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A DIMENSÃO DISCURSIVA DA CRÔNICA JORNALÍSTICA DE ANTÔNIO PRATA
A DIMENSÃO DISCURSIVA DA CRÔNICA JORNALÍSTICA DE ANTÔNIO PRATA
RESUMO
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Anne Caroline de Oliveira Glicério Fabiana Camargo Laura de Sá Drummond
Este ensaio versa, a partir de uma perspectiva teórico-discursiva, sobre o gênero crônica jornalística. Para a corrente discussão, amparamo-nos nos estudos discursivos de Gregolin (2004) e Maingueneau (2001; 2015) para tratar especificamente da representação de diversos discursos em uma crônica do autor Antônio Prata. Trata-se de refletir sobre a contraposição entre os discursos ativistas e conservadores no gênero crônica jornalística e os possíveis efeitos de sentido provocados pela historicidade dos discursos.
Palavras-Chave: Crônica Jornalística; Discurso; Gênero.
INTRODUÇÃO
Neste ensaio, tem-se como objetivo compreender como são textualizados diferentes discursos do atual cenário brasileiro no gênero crônica jornalística. Tendo como base essa proposta, foi escolhida a crônica Pauta de Costumes, que se apresenta no jornal eletrônico Folha de São Paulo na coluna do escritor, cronista e roteirista Antônio Prata. Para alcançar o objetivo, organizamos o presente ensaio do seguinte modo: primeiramente, apresenta-se brevemente o gênero crônica. Em um segundo momento, procurase analisar os discursos presentes na crônica e os efeitos de sentido possíveis, dada a historicidade dos discursos. Para isso, ancoramo-nos na abordagem teórica de discurso de linha francesa do linguista Dominique Maingueneau e nas categorias por ele usadas para apresentar a noção de discurso, considerando que este é: “uma organização além da frase”, “uma forma de ação”, “interativo”, “contextualizado”, “assumido por um sujeito”, “regido por normas”, “assumido no bojo de um interdiscurso” e que “constrói socialmente o sentido” (MAINGUENEAU, 2001). Além disso, trouxemos as noções de interdiscurso, intradiscurso e de historicidade dos enunciados expostas por Gregolin (2004). Mais especificamente, pretende-se, com este ensaio, compreender e analisar quais são os discursos e efeitos de sentidos possíveis na leitura da crônica a ser analisada, provocados pela historicidade dos discursos, considerando que esses efeitos são causados pelos discursos em um determinado tempo histórico, isto é,
O GÊNERO CRÔNICA
o sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que são produzidas (PÊCHEUX, 1975, p.144).
A crônica, como gênero jornalístico, é considerada por muitos autores e cronistas como o mais brasileiro dos gêneros. Figurando entre o jornalismo e a literatura, permite ao narrador a liberdade de relatar um fato ou acontecimento do cotidiano juntamente a uma crítica social. Segundo Gregolin (2004):
O gênero exerce coerções e determina a produção e a interpretação de textos, pois em cada tipo de texto mudam-se os quadros de referência e, com eles, os pressupostos partilhados pelo enunciador e pelo enunciatário do discurso (GREGOLIN, 2004, p.7).
Assim, a crônica jornalística é um tipo de texto narrativo curto, geralmente produzido para meios de comunicação, por exemplo, jornais e revistas, em que são utilizados de temas da atualidade para fazer reflexões críticas sobre diversos assuntos. A respeito dessa questão, Gregolin (2004) afirma que o gênero associa uma configuração formal e um conjunto de elementos enunciativos, ligando o que é da ordem linguística e intradiscursiva ao que é histórico nas relações interdiscursivas para que construa os sentidos. Uma frase dita no cotidiano, inserida em uma crônica, possui uma função enunciativa diferente. É necessário constatar o quanto é amplo, flexível e indefinido o conceito e a caracterização do gênero crônica. No jornalismo, recebe a observação atenta da realidade cotidiana e, como literatura, tece-se na construção da linguagem, do jogo verbal, da ironia crítica etc. De acordo com Ritter (2009), a crônica cumpre com a função jornalística de entretenimento e é por isso que também apresenta uma natureza literária, pois o cronista recria um fato cotidiano por meio da leveza, da beleza, da poesia, da crítica, do humor. Assim, considera-se que esse caráter híbrido constitui a crônica. Deve-se levar em conta, também, que “o modo de transporte e de recepção do enunciado condiciona a própria constituição do texto, modela o gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2001, p.72). No texto em questão, os discursos são textualizados no gênero crônica jornalística e se apresentam em um jornal. O mídium ou, o suporte do texto, é o jornal eletrônico, que modela e constitui o gênero crônica jornalística. Dessa forma, como dito por Maingueneau (2001), "o mídium não é um simples "meio" de transmissão do discurso" ou “um
simples “meio”, um instrumento para transportar uma mensagem estável", pois, “uma mudança importante do mídium modifica o conjunto de um gênero de discurso. ” (p.71). Entretanto, em nosso ensaio, não será discutida de maneira detalhada a relação entre o gênero e o mídium.
A DISCURSIVIDADE NA CRÔNICA
A crônica “Pauta de Costumes”, escolhida como corpus para este trabalho, apresenta a contraposição entre dois discursos: o discurso ativista e o discurso conservador dito “como de costume”. A partir da produção de um enunciado por um enunciador, busca-se compreender na análise do discurso “como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto linguístico-histórico” (ORLANDI, 1994, p.114). Em nossa análise, operamos, principalmente, com a noção de discurso de Dominique Maingueneau. No texto escrito por ele, o linguista apresenta diversas características essenciais ao discurso, sobre as quais os estudos deste ensaio serão fundamentados. Para Maingueneau, discurso é definido como o “uso da língua”, unidade transfrástica, algo para além da frase e da palavra, os discursos são “submetidos a regras de organização vigentes em um grupo social determinado” e “as regras transversais aos gêneros que governam os relatos, diálogos em um grupo social determinado” (MAINGUENEAU, 2001, p.52). Ao tomar o corpus escolhido para análise, pode-se perceber que ele é submetido a um conjunto de regras que governam o gênero do discurso crônica jornalística no âmbito midiático. Além de “regras transversais aos gêneros”, ou seja, em regras ou máximas que circulam em nossa sociedade do que seja, por exemplo, considerado importante para um país, como o lugar que o discurso ativista ocupa em detrimento do discurso conservador. Mobilizando sentidos para os discursos que não são de natureza da frase, mas levando em consideração a historicidade dos discursos, determinados discursos da crônica “Pauta de Costumes” são mobilizados por grupos que possuem determinadas ideologias. Tais ideologias são questionadas e deslocadas pelo autor Antônio Prata. Um dos movimentos de deslocamento por parte do autor é quando ele traz a definição de costumes:
Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?! Acredito que mais da metade dos brasileiros elegeu um presidente com posições tão escancaradamente abjetas, em parte, por achar que os horrores ditos por ele durante três décadas estavam restritos ao tupperwarezinho dos “costumes” (PRATA, 2019).
Como efeito de sentido, há um atrito entre ideologias distintas, no qual é questionado o que determinado grupo diz como sendo pauta de costumes ou “diferençazinhas”. Prata, ao caracterizar o presidente como tendo posições “abjetas”, marca sua posição discursiva como contrária ao atual governo. É exposta a definição de costume como hábitos culturais no texto, o que não se aplica aos posicionamentos do atual presidente, de acordo com o autor. Maingueneau (2001) afirma também que o discurso é uma forma de ação, pois toda enunciação constitui um ato que visa a modificar uma situação. Esses atos elementares se integram em discursos de um gênero determinado, que visam a produzir uma modificação nos destinatários.
Na crônica analisada, os discursos se manifestam por meio do gênero crônica jornalística em suporte eletrônico. É estabelecida uma relação dialógica do enunciador com vozes sociais no texto, o que marca a posição discursiva do sujeito que escreve e do leitor, que pode ou não compactuar com o discurso “economia é importante, costume, não — eis o que costumamos pensar”. Nota-se, ainda, em “eis o que costumamos pensar”, que o comentário do locutor sobre sua própria fala perpassa pelo fio do texto, estabelecendo, assim, uma forma de ação sobre o destinatário ou o leitor do jornal Folha de São Paulo. É colocada em xeque a contradição entre o discurso liberalista na economia e conservador nos costumes, que, de acordo com o enunciador da crônica, configura-se como um “falso liberalismo.” Tais elementos buscam agir sobre o destinatário do texto, construindo sentidos de que não é apenas pauta de costumes o fato de milhares de mulheres serem agredidas todos os dias, de a homofobia ganhar a cada dia proporções maiores, de o feminicídio ter aumentado e de o racismo ser uma realidade que nos acompanha há séculos. Ainda, segundo Maingueneau (2001), o discurso é interativo, ou seja, toda enunciação é, de fato, marcada por uma interatividade constitutiva, o dialogismo. É uma troca, explícita ou implícita, com outros enunciadores, virtuais ou reais. Antônio Prata, na crônica, cita ditos que circulam em nosso meio social, estabelecendo-se, assim, uma relação dialógica com outros enunciados já ditos. Portanto, pode-se notar que a crônica analisada se constrói no contexto do dialogismo, de vozes sociais que se põem em contato (concordam, discordam, refutam),
todo enunciado, mesmo que seja escrito e finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta. Ele é apenas um elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais. Todo monumento continua a obra de antecessores, polemiza com eles, espera por uma compreensão ativa e responsiva, antecipando-a etc. (VOLOCHINOV, 2017, p.184).
Um exemplo desse movimento dialógico e seus efeitos de sentido no texto são quando observamos enunciados que circulam em nosso meio social pela boca de grupos com ideologias conservadoras, como “Ativismo é coisa de ecochato, de bicha louca, de feminazi, de Black
Power", os quais são refutados por discursos de ordem histórico-científico no texto do cronista, por exemplo, no enunciado:
Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma da Previdência. Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal. Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas (PRATA, 2019).
Nota-se que as vozes do texto se confrontam, determinados discursos são refutados, o que mostra a interatividade constitutiva no discurso de Prata. É interativo, pois pressupõe o enunciatário, antecipa as reações e constrói quais os efeitos de sentidos em seus enunciatários. Mesmo que o destinatário esteja ausente na constituição do texto, há a interatividade constitutiva em que “qualquer enunciação supõe a presença de outra instância de enunciação, em relação à qual alguém constrói seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2015, p.26). No caso da crônica em questão, é projetado o leitor do Jornal Folha de São Paulo, da coluna do escritor Antônio Prata. Pode-se afirmar, ainda, segundo Orlandi (19861 , apud GREGOLIN, 2004, p.4), que todo discurso é contextualizado, demonstrando a incompletude como discurso, porque se relaciona com outros textos, com a condição de produção ou com os interdiscursos. Os enunciados “Coisa importada dos Estados Unidos. Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor!”, que Antonio Prata evoca em seu texto, são proferidos em outro contexto, por exemplo, na boca do atual presidente da república. O deslocamento de tal enunciado para a crônica reconfigura o sentido do enunciado. Enquanto determinado grupo que possui uma posição ideológica concorda e reafirma esse discurso em detrimento da melhora da economia, a crônica de Antônio Prata vem reconfigurar os sentidos, refutando esses discursos e discordando deles.
1ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: algumas observações. In: DELTA, 2, n° 1, 1986.
No trecho a seguir, são evocadas as vozes de eleitores do presidente da república com o intuito de ironizar tais ditos:
Se ele vai fazer as reformas, qual o problema que não goste de gay? Se vai ter peru no próximo Natal, e daí ele dizer que não estupraria uma mulher por ela ser feia? Se asfaltarem a nossa rua, que que tem ele dar uma pescada em reserva ecológica? (PRATA, 2019).
O enunciado de Prata provoca efeitos de sentido, como a forma em que o discurso conservador circula em nossa sociedade com a tentativa de diminuir ou menosprezar os discursos ativistas, que são tratados como “pauta de costumes” por parte da sociedade brasileira e por uma ideologia política que cresceu nos últimos anos. Em contrapartida, ao analisar os discursos históricos-científicos assumidos no texto e que podem ser recuperados graças ao mídium em que é veiculado, a partir, por exemplo, de hyperlinks, busca-se mostrar a importante posição que os discursos ativistas assumem em nossa sociedade, tornando-se incoerente tomar a eles como coisa de ecochato, bicha louca, feminazi, Black Power ou simplesmente costumes. À vista disso, são produzidos efeitos de sentido no co-enunciador pela crônica. Um desses efeitos é de que esses discursos vistos como pauta de costumes têm uma influência diária e robusta na sociedade em que vivemos e que não devem ser considerados apenas como Pauta de Costumes, visto que, historicamente, formaram a nossa sociedade e exercem influências negativas sobre ela. Isso é explicitado, por exemplo, em:
Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente. Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras - e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude (PRATA, 2019).
A partir do que foi exposto, reafirma-se a tese de Maingueneau (2015) de que um discurso é considerado no bojo de interdiscursos, visto que o discurso que Antônio Prata assume na crônica só adquire sentido quando o co-enunciador ou leitor os relaciona (conscientemente ou inconscientemente) em uma rede interdiscursiva de uma série de outros discursos, sejam eles o discurso conservador, liberal, histórico, científico, feminista, antirracista, LGBT e outros.
Nesses interdiscursos, tem-se o lugar do confronto (Gregolin, 2004), pois, por meio do intradiscurso, a tessitura da crônica feita por Prata, há vários interdiscursos que se confrontam,
como o discurso ativista e o discurso conservador no costume e liberal na economia, e só podem ser entendidos se levados em consideração todos esses interdiscursos para além do que está escrito.
Assim, Prata (2019), ao enunciar “Enquanto escrevo o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual”, dialoga com a notícia desse estudante que foi agredido após sair de uma balada por ser homossexual, estabelecendo a contraposição de um discurso que considera a discussão sobre homofobia como “pauta de costumes” e que é confrontado por meio da notícia mostrando quais são as consequências de tratar a homofobia só como um costume. É importante destacar, ainda, segundo Maingueneau (2001), que todo discurso é assumido por um sujeito em determinado lugar e tempo (EU-AQUI-AGORA). A noção de discurso permite que o autor assuma determinada posição discursiva em objeção a outras. O sujeito autor indica no texto qual posição ele adota de acordo com o lugar que ocupa socialmente e tendo em vista o tempo em que escreve. Prata adota a posição de contrário ao discurso que trata assuntos importantes da nossa sociedade como pauta de costumes, questionando o discurso conservador, conduzindo o leitor a refletir sobre o discurso ativista. Assim, o escritor demonstra sua posição discursiva em meio a uma cadeia de discursos que circulam em nossa sociedade no tempo presente em que se deu a escrita da crônica: dia 29 de setembro do ano de 2019.
O sentido que cada leitor produz após a leitura da crônica é construído socialmente. Não é imanente a um enunciado e não é algo a ser decodificado. “Ele é continuamente construído e reconstruído no interior de práticas sociais determinadas. Essa construção de sentido é, certamente, obra de indivíduos, mas de indivíduos inseridos em configurações sociais de diversos níveis” (MAINGUENEAU, 2001, p.29). A depender da formação leitora e social que determinado sujeito possui, a leitura do enunciado analisado não será dada de forma estável e imanente. Será construída a partir da reflexão e da associação a uma série de outros discursos, ou seja, a historicidade dos discursos.
Para compreender o leitor, deve se relacionar com os diferentes processos de significação que acontecem no texto. Esses processos, por sua vez, são função da historicidade, ou seja, da história do sujeito e do sentido do texto, enquanto discurso. Sem esquecer que o discurso é estrutura e acontecimento (ORLANDI, 1994, p. 114).
Da mesma forma, Gregolin (2004), citando Pêcheux (1975a, p. 144), afirma que os textos da mídia são materialidades que se inscrevem na relação da língua com a história e só
são determinadas e ganham sentido pelas posições ideológicas no processo sócio-histórico em que são produzidas. Para Gregolin, a interpretação se daria, então, a partir das vozes emaranhadas no fio do discurso, as quais fornecem pistas históricas ao leitor. Por fim, reitera-se que falamos de “efeito de sentido”, pois aqui analisamos discursos antagônicos em relação ao que seria “Pauta de Costumes” e como determinados efeitos de sentido são mobilizados a depender da formação discursiva do leitor e/ou como se relaciona com os discursos de determinadas formações discursivas, aqui os discursos ativista e conservador. Dessa forma, a depender da posição ideológica que determinado leitor possui, a leitura do enunciado se dará de forma diferente. Nesse sentido, vale lembrar que, para Gregolin (2004), o discurso é histórico e polifônico e é por meio das vozes que se criam os diálogos que confrontam ou reforçam determinados sentidos em um momento histórico. Com a reflexão aqui proposta, foram reunidos de forma breve conceitos da Análise do Discurso aplicados à análise de um gênero jornalístico/literário. Tomar o texto como um objeto de leitura significa observar que o sujeito que enuncia e que é origem do dizer está implicado em determinada dinâmica social pela história. As falas desse sujeito que enuncia representam valores, ideologias e posicionamentos de determinado grupo social em um tempo histórico.
REFERÊNCIAS
GREGOLIN, Maria do Rosário. Os sentidos na mídia: rastros da história da guerra das cores. Linguagem: estudos e pesquisa, Catalão, v. 4-5, 2004. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/lep/article/view/32605. Acesso em: 28 de abril de 2020.
MAINGUENEAU, Dominique. A Noção de discurso. In: Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2015.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso, enunciado, texto. In: Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. Disponível em: https://www.academia.edu/7878437/127964024-MAINGUENEAUDominique-Maingueneau-Analise-de-Textos-de-Comunicacao-pdfAcesso em 25 de março de 2020.
MAINGUENEAU, Dominique. (2001). Mídium e discurso. In: Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez. Disponível em:https://www.academia.edu/7878437/127964024-MAINGUENEAUDominique-Maingueneau-Analise-de-Textos-de-Comunicacao-pdfAcesso em: 17 de março de 2020.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Texto e discurso. In: Gestos de Leitura, Ed. Unicamp, 1994. https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/genero_disc ursivo_cronica_um_estudo_do_contexto_de_producao.pdf. Acesso em: 18 de março de 2020.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: algumas observações. In: DELTA, 2, n° 1, 1986.
RITTER, Lilian Cristina Buzato. Gênero discursivo crônica: um estudo do contexto de produção. Disponível em: https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/genero_disc ursivo_cronica_um_estudo_do_contexto_de_producao.pdf. Acesso em: 14 de março de 2020.
VOLÓCHINOV, Valentin N. Língua, linguagem e enunciação. In: VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólvoka Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
ANEXO A – TEXTO ESCOLHIDO PARA A ANÁLISE
Pauta de costumes
Antonio Prata
Folha de S.Paulo, 29.9.19
Ativismo é coisa de ecochato, de bicha louca, de feminazi, de Black Power Quando ouço alguém dizer que é liberal na economia e conservador nos costumes, imagino um investidor do mercado financeiro cruzando a Faria Lima num cabriolé. Se for um bom
investidor, porém, certamente desconsideraríamos a charrete como uma pequena excentricidade: economia é importante, costume, não —eis o que costumamos pensar. Costumes são aquelas diferençazinhas pitorescas que aparecem de vez em quando em programas de perguntas e respostas da TV ou no papel da bandeja do McDonald’s. Finlandeses fazem sauna. Índios americanos sentam de perna cruzada. Na festa de São João come-se paçoca. Você sabia que até o século 19 as pessoas só tomavam um banho por semana?! Acredito que mais da metade dos brasileiros elegeu um presidente com posições tão escancaradamente abjetas, em parte, por achar que os horrores ditos por ele durante três décadas estavam restritos ao tupperwarezinho dos “costumes”. Se ele vai fazer as reformas, qual o problema que não goste de gay? Se vai ter peru no próximo Natal, e daí ele dizer que não estupraria uma mulher por ela ser feia? Se asfaltarem a nossa rua, que que tem ele dar uma pescada em reserva ecológica? Ah, fala sério! Vamos tratar do que importa! Vamos tratar do que importa. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança, 4,4 milhões de mulheres foram agredidas em 2016. A cada hora, foram 503.
Isso dá algumas dezenas de mulheres tomando porrada de seus maridos e namorados durante o tempo que você demora pra ler essa crônica. Mas machismo e feminismo, claro, são assuntos irrelevantes, são “pauta de costumes”. Apanhem em silêncio, por favor, mulheres, pois não estou conseguindo ouvir o debate sobre a CPMF.
Racismo, para nós, também é “pauta de costumes”. O país botou em prática, por 300 anos, o maior esquema de tráfico humano desde o Império Romano. Aboliu o esquema sem criar condição alguma para os ex-cativos terem uma vida decente. Cento e trinta e um anos depois da abolição, curiosamente, a elite do país segue majoritariamente branca, enquanto 75% das vítimas de homicídios são negras —e achamos meio exagerada essa insistência que alguns negros têm, ultimamente, nesse papo de negritude. Coisa importada dos Estados Unidos. Nada a ver com a malemolência futebol moleque da nossa democracia racial. Menos ideologia e mais incentivos ao empreendedor, por favor! Pensando assim, votamos neste que, uma vez eleito, prometeu “acabar com todos os ativismos”. E seguimos acreditando que ele não estava falando nada de importante. Ativismo é “pauta de costumes”. Coisa de ecochato. De bicha louca. De feminazi. De Black Power. Mimimi. Só nos importa a reforma da Previdência. Pois bem, aqui estamos. O feminicídio cresceu 44% no primeiro semestre, em SP. O desmatamento na Amazônia quase dobrou, no mesmo período. Ágatha Félix, de 8 anos, morta por um tiro de fuzil da polícia, no Complexo do Alemão, é a décima sexta criança baleada no Rio de Janeiro, em 2019. A quinta vítima fatal. Enquanto escrevo, o estudante Roger Possebom Júnior, de 22 anos, continua em coma depois de apanhar de seis pessoas, domingo passado, por ser homossexual. Caso venha a falecer, será mais um dos 500 mortos, a cada ano, pela homofobia. Um assassinato a cada 16 horas.
Pensando bem, nosso falso liberal não anda de cabriolé, mas de liteira. Os olhos em
Chicago, os pés em Daomé, trazendo as ideias mais modernas para eternizar o nosso atraso. Não chega a ser uma grande novidade. Este é, há meio milênio, um dos nossos mais arraigados
costumes.
Disponível em: {https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2019/09/pauta-decostumes.shtml}