata após finalizada a leitura da obra - são poucos aqueles nomeados. Porém, ao contrário do poema, o autor não insere os personagens em um contexto histórico importante como o da Inconfidência Mineira, mas situa-os em um habitual cotidiano da cidade grande, cada qual com sua adversidade. A segunda epígrafe é composta pelo Salmo 82: “Até quando vocês julgarão injustamente, Sustentando a causa dos ímpios?”

No sentido bíblico, esses versículos indicam a indignação de Deus perante os governantes que negligenciam os clamores de justiça do povo. Em oposição, defendem os ímpios, isto é, aqueles que são contrários a Deus e as leis divinas. A princípio, o deslocamento dessa passagem para o romance aponta para um novo sentido: o questionamento da ausência desse tipo de personagem em outras obras da literatura brasileira. Entretanto, ao analisar os dois próximos versículos que sucedem os escolhidos por Ruffato, “Julguem a causa do fraco e do órfão, Façam justiça ao pobre e ao necessitado”,

Percebe-se uma reiteração da proposta de escrita trazida pelo primeiro prefácio. Desse modo, coloca-se em destaque os que estão excluídos, à margem da sociedade. Retomando Koch (2007), ao apresentar os casos de paratextualidade, “talvez somente as epígrafes, os prefácios e os posfácios convirjam para o que se costuma entender como intertextualidade, na medida em que pode constituir uma citação, como a epígrafe”.

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Portanto, tanto o prefácio de “LXXXIV ou dos cavalos da Inconfidência” quanto o Salmo 82 tratam-se de uma paratextualidade, já que “revela tentativas de ação sobre o leitor”, e de uma intertextualidade por citação, materializada por meio da gravação em itálico e do nome do autor e do livro, no caso da passagem bíblica. Por fim, é através da intertextualidade que Ruffato anuncia seu projeto literário iniciado na construção de “Eles eram muitos cavalos”. Tal projeto é explicitado pelo próprio autor em uma entrevista concedida ao canal Livraria Cultura, no programa Sala De Visitas, em fevereiro de 2018: “[...] foi nesse momento que eu percebi que a literatura brasileira carecia de um personagem de classe média baixa, urbano”. Assim, o romance é uma síntese dos mais diversos tipos de pessoas com as mais diversas atividades, como o evangelista, o índio e a mãe que viaja para encontrar seu filho. Alusão no fragmento “mãe” O fragmento 6, intitulado “Mãe” narra a viagem de uma mãe, em idade avançada, que sai do município pernambucano de Garanhuns para encontrar com seu filho em São Paulo. O filho em questão é um migrante, que se mudou do interior de Pernambuco para “ganhar a vida” na capital paulista e, por isso, tem uns anos que não vê a mãe. Durante a descrição da viagem, é possível perceber que a paisagem faz uma alusão muito sutil ao livro “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, ao retratá-la como “o sertão, a seca, o sol, o silêncio, o sum, o sol, o sol o sol o sol o sol o sol, anzol, terra seca, urubus, umbus, as vargens, o verde, o cinza, as cinzas, o cheiro de” e, em outro trecho, indicar que a casa na qual o filho morava era uma “casa descostelada”. Infere-se tal suposição pois o livro em questão descreve o percurso do retirante Severino, que vai de Pernambuco em direção a Recife em busca de melhor qualidade vida, sendo caracterizado predominantemente pela paisagem árida do sertão nordestino. Além disso, nos poemas que compõem “Morte e Vida Severina”, a terra é qualificada com atributos do corpo humano, como em: “[...] mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.”

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O trecho “a noite de estrelas empoeiradas, o mundo, mundogrande, que não se acaba mais nunca”, faz alusão ao “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade, mais especificamente à estrofe: “Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.

Essas intertextualidades comportam-se como alusões pois se materializam de maneira muito indireta no romance “Eles eram muitos cavalos”, de tal forma que podem passar despercebidos pelo leitor mais desatento. Koch, ao citar Cavalcante, afirma que:

Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. (KOCH, 2007, p.127).

Ambas as alusões não só compõem a paisagem de “Mãe” como também indicam que, para construir seu projeto literário, Ruffato dialoga com outras obras da literatura brasileira. No artigo “Ruffato: um escritor e um projeto de nação”, Walty e Guimarães apontam que:

A produção do autor em cena insere-se na história da literatura brasileira, recuperando outras cenas enunciativas com seus sujeitos, espaços e tempos. Por isso mesmo, o leitor pode inferir em cada um desses momentos o projeto literário dos escritores. E na contemporaneidade o projeto literário do próprio Ruffato.” (WALTY e GUIMARÃES, 2017, p. 11).

Portanto, apesar de serem bastante discretas, essas intertextualidades contribuem para o apontamento que Ruffato inicia com o prefácio de Cecília Meireles. Referência e interdiscurso no fragmento “um índio” Em “Um índio”, fragmento 14 do romance, conta-se a história de um índio que chega à cidade de São Paulo e começa a trabalhar no boteco de um comerciante local em troca de comida. Após a morte do dono do boteco, o índio torna-se um sujeito alcoólatra e marginalizado. Durante a construção do personagem indígena, percebe-se uma referência a outro personagem de mesma ordem, como vemos no trecho: “índio mesmo, de verdade, portando os

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troços de fora, mas os cassetetes nem a, miraram no lombo da negada, e o peri lá, sozinho, pelado, bêbado”. Trata-se do personagem de “O Guarani”, de José de Alencar. Trata-se de uma referência pois, segundo a explicação de Koch (2007), “para mantermos a referência como uma intertextualidade explícita de co-presença, é mais coerente considerá-la como uma remissão direta ou ao próprio texto como um todo”. Ao contrário da alusão que se manifesta de maneira implícita, como observado na análise do fragmento “Mãe”. Na obra alencariana, o índio Peri é uma figura corajosa e valente, que representa os valores de honra, lealdade e amor pela terra, características comuns ao herói do romance indianista. Porém, na obra de Ruffato, o índio, agora sem nome, perde seu status de herói e passa a ser um substantivo comum, como pode ser percebido através da mudança de Peri para peri, e torna-se ainda um adjetivo para bicho, esquisito. Ademais, essa perda de identidade heroica, tão exaltada na Terceira Fase do Romantismo brasileiro, pode ser percebida em outro trecho do fragmento: “só amanhã surpreendeu o índio esticado sob a marquise de uma loja de material-de-construção na avenida Santo Amaro, abraçado a um casco branco vazio, a tudo alheio, a tudo”. Aqui, o índio já não é mais um herói nacional, mas representa a marginalização desse povo ao migrar para as cidades urbanas, onde, por muitas vezes não encontrarem condições dignas para sua sobrevivência, sucumbem ao alcoolismo. Há ainda, a presença de um discurso que trata a figura do autóctone como exótica, sobretudo no que diz respeito à sua nudez. Ao mesmo tempo em que ela é incentivada pelas pessoas que estão ao redor do índio, – “o bicho se entusiasmou, arrancou a roupa sob aplausos do povaréu, e ficou balangando os negócios” – é ela quem lhe garante a identidade de “índio mesmo, de verdade”, algo que representa um estereótipo de que o índio é aquele sujeito que anda nu e fala a “língua enrolada lá dele”. Tal discurso apresenta resquícios do discurso da Carta de Caminha ao figurar o índio como um selvagem e um bicho, além de mostrar que, assim como os portugueses fizeram no processo de colonização, era necessário vesti-lo, de modo que “tempos depois, voltou, emdentro duma camisa de seda sintética estampada, surrada, calça jeans ruça, chinelos-havaina". Assim, essa interdiscursividade indica que ainda nos tempos atuais, sente-se uma necessidade de civilizar os povos indígenas. Isso pode ser percebido pois, de acordo com Fiorin (2006), a “intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade”, já que o “interdiscurso é interior ao intradiscurso, é constitutivo

dele”.

Desse modo,

ao referenciar

o personagem

de José de

Alencar, Ruffato desconstrói a imagem heroica construída pelo romancista de forma a indicar DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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o esquecimento e exclusão que tal figura sofre na sociedade atual; enquanto que a interdiscursividade coloca em questão o fato de que esses sujeitos ainda são vistos como estranhos em seu próprio país, mesmo depois de se passarem muitos anos da colonização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após concluir o estudo e análise do corpus, percebe-se que a intertextualidade é parte fundamental do projeto literário de Luiz Ruffato, que não só pretende colocar em cena a classe média baixa, – com todos os seus sonhos, medos e angústias – como também visa estabelecer um diálogo com outras obras da literatura brasileira; indicando assim, como a literatura é capaz de dialogar com ela mesma. Assim, por meio de citações, alusões e referências, o romance “Eles eram muitos cavalos” instiga o leitor a refletir tanto sobre a importância das obras dos séculos passados na construção da identidade da nossa literária e do próprio povo, quanto no reflexo produzido por pelo romance de Ruffato na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema de Sete Faces. Disponível em: http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond01.htm. Acesso em: 6 jun. 2020. FIORIN, José Luiz. Intertextualidade e Interdiscursividade. In: Bakhtin – Outros Conceitoschave. Disponível em: https://docero.com.br/doc/nxvs8v. Acesso em: 2 jun. 2020. KOCH, I.G.V; BENTES, A.C; CAVALCANTI, M.M. Intertextualidade - outros olhares. In: Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Disponível em: https://docero.com.br/doc/nxe1e. Acesso em: 3 jun. 2020. NETO, João Cabral de Melo. Morte e Vida Severina. Disponível em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/ebooks/Joao%20Cabral%20de%20Melo%20Neto.pdf. Acesso em: 5 jun. 2020. NOVA BÍBLIA PASTORAL. Salmo 82. São Paulo: Paulos, 2014. p. 731, Antigo Testamento. NOVA BÍBLIA PASTORAL. Salmo 82. São Paulo: Paulos, 2014. p. 731, Antigo Testamento.

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SALA DE VISITAS. Entrevista com Ruffato. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lEoJzxScTKs. Acesso em: 3 jun. 2020. WALTY, Ivete; GUIMARÃES, Raquel. Ruffato: um escritor e um projeto de nação. In: estudos de literatura brasileira contemporânea, n.51, p.41-63, maio/ago. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S231640182017000200041&script=sci_abstract&tlng=pt.Acesso em: 5 jun. 2020.

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COMO SE DÁ A EVOCAÇÃO BÍBLICA NOS POEMAS RELIGIOSOS DE GREGÓRIO DE MATOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE Talytha Cristina da Trindade Victor Oliveira Aparecida

RESUMO Este artigo procura analisar poemas religiosos do poeta Gregório de Matos e Guerra; um grande nome do movimento Barroco. Este artigo foi pautado nas noções advindas do fenômeno da Intertextualidade e que estão presentes na construção desses poemas, tais noções nomeadas de referência e alusão. Os teóricos usados para dar embasamento a essa atividade são os linguistas brasileiros Ingedore Grünfeld Villaça Koch, Anna Christina Bentes, Mônica Magalhães Cavalcante e José Luiz Fiorin, além do pensador russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin. Palavras-chave: Alusão; Referência; Barroco; Bíblia.

INTRODUÇÃO

Este artigo coloca em pauta um debate acerca do fenômeno da intertextualidade presente em poemas de Gregório de Matos Guerra, escritos no período do Barroco no Brasil. Tais poemas foram reunidos em uma antologia organizada por José Miguel Wisnik, chamado Poemas Escolhidos de Gregório de Matos: Seleção, prefácio e notas, publicado pela editora Companhia das Letras. A antologia é a mesma publicada pela Editora Cultrix em 1975, entretanto, foram acrescidos algumas correções e ajustes. Além disso, a obra foi dividida sumariamente em três ordens: poesia de circunstância, amorosa e religiosa. De ora em diante, foram subdivididas em poesia satírica, encomiástica, lírica, erótico-irônica e, por fim, religiosa. Em nota do organizador José Miguel Wisnik, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, a primeira edição feita pela Editora Cultrix, visava à necessidade de construir uma coletânea crítica de Gregório de Matos que pudesse ser acessível para os estudantes e demais leitores, todavia, ainda hoje não se tem nenhuma obra desse tipo. Os poemas escolhidos para servirem de objeto de análise são de ordem religiosa e foram: A Jesus Cristo Nosso Senhor, Buscando a Cristo, Ao dia do Juízo A análise do fenômeno intertextual e discursivo presentes nos poemas serão realizadas à luz de Mikhail Bakhtin (2006), Fiorin (2005) Koch et al (2007), tendo em vista o capítulo nove do autor russo, O Discurso de Outrem e o capítulo seis da obra Intertextualidade- diálogos possíveis, das linguistas brasileiras.

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INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE: AS BASES TEÓRICOCONCEITUAIS DO ESTUDO Em o “Discurso de outrem”, capítulo 9 da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin retrata o discurso reportado, isto é, o discurso que em sua constituição apresenta ecos da voz de outrem. E esses ecos podem vir do tipo direto, indireto ou indireto livre. De acordo com Fiorin, ao longo da obra de Bakhtin não temos uma remissão direta aos termos que conhecemos por interdiscurso, intertexto, interdiscurso, interdiscursividade, intertextualidade. (FIORIN, 2005, p.162) Uma das problemáticas a qual Fiorin trabalharia seria encontrar o interdiscurso em Bakhtin sobre outro nome. Nesse caso, podemos afirmar que o discurso de outrem surge como uma forma de conceituar esse interdiscurso. Para Bakhtin: “O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo.” (BAKHTIN, 2006. p. 147), ou seja, temos uma “existência autônoma” que permite que o discurso de outrem conserve primitivamente sua estrutura e “integridade linguística”, entretanto, quando o narrador toma a palavra desse outro sujeito para integrar sua enunciação, ele elabora novas regras sintáticas e estilísticas a fim de aglutinar a enunciação de outrem na sua —ainda que conserve de maneira rudimentar a “autonomia enunciativa do discurso de outrem”. Essa dada conceituação feita por Bakhtin nos permite analisar diferentes discursos, de diferentes enunciadores, que são evocados em um novo discurso, de um outro enunciador. Isto é, posicionar em um novo discurso algo que pertence à voz de outrem, que precede aquele que está em evidência no exato momento de analisar. Quando tomarmos em consideração as análises do corpus deste artigo, será perceptível o trabalho que o poeta tem em tomar para os seus poemas algumas passagens da Bíblia, a fim de atribuir-lhes um novo efeito de sentido, ou seja, a voz poética elabora novas regras sintáticas e estilísticas, com novos propósitos, etc., mas ainda assim é possível através desses poemas, reconhecer e buscar a fonte original — textos bíblicos. Na ótica das autoras, bem como os grandes estudiosos da área por elas referenciados, a Intertextualidade é o diálogo entre textos que sistematizam um cruzamento de noções que percorrem, em seus respectivos campos, distintos conceitos. Essas noções e conceitos são, muitas das vezes, os pilares da construção de um texto.

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Essa assertiva pode ser muito bem vista também no estudo publicado na revista Critique, feito pela escritora, crítica literária e psicanalista, Julia Kristeva. Tal estudo feito pela autora é pautado nas discussões das ideias Bakhtinianas que transcorrem nas obras de Dostoiévski—, “Problemas da poética de Dostoiévski” e “A obra de François Rabelais”. No entanto, a autora observa que, na visão de Bakhtin, o texto em sua edificação, nada mais é que um conjunto de sentidos, cruzamento de textos e diálogos. Entende-se que, a composição de um texto, está intimamente repleta de outros diálogos, — dizeres, e em sua estrutura outros textos.

Alusão e referência

Nos poemas de Gregório de Matos, podemos ver noções de alusão e referência que estão, de fato, na sustentação desses poemas. Vimos anteriormente que essas noções vêm do campo da Intertextualidade. É válido ressaltar que a Intertextualidade é um campo bastante amplo, e não cabe apenas dentro do conceito de um diálogo em relação a outro diálogo, e nem na atuação de um texto tendo como base algum outro. Existem dois recursos que estão imersos no campo da Intertextualidade. Esses recursos estão tratados na obra “Intertextualidade: diálogos possíveis”, como intertextualidade das semelhanças e das diferenças. As autoras da obra ressaltam a Intertextualidade das Semelhanças, a qual contém segmentos — fragmentos, próprios ou alheios, tratando-se de citações diretas como um suporte a um dito, assegurando o que está sendo dito. Quanto a Intertextualidade das Diferenças, se conceitua pela ideia de refutar o que está sendo dito ou desdizer. Por Maingueneau (2001) é nomeado por valor de subversão. Nesta obra, também é restaurado a noção de Intertextualidade Restrita, conceituada como a inserção de um texto no outro, ou fragmentos de textos já produzidos, resgatando consigo a ideia de memória discursiva. Com isso temos um termo usado na construção dos poemas de Gregório de Matos, a “Alusão”. Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciado de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. (CAVALCANTE, 2006. p.5).

Desse modo, a alusão pode ser vista no momento em que o leitor, por sua bagagem e experiências leitoras, consiga reconhecer o texto fonte — o texto original, pois do texto original

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(como fragmento) fora reproduzido um novo texto e então é gerado o movimento de alusão. Dessa maneira, a alusão está efetivamente implícita no texto. Como ocorre em alguns dos poemas de Gregório, que só é possível perceber tal alusão, se o leitor, com sua bagagem, estiver ciente do livro bíblico, ou conhecimento de algumas de suas passagens. Um pouco diferente do conceito de alusão, tem-se o termo “Referência”, que também faz parte desse amplo campo da intertextualidade. A referência se resulta no momento em que é inserido em um texto, elementos que levam o leitor a reconhecer de forma imediata, o que está sendo tratado, embora não preceda da existência da citação literal. No entanto, pressupõe que tanto a alusão quanto a referência, em seus conceitos, mantêm uma relação em comum entre uma e outra, pois, se a referência pode agir em sua plena implicitude, as diferenças entre os dois movimentos não serão totalmente distintas, pelo contrário, são bem próximos.

CONTEXTUALIZAÇÃO

HISTÓRICA

E

METODOLOGIA

DO

ESTUDO:

DESCREVENDO O CORPUS

A metodologia desta pesquisa será pautada em profunda atividade analítica sobre os poemas de Gregórios de Matos levando em consideração os textos bíblicos e o contexto histórico do período Barroco no Brasil. Dessa maneira, os poemas escolhidos foram selecionados da antologia “Poemas escolhidos de Gregório de Matos: seleção, prefácio e notas” organizado pelo músico e professor de literatura brasileira da USP, José Miguel Wisnik. A obra de José Miguel Wisnik reúne os maiores clássicos de Gregório nessa coletânea dos anos 70. A versão, agora revisada, chega ao leitor carregada de grandes feitos de Gregório na literatura barroca, condensando o seu jeito de fazer poesia nos mais diversificados temas como satirização, religião, etc. O Barroco chegou ao Brasil através dos colonizadores portugueses, sendo eles leigos ou religiosos. Esse estilo se espalhou por todas as ramificações da arte, seja na arquitetura das igrejas, em prosa como as de Padre Antônio Vieira, poesia como em Gregório de Matos, etc. Vale ressaltar ainda que havia duas divisões no Barroco, o estilo cultista e o conceptista. O primeiro tinha como representante o poeta Gregório, que utiliza metáforas, figuras de linguagem, e linguagem rebuscada em seus poemas. Já o segundo, era representado por Antônio Vieira, com o uso de paradoxos e argumentação persuasiva em seus sermões.

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O estilo do Barroco sobreviveu no país até cerca das duas primeiras décadas do século XIX. Todavia, a fase que serviu de referência ao estudar o poeta Gregório de Matos é em meados do século XVII. Como uma espécie de Missão Jesuíta, o Barroco também tinha por objetivo representar o divino, conter a reforma protestante, catequizar os indígenas e lembrar, a todo momento, os fiéis de se virarem para Cristo e deixarem de lado todos os seus atos desregrados. Outras questões também alimentaram o projeto do Barroco no país, como diz Wisnik: O círculo de ferro da opressão colonial vai-se apertando em todo correr do século XVII, e não passa urn ano em que se nao invente uma forma de sugar a colônia, tolhendo-lhe por todos os meios o livre desenvolvimento. [...] Os proprietários rurais endividavam-se, o engenho via aguçada a sua crise com a baixa do preço do açúcar. [...] A essas transformações socioeconômicas correspondiam mudanças no quadro político, caracterizando as formas de domínio e controle da metrópole sobre a colônia: as Câmaras, representativas do poder local, iam sendo debilitadas a medida que se fortalecia o poder dos governadores e demais funcionários reais, representantes do poder metropolitano. (WISNIK, 2010, p. 20-21).

Atento a essa realidade da época, Gregório de Matos tratou de colocar em seus poemas uma temática construída com elementos que remetesse ao momento exato em que se vivia. Para tratar dessa realidade de maneira crítica, o poeta escrevia poemas os quais podemos chamar de satíricos. Sobre isso, Wisnik acrescenta:

[...] Gregorio registra em vários pontos essas tensões: a crise ("O açúcar já se acabou? ..... Baixou./ E o dinheiro se extinguiu? ..... Subiu. / Logo já convalesceu? ..... Morreu"); a debilitação das Câmaras ("Quem haverá que tal pense,! Que uma Câmara tão nobre,! Por ver-se mísera e pobre, / Nao pode, nao quer, nao vence"); a ascensão do negociante português ("Salta em terra, toma casas, / arma a botica dos trastes, / em casa come baleia,! na rua entoja manjares./ [...] (WISNIK, 2010, p. 21).

Já na lírica amorosa, a dualidade torna a ganhar espaço com a presença de contraposições de ordem do ascetismo e sensualismo, espírito e matéria, e paradoxos como no poema “Anjo no nome, Angélica na cara”, em que o sujeito poético evidencia uma dualidade na função de anjo da amada, como visto no seguinte trecho: “Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda”. (WISNIK, 2010, p. 28) Nos poemas religiosos, os quais serão analisados neste artigo, a dualidade se pauta na culpa e perdão. Isso pode ser visto no poema “Buscando a Cristo”, por exemplo, no trecho: “Pois, para perdoar-me, estais despertos; E, por não condenar-me, estais fechados”

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A Bíblia como um livro majoritariamente popular, demarca grande importância como um auxílio nesta atividade analítica, levando em conta que serão identificados os campos que vem do movimento intertextual, como já proferidos aqui — referência e alusão. Como movimento de referências e alusões, a Bíblia, efetivamente, foi utilizada de maneira explícita na construção dos poemas de Gregório de Matos, tanto na linguagem das passagens, quanto, mais evidentemente, nos títulos. Sendo assim, vale ressaltar que, para uma leitura mais efetiva, o

sentido do texto é produzido a partir do entendimento do leitor, isto é, por mais que a Bíblia seja um livro popular e bem conhecido nas esferas sociais, ainda é possível, por uma minoria, seja desconhecido. Em toda parte, é o cruzamento, a consonância ou dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda parte, um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada um de modo diferente (BAKHTIN, 1981, p. 235).

Essa questão talvez distancie o leitor a interpretação proposta pelo autor do texto. Vale enfatizar que a aproximação do leitor desses conhecimentos facilita a articulação de maneira eficaz, o que está sendo dito nas implicitudes do texto. O sujeito leitor que não está a par de um conhecimento mais nocivo sobre os capítulos e passagens bíblicas interpreta o texto de forma dessemelhante.

ANÁLISE DO CORPUS

Em se tratando do Barroco, fica muito claro que o nome principal responsável por recriar e “abrasileirar” o Barroco Europeu para o Brasil é Gregório de Matos. Com toda sua poesia satírica, lírica e religiosa. O corpus que será analisado aqui levará em conta apenas os poemas religiosos, a fim de identificar e analisar o caminho que o poeta levou para reconstruir e ressignificar passagens, parábolas, termos e conceitos provenientes da Bíblia Sagrada. Elementos esses que Gregório aparenta saber muito bem como trabalhá-los, afinal, como já dito anteriormente, o momento histórico do século XVII, as carências e necessidades da população, impactam diretamente na poesia de Gregório, influenciando-o a inserir ao longo de toda sua obra marcas legítimas do Barroco Brasileiro.

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Para compreender melhor as marcas intertextuais utilizadas para construção dos poemas, é necessário entender os principais movimentos realizados— a dualidade entre o sagrado e profano —. De acordo com Martins, Souto e Silva, doutoras em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba: É comum nos poemas de Gregório de Matos a presença de imagens que remetem à religiosidade, principalmente no que diz respeito a sua poesia religiosa que tematiza a culpa e o arrependimento. O poeta baiano se entrega a diálogos e súplicas para externar seus sentimentos em relação àquele que é considerado o filho de Deus. Sua poética é impregnada da junção do sagrado e do profano [...] (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

Essa temática impregnou seus poemas profundamente, fazendo com que o poeta tivesse na Bíblia o recurso necessário para completar sua missão: satirizar e evocar outros sentidos para o texto bíblico. Tendo Gregório como poeta principal da época barroca, seus poemas eram os mais disseminados, garantindo uma certa eficácia nos seus objetivos com a poesia, principalmente, a satírica e religiosa, mais marcantes em sua obra. Sobre isso as autoras ainda citam Bosi e Segismundo: Segundo Alfredo Bosi (2006, p. 37), sua poesia merece ser conclamada tanto como “documento da vida social dos Seiscentos” quanto “pelo nível artístico que atingiu”. Já para Segismundo Spina (2004, p. 114), Gregório foi “o primeiro prelo e o primeiro jornal que circulou na Colônia’. (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

Tendo em mente essa importância do poeta barroquiano e a disseminação de sua poesia, podemos perceber como seus dizeres sobre a Bíblia podem ser apreendidos de diferentes maneiras pelas pessoas. Isso fica muito claro quando levamos em conta a teoria da intertextualidade de Koch et al, afinal, para apreender o texto bíblico por trás do poema, é necessário levar em conta a bagagem cultural e histórico-social do leitor, pois apenas assim seria possível perceber explicitamente ou implicitamente os ecos bíblicos na poesia de Gregório. É possível considerar a diferença do leitor no período barroco e contemporâneo, pois cada um irá apresentar uma ótica diferente para a poesia de Gregório. Afinal, a experiência religiosa de cada indivíduo é diferente, ou seja, levar em conta que, naquela época, as pessoas viviam em constante dualidade entre o pecado e o perdão, e influenciadas massivamente pelo

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papel da Igreja, contrapondo à leitura que as pessoas fariam atualmente, visto que a Igreja já não tem um espaço tão grande para influenciar as pessoas, repreender seus costumes, etc. Parte disso vem da ideia de um estado laico. Além do mais, no período Barroco, as pessoas estavam literalmente vivendo a dualidade que o poeta descrevia com tanta precisão em seus poemas. Dentre a contextualização feita, e as explicativas sobre o propósito do trabalho, bem como o objetivo que este artigo visa alcançar, a seguir será feito as análises dos respectivos poemas de Gregório de Matos. A Jesus Cristo Nosso Senhor Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 313). Neste poema de Gregório de Matos, precisamos nos manter atentos ao Barroco como característica, em que a religião — catolicismo, se torna iminente acerca da construção dele. O catolicismo entra no poema através da questão bíblica em todos os versos e no título: “A Jesus Cristo Nosso Senhor”, o qual o autor faz referência direta ao divino. É interessante ver que o poema nas entrelinhas, pode ser interpretado como uma afronta à ideia de Deus e o conceito que esse ser divino carrega na humanidade. Com isso, podemos ver alguns contrastes que esse eu lírico evoca ao usar o argumento sagrado, sendo parte do pressuposto um argumento cristão, ou seja, a parábola usada teria como fim sanar a culpa do pecador. Vale ressaltar que, o eu lírico no papel de advogado usa esses argumentos de maneira constante no segmento do poema, constatando assim uma espécie de retórica nesse diálogo com o “divino”.

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A intertextualidade então é evidenciada através da remissão à parábola da ovelha perdida, a qual pode ser vista em alguns momentos da Bíblia. As principais foram descritas pelos apóstolos Mateus e Lucas: O que acham vocês? Se alguém possui cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixará as noventa e nove nos montes, indo procurar a que se perdeu? E se conseguir encontrá-la, garanto-lhes que ele ficará mais contente com aquela ovelha do que com as noventa e nove que não se perderam. Da mesma forma, o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca. (BÍBLIA, Mateus, 18, 12-14) Qual de vocês que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la?” (...) / “Eu lhes digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam arrependerse. (BÍBLIA, Lucas, 15, 4 e 7).

O fenômeno da intertextualidade usado nesse poema, vista nos trechos a seguir, é a alusão: Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, [...] Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada [...] De acordo com Cavalcante: Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. (cf. CAVALCANTE, 2006:5).

Dessa maneira, pode-se afirmar que a alusão é vista a partir do momento que é reconhecida pelo leitor, tendo em vista seu conhecimento do texto-fonte, ou seja, do texto original que gerou aquela alusão. Portanto, para ser percebida a remissão à parábola da ovelha desgarrada o leitor deve buscar em sua bagagem cultural e histórico-social. A alusão à parábola da ovelha perdida foi usada em um sentido de certa maneira, deturpado, pois foi utilizada pelo eu lírico para coagir Deus a lhe perdoar. Isto é, se a ovelha, que representa o pecador, foi buscada pelo pastor — metáfora para figura divina, o eu lírico pecador também deve ser perdoado. No artigo “A Lógica Sacrificial e o Deboche da Expiação na Poesia de Gregório de Matos”, de João Paulo Ayub da Fonseca, doutor em Ciências Sociais, diz o seguinte:

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Com base nas investigações propostas por René Girard [...] a culpa, a violência e a relação entre as esferas sagrada e profana atravessam os versos de Gregório, transmutando-se em novas formas e significados. Por entre as dobras da estética barroca de Gregório, o significado profundo de tais elementos é transfigurado, assim como adquire novos matizes a leitura e interpretação do texto bíblico. (AYUB, 2015).

Isso é muito próximo ao que Bakhtin diz em “O discurso de outrem”: “A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 148), podemos entender isso como o enunciador trazendo a enunciação de outrem e construindo um novo sentido, para apoiar nele seus argumentos de defesa em uma espécie de ato de contrição (confissão perante a figura religiosa). Outro ponto interessante é a alusão muito próxima a um salmo da Bíblia: “Desgarreime como a ovelha perdida; busca o teu servo, pois não me esqueci dos teus mandamentos” (BÍBLIA, Salmos, 119, 176) e o trecho do poema: “Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobraia”. Podemos ver, claramente, que tanto no salmo, quanto no poema, o eu lírico se assume como a ovelha perdida/desgarrada e pede que Deus o busque: “Busca o teu servo/Cobraia.” Quanto à dualidade no poema, nota-se a contraposição entre pecado e perdão, como visto nos trechos a seguir: “Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. [...] Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido” (Grifos nossos) A tensão ao longo do poema é construída pelo eu lírico pecador que busca o perdão divino, por isso vemos os termos contrapostos: pequei-clemência, delinquido-perdoar e a expressão: “a vos irar tanto pecado abrandar-vos sobeja um só gemido.” Com esse poema, também percebemos um momento de intersecção entre a poesia religiosa e satírica do poeta. A essência desse poema é religiosa, entretanto, no ato de o eu lírico colocar Deus em uma posição de obediência e passividade a aceitar que deve “perdoar”

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o pecador, visto que Deus precisaria do pecador cometer erros, para colocar em prática o ato de perdão. Esse foi um meio do eu lírico para satirizar o papel da figura divina. De acordo com Martins, Souto e Silva: Por excelência a temática é religiosa, mas identificamos elementos “satíricos” quando se faz a inferiorização da imagem divina, no que concerne a supressão da superioridade de Deus, no sentido de que – como se expressa – este é quem necessita do homem pecador para exercer uma de suas supremacias divinas: o perdão. Fica-nos a seguinte indagação: Não seria uma dessacralização e/ou profanação, neste sentido, o rebaixamento de uma divindade e a elevação do ser humano em detrimento desta divindade? (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

O “perdão” como notável temática de Gregório em seus respectivos poemas, não se restringe apenas ao poema “A Nosso Senhor Jesus Cristo”. Em “Buscando a Cristo” é evidenciado o sacrifício de Jesus como resultado da remição de pecados. Logo, percebemos a tensão pautada na dualidade Pecado/culpa e perdão.

Buscando a Cristo A vós correndo vou,braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados. A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados. A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me. A vós, lado patente, quero unir-me A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.” (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 316). A dualidade entre pecado/perdão pode ser vista nos trechos a seguir: “A vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos,

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E, por não castigar-me, estais cravados. [...] Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados.” (Grifos nossos) Além disso, antíteses são notáveis ao longo da construção do poema, tais quais: abertos e cravados, despertos e fechados. Esse uso, como já dito, é relevante tendo em vista o Barroco como um período de tensões e conflitos internos (matéria e espírito), no campo político e social. O envolvimento do contexto bíblico a uma questão de sacrifício (significado da morte de Cristo) pode se inferir que realiza, no próprio poema, uma noção afrontosa do eu lírico. O eu poético em grande parte do poema, tenta relativizar os pecados por ele cometido, colocando a ideia de que a humanidade tem relação ao divino Cristo— como bondoso, galardoador, etc., de maneira persuasiva, a fim de atingir o seu propósito, o perdão. Dessa maneira, a crítica é dirigida ao fato de Jesus conceber o perdão mesmo àqueles que sabem que são pecadores e culpados. Como o eu lírico diz no trecho: “para perdoar-me, estais despertos, / E, por não condenar-me, estais fechados.” Outra inferência que podemos apontar é a semelhança desse eu lírico em relação a um dos ladrões que foram crucificados ao lado de Jesus. Na Bíblia, essa assertiva se põe da seguinte maneira: “[...] ‘Nós estamos sendo punidos com justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos merecem. Mas este homem não cometeu nenhum mal’. Então ele disse: "Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino". Jesus lhe respondeu: "Eu garanto: Hoje você estará comigo no paraíso" (BÍBLIA, Lucas,23, 41-43) Vale ainda ressaltar a ânsia desse eu lírico no final do poema, em que, além de querer o perdão sob os pecados cometidos, dispõe da vontade de querer viver atado, junto, ao lado de Cristo, apesar de tudo que foi cometido de maneira pecaminosa. Essa união foi reiterada ao longo do texto com o uso de anáfora, através do “A vós”, sempre sendo direcionado a Jesus, como nos trechos: “A vós, lado patente, quero unir-me / a vós, cravos preciosos, quero atar-me / Para ficar unido, atado e firme.” A intertextualidade nesse poema fica por conta da busca do poeta pela crucificação de Cristo e seu significado para a Igreja e fiéis — sacrifício daquele que sofreu na Cruz em nome dos pecadores — a fim de servir como recurso para o efeito de sentido que queria alcançar ao fazer o poema: tratar da ambivalência entre ser pecador/ culpado e pedir perdão e ser perdoado pelo divino. Um dos trechos na Bíblia, que possivelmente serviu de informação quanto a

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crucificação de Cristo, é o seguinte: "Os soldados teceram de espinhos uma coroa e puseramlha sobre a cabeça e cobriram-no com um manto de púrpura”. Aproximavam-se dele e diziam: “Salve, rei dos judeus!”. E davam-lhe bofetadas." (BÍBLIA, João19, 2 e 3) e “Cristo ofereceu pelos pecados um único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à direita de Deus” (BÍBLIA, Hebreus ,10,12). Conseguinte, para finalizar, o poema que será analisado a seguir “Ao dia do Juízo” se dispõe como pleno movimento alusivo ao livro bíblico de Apocalipse, que é conhecido de maneira popular por retratar o julgamento final de Cristo perante toda à humanidade e os pecados por ela cometido.

Ao Dia do Juízo O alegre do dia entristecido, O silêncio da noite perturbado, O resplandor do sol todo eclipsado, E o luzente da lua desmentido. Rompa todo o criado em urn gemido. Que é de ti, mundo? onde tens parado? Se tudo neste instante está acabado, Tanto importa o não ser, como haver sido. Soa a trombeta da maior altura, A que a vivos e mortos traz o aviso Da desventura de uns, de outros ventura. Acabe o mundo, porque é já preciso, Erga-se o morto, deixe a sepultura, Porque é chegado o dia do juízo.” (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 351). Na primeira estrofe do poema, é possível notar antíteses proporcionadas pelos contrastes das palavras alegre e entristecido / silêncio e perturbado. Então, podemos ver que esses contrastes se dão ao longo do poema, pois, tais contrastes são evidenciados também na terceira estrofe do poema, onde retrata que, no “grande dia” ao soar da trombeta — instrumento que também aparece na bíblia no livro de Apocalipse no cap. 8. ver, 2. na passagem “Eu vi os sete Anjos que assistem diante de Deus. Foram-lhes dadas sete trombetas…” — para alegria de uns e infelicidade de outros, o grande dia chegou. [...] “Da desventura de uns, de outros ventura”. Em alusão a passagem da Bíblia que também se encontra em Apocalipse dessa

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maneira: “Feliz e santo é aquele que toma parte na primeira ressurreição! Sobre eles a segunda morte não tem poder, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo: reinarão com ele durante os mil anos.” (BÍBLIA, cáp. 20 ver. 6) onde entende-se que, aqueles que cumpriram sua passagem de maneira plena na Terra, bem como obedeceu aos mandamentos de Cristo, e se arrependeu dos seus pecados, o dia para eles é de felicidade, contrário dos que fizeram o oposto. Tais passagens bíblicas apresentadas anteriormente são a base intertextual a qual Gregório utilizou para construir seu poema, fazendo um movimento de alusão com o texto bíblico, ele busca em livros como o de Apocalipse e se inspira para escrever uma suposição do que seria o dia do juízo final, com elementos como a trombeta tocada por anjos, o fim do mundo como no trecho: “Acabe o mundo, porque é já preciso, /Erga-se o morto, deixe a sepultura, / Porque é chegado o dia do juízo. ” E a imagem de fim de mundo, com expressões como “O silêncio da noite perturbado, /O resplandor do sol todo eclipsado” e “Que é de ti, mundo? onde tens parado? /Se tudo neste instante está acabado”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, é notório a riqueza de elementos de ordem intertextual — alusão e referência, como base fundamental e indiscutível para a construção de diferentes efeitos de sentido presentes ao longo dos diferentes poemas de cunho religioso do poeta. Sua relação intrínseca com a realidade histórico-social que vivia a influência da Igreja, dentre outros fatores, serviu de estímulo para que Gregório buscasse cada vez mais inspirações para sua escrita. Também, é válido enfatizar a importância e relevância de Gregório de Matos para o movimento barroco, bem como a bravura de sua escrita que o levou a ser chamado de “Boca do Inferno”. Tal poeta precisa cada vez mais de reconhecimento por toda a sua contribuição para um dos momentos mais ricos da literatura brasileira. A nós cabe apenas contribuir para a disseminação da riqueza e singularidade de suas obras. Eu sou aquele, que os passados anos cantei na minha lira maldizente torpezas do Brasil, vícios e enganos. Gregório de Matos

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REFERÊNCIAS

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A DIMENSÃO DISCURSIVA DA CRÔNICA JORNALÍSTICA DE ANTÔNIO PRATA Anne Caroline de Oliveira Glicério Fabiana Camargo Laura de Sá Drummond

RESUMO Este ensaio versa, a partir de uma perspectiva teórico-discursiva, sobre o gênero crônica jornalística. Para a corrente discussão, amparamo-nos nos estudos discursivos de Gregolin (2004) e Maingueneau (2001; 2015) para tratar especificamente da representação de diversos discursos em uma crônica do autor Antônio Prata. Trata-se de refletir sobre a contraposição entre os discursos ativistas e conservadores no gênero crônica jornalística e os possíveis efeitos de sentido provocados pela historicidade dos discursos. Palavras-Chave: Crônica Jornalística; Discurso; Gênero.

INTRODUÇÃO

Neste ensaio, tem-se como objetivo compreender como são textualizados diferentes discursos do atual cenário brasileiro no gênero crônica jornalística. Tendo como base essa proposta, foi escolhida a crônica Pauta de Costumes, que se apresenta no jornal eletrônico Folha de São Paulo na coluna do escritor, cronista e roteirista Antônio Prata. Para alcançar o objetivo, organizamos o presente ensaio do seguinte modo: primeiramente, apresenta-se brevemente o gênero crônica. Em um segundo momento, procurase analisar os discursos presentes na crônica e os efeitos de sentido possíveis, dada a historicidade dos discursos. Para isso, ancoramo-nos na abordagem teórica de discurso de linha francesa do linguista Dominique Maingueneau e nas categorias por ele usadas para apresentar a noção de discurso, considerando que este é: “uma organização além da frase”, “uma forma de ação”, “interativo”, “contextualizado”, “assumido por um sujeito”, “regido por normas”, “assumido no bojo de um interdiscurso” e que “constrói socialmente o sentido” (MAINGUENEAU, 2001). Além disso, trouxemos as noções de interdiscurso, intradiscurso e de historicidade dos enunciados expostas por Gregolin (2004). Mais especificamente, pretende-se, com este ensaio, compreender e analisar quais são os discursos e efeitos de sentidos possíveis na leitura da crônica a ser analisada, provocados pela historicidade dos discursos, considerando que esses efeitos são causados pelos discursos em um determinado tempo histórico, isto é,

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o sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que são produzidas (PÊCHEUX, 1975, p.144).

O GÊNERO CRÔNICA

A crônica, como gênero jornalístico, é considerada por muitos autores e cronistas como o mais brasileiro dos gêneros. Figurando entre o jornalismo e a literatura, permite ao narrador a liberdade de relatar um fato ou acontecimento do cotidiano juntamente a uma crítica social. Segundo Gregolin (2004): O gênero exerce coerções e determina a produção e a interpretação de textos, pois em cada tipo de texto mudam-se os quadros de referência e, com eles, os pressupostos partilhados pelo enunciador e pelo enunciatário do discurso (GREGOLIN, 2004, p.7).

Assim, a crônica jornalística é um tipo de texto narrativo curto, geralmente produzido para meios de comunicação, por exemplo, jornais e revistas, em que são utilizados de temas da atualidade para fazer reflexões críticas sobre diversos assuntos. A respeito dessa questão, Gregolin (2004) afirma que o gênero associa uma configuração formal e um conjunto de elementos enunciativos, ligando o que é da ordem linguística e intradiscursiva ao que é histórico nas relações interdiscursivas para que construa os sentidos. Uma frase dita no cotidiano, inserida em uma crônica, possui uma função enunciativa diferente. É necessário constatar o quanto é amplo, flexível e indefinido o conceito e a caracterização do gênero crônica. No jornalismo, recebe a observação atenta da realidade cotidiana e, como literatura, tece-se na construção da linguagem, do jogo verbal, da ironia crítica etc. De acordo com Ritter (2009), a crônica cumpre com a função jornalística de entretenimento e é por isso que também apresenta uma natureza literária, pois o cronista recria um fato cotidiano por meio da leveza, da beleza, da poesia, da crítica, do humor. Assim, considera-se que esse caráter híbrido constitui a crônica. Deve-se levar em conta, também, que “o modo de transporte e de recepção do enunciado condiciona a própria constituição do texto, modela o gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2001, p.72). No texto em questão, os discursos são textualizados no gênero crônica jornalística e se apresentam em um jornal. O mídium ou, o suporte do texto, é o jornal eletrônico, que modela e constitui o gênero crônica jornalística. Dessa forma, como dito por Maingueneau (2001), "o mídium não é um simples "meio" de transmissão do discurso" ou “um

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simples “meio”, um instrumento para transportar uma mensagem estável", pois, “uma mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso.” (p.71). Entretanto, em nosso ensaio, não será discutida de maneira detalhada a relação entre o gênero e o mídium.

A DISCURSIVIDADE NA CRÔNICA A crônica “Pauta de Costumes”, escolhida como corpus para este trabalho, apresenta a contraposição entre dois discursos: o discurso ativista e o discurso conservador dito “como de costume”. A partir da produção de um enunciado por um enunciador, busca-se compreender na análise do discurso “como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto linguístico-histórico” (ORLANDI, 1994, p.114). Em nossa análise, operamos, principalmente, com a noção de discurso de Dominique Maingueneau. No texto escrito por ele, o linguista apresenta diversas características essenciais ao discurso, sobre as quais os estudos deste ensaio serão fundamentados. Para Maingueneau, discurso é definido como o “uso da língua”, unidade transfrástica, algo para além da frase e da palavra, os discursos são “submetidos a regras de organização vigentes em um grupo social determinado” e “as regras transversais aos gêneros que governam os relatos, diálogos em um grupo social determinado” (MAINGUENEAU, 2001, p.52). Ao tomar o corpus escolhido para análise, pode-se perceber que ele é submetido a um conjunto de regras que governam o gênero do discurso crônica jornalística no âmbito midiático. Além de “regras transversais aos gêneros”, ou seja, em regras ou máximas que circulam em nossa sociedade do que seja, por exemplo, considerado importante para um país, como o lugar que o discurso ativista ocupa em detrimento do discurso conservador. Mobilizando sentidos para os discursos que não são de natureza da frase, mas levando em consideração a historicidade dos discursos, determinados discursos da crônica “Pauta de Costumes” são mobilizados por grupos que possuem determinadas ideologias. Tais ideologias são questionadas e deslocadas pelo autor Antônio Prata. Um dos movimentos de deslocamento por parte do autor é quando ele traz a definição de costumes: Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?! Acredito que mais da metade dos brasileiros elegeu um presidente com posições tão escancaradamente abjetas, em parte, por achar que os horrores ditos por ele durante três décadas estavam restritos ao tupperwarezinho dos “costumes” (PRATA, 2019).

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Como efeito de sentido, há um atrito entre ideologias distintas, no qual é questionado o que determinado grupo diz como sendo pauta de costumes ou “diferençazinhas”. Prata, ao caracterizar o presidente como tendo posições “abjetas”, marca sua posição discursiva como contrária ao atual governo. É exposta a definição de costume como hábitos culturais no texto, o que não se aplica aos posicionamentos do atual presidente, de acordo com o autor. Maingueneau (2001) afirma também que o discurso é uma forma de ação, pois toda enunciação constitui um ato que visa a modificar uma situação. Esses atos elementares se integram em discursos de um gênero determinado, que visam a produzir uma modificação nos destinatários. Na crônica analisada, os discursos se manifestam por meio do gênero crônica jornalística em suporte eletrônico. É estabelecida uma relação dialógica do enunciador com vozes sociais no texto, o que marca a posição discursiva do sujeito que escreve e do leitor, que pode ou não compactuar com o discurso “economia é importante, costume, não — eis o que costumamos pensar”. Nota-se, ainda, em “eis o que costumamos pensar”, que o comentário do locutor sobre sua própria fala perpassa pelo fio do texto, estabelecendo, assim, uma forma de ação sobre o destinatário ou o leitor do jornal Folha de São Paulo. É colocada em xeque a contradição entre o discurso liberalista na economia e conservador nos costumes, que, de acordo com o enunciador da crônica, configura-se como um “falso liberalismo.” Tais elementos buscam agir sobre o destinatário do texto, construindo sentidos de que não é apenas pauta de costumes o fato de milhares de mulheres serem agredidas todos os dias, de a homofobia ganhar a cada dia proporções maiores, de o feminicídio ter aumentado e de o racismo ser uma realidade que nos acompanha há séculos. Ainda, segundo Maingueneau (2001), o discurso é interativo, ou seja, toda enunciação é, de fato, marcada por uma interatividade constitutiva, o dialogismo. É uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais. Antônio Prata, na crônica, cita ditos que circulam em nosso meio social, estabelecendo-se, assim, uma relação dialógica com outros enunciados já ditos. Portanto, pode-se notar que a crônica analisada se constrói no contexto do dialogismo, de vozes sociais que se põem em contato (concordam, discordam, refutam), todo enunciado, mesmo que seja escrito e finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta. Ele é apenas um elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais. Todo monumento continua a obra de antecessores, polemiza com eles, espera por uma compreensão ativa e responsiva, antecipando-a etc. (VOLOCHINOV, 2017, p.184).

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Um exemplo desse movimento dialógico e seus efeitos de sentido no texto são quando observamos enunciados que circulam em nosso meio social pela boca de grupos com ideologias conservadoras, como “Ativismo é coisa de ecochato, de bicha louca, de feminazi, de Black Power", os quais são refutados por discursos de ordem histórico-científico no texto do cronista, por exemplo, no enunciado: Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma da Previdência. Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal. Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas (PRATA, 2019).

Nota-se que as vozes do texto se confrontam, determinados discursos são refutados, o que mostra a interatividade constitutiva no discurso de Prata. É interativo, pois pressupõe o enunciatário, antecipa as reações e constrói quais os efeitos de sentidos em seus enunciatários. Mesmo que o destinatário esteja ausente na constituição do texto, há a interatividade constitutiva em que “qualquer enunciação supõe a presença de outra instância de enunciação, em relação à qual alguém constrói seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2015, p.26). No caso da crônica em questão, é projetado o leitor do Jornal Folha de São Paulo, da coluna do escritor Antônio Prata. Pode-se afirmar, ainda, segundo Orlandi (19861, apud GREGOLIN, 2004, p.4), que todo discurso é contextualizado, demonstrando a incompletude como discurso, porque se relaciona com outros textos, com a condição de produção ou com os interdiscursos. Os enunciados “Coisa importada dos Estados Unidos. Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor!”, que Antonio Prata evoca em seu texto, são proferidos em outro contexto, por exemplo, na boca do atual presidente da república. O deslocamento de tal enunciado para a crônica reconfigura o sentido do enunciado. Enquanto determinado grupo que possui uma posição ideológica concorda e reafirma esse discurso em detrimento da melhora da economia, a crônica de Antônio Prata vem reconfigurar os sentidos, refutando esses discursos e discordando deles. 1

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: algumas observações. In: DELTA, 2, n° 1, 1986.

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No trecho a seguir, são evocadas as vozes de eleitores do presidente da república com o intuito de ironizar tais ditos: Se ele vai fazer as reformas, qual o problema que não goste de gay? Se vai ter peru no próximo Natal, e daí ele dizer que não estupraria uma mulher por ela ser feia? Se asfaltarem a nossa rua, que que tem ele dar uma pescada em reserva ecológica? (PRATA, 2019).

O enunciado de Prata provoca efeitos de sentido, como a forma em que o discurso conservador circula em nossa sociedade com a tentativa de diminuir ou menosprezar os discursos ativistas, que são tratados como “pauta de costumes” por parte da sociedade brasileira e por uma ideologia política que cresceu nos últimos anos. Em contrapartida, ao analisar os discursos históricos-científicos assumidos no texto e que podem ser recuperados graças ao mídium em que é veiculado, a partir, por exemplo, de hyperlinks, busca-se mostrar a importante posição que os discursos ativistas assumem em nossa sociedade, tornando-se incoerente tomar a eles como coisa de ecochato, bicha louca, feminazi, Black Power ou simplesmente costumes. À vista disso, são produzidos efeitos de sentido no co-enunciador pela crônica. Um desses efeitos é de que esses discursos vistos como pauta de costumes têm uma influência diária e robusta na sociedade em que vivemos e que não devem ser considerados apenas como Pauta de Costumes, visto que, historicamente, formaram a nossa sociedade e exercem influências negativas sobre ela. Isso é explicitado, por exemplo, em: Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente. Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras - e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude (PRATA, 2019).

A partir do que foi exposto, reafirma-se a tese de Maingueneau (2015) de que um discurso é considerado no bojo de interdiscursos, visto que o discurso que Antônio Prata assume na crônica só adquire sentido quando o co-enunciador ou leitor os relaciona (conscientemente ou inconscientemente) em uma rede interdiscursiva de uma série de outros discursos, sejam eles o discurso conservador, liberal, histórico, científico, feminista, antirracista, LGBT e outros. Nesses interdiscursos, tem-se o lugar do confronto (Gregolin, 2004), pois, por meio do intradiscurso, a tessitura da crônica feita por Prata, há vários interdiscursos que se confrontam,

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como o discurso ativista e o discurso conservador no costume e liberal na economia, e só podem ser entendidos se levados em consideração todos esses interdiscursos para além do que está escrito. Assim, Prata (2019), ao enunciar “Enquanto escrevo o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual”, dialoga com a notícia desse estudante que foi agredido após sair de uma balada por ser homossexual, estabelecendo a contraposição de um discurso que considera a discussão sobre homofobia como “pauta de costumes” e que é confrontado por meio da notícia mostrando quais são as consequências de tratar a homofobia só como um costume. É importante destacar, ainda, segundo Maingueneau (2001), que todo discurso é assumido por um sujeito em determinado lugar e tempo (EU-AQUI-AGORA). A noção de discurso permite que o autor assuma determinada posição discursiva em objeção a outras. O sujeito autor indica no texto qual posição ele adota de acordo com o lugar que ocupa socialmente e tendo em vista o tempo em que escreve. Prata adota a posição de contrário ao discurso que trata assuntos importantes da nossa sociedade como pauta de costumes, questionando o discurso conservador, conduzindo o leitor a refletir sobre o discurso ativista. Assim, o escritor demonstra sua posição discursiva em meio a uma cadeia de discursos que circulam em nossa sociedade no tempo presente em que se deu a escrita da crônica: dia 29 de setembro do ano de 2019. O sentido que cada leitor produz após a leitura da crônica é construído socialmente. Não é imanente a um enunciado e não é algo a ser decodificado. “Ele é continuamente construído e reconstruído no interior de práticas sociais determinadas. Essa construção de sentido é, certamente, obra de indivíduos, mas de indivíduos inseridos em configurações sociais de diversos níveis” (MAINGUENEAU, 2001, p.29). A depender da formação leitora e social que determinado sujeito possui, a leitura do enunciado analisado não será dada de forma estável e imanente. Será construída a partir da reflexão e da associação a uma série de outros discursos, ou seja, a historicidade dos discursos. Para compreender o leitor, deve se relacionar com os diferentes processos de significação que acontecem no texto. Esses processos, por sua vez, são função da historicidade, ou seja, da história do sujeito e do sentido do texto, enquanto discurso. Sem esquecer que o discurso é estrutura e acontecimento (ORLANDI, 1994, p. 114).

Da mesma forma, Gregolin (2004), citando Pêcheux (1975a, p. 144), afirma que os textos da mídia são materialidades que se inscrevem na relação da língua com a história e só

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são determinadas e ganham sentido pelas posições ideológicas no processo sócio-histórico em que são produzidas. Para Gregolin, a interpretação se daria, então, a partir das vozes emaranhadas no fio do discurso, as quais fornecem pistas históricas ao leitor. Por fim, reitera-se que falamos de “efeito de sentido”, pois aqui analisamos discursos antagônicos em relação ao que seria “Pauta de Costumes” e como determinados efeitos de sentido são mobilizados a depender da formação discursiva do leitor e/ou como se relaciona com os discursos de determinadas formações discursivas, aqui os discursos ativista e conservador. Dessa forma, a depender da posição ideológica que determinado leitor possui, a leitura do enunciado se dará de forma diferente. Nesse sentido, vale lembrar que, para Gregolin (2004), o discurso é histórico e polifônico e é por meio das vozes que se criam os diálogos que confrontam ou reforçam determinados sentidos em um momento histórico. Com a reflexão aqui proposta, foram reunidos de forma breve conceitos da Análise do Discurso aplicados à análise de um gênero jornalístico/literário. Tomar o texto como um objeto de leitura significa observar que o sujeito que enuncia e que é origem do dizer está implicado em determinada dinâmica social pela história. As falas desse sujeito que enuncia representam valores, ideologias e posicionamentos de determinado grupo social em um tempo histórico.

REFERÊNCIAS

GREGOLIN, Maria do Rosário. Os sentidos na mídia: rastros da história da guerra das cores. Linguagem: estudos e pesquisa, Catalão, v. 4-5, 2004. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/lep/article/view/32605. Acesso em: 28 de abril de 2020. MAINGUENEAU, Dominique. A Noção de discurso. In: Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2015. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso, enunciado, texto. In: Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. Disponível em: https://www.academia.edu/7878437/127964024-MAINGUENEAUDominique-Maingueneau-Analise-de-Textos-de-Comunicacao-pdfAcesso em 25 de março de 2020. MAINGUENEAU, Dominique. (2001). Mídium e discurso. In: Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez. Disponível em:https://www.academia.edu/7878437/127964024-MAINGUENEAUDominique-Maingueneau-Analise-de-Textos-de-Comunicacao-pdfAcesso em: 17 de março de 2020. ORLANDI, Eni Puccinelli. Texto e discurso. In: Gestos de Leitura, Ed. Unicamp, 1994. https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/genero_disc ursivo_cronica_um_estudo_do_contexto_de_producao.pdf. Acesso em: 18 de março de 2020. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: algumas observações. In: DELTA, 2, n° 1, 1986. RITTER, Lilian Cristina Buzato. Gênero discursivo crônica: um estudo do contexto de produção. Disponível em: https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/genero_disc ursivo_cronica_um_estudo_do_contexto_de_producao.pdf. Acesso em: 14 de março de 2020. VOLÓCHINOV, Valentin N. Língua, linguagem e enunciação. In: VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólvoka Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

ANEXO A – TEXTO ESCOLHIDO PARA A ANÁLISE

Pauta de costumes Antonio Prata Folha de S.Paulo, 29.9.19

Ativismo é coisa de ecochato, de bicha louca, de feminazi, de Black Power Quando ouço alguém dizer que é liberal na economia e conservador nos costumes, imagino um investidor do mercado financeiro cruzando a Faria Lima num cabriolé. Se for um bom investidor, porém, certamente desconsideraríamos a charrete como uma pequena excentricidade: economia é importante, costume, não —eis o que costumamos pensar. Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?! Acredito que mais da metade dos brasileiros elegeu um presidente com posições tão escancaradamente abjetas, em parte, por achar que os horrores ditos por ele durante três décadas estavam restritos ao tupperwarezinho dos “costumes”. Se ele vai fazer as reformas, qual o problema que não goste de gay? Se vai ter peru no próximo Natal, e daí ele dizer que não estupraria uma mulher por ela ser feia? Se asfaltarem a nossa rua, que que tem ele dar uma pescada em reserva ecológica? Ah, fala sério! Vamos tratar do que importa! Vamos tratar do que importa. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança, 4,4 milhões de mulheres foram agredidas em 2016. A cada hora, foram 503.

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Isso dá algumas dezenas de mulheres tomando porrada de seus maridos e namorados durante o tempo que você demora pra ler essa crônica. Mas machismo e feminismo, claro, são assuntos irrelevantes, são “pauta de costumes”. Apanhem em silêncio, por favor, mulheres, pois não estou conseguindo ouvir o debate sobre a CPMF. Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente. Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras —e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude. Coisa importada dos Estados Unidos. Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor! Pensando assim, votamos neste que, uma vez eleito, prometeu “acabar com todos os ativismos”. E seguimos acreditando que ele não estava falando nada de importante. Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma da Previdência. Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal. Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas. Pensando bem, nosso falso liberal não anda de cabriolé, mas de liteira. Os olhos em Chicago, os pés em Daomé, trazendo as ideias mais modernas para eternizar o nosso atraso. Não chega a ser uma grande novidade. Este é, há meio milênio, um dos nossos mais arraigados costumes.

Disponível

em:

{https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2019/09/pauta-de-

costumes.shtml}

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VAMBORA PRO INVERNO, CARIOCAS Roberto Carlos Gonçalves de Souza

RESUMO O objetivo deste artigo é identificar e explicar alguns dos diversos movimentos de Intertextualidade que os textos – orais e escritos – disponibilizam para seus leitores. Para atender a esse objetivo, são identificados três movimentos intertextuais em músicas da cantora e compositora brasileira Adriana Calcanhotto. Os resultados indicaram que o objetivo da pesquisa foi obtido e que a hipótese se tornou verdadeira, revelando a grande e marcada dialogicidade da linguagem. Palavras-chave: Adriana Calcanhotto; Canção; Intertextualidade; Interdiscursividade; Bakhtin.

INTRODUÇÃO

Este artigo se organiza em sete grandes seções: Introdução, na qual começo a, de fato, introduzir a pesquisa que realizei e o tema que a fundamenta; na parte da Fundamentação Teórica, recorro a conceitos caros para o tema e, aliado a isso, esses se tornam de grande valia para a plena leitura deste artigo; Metodologia e apresentação do corpus que se atém a descrever o método percorrido para e pelo corpus e também à sua contextualização; na Análise do corpus, como o próprio nome diz, a análise dos textos será realizada , apontando os movimentos de intertextualidade presentes neles; Conclusão, em que se tem a discussão dos resultados do estudo, segundo o objetivo e a hipótese – será que os textos de Adriana Calcanhotto, ao apresentarem movimentos de intertextualidade, atualizam discursos de outrem nos seus discursos? – e, por fim, Referências, seção na qual teremos os textos nos quais me recorri. A presente pesquisa desenvolve-se baseada no pressuposto de que a linguagem é marcadamente

dialógica

e

que,

de intertextualidade e interdiscursividade.

nela, Dentro

existem da

seara

os do

fenômenos fenômeno

linguístico intertextualidade, temos seus movimentos que se mostram num discurso atualizado pela escrita e pela fala. Neste artigo, serão abordados alguns dos movimentos de intertextualidade. Com base nesse pressuposto, o objetivo deste artigo é identificar, mapeando os movimentos de intertextualidade em canções da cantora e compositora brasileira Adriana Calcanhotto. Para isso, recorro aos autores Bakhtin/Volóchinov (1922), Bentes, Cavalcante e Koch (2007), Fiorin (2006) e Rodrigues (2018).

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Pensemos sobre enunciação para tomarmos seus desdobramentos. Benveniste1 pensava enunciação como “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (colocar página da citação). Ainda, segundo o referido autor, “a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso.” (novamente referências) Acrescenta-se também que: “Na enunciação consideraremos, sucessivamente, o próprio ato, as situações em que ele se realiza, os instrumentos de sua realização”. “Por fim, na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo.” “O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação.” Ou seja, a enunciação é o ato em que um “eu” troca informações com um “tu” a partir do momento em que houve a conversão individual da língua em discurso. A enunciação é aquele momento em que um enunciado é produzido por uma das – ou por todas as – formas linguísticas que indicam a “pessoa do discurso”. Creio que esse conceito de enunciação foi de total valia para Bakhtin analisar os textos por ele lidos e escrever, junto a Volóchinov, o capítulo nono do livro “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, aqui tomado como o grande norteador teórico. Porém, Benveniste ainda não tinha percebido que os fatores externos influenciam a enunciação das formas linguísticas que indicam “pessoa”. Para Bakhtin/Volóchinov, enunciação é mais que isso: ela envolve um enunciado que, para ser compreendido, dependerá, além de conhecimentos linguísticos, dos diferentes fatores contextuais que integram a situação de enunciação. Tais fatores é que determinarão que o enunciado seja interpretado, dentre outras opções de sentido que podem ser projetadas. O sentido do enunciado depende, portanto, do contexto da enunciação.2 (grifos da autora).

Pensando assim, na minha enunciação, há enunciações de outrem, o chamado discurso explícito. Para entendermos melhor, o discurso se atualiza em textos de duas formas: •

explícita: mostrada sintaticamente e

implícita: mostrada por tom, pistas e dicções. Com os discursos se atualizando em textos – orais e/ou escritos –, pode haver

fenômenos intertextuais e interdiscursivos. Porém, o que são esses conceitos? Segundo Bentes, Cavalcante e Koch (2007), intertextualidade “diria respeito a relações de co-presença entre textos”. Fiorin (2006) também discute esse fenômeno, como as

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autoras e, por sua vez, ultrapassa Koch, Bentes e Cavalcante quando se debruça sobre o conceito de interdiscursividade. Vejamos o que é cada conceito para Fiorin, discorridos nas páginas 178 a 191: •

Interdiscursividade é interior ao intradiscurso, é constitutiva dele, é qualquer relação

dialógica no tocante a uma relação de sentido. Ela é da ordem do dialogismo constitutivo e, por fim, é qualquer relação dialógica entre enunciados; •

Intertextualidade é um procedimento real de constituição do texto. Esse fenômeno se

mostra nos casos em que a relação discursiva é materializada em textos, ela pressupõe sempre uma interdiscursividade; ela é as relações dentro do texto quando duas vozes se acham no interior deste; é um tipo particular de interdiscursividade em que se encontram, num mesmo texto, duas materialidades textuais distintas.

Na página 150, Bakhtin/Volóchinov (1922) sinaliza para o leitor ao dizer que estamos bem longe, é claro, de afirmar que as formas sintáticas – por exemplo as do discurso direto ou indireto – exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem.

Ora, as formas sintáticas não me asseguram de apreender o discurso de outrem, haja vista que elas são ou funcionam como “esquemas padronizados para citar o discurso” (fonte e autor). Apreender o discurso significa levar em conta toda uma carga sócio-histórica infiltrada na palavra que é dirigida ao receptor, uma vez que “a palavra vai à palavra. É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante.” (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, p. 151). Portanto, os movimentos decorrentes dos dois fenômenos acima explicados não podem e não devem ser analisados simplesmente por sua carga semântica/frasal. Mais que isso, os discursos por trás das palavras vêm para serem apreendidos, consolidando e reiterando uma carga/memória discursiva no bojo dos enunciadores (empíricos e não empíricos).

METODOLOGIA E APRESENTAÇÃO DO CORPUS

A metodologia utilizada para esta pesquisa foi de modo exploratória e indutiva, na qual não existe generalização, pelo contrário, trabalha-se com verdades menores a fim de interpretar o corpus. Propôs-se uma comparação entre canções bem como uma análise – tanto do discurso

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quanto da que se dedica a identificar, nomear e explicar os movimentos de intertextualidade presentes nas canções escolhidas. O corpus da pesquisa é recheado por são três canções da cantora Adriana Calcanhotto: “Vambora”, “Inverno” e “Cariocas”. Elas foram escolhidas, pois possuem movimentos intertextuais, que são materializados em suas letras. Assim, foram selecionadas a fim de que se mostrem e estudem os movimentos de intertextualidade presentes nelas, sendo esse o objetivo de análise do corpus. Foram coletadas no álbum “Perfil :)”, presente no CD lançado pela Som Livre, em 2001. Adriana da Cunha Calcanhotto, 54 anos, nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, aos 3 dias de outubro do ano de 1965, e alcançou sucesso nacional como cantora e compositora de grandes sucessos, entre eles “Devolva-me” (2000) e “Vambora” (1998). Seu interesse pela música começou aos seis anos quando ganhou de presente do seu avô o primeiro instrumento: um violão. Aprendeu a tocar o instrumento e, mais tarde, a cantar. Seu estilo musical se aproxima mais da MPB (Música Popular Brasileira) que é a fusão de estilos. Com uma população diversa, composta por mulatos e negros de origem africana, índios e brancos europeus, o Brasil via todo tipo de música: popular e erudita. A Bossa Nova é tida como a “mãe” da MPB. “Com a divisão de visões da Bossa Nova, alguns artistas bem jovens tomaram a frente da música, sem tomar lados. Optaram por juntar as duas vertentes opostas numa nova música brasileira. Era ainda chamada de MPM, Música Popular Moderna, e tem seu início com a apresentação de Elis Regina, com a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, vencedora do primeiro Festival de Música Popular Brasileira. Essas são as canções: Música 3: INVERNO – 04’40 (Adriana Calcanhotto / Antônio Cícero) Ed. Minha Música (Corpyright Consultoria) / Acontecimentos BR-SME-94/00533 No dia em que eu fui mais feliz Eu vi um avião Se espelhar no seu olhar até sumir De lá pra cá não sei Caminho ao longo do canal Faço longas cartas pra ninguém E o inverno no Leblon é quase glacial Há algo que jamais esclareceu Onde foi exatamente que larguei

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Naquele dia mesmo O leão que sempre cavalguei? Lá mesmo esqueci Que o destino Sempre me quis só No deserto sem saudade, sem remorso só Sem amarras, barco embriagado ao mar Não sei o que em mim Só quer me lembrar Que um dia o céu Reuniu-se à terra um instante por nós dois Pouco antes do ocidente se assombrar Música 6: CARIOCAS – 03’14 (Adriana Calcanhotto) Ed. Minha Música (Corpyright Consultoria) BR-SME-94/00531 Cariocas são bonitos Cariocas são bacanas Cariocas são sacanas Cariocas são dourados Cariocas são modernos Cariocas são espertos Cariocas são diretos Cariocas não gostam De dias nublados Cariocas são bambas Cariocas nascem craques Cariocas têm sotaque Cariocas são alegres Cariocas são atentos Cariocas são tão sexy Cariocas são tão claros Cariocas não gostam De sinal fechado Música 7: VAMBORA – 04’16 (Adriana Calcanhotto) Ed. Minha Música (Corpyright Consultoria) BR-SME-98/00307 Entre por essa porta agora E diga que me adora Você tem meia hora Pra mudar a minha vida Vem vambora Que o que você demora É o que o tempo leva

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Ainda tem o seu perfume pela casa Ainda tem você na sala Porque meu coração dispara Quando tem o seu cheiro Dentro de um livro “Dentro da noite veloz” (“Na cinza das horas”)

ANÁLISE DO CORPUS Na canção “Inverno”, o enunciador se mostra como um ser que rememora um tempo já passado, o qual é mostrado pelo uso do pretérito, por exemplo, “fui” / “eu vi” / “onde foi ... larguei”. Além disso, há palavras e expressões que nos fazem saber que o fato já ocorreu: “de lá pra cá não sei” / “onde foi exatamente que larguei naquele dia mesmo” / “lá mesmo esqueci”. Acrescenta-se que o enunciador é alguém que, ao fazer esse movimento de rememoração, coloca-se só, sozinho, num lugar: “que o destino” / “sempre me quis só” / “no deserto sem saudade, sem remorso só” / “sem amarras, barco embriagado ao mar”. Em sequência, o último verso da música nos revela o pôr do sol, a metafórica chegada da escuridão, uma vez que é no ocidente que o sol se põe. Interpreto dessa forma, pois o enunciador é alguém que está só, como supracitado, questionando-se e lembrando-se, mas marcadamente só. Exemplo.: "Pouco antes do ocidente se assombrar”. Na música “Cariocas”, por sua vez, temos um enunciador que diz sobre um povo específico de um estado brasileiro: o carioca. Além disso, esse enunciador se mostra como alguém pertencente (ou que [con]viveu por muito tempo) a esse povo, uma vez que descreve os seus jeitos e costumes íntimos dos. Só mesmo uma pessoa que (con)vive(u) nesse cenário e com os demais cariocas poderia dizer, com tamanhos detalhes, os costumes e as características boas e ruins das pessoas do estado do Rio de Janeiro. Exemplos.: “Cariocas são bonitos” / “Cariocas são sacanas”. Mais que isso, esse enunciador conhece, até mesmo, o que os cariocas não gostam: “Cariocas não gostam de dias nublados” / “Cariocas não gostam de sinal fechado”. No verso “Cariocas são bacanas”, há uma ambiguidade que reside na última palavra, pois essa quer dizer que as pessoas são legais, gentis, num primeiro sentido e, ainda, que as pessoas são ricas, num sentido segundo. Esse último significado é possível de ser interpretado, visto que o próprio enunciador diz que “Cariocas são modernos” / “Cariocas são espertos” / “Cariocas nascem craques”.

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Outrossim, “Cariocas são dourados” e “Cariocas são tão claros” são versos nos quais temos uma contraposição, uma vez que dourado não é muito claro no sentido de “mais branco”. Contudo, a palavra “claros” traz, em sua constituição, uma ambiguidade no que se refere à “cor” (claro e/ou escuro) e, ainda, às pessoas serem objetivas (coesas e diretas). Essa última interpretação é válida, pois os “Cariocas são diretos”, como o próprio enunciador disse. “Cariocas têm sotaque”, nesse verso, tem-se uma crítica social de que só as pessoas que são cariocas possuem sotaque. Aqui, o enunciador se distancia do povo do qual ele está falando, pois, para ele, somente os outros – os cariocas – possuem sotaque, enquanto ele, embora (con) viva ou tenha (con) vivido bem de perto com eles, não o possui. Há, portanto, uma crítica social ao discurso segregador de dialetos e sotaques. O enunciador, por fim, mas não menos importante, faz o uso da repetição da expressão “Cariocas são” por, aproximadamente, 12 (doze) vezes a fim de repetir e consolidar esses discursos do que eles são. Cria-se, dessa maneira, uma identidade discursiva que, ao ser acionada, rememora e atualiza essas noções do que são os cariocas. Muito embora a frase de repetição não seja a mesma, o discurso velado, quando repetido, consolida a identidade discursiva. Na música “Vambora”, o enunciador já se mostra muito ofegante, às pressas no primeiro verso: “entre por essa porta agora”, dando a ideia de rapidez e rudez por causa da pressa. É um ser enunciativo apressado, “você tem meia hora”, e possui uma memória sensorial ainda muito presente, embora a outra pessoa da cena aparenta não mais estar (con) vivendo com a pessoa que manda entrar pela porta a dentro: “Porque meu coração dispara” / “quando tem o seu cheiro” / “Dentro de um livro”/ “’Dentro da noite veloz’ (‘Na cinza das horas’) ”. “Dentro da noite veloz” se trata de um livro lançado em 1975, com autoria de Ferreira Gullar. Esse volume de poemas é marcado pela grande carga política. Na obra, Gullar deixanos um tom questionador e inquieto, denunciando a realidade cruel e desigual do país à sua época. De forma similar, o verso “’Nas cinzas das horas’” se trata do primeiro livro lançado pelo autor Manuel Bandeira. Lançado em 1917, “A Cinza das Horas” reúne, como o livro supracitado, poemas. Porém, dessa vez, estes foram compostos durante o período da doença do autor. Com base no quadro teórico dito na seção “Fundamentação Teórica”, explorarei as seguintes categorias analíticas de intertextualidade: alusão, referência e citação. O que tomo como conceito de referência, a partir do pressuposto dito anteriormente neste artigo, são os textos do quadro teórico supracitado. Baseando-me neles, DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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digo que referência se materializa quando o enunciado faz relembrar, nas diversas semioses utilizadas pelo enunciatário, enunciados outros. Fazendo isso, a referenciação serve para, entre outro (a) s, confirmar, corroborar, enriquecer, deturpar, retomar, lançar mão etc. de e com outros enunciados que o primeiro faz ou fez o receptor evocar na sua memória discursiva. Observe esses versos: Cariocas não gostam De dias nublados (Música “Inverno”) E o inverno no Leblon é quase glacial (Música “Cariocas”)

Entre as duas músicas, há o fenômeno referência, pois, ao ler o verso de uma e depois ler o outro, numa “relação de co-presença” entre textos outros, corrobora-se, enriquece e, creio, mais que isso, faz firmar verdade que no Rio de Janeiro e, mais especificadamente, no Leblon, o inverno é bem frio. Havendo esse fenômeno de referência, o leitor apreende e remete um texto ao outro. É o que eu explico a seguir. O

que

tomo

como

conceito

de alusão,

a

partir

do

pressuposto

dito

anteriormente neste artigo, são os textos do quadro teórico supracitado. Baseando-me neles, digo que alusão se constitui quando um enunciado (no geral) presume a apreensão de uma relação entre ele e um outro ao qual remete tal de suas modulações, que só são reconhecíveis para quem tem o conhecimento do texto-fonte. (KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2007). Acredito, também, que, quando se lê ou se ouve algo e, depois, lê-se ou ouve-se outro texto, e, assim, faz-se lembrar do discurso primeiro, aí se revela e se constitui o fenômeno intertextual alusão.

Observe: Cariocas não gostam De dias nublados (Música “Cariocas”) E o inverno no Leblon é quase glacial (Música “Inverno”)

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Entre esses dois versos, como já dito, há o movimento de referência, pois, ao ler um verso e depois ler outro, numa “relação de co-presença” entre textos outros, corrobora-se, enriquece e, creio, mais que isso, faz firmar verdade que no Rio de Janeiro e, mais especificadamente, no Leblon, o inverno é frio. Agora, tendo-se a noção do conceito de alusão, percebemos que, ao ler um verso depois de ter lido outro, a memória discursiva “entra em ação”. Somente tendo conhecimento do “texto-fonte”, é que o movimento intertextual de alusão se constitui e se revela. Nesse caso, lendo os dois versos e depois lendo o verso sozinho, ou vice-versa, mas, sobretudo, tendo-se o conhecimento de um ou outro primeiro, há o fenômeno intertextual de alusão. O que tomo como conceito de citação, a partir do pressuposto dito anteriormente neste artigo, são os textos do quadro teórico supracitado. Baseando-me neles, digo que citação, por sua vez, revela-se e atualiza-se por

meio

de

códigos

tipográficos

mundialmente e/ou

regionalmente aceitos. A citação evidencia a inserção de um texto em outro. Ela se mostra com recorrência por meio das aspas (“ ”). Para Koch, Bentes e Cavalcante (2007), “recorrer a tais expedientes gráficos é selecionar, para o co-enunciador, indícios claros e universalmente aceitos da mostração e da marcação de uma heterogeneidade neste caso materializada pelas relações intertextuais (...)”. Observe esses versos da música “Vambora”: Dentro de um livro “Dentro da noite veloz” (“Na cinza das horas”) Temos, como dito, uma forma de citação, que é clássica, na qual o próprio compositor da canção fez questão de colocar as aspas para referenciar aos livros. “’Dentro da noite veloz’” se trata de um livro lançado em 1975, com autoria de Ferreira Gullar. Este volume de poemas é marcado pela grande carga política. Em seus poemas, Gullar deixa-nos um tom questionador e inquieto, denunciando a realidade cruel e desigual do país à sua época. O verso “’Nas cinzas das horas’” se trata do primeiro livro lançado pelo autor Manuel Bandeira. Lançado em 1917, “A Cinza das Horas” reúne, como o livro supracitado, poemas. Porém, desta vez os poemas foram compostos durante o período da doença do autor. O enunciador dessa música se mostra como o livro “’Dentro da noite veloz’”: questionador e inquieto:

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Entre por essa porta agora E diga que me adora Você tem meia hora Pra mudar a minha vida Vem vambora Que o que você demora É o que o tempo leva Ainda tem o seu perfume pela casa Ainda tem você na sala Porque meu coração dispara

Ainda se tem a interpretação de que o dia (as 24 horas dele) desse enunciador é muito corrido e, consequentemente, sua noite será veloz, pois, depois de um dia de serviço, ainda precisa cuidar dos afazeres domésticos. Por isso, a pessoa que entra pela porta tem, somente, “meia hora para mudar a” sua vida. Interpretando o verso “’Na cinza das horas’” e aliando-o ao livro, observamos que “que o que você demora” / “é o que o tempo leva”. Ou seja, o tempo se torna mais rápido e se torna cinza para quem está doente, num tom mesmo de luto, uma vez que o tempo passado se passou e acabou, se findou, virou cinza das horas que compõem o dia.

CONCLUSÃO

Conclui-se que, a partir dos objetivos, da hipótese e do quadro teórico, as músicas analisadas apresentam movimentos intertextuais entre elas e nelas, haja vista os movimentos intertextuais mostrados e analisados pela pesquisa. Assim, ao se fazer a pergunta, evocandose a hipótese, “será que os textos de Adriana Calcanhotto, ao apresentarem movimentos de intertextualidade, atualizam discursos de outrem nos seus discursos?”, temos a resposta de que, sim, as músicas aqui analisadas atualizam e, indo além da hipótese, os discursos por trás das palavras vêm para serem apreendidos, consolidando e reiterando uma carga/memória discursiva no bojo dos enunciados. Repetindo e consolidando esses discursos, cria-se, assim, uma identidade discursiva que, ao ser acionada, rememora e atualiza discursos sobre coisas e pessoas, conceitualizando/taxando o que elas são – no caso da dessa pesquisa. Muito embora a frase de repetição não seja a mesma, o discurso velado, quando repetido, consolida tal identidade discursiva relacionada ao povo carioca.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, J. A. Enunciação / enunciado. 1ª. [2017?]. Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/enunciacaoenunciado. Acesso em: 09 set. 2018. BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). O DISCURSO DE OUTREM. In: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1922, Cap. 9, p.147-157. BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M.; KOCH, I. G. V. Intertextualidade – outros olhares. In: BENTES, A. C.; CAVALCANTE, M. M.; KOCH, I. G. V. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007, p. 119-145. FIORIN, J. L. Interdiscursividade e Intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.) BRAIT, Beth (org). BAKHTIN: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. RODRIGUES, D. L. D. I. ESCRITA DE PESQUISA E PARA A PESQUISA. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018, 76 p. S.N., S. N. Biografia de Benveniste. s.ed.. [2010]. Disponível em: http://www.ufrgs.br/benvenisteonline/Biografia.php. Acesso em: 09 set. 2018.

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COMO A INTERTEXTUALIDADE E A INTERDISCURSIVIDADE SÃO IMPRESCINDÍVEIS NA CONSTRUÇÃO DO HUMOR NAS TIRINHAS DA MAFALDA Maria Luísa Rodrigues Sousa

RESUMO A intertextualidade e a interdiscursividade constituem dois temas de estudo da Linguística Textual e se fundamentam na ideia de que um texto não se materializa como discurso primário, mas sim a partir de outros discursos e outras enunciações anteriores. O corpus de análise deste estudo são as tiras da personagem Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino. Tratam-se de narrativas humorísticas com um tom crítico que recusa o mundo como ele é e se apresenta a partir de duas linguagens: a verbal e a não-verbal, ambas importantes para a compreensão da tira. Percebe-se que o intertexto está presente em várias tiras da Mafalda, de diversas formas: alusões a personagens bíblicos, a pessoas famosas e ao contexto histórico vivido pela personagem (ditadura e guerra no Vietnã), envolvendo o receio aos chineses e a crítica ao discurso socialista. O universo da Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e desenvolvida, mas de um universo latino, em meio a uma ditadura, o que a torna mais verossímil do que muitos personagens de quadrinhos norteamericanos. Para atingir o humor a partir da leitura do quadrinho, o leitor deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva, pois se isso não ocorrer a construção do sentido de humor da tira estará prejudicada. Palavras-chave: Intertextualidade; Interdiscursividade; Mafalda; Narrativas humorísticas.

INTRODUÇÃO

No dicionário, o conceito de intertextualidade é: qualidade do que é intertextual, relação entre dois ou mais textos (AURÉLIO, 2018). Nesse sentido, entendemos que a criação de um texto se dá a partir de outro pré-existente, podendo haver uma referência explícita ou implícita de um texto em outro. Também pode ocorrer com outras formas além do texto verbal, como em: músicas, pinturas, filmes e novelas. Toda vez que uma obra faz alusão à outra, ocorre a intertextualidade. Por outro lado, a interdiscursividade é a relação entre discursos, cujo sentido de um discurso é produzido, retomado ou complementado por outro. Um grande estudioso dessa área é Mikhail Bakhtin2 e seu livro “Marxismo e filosofia da linguagem”, escrito ao final do século de 1920, faz parte dos fundamentos das mais atuais teorias textuais e semióticas 3. No capítulo 2

Bakhtin foi um pesquisador da linguagem e seus escritos inspirou trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições: o marxismo, a semiótica, estruturalismo, a crítica religiosa; e em disciplinas tão diversas como a crítica literária, história, filosofia, antropologia e psicologia. É criador de uma nova teoria sobre o romance europeu, incluindo o conceito de polifonia em uma obra literária. Bakhtin é autor de diversas obras sobre questões teóricas gerais, o estilo e a teoria de gêneros do discurso. Ele é o líder intelectual de estudos científicos e filosóficos desenvolvidos por um grupo de estudiosos russos, que ficou conhecido como o "Círculo de Bakhtin". 3 Estudo da construção de significado, o estudo do processo de signo (semiose) e do significado de comunicação.

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9 da obra, denominado “O discurso de outrem”, o autor inicia falando sobre o discurso de outro e afirma que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”. (BAKHTIN, 1929, p. 150). Ou seja, em todos os discursos existem outros dizeres, em todas as “vozes” existem ecos de outras “vozes”. Em outras palavras, trazemos para o nosso discurso o que o outro disse, uma vez que o discurso está sempre vinculado a outros: não existe um “adão do discurso” que discursa sobre algo como autor integral. Neste artigo, será analisado como a intertextualidade e a interdiscursividade são imprescindíveis na construção do humor nas tirinhas da Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino. Farão parte do corpus sete tirinhas da personagem, retiradas do livro “Toda Mafalda”, publicada em 2010 pela editora Martins Fontes, que reúne todas as tirinhas publicadas do objeto analisado, que foram publicadas entre 1964 e 1973. Essas tiras foram traduzidas para diversas línguas, ficando mundialmente conhecidas e apresentam uma linguagem crítica e por vezes de difícil compreensão. As narrativas humorísticas de Mafalda são compostas pela relação entre dois códigos: a linguagem verbal, representada pelo texto escrito, e a linguagem visual, representada pelas imagens. Ambas são de extrema importância para o entendimento das histórias em quadrinhos. Em várias tiras da Mafalda encontramos alusões à personagens bíblicos, pessoas famosas, ao contexto histórico vivido pela personagem (ditadura e guerra no Vietnã) e o receio aos chineses e a crítica ao discurso socialista, ou seja, intertextualidade. Para que o leitor atinja o humor a partir da leitura do quadrinho, ele deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva pois, caso contrário, não será possível a construção do sentido do texto. Portanto, os objetivos específicos da análise serão: identificar a presença da intertextualidade e interdiscursividade em sete tirinhas da personagem Mafalda, compreender como o discurso da personagem Mafalda funciona através da intertextualidade, analisar como ocorre a introdução do interdiscurso e intertexto na tirinha (verbo antecedente, dois pontos, etc.) e, por fim, entender como o leitor deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva para que haja a construção do humor presente na tira. Como um aporte teórico, será utilizado o conceito de intertextualidade proposto por Koch (2009) a partir dos estudos de Bakhtin, que trata da presença de textos anteriormente

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produzido pertencentes à memória social de uma coletividade ou à memória discursiva dos interlocutores. Em cada uma das tirinhas a intertextualidade se apresenta de uma forma distinta para que seja construído o humor. Visto que a intertextualidade é um tema amplo e se apresenta de diversas formas em cada tirinha, será compreendido como se comporta cada tipo de movimento intertextual identificado. A importância da intertextualidade na construção do humor nas tirinhas da Mafalda foi escolhida para ser analisado devido às constantes transformações que vivemos, tanto no contexto pessoal, quanto no social. O contexto se modifica e, por isso, quando revemos velhos quadrinhos ou charges, podemos não compreender, em algumas das vezes, a intenção e o humor desses textos. Portanto, é importante a reconstrução desse contexto por meio das relações intertextuais, mesmo afastado temporalmente do acontecimento citado. Assim que entendido o que está implícito no movimento intertextual, surgirá o humor. Se o leitor não identifica o que foi utilizado do texto fonte, o efeito de sentido não é provocado. Ademais, entender uma tirinha não é apenas lê-la mecanicamente, mas também interpretá-la, e a interpretação demanda um trabalho extra do interlocutor que é perceber naquele texto outros discursos, de onde são e qual o objetivo do que está sendo dito no texto, enquanto que a leitura demanda apenas a compreensão das frases e ideias. A última é basilar, mas não suficiente para a interpretação, pois esta depende do que podemos concluir sobre o que está escrito no texto, o modo como interpretamos o conteúdo. Ademais, na interpretação, há o trabalho com a subjetividade, como que o sujeito entendeu sobre o texto. Os textos podem até permitir mais de uma leitura, mas sempre haverá “a certeira”, uma que o autor pretende que o leitor faça. A crítica política pode ser transitória, por exemplo, por explorar características específicas de determinados políticos ou etapas de um governo, como passa Mafalda. Sendo assim, as tiras analisadas exemplificam como a compreensão depende da intertextualidade e é essa a importância do estudo. Para que os objetivos sejam atingidos, este trabalho será dividido em cinco partes: referencial teórico, reunindo discussões já realizadas por outros autores sobre o tema, descrição e análise do corpus e por fim, as considerações finais.

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REFERENCIAL TEÓRICO

Neste artigo, constam ideias difundidas por Bakhtin, Koch e Fiorin, pensadores que analisaram, discutiram e, por fim, contribuíram na construção conceitual do tema geral analisado: intertextualidade e interdiscursividade. Segundo Bakhtin, nosso discurso é dialógico. Isso significa que o homem é um sujeito inexistente fora da relação com o outro em que se realiza na linguagem e que todo discurso concreto presente nos diferentes âmbitos sociais nunca é completamente novo, pois contém sempre resquícios de outros discursos. Mafalda, uma personagem inserida no contexto sociopolítico da Argentina no período entre 1964 e 1973, evoca discursos de outrem. Em seu livro denominado “Desvendando os segredos do texto”, Ingedore Villaça Koch recupera os estudos de Gérard Genette a fim de contribuir para a discussão acerca da intertextualidade: Genette tratava, de modo geral, os diálogos entre textos como relações de transtextualidade, a transcendência textual, tudo que põe em relação, ainda que “secreta”, um texto com outros e que inclui qualquer relação que vá além da unidade textual de análise. O autor subclassificou as transtextualidades em cinco tipos, dentre eles aquilo que chamou de intertextualidade “num sentido reduzido”. (GENETTE apud KOCH, 2003, p. 119)

Os cinco tipos de intertextualidade se encontram no capítulo 6 do livro “Intertextualidade – outros olhares”, em que Koch (2003) elenca exemplos dos diferentes tipos de intertextualidade, que podem se resumir em: 1. Intertextualidade: marcada/restrita (citação, alusão, plágio); intertexto alheio/intertexto próprio; enunciador genérico 2. Paratextualidade 3. Metatextualidade 4. Arquitextualidade 5. Hipertextualidade: hipertexto; hipotexto; paródia; pastiche; travestimento burlesco. Para Bakhtin, o discurso literário não é um sentido fixo, mas um cruzamento de outros diálogos, outros textos, cada texto é uma absorção e transformação de outro texto. Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem. A partir disso, está entronizada a noção de intertextualidade como procedimento

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real de constituição do texto. Barthes define o texto como algo pronto e acabado que carrega a verdade, como observamos em sua definição:

O texto é uma arma contra o tempo, o esquecimento, e contra as velhacarias da palavra, que, muito facilmente, volta atrás, altera-se, renega-se. A noção do texto está, portanto, historicamente ligada a todo um conjunto de instituições: direito, igreja, literatura, ensino; o texto é um objeto moral: é o que está escrito, enquanto participa do contrato social; ele assujeita, exige ser observado e respeitado; mas em troca confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência ela não tem): a segurança. (BARTHES apud FIORIN, 2006, p. 164)

Nessa mesma vertente, Fiorin afirma que o texto é uma produtividade; é o teatro do trabalho com a língua, desconstruindo e reconstruindo. A língua não tem estabilidade e o texto é inacabado. O mesmo pode se dizer sobre Mafalda: seus textos e seu humor são inacabados. Segundo Bakhtin (1965, p. 68), “todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis”. A intertextualidade é a maneira real de construção do texto. Por outro lado, a interdiscursividade é a relação entre discursos, cujo sentido de um discurso é produzido, retomado ou complementado por outro. Podemos afirmar, portanto, que em todos os discursos existem outros dizeres, em todas as “vozes” existem ecos de outras “vozes”. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse, pois o discurso está sempre vinculado a outros. Sendo assim, não existe um “adão do discurso” que discursa sobre algo como autor integral. Mais uma vez, a personagem Mafalda não surge em cena “criando” nada, mas sim ecoando outras vozes. E de quem é essa voz que ela ecoa? A língua é um reflexo das relações sociais dos falantes, da sociedade, do tempo, dos grupos sociais e costumes. Os esquemas linguísticos têm a função de isolar o discurso citado para protegê-lo das entonações próprias do autor e impedir suas influências sobre o discurso citado. Segundo a teoria de Bakhtin, o falante traz para o seu discurso o que outro disse. Contudo, o discurso está vinculado a outros discursos. Trazer para um texto uma citação é trazer uma rede de sentidos de onde a citação foi tirada. Por exemplo, se em um discurso há a frase “lugar de mulher é na cozinha”, o falante não está apenas trazendo essa frase à tona, mas toda a universo discursivo machista em que a projeção da imagem da mulher tem sido caracterizada historicamente, socialmente e culturalmente como submissa. Apoiado a um regime patriarcal, em que a figura masculina representa a liderança, a ideologia do machismo está impregnada nas raízes culturais da sociedade há séculos, em todas as esferas econômicas, políticas, midiáticas, familiares e religiosas.

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DESCRIÇÃO DO CORPUS

O corpus de pesquisa é constituído por sete tirinhas da personagem Mafalda do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, retiradas do livro “Toda Mafalda”, publicada em 2010 pela editora Martins Fontes, que reúne todas as tirinhas publicadas da personagem Mafalda entre o período de 1964 a 1973. Mafalda é uma personagem que nasceu na Argentina, onde uma ditadura havia se instalado. Criada em 1963 para estrelar um comercial de eletrodomésticos, Mafalda deveria ter o nome com “Ma”, essa era a exigência que a empresa impunha a Quino. A campanha publicitária não vingou, mas a personagem está viva até hoje. No total, são 1.928 tirinhas publicadas em nove anos de publicação. Nas tirinhas é fácil observar o quadro político em que se encontrava o país e o mundo. Mafalda não se intimida com isso e questiona o que pode e como pode. Outros personagens do universo de Mafalda são: Manolito, um menino plenamente integrado num capitalismo de bairro e absolutamente convencido de que o valor essencial no mundo é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo; Susnita, a doente de amor maternal perdida em sonhos pequeno-burgueses; e, por fim, os pais de Mafalda, resignados, que aceitaram a rotina diária vencidos pelo tremendo destino que fez deles os guardiões da Contestadora. A menina é crítica e questionadora, mas cheia de compaixão e ternura pelos outros e pelo mundo onde vive, que considera extremamente doente. Por isso, no globo que usa para estudar geografia em casa, põe esparadrapos: para curar as feridas que ele tem. Antes de tomar medidas curativas para a doença do planeta, Mafalda se preocupa com ele. A garota ainda dialoga com o rádio que veicula notícias as mais preocupantes: guerras e conflitos de todos os tipos. Ao longo das histórias, o público percebe que Mafalda é uma garota com o olhar perspicaz e filosófico de um adulto, sempre preocupada com o futuro do mundo, a se perguntar sobre as incoerências da vida. Apesar da inteligência e do sarcasmo, ela ainda tem dúvidas e sentimentos de criança. Isso a torna encantadora de uma forma única. Ao mesmo tempo que critica a relação dos Estados Unidos com a América Latina, como adulto, acha que, por morar na Argentina, está de cabeça para baixo no mundo — como pareceria razoável a uma criança que olhasse o globo terrestre. O público infantil pode se identificar parcialmente com ela. Mafalda tem a alma irônica de um adulto. O processo de análise do corpus consistiu em: leitura inicial de todas as tirinhas da personagem estudada e observação de quais tirinhas contavam com a presença da intertextualidade de forma mais clara; segunda seleção, pois foram identificadas mais de sete DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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tirinhas; análise do geral da cena seguida de maior detalhamento; análise de como a intertextualidade se apresenta e como constrói o humor.

ANÁLISE DO CORPUS

Iniciaremos neste item a análise de sete tiras da personagem Mafalda, criada por Quino e publicadas entre 1964 e 1973, na Argentina. Como já dito anteriormente, as tiras para análise foram retiradas da obra “Toda Mafalda” de Lavado (2010). Serão consideradas tiras que contenham intertextualidade, além de outros fatores que podem auxiliar na compreensão das tiras para produzir o humor, como o conhecimento prévio e as inferências. Não se pretende esgotar aqui as possibilidades de análise das tiras em questão no que se refere à intertextualidade, mas mostrar algumas formas de interpretação dentro dos conceitos propostos neste estudo. Tira 1 – Alusão

No primeiro quadrinho dessa tira, vemos a personagem Mafalda brincando e, ao receber uma ordem de sua mãe, vai lavar as mãos. Ao comentar as ordens que recebe diariamente de sua mãe em relação à lavagem das mãos, faz alusão a um personagem histórico: Pilatos. Essa intertextualidade presente na tira (alusão) trata-se de uma rápida menção a algo ou alguém quem, no caso da tira, está presente no sexto quadrinho, na fala de Mafalda: “que fixação em Pilatos, hein!”. Assim, para não haver prejuízo no entendimento da tira, é necessário que o leitor relacione a ordem de lavar as mãos, dada pela mãe, com a frase dita por Pôncio Pilatos no momento da condenação de Jesus. O intertexto bíblico se refere ao momento em que Pilatos lavou as mãos se isentando da culpa pela condenação e morte de Jesus Cristo. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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A frase “lavar as mãos” ficou popularmente conhecida e é empregada quando a pessoa quer demonstrar que já não pode ou não quer fazer mais nada diante de um problema, dizendo “lavo as minhas mãos”. Porém, o jogo intertextual não é tão fácil de ser percebido. Apesar de o autor ter se referido explicitamente ao nome de Pilatos para que o leitor possa perceber a intertextualidade, é necessário não só saber quem foi Pilatos, um dos responsáveis pela condenação de Jesus. É preciso também se reportar à ação realizada por Pilatos ao lavar as mãos diante da condenação de Jesus. Dessa forma, o conhecimento prévio do texto é importante, pois se o leitor não tem esse conhecimento ficará difícil reagir ao efeito de humor no texto. Tira 2 – Intertexto próprio

Essa tira é constituída por apenas um quadro, em que a personagem Mafalda está sentada à mesa, com um prato de sopa e de outro alimento enquanto exclama: “A sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia!”. Aqui, a personagem demonstra não gostar de sopa e a compara com o comunismo de modo a construir a sua crítica e, para que a crítica seja entendida como negativa, é necessário observar a linguagem não-verbal da tira. A intertextualidade presente é classificada pela linguista Koch como “intertexto próprio”, isto é, a “retomada de segmentos de textos próprios do enunciador, uma espécie de autotextualidade” (2004, p. 127), uma espécie de memória discursiva. Nesse sentido, para que não haja um “ruído” no entendimento do humor da tira, o leitor deve trazer como conhecimento prévio que Mafalda não gosta de sopa, uma das características intensas da personagem. Indo um pouco além do quadrinho, a mãe de Mafalda representa uma figura de autoridade, insistindo a garota a comer para o seu “próprio bem”. Quino em uma entrevista para Rodolfo Bracel, em abril de 1987, em Buenos Aires, afirma que “a cena da sopa

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é dada por uma autoridade a despeito da vontade do povo, era uma figura que representava a repressão, o repúdio ao governo vigente” (por isso a figura de autoridade materna). Dessa forma, quando Mafalda fala da sopa é construída uma analogia contra tudo aquilo imposto sem negociações. Logo, ela compara a sopa, que era imposta a ela, como o comunismo era imposto à democracia. Mafalda coloca o comunismo e a democracia em situação de antagonismo. A sopa é então uma metáfora desenvolvida por Quino para representar a violência contra a liberdade. Para Mafalda, o comunismo é uma violência contra a democracia (que é, para a personagem, a liberdade). Diante do exposto, fica evidente que o leitor não entenderá a tira se não entender o contexto político e social que a tira foi escrita e as características da personagem. Tira 3 – Alusão

A tira de número 3 é iniciada pela conversa da Mafalda com seu amigo Miguelito, enquanto ambos estão na praia observando o sol. Ela diz a Miguelito que o sol que os ilumina é o mesmo que iluminou Lincoln, Rembrandt, Bolívar e Cervantes. Essas quatro pessoas as quais ela se refere são grandes nomes da história. Lincoln foi presidente dos Estados Unidos e liderou o país de forma bem-sucedida contribuindo também para a abolição dos escravos. Rembrandt foi um pintor neerlandês e um grande nome da arte europeia. Bolívar é considerado um herói na América Latina que contribuiu para a independência da América Espanhola. Por fim, Cervantes, foi um romancista, dramaturgo e poeta espanhol, cujo trabalho resultou na obra prima mundialmente conhecida “Dom Quixote”. Essas pessoas têm em comum o fato de terem feito grandiosidades e serem vistas de forma positiva pela sociedade em geral, recebendo a admiração de Mafalda que se sente lisonjeada por ser iluminada com o mesmo sol que eles. No terceiro quadrinho, acontece a quebra de expectativa introduzida por Miguelito ao mencionar uma figura também conhecida de nossa história, mas não em sentido positivo como

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as citadas por Mafalda. Miguelito fala de Mussolini, um político italiano unido ao fascismo. É uma figura negativa por fazer parte de um regime de extrema direita ligado à censura e ao autoritarismo. Assim, Mafalda se espanta e sai correndo, mas antes parece empurrar ou golpear Miguelito, que aparece no último quadro caído com as pernas para cima na beira do mar. Indicado pelo balão de pensamento, o menino, como que querendo se justificar por ter citado Mussolini, lembra que o avô contava maravilhas sobre ele. A intertextualidade está presente desde o primeiro quadrinho, quando Mafalda faz uma alusão explícita com o nome das pessoas, mas o que elas fizeram no passado fica implícito. Aqui, o sentido e o humor só poderão ser alcançados a partir do conhecimento prévio do que essas pessoas fizeram no passado. Tira 4 – Citação

Nessa tira, Susanita, amiga de Mafalda, está sentada aparentemente no chão de uma sala lendo um livro. Nos dois primeiros quadrinhos ela lê “viemos do pó e ao pó voltaremos”. Em seguida, no terceiro quadrinho, ela exclama “danou-se a cosmética!” e então o humor da tira é alcançado. Nos dois primeiros quadrinhos, o discurso lido por Susanita é o bíblico, mais especificadamente presente no livro Gênesis. Para que esse discurso seja melhor identificado, há a presença da intertextualidade na forma de citação, em que podemos facilmente perceber devido ao fato de vir através do uso das aspas. Notamos, então, que se trata de uma citação direta. A frase em Gênesis apresenta a ideia de que tudo é passageiro, nada é eterno. Todavia, para que haja o entendimento da tira em sua completude, o leitor deve ter o entendimento da frase bíblica citada e de como é a personagem Susanita. Sabendo que a citação é para dizer que viemos do pó e nos tornaremos pó, e que a cosmética não resolverá todos os problemas para sempre, compreendemos o humor nas palavras de Susanita. A menina é uma

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personagem doente de amor maternal com sonhos pequenos-burgueses e sempre está atenta à vaidade, sempre preocupada com maquiagens, roupas, sapatos, muitas vezes ignorando até mesmo os valores éticos e morais em busca de alcançar o que é belo aos olhos. O humor da tira pode ser ainda mais ampliado com essa informação sobre as personagens, pois entenderá o porquê de Susanita sempre se preocupar com a cosmética até em um texto bíblico. Tira 5 – Citação

No primeiro quadrinho, Mafalda está desligando a televisão e dizendo os verbos imperativos conhecidos por induzir as pessoas ao consumismo. Mafalda se mostra irritada e esbaforida com essas palavras. Ainda no primeiro quadrinho ela pergunta “o que eles pensam que nós somos?”, como quem pergunta “eles pensam que vão nos convencer e que somos tão manipuláveis?”. No segundo quadrinho ela pensa melhor e se pergunta: “e o que nós somos?”. No quadrinho seguinte ela liga a televisão novamente e no último conclui pensando “os malditos sabem que ainda não sabemos”. Para que notemos a intertextualidade presente, precisamos conhecer que “use”, “compre”, “beba”, “coma” e “prove” são verbos imperativos utilizados nas propagandas midiáticas com o objetivo de venderem seus produtos. Portanto, Mafalda cita essas palavras para fazer referência às propagandas. Caso o leitor não entenda que esses verbos foram utilizados por Quino como referência às propagandas, ele não saberá que Mafalda está criticando, no primeiro quadrinho, as propagandas. Porém, no último quadrinho, Mafalda termina criticando a sociedade em geral, pois ainda não sabe quem são eles próprios por não pensar criticamente sobre algo.

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Tira 6 – Alusão

No primeiro quadrinho dessa tira, Mafalda está lendo um livro para Miguelito e ele pede para que ela pare, pois não pode “nem pensar que o lobo vai comer a avó da Chapeuzinho!”. Nos próximos três quadrinhos os dois vão jogar boliche e, no último quadrinho, gerando uma quebra de expectativa na tira, Miguelito pergunta à Mafalda se o lobo comeu a avó de Chapeuzinho com maionese ou pura, ou seja, ele ainda estava pensando na situação da história. Podemos notar a intertextualidade desde o primeiro quadrinho em forma de alusão, ato ou efeito de aludir, de fazer rápida menção a alguém ou algo, uma vez que Miguelito menciona o livro denominado “Chapeuzinho Vermelho”. Se o interlocutor não conhecer esse clássico infantil, não irá compreender a discussão das crianças sobre os personagens do conto. Assim, poderá até entender a tira, mas sem alcançar um efeito completo. Tira 7 – Interdiscursividade

Na terceira tira analisada, Mafalda se questiona, no primeiro quadrinho, por que uma mulher não pode ser presidente da república. No próximo quadrinho ela imagina uma mulher

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lendo um livro, no qual está escrito na capa “segredo de estado” e nos próximos quadrinhos a mulher do pensamento para alguém após refletir. No último quadrinho, Mafalda descobre a resposta para sua pergunta. Devemos perceber que o livro “segredo de estado” está no quadrinho de forma metafórica, para que apareça uma forma concreta do que não se deve dizer ou não ser do conhecimento de outrem. Mesmo sendo um sigilo e não devendo ser divulgado, a mulher que tem acesso a essas informações, conta para alguém. Logo, inferimos que a mulher é, então, fofoqueira. Para que cheguemos a essa inferência, temos que saber sobre a representação feminina no processo de interdiscursividade sobre a fofoca. Há uma subjugação da mulher na sociedade e tal acontecimento é representado nessa tira, nos pensamentos da personagem Mafalda. Este é o humor da tira: mulher não pode ser presidente da república porque contaria os segredos de estado. Para que não haja, portanto, uma dificuldade no entendimento do humor da tira, devemos conhecer o discurso de subjugação da mulher quando se trata de um segredo, independente de qual seja. Quino se baseia em tais discursos para criticar as mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando individualmente algumas tiras da personagem Mafalda, podemos observar como o entendimento da intertextualidade é imprescindível na percepção do humor nas tirinhas de Quino. Os exemplos de tiras fornecidos neste estudo procuram explicitar o quanto sua compreensão depende, em partes, de fatores como a intertextualidade e a interdiscursividade. Em vista da exposição teórica realizada e das tiras analisadas, é importante refletir sobre a leitura feita dos quadrinhos em questão. Entender um texto cômico não é apenas decodificálo, mas é também (e principalmente) interpretá-lo. Tal interpretação demanda um trabalho do ouvinte, enquanto que a decodificação demanda apenas um conhecimento. Cabe ressaltar, mais uma vez, que esse conhecimento é necessário, mas não suficiente para a interpretação. Além disso, diante das análises realizadas, notamos que todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro. O dialogismo, segundo Bakhtin, pode ser entendido como um espaço de luta entre as vozes sociais, relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social. O sujeito social, ao se deparar com outros enunciados, interage com os discursos num ato responsivo, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação. E é isso que Mafalda faz. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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Ademais, a língua tem a propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. Ficou evidente na análise das tiras que o leitor deve estar atento e ser conhecedor das referências feitas pela personagem para que entenda o efeito de sentido proposto pelo autor. Mesmo num monólogo, tanto da personagem quanto qualquer outro, há dialogismo, pois nesse ato, aparentemente individual, há vozes que dialogam. Portanto, o dialogismo não se restringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestado em diferentes dimensões, como na última tira analisada: o enunciado ocorre apenas no plano de pensamento da Mafalda, em um texto não verbal e mesmo assim, há o interdiscurso. Podemos firmar, portanto, que tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade são relações dialógicas e que, saber sobre contextos sócio-históricos, conhecer as personagens e outras referências nos é discretamente imposto quando realizamos a leitura de Mafalda. Um texto pode dialogar com outro de forma implícita ou explicita e, de todas as formas, exige o conhecimento prévio do leitor.

REFERÊNCIAS

AURÉLIO. Dicionário do Aurélio Online. 2018. Disponível em: https://dicio-nariodoaurelio.com/intertextualidade. Acesso em: 15 abr. 2019. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. 196p. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Quino e Mafalda: criador e criatura. Correio Cidadania, 2012. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/cultura-esporte/741324-07-2012-quino-e-mafalda-criador-e-criatura. Acesso em: 03 jun. 2019. CAVENAGHI, Ana Raquel Beatriz. Mafalda: humor, ironia e intertextualidade. In: Encontro Nacional de Estudos da Imagem, 3., Londrina, PR. 2011. Anais... Londrina: UEL, 2011. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Ana%20Raquel%20Abelha% 20Cavenaghi.pdf. Acesso em: 03 jun. 2019. FIORIN, José Luiz. Bakhtin: outros conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161-193. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. 168p. QUINO. Toda Mafalda. 2. ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 2010. 420p.

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QUINO. 10 anos com Mafalda. 6. ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 2014. 420p. RIZZARI. Josiane. Mafalda, Mafaldinha. Anarcolítico Blog, 2011. Disponível em: http://anarcolitico.blogspot.com/2011/07/mafalda-mafaldinha.html. Acesso em: 04 jun. 2019.

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O USO DOS PRONOMES DEMONSTRATIVOS EM TEXTOS DE PRÉVESTIBULAR Bruna Motta Debarry Caroline Machado Gomes Gabriela Lapa Almeida Araujo

RESUMO Esta pesquisa é de natureza explicativa e exploratória, baseada nas gramáticas normativas: “Gramática em Textos” (2012) e “Novíssima Gramática da Língua Portuguesa” (2010) e tem por objetivo a compreensão e análise do uso, muitas vezes equivocado, dos pronomes demonstrativos nas redações escritas pelos pré-vestibulandos ao se prepararem para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A utilização desses pronomes usualmente apresenta dúvidas em muitos estudantes, desse modo, como forma de auxílio, iremos indicar neste artigo como devemos utilizar esses pronomes em cada um de seus casos. Palavras-chave: Pronomes demonstrativos; Gramáticas normativas; Redações; Pré-vestibular.

INTRODUÇÃO

Os pronomes são palavras utilizadas em uma frase como uma forma de retomar algo que já foi dito, podendo variar em número, gênero e pessoa. Essa classe gramatical é classificada em: pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos, interrogativos, indefinidos e relativos. Porém, nesta pesquisa, será trabalhado e analisado o uso dos pronomes demonstrativos nas redações feitas por estudantes que estão se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Para fundamentar o estudo composto neste artigo, serão utilizadas duas gramáticas normativas, sendo elas: a “Gramática em Textos” (2012) da autora Leila Lauar Sarmento, e a “Novíssima Gramática da Língua Portuguesa” (2002) do autor Domingos Paschoal Cegalla. As gramáticas normativas ou prescritivas são aquelas que trabalham com as normas, isto é, com uma padronização da realização da língua, caracterizando as outras formas como erradas. Embora os pronomes demonstrativos não sejam os pronomes mais utilizados, como os pronomes pessoais, eles também têm grande relevância, pois ao serem usados pelo falante, exercem uma relação de proximidade e de distância entre os participantes da interação comunicativa e os objetos, além de apontar a localização onde se originou a situação discursiva (centro dêitico ou lugar central). Todavia, são importantes para o desenvolvimento do texto, para a coesão textual, e o entendimento para com o leitor. Nessa perspectiva, o estudo deste assunto torna-se imprescindível na área da Linguística, visto que um profissional que possui certo domínio

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linguístico deve ter conhecimento dos pronomes para aplicá-los. Diante disso, pretende-se explorar, nesta pesquisa, o uso da classe morfológica dos pronomes, especificamente dos demonstrativos.

ABORDAGEM SOBRE OS PRONOMES DEMONSTRATIVOS

Tendo em vista a gramática normativa como aquela que descreve as normas e os padrões da Língua Portuguesa, tais quais como deveriam aparecer em textos, serão utilizadas nesta pesquisa duas gramáticas que possuem esse procedimento. De modo geral, nas duas gramáticas apresentadas, o conceito de pronome aparece como palavras que acompanham ou substituem o nome, designando-o como a pessoa do discurso, isto é, o indivíduo que fala. Em regra, os pronomes demonstrativos são usados para marcar espaço, – ou seja, a posição de um objeto em relação aos interlocutores – tempo e coesão referencial. Na gramática de Cegalla (2010, p. 183,184) os pronomes demonstrativos são definidos como os que indicam o lugar, a posição ou a identidade dos seres, relativamente às pessoas do discurso. Nesse sentido, podemos desenvolver a tabela a seguir:

No critério espaço, entendemos que existem três valores de distância, sendo eles: • Próximo, para os referentes perto do emissor; – Compro este carro (aí). (CEGALLA, 2010. p. 183) • Médio, para os referentes bem próximos do receptor e mais ou menos perto do emissor; – Compro esse carro (aí). (CEGALLA, 2010. p. 183) • Distante, para os que se acham longe dos interlocutores; – Compro aquele carro (lá). (CEGALLA, 2010. p. 183)

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Os pronomes este, esse e aquele correspondem a isto, isso e aquilo, que são invariáveis e empregam, exclusivamente, o papel de substitutos dos substantivos. Exemplos:

Isto é meu. (CEGALLA, 2010. p. 183) Isso que você está levando é seu? (CEGALLA, 2010. p. 183) Aquilo que Dario está levando não é dele. (CEGALLA, 2010. p. 183) ● Observações: ➜ O, a, os, as são pronomes demonstrativos quando equivalem a isto, aquilo, aquele, aquela, aqueles, aquelas. Exemplo: Leve o (= aquilo) que lhe pertence. (CEGALLA, 2010. p. 184) ➜ A locução o quê é pronome demonstrativo em frases como: O médico examinou minuciosamente o enfermo; após o quê (= isso), prescreveu-lhe repouso absoluto. (CEGALLA, 2010. p. 184) ➜ Pode ocorrer a contração das preposições a, de, em com pronome demonstrativo: àquele, àquela, deste, desta, disso, nisso, no, etc. Exemplo: Cheguei àquele sítio às 10 horas. (àquele = a aquele) (CEGALLA, 2010. p. 184)

Ainda no critério espaço, ressalto que existe uma prevalência de esse sobre este. Duas explicações poderiam ser atribuídas a esse fenômeno: 1º: Em muitos contextos discursivos, a mera oposição entre próximo e distante dos participantes parece bastar, não interessando a indicação de um ponto medial, que assinalaria a posição do ouvinte. Neste caso, então, o contraste se estabeleceria, funcionalmente, entre as formas este ou esse, de um lado, e aquele, de outro. 2º: Em certas circunstâncias, o falante precisa pesquisar o local do referente e reconhecer funcionalmente os três pontos de localização: próximo, médio e distante. No entanto, sabendo, de modo intuitivo, ser frequente uma neutralização entre as formas de primeira e segunda pessoa, é necessário recorrer ao reforço dos pronomes circunstanciais. Na gramática de Sarmento (2012), é explicado que os pronomes demonstrativos são “os pronomes que situam, no tempo e no espaço, a pessoa ou coisa referida, em relação às três pessoas do discurso”.

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Isto é, em “Gramática em textos” de Leila Lauar Sarmento, além de aparecer as formas, como na gramática de Cegalla, ainda aparece na tabela mais uma categoria, sendo ela, a posição:

Espacial 1º

Temporal

próximo da pessoa que fala

presente

2º próximo da pessoa com quem se fala

passado recente e futuro próximo

3º próximo da pessoa de quem se fala

passado distante

Em relação ao tempo, a gramática de Sarmento apresenta algumas especificações, sendo elas: Os pronomes este (s), esta (s) e isto: ● Tempo presente, em relação ao momento em que se fala: – Neste mês venta muito. (SARMENTO, 2012, p. 218) (no mês presente) – Esta tarde vou ao shopping. (SARMENTO, 2012, p.218) (a tarde presente) Os pronomes esse (s), essa (s) e isso: ● Tempo passado próximo, em relação ao momento em que se fala: – Esse aumento do desemprego ocorreu em todos os países (indica um fato do passado recente) (SARMENTO, 2012, p. 219) ● Tempo futuro, em relação ao momento em que se fala: – Nessa reunião escolheremos o novo presidente. (indica uma reunião futura) (SARMENTO, 2012, p. 219) Os pronomes aquele (s), aquela (s) e aquilo: ● Passado remoto/distância, em relação ao momento em que se fala: – Naquela época ainda havia bondes. Refere-se

a

uma

época

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remota

(SARMENTO,

2012,

p.219)

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Observações: Além de serem usados como indicadores de tempo e espaço, os pronomes demonstrativos podem ser usados para se expressar uma retomada, ou seja, uma maneira de referenciar algo que já tenha sido dito no texto, indicado anteriormente nesta pesquisa, como “coesão referencial”: ● Esse, essa e isso para algo já dito ou uma pessoa já mencionada num texto: – Um rio largo passa pela minha cidade. Esse rio está bastante poluído, o que impede o uso de suas águas para a irrigação de lavouras. (SARMENTO, 2012, p.219) ● Este, esta e isto para algo que vai ser dito: – Na porta da loja, lia-se esta mensagem: “Fechado para balanço”. (SARMENTO, 2012, p.219) ● Em referência a dois elementos (ou pessoas) citados anteriormente na frase, usase este (s), esta (s) e isto para indicar o elemento mais próximo; para indicar o mais distante, aquele (s), aquela (s) e aquilo: –Pedi pizza e doces; estes estavam deliciosos, mas aquela, nem tanto. (SARMENTO, 2012, p.219) ● As palavras mesmo, próprio, semelhante, tal podem funcionar como pronomes demonstrativos: – O pai deu a mesma resposta. (sentido de “idêntico”, “idêntica”) – Observei semelhante descaso. (refere-se a algo expresso antes) – A própria gerente nos atendeu. (sentido de “em pessoa”)

Entendendo a definição dos pronomes como palavras que substituem ou acompanham o substantivo, relacionando-o às pessoas do discurso, os pronomes se classificam em pessoais, possessivos, demonstrativos, indefinidos, interrogativos e relativos. Porém, para esta pesquisa, faz-se necessário apenas o conceito dos pronomes demonstrativos, sendo eles, palavras que indicam a posição das pessoas ou dos objetos, de acordo com a gramática normativa. Visto que os conceitos demonstrados e as redações analisadas e corrigidas neste trabalho seguiram a norma padrão da Língua Portuguesa ditada pela gramática prescritiva, é estimado a explicação de uma definição diferente, considerando a gramática que busca descrever o mecanismo pelo qual uma língua funciona, num dado momento, como meio de comunicação entre os seus falantes. DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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As gramáticas “Gramática de Usos do Português”, de Maria Helena de Moura Neves e “Gramática da Língua Portuguesa”, de Mário Vilela e Ingedore Villaça Koch, são exemplos que seguem essa característica, visando descrever a língua tal qual como ela é. Em “Gramática de Usos do Português”, é mostrado a tabela dos pronomes, indicando os que são variáveis e os que são invariáveis. Além disso, demonstra também, a posição em que cada um deve aparecer em uma frase, seja na fala ou em uma produção textual. Um tópico diferente que aparece no livro de Maria Helena Moura Neves é “outras expressões que envolvem demonstrativos”, ou seja, temos outras situações presentes na fala em que os pronomes demonstrativos são utilizados. São eles: “Entrar nessa” = deixa-se envolver “Essa não!” = Não aceito isso! “Ora, essa!” = Onde se viu isso?! “Mais esta!”= Só faltava acontecer isso! “Esta/essa é boa!” = O que está em questão/o que foi feito ou dito é espantoso” (NEVES, 2000)

Em suma, para que se entenda a diferença entre a gramática normativa e a gramática descritiva, observe os exemplos abaixo:

(a) Os gato são dele, viu? (b) O gatos são dele, viu?

A gramática normativa chama de "erro de concordância" as construções do caso (a) e do caso (b). Já a gramática descritiva, procura explicar os usos da língua no caso (a) – que não são consideradas “erros” - e preconiza que o caso (b) não existe na língua. Podemos afirmar que as construções do caso (a) podem ser inadequadas em determinadas circunstâncias ou contextos de uso, quando precisamos escrever ou falar de maneira mais formal, ou ainda, de acordo com as regras da gramática normativa: aquelas que, enfim, padronizam os usos da língua, em especial a escrita. Portanto, concordamos que conhecê-la permite que desenvolvamos ferramentas necessárias para dominar a língua escrita, o que pode significar uma participação social maior e mais qualificada.

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METODOLOGIA

Esta pesquisa é de natureza analítica, sendo o corpus desta constituído pela análise de redações escritas por alunos cadastrados em uma plataforma de uma empresa chamada Imaginie. É a maior plataforma de correções e ensino de redações no Brasil, corrigida por milhares de professores que trabalham na plataforma. A empresa trabalha em parceria com algumas escolas, para que os alunos desenvolvam a habilidade de escrever redações como preparatório pro Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). São mais de 3.217,432 alunos cadastrados, são 804 instituições de ensino com parceria com a Imaginie, e a empresa obtém 5.046 professores certificados. As redações podem ou ser digitadas por alunos que se cadastram diretamente no site da empresa, ou manuscritas por alunos das instituições de ensino que têm parceria com a empresa. A Imaginie disponibiliza mais de 300 temas de redações para que os alunos pratiquem, e são corrigidas em até 24 horas. Essa correção é feita na plataforma online por professores e graduandos ou graduados no curso de Letras, que têm acesso. Além disso, são correções detalhadas, que apontam os erros e acertos de cada aluno, procurando um melhor desempenho para ele. Também, a cada texto produzido, os alunos recebem vídeo aulas com recomendações para a correção de textos. Desse modo, foram selecionadas algumas redações para serem usadas nesta pesquisa como objeto de análise, a fim de identificar a utilização dos pronomes demonstrativos.

ANÁLISE DE DADOS

Considerando as definições de pronome trabalhadas até aqui, verifiquemos então trechos de redações escritas por alunos pré-vestibulandos cadastrados na plataforma Imaginie. Os fragmentos escolhidos mostram as dificuldades dos estudantes em compreender e utilizar corretamente os pronomes demonstrativos em algumas situações, de acordo com a gramática normativa. Dessa forma, serão selecionados e analisados trechos que contenham o uso correto ou incorreto dos pronomes. Segue abaixo alguns desses trechos: (1) “Posteriormente, deve-se analisar os efeitos da obesidade no Brasil para entender a magnitude desse problema. De acordo com o ministério da saúde, cerca de 55,7% dos brasileiros se encontram acima do peso ideal. A maior preocupação, entretanto, são as consequências desse quadro, que pode acarretar diversas doenças, como bulimia, hipertensão, diabetes e muitas outras opções que levam a um fim trágico.”.

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No exemplo, é mostrado o pronome desse em duas frases. Na primeira, o emprego da palavra está correto, pois o pronome se refere aos “efeitos da obesidade”, o qual, no discurso, encontra-se próximo. Na segunda, o caso é o mesmo, já que o pronome se refere a algo já dito, isto é, ao “quadro dos brasileiros” os quais “se encontram acima do peso ideal. (2) "Torna-se evidente, portanto, a clareza das consequências da má alimentação e a necessidade de mudança dessa situação.".

O segundo exemplo possui um equívoco, pois o pronome dessa deveria ser corrigido por desta, visto que remete a algo próximo, no discurso, à “má alimentação” é algo que está relativamente ‘perto’ do que o pronome se refere, isto é, a “situação”. Outro exemplo é: (3) “No Brasil, boa parte da população depende da educação fornecida pelo governo, que na maioria dos casos é de baixa qualidade, devido a fatores como falta de financiamento, greves e má infraestrutura. Contudo, esta dependência vai além de somente o ensino, grande parte dos jovens e crianças da rede pública tem como única fonte de alimento garantido, fornecido pela instituição, dessa forma, a qualidade desses cardápios influenciam diretamente na vida de muitas pessoas.”.

O trecho acima demonstra, como anteriormente, um pronome utilizado de forma correta, e um de forma incorreta. O primeiro que foi mostrado, esta, está sendo utilizado de modo equivocado, de acordo com a gramática normativa, pois refere-se aos itens indicados na frase anterior, os quais a população possui uma certa dependência. Já o segundo pronome demonstrado, dessa, está de acordo pois remete à forma que foi falada previamente. Partindo para outro exemplo: (4) "Em janeiro de 1918, surgiu a gripe espanhola e foi até dezembro de 1920, essa gripe infectou 500 milhões de pessoas, um quarto da população mundial na época."

Temos aqui, o uso do essa de forma correta, uma vez que o pronome é sendo usado no passado em relação ao momento em que a pessoa fala, assim há uma diferenciação de tempo. Ademais, em uma redação intitulada: “Os desafios do necessário isolamento social em casos de pandemia no Brasil”, há a ausência de um pronome demonstrativo. Observe abaixo como o estudante iniciou seu texto: (5) “É indubitável a atual pandemia do novo coronavírus vivenciada no mundo e no Brasil. Visto que, é um vírus de alta disseminação na população.”.

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A correção feita foi: →“É indubitável a atual pandemia do novo coronavírus vivenciada no mundo e no Brasil, visto que esse é um vírus de alta disseminação na população.”.

Além dessa frase, no mesmo parágrafo há o uso do pronome nesse: (6) “E nesse contexto o isolamento social entra em vigor na tentativa de redução da propagação que tem atingido milhares de pessoas.”.

O uso da palavra nesse, funciona como um acerto para a gramática normativa, pois, no discurso, é utilizado para se referir a algo que já foi mencionado. Diferentemente do pronome neste, que seria para referenciar algo que ainda será mencionado. Alguns erros comuns dos pronomes invariáveis também podem ser observados em: (7) “É necessário conhecer as próprias limitações. Isto deve ser feito aos poucos.”. (8) “O Brasil sofre com a desigualdade social, que traz sequelas duradouras para a segurança e tem raízes na educação. Isto pode ser combatido com ações assistenciais.”.

Os pronomes demonstrativos isto e isso se diferem pela posição relativa ao substantivo que eles estão referenciando. Isto é algo que vêm depois, e isso é algo que já foi apresentado. Sendo assim, como ambos os pronomes nos exemplos (7) e (8) designam algo que foi mencionado antes, o correto seria utilizar o pronome isso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho foi realizar um estudo abrangente sobre o uso dos pronomes demonstrativos nas redações do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que têm grande influência no Brasil. O uso dos pronomes demonstrativos nas redações é de suma importância para a articulação do texto e também para a coesão textual. Tendo em vista que, ao fazer uma retomada do que foi dito ou, até mesmo, para falar de algo que ainda irá ser citado no texto, cada pronome tem seu devido uso e necessidade. Ainda existem muitos erros na articulação textual dos alunos do Ensino Fundamental e Médio. O primeiro passo do trabalho foi identificar e esclarecer os diferentes usos desses pronomes, para que se faça mais simples a compreensão dos mesmos nas redações coletadas.

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O segundo passo foi selecionar os trechos de mais importância para o estudo e analisá-los separadamente, reconhecendo os erros e justificando o porquê de cada um deles. A conclusão final é que, através da análise do uso desses pronomes, foi possível investigar suas características relevantes. Sendo assim, entendemos que um ensino produtivo dos pronomes demonstrativos em português deveria iniciar-se pela abertura do leque de possibilidades de uso desses pronomes nos mais diversificados contextos de produção, em específico, nesse caso, no contexto do ENEM. Faz-se necessário também, mostrar ao aluno as razões que conduzem o falante a seleções distintas, e salientar as alterações semânticas implicadas em cada escolha.

REFERÊNCIAS

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48. Ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2010. IMAGINIE; Imaginie. Belo Horizonte. Disponível em: https://www.imaginie.com.br. Acesso em: 24 abr. 2020. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo. Editora UNESP, 2000. SARMENTO, Leila Lauar. Gramática em textos. 1º edição. São Paulo, Editora Moderna, 2000.

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BAKHTIN, Mikhail (V. N. VOLOCHÍNOV). O discurso de outrem. In: BAKHTIN, Mikhail (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 150-160.

O DISCURSO DE OUTREM Tiago Almeida Assumpção

Tomamos como o objeto da nossa resenha o capítulo “O discurso de outrem”, do livro “Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem”, publicado em 1929 por Volochínov, um importante linguista que residia na antiga União Soviética e que foi responsável por diversas contribuições para o campo da crítica literária. Por meio deste livro, o autor critica as abordagens linguísticas no tempo em que produziu essa obra e sugere uma nova metodologia para o campo da linguística. No capítulo em questão, Volochínov nos traz uma discussão cujo tema central é o discurso citado. O autor começa o capítulo explicando o que é o “discurso citado”, dizendo que ele é mais do que um discurso dentro de um discurso: ele é um discurso sobre um tema construído pelo autor. Sendo assim, o discurso de outrem se torna parte de um discurso construído e de sua formação sintática, mantendo sua presença como um elemento integral da construção daquele que escolhe utilizá-lo. Com isso, o autor conclui que o discurso citado mantêm sua autonomia estrutural e semântica, sem causar alterações na trama linguística do contexto em que ele foi convocado. O linguista também aponta que é necessário analisar a oração citada na totalidade do discurso para uma compreensão efetiva, ao invés de considerá-la apenas como um tema do discurso. Para saber “o que dizia” o discurso citado, o autor aponta que é necessário transmitir suas palavras, sob a forma de discurso direto e indireto. Assim, a enunciação citada se torna em um tema do discurso narrativo. O conteúdo dessa enunciação possui um “tema autônomo”, por assim dizer, que, por sua vez, se torna o tema do enunciado que convocou sua entrada. Segundo Volochínov (2010), a enunciação do narrador que integra à sua composição uma outra enunciação, precisa elaborar formas de assimilar tal enunciação, associando-a com a sua própria unidade sintática, estilística e composicional, enquanto conserva a autonomia do discurso de outrem delimitando fronteiras composicionais entre os enunciados.

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Sobre o discurso indireto livre, Volochínov (2010) diz que é impossível uma diluição da palavra citada ocorrer no contexto narrativo pois o conteúdo semântico e a estrutura da enunciação mantêm uma estabilidade suficiente, evidenciando a presença da substância do discurso de outrem no discurso do enunciador. Em relação ao diálogo, o linguista explica que o diálogo é uma unidade real da língua, sendo realizada na fala, opondo à ideia de ser um ato individual e isolado. Ou seja, é uma relação interativa entre dois ou mais sujeitos enunciadores. A “recepção ativa do discurso de outrem” é fundamental para o diálogo. Ao ressaltar que a apreensão do discurso de outrem ocorria através da sociedade, que determina e “gramaticaliza” apenas os elementos da apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de outrem, Volochínov (2010) chama atenção de certas linhas de pensamento na linguística, que acreditavam que a apreensão do discurso de outrem se dava através de processos subjetivos-psicológicos. A língua é o reflexo das relações sociais estáveis dos falantes, logo, conforme a língua, a época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresentado e qual seja seu objetivo específico, podemos notar o domínio de ora uma forma de apreensão do discurso de outrem ora outra, ora uma variante ora outra. A forma dominante apreensão do discurso de outrem de dada sociedade em determinada época enfraquece a capacidade de apreensão ativa de outras formas de enunciação de outrem. Em seguida, Volochínov (2010) diz que os discursos direto e indireto não são os únicos meios de se apreender, de forma ativa, o discurso de outrem, embora esses discursos sejam “padrões” de acordo com as tendências sociais dominantes do discurso de outrem. Mas esses discursos foram padronizados de acordo com as tendências sociais dominantes da apreensão do discurso de outrem. Assim, essas formas se desenvolveram no âmbito da língua e, na medida em que esses esquemas assumiram uma forma e uma função, eles influenciaram o desenvolvimento das tendências da apreensão ativa apreciativa no meio social. Volochínov então prossegue, dizendo que tudo que é ideologicamente significativo tem uma impressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem, possui uma ampla variedade de palavras interiores. A palavra vem do exterior para ser apreendida no interior do sujeito. Essa, de acordo com ele, é a orientação ativa do falante. Volochínov, em seu texto, critica os pesquisadores que investigaram esse tema, mas separaram da análise do discurso de outrem o seu contexto narrativo. Para ele, o objeto verdadeiro da pesquisa deveria ser a interação dinâmica entre o discurso a transmitir, e aquele que serve para transmiti-lo. Em seguida, o autor apresenta duas orientações que ilustram como se dá a dinâmica da inter-relação entre o discurso narrativo e o citado. Para a primeira orientação dessa dinâmica, DISPOSITIVA, V.4, N.5, P. 1-89, 2º SEMESTRE 2020

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o autor toma emprestado de Heinrich Wöllflin, um crítico de arte suíço, o termo estilo linear (der lineare Stil). A tendência principal deste estilo é evidenciar os contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado. Nesta orientação, o autor se refere ao discurso direto e ao discurso indireto. Aqui, ele mostra alguns exemplos dessa orientação e de como ela se difere em determinado contexto histórico-social. O primeiro exemplo é derivado do francês medieval, no qual apenas o conteúdo do discurso de outrem é apreendido. O segundo, toma como objeto os documentos russos antigos, nos quais o discurso direto com sujeito não aparente são dominantes. Ele ressalta também que quanto mais a palavra de outrem for dogmática, isto é, quanto mais o discurso de outrem tomar uma verdade como absoluta e sem espaço para discussões, mais impessoais serão as formas de transmissão do discurso de outrem. Já na segunda orientação, observamos processos de natureza exatamente oposta. A língua elabora meios mais sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso de outrem. O autor chama esse estilo da segunda orientação de estilo pictórico. Nele, o autor pode romper os limites do discurso citado, buscando colocar nele suas entoações, seu humor, sua ironia, seu ódio, seu encantamento, ou seu desprezo. Ele segue dizendo que esse tipo é comum no fim do século XVIII e quase todo o século XIX, especialmente na França. Há um outro tipo de discurso narrado que o linguista comenta, em que a dominante do discurso é deslocada para o discurso citado, tornando-se mais presente e ativo que o contexto narrativo que o convoca. Esse tipo de narração é mais encontrado entre os autores que Volochínov chama de contemporâneos, como Dostoiévski, Andriéi Biéli, Remizov, Sologub entre outros. Para finalizar esse tópico de discussão, Volochínov (2010) ressalta que o discurso indireto livre é a forma mais efetiva de enfraquecimento das fronteiras do discurso citado. Chegando próximo à conclusão, Volochínov levanta novamente a importância de se determinar o peso específico dos discursos retórico, judicial, ou político na consciência linguística de um dado grupo social, numa determinada época. Além disso, ele nos informa sobre a relevância de levar sempre em conta a posição que um discurso a ser citado ocupa na hierarquia social de valores. Por fim, após ter resumido a sequência cronológica das tendências possíveis da interrelação dinâmica do discurso citado e do contexto narrativo, Volochínov (2010) conclui o capítulo dizendo que a língua só existe como enunciação em uma situação concreta. As formas e os métodos da comunicação são determinados pelas condições sociais e econômicas de cada época. As condições da comunicação sócio-verbais são mutáveis. Sendo assim, o autor defende

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que as formas pelas quais a língua registra as marcas do discurso de outrem se alteram no decorrer da história.

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