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APRESENTAÇÃO

Laura de Sá Drummond Márcia Stefane Gomes Castro e Silva Palloma Tayná Landim Gontijo

Esta edição da Revista Dispositiva, de temática livre, reúne textos de linguística com diferentes abordagens e recortes, materializados em gêneros também variados: artigos, ensaios e resenha. Todos os autores que aqui, com prazer, compartilharam conosco dos seus estudos e pesquisas são alunos ingressos no curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Cada autor e cada texto tem sua individualidade discursiva, mas todos compartilham do mesmo desejo e paixão de caminhar pelas teorias linguísticas que tanto nos são fascinantes. À luz dos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade, frequente nos textos compreendidos nesta revista, passearemos pelo barroco e assertivas religiosas de Gregório de Matos, pelo realismo e discutida Capitu, de Machado de Assis, pelos cavalos de Luiz Ruffato, pelas polêmicas crônicas jornalísticas de Antônio Prata, pelas canções de Adriana Calcanhoto e pelas tirinhas de Mafalda. Nossa gramática não ficou de fora e também veremos na leitura dos textos aqui presentes a corriqueira dúvida na escrita de pronomes demonstrativos em redações. Referenciado em muitos dos textos que aqui estão, Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov e suas caras contribuições para a linguística ganha seu espaço único em uma resenha sobre o discurso do outro.

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Popularmente conhecido como Boca do Inferno, Gregório de Matos é corpus teórico do artigo de Talytha Cristina da Trindade e Victor Oliveira Aperecida. O ilustre nome da literatura barroca se apresenta, interessantemente, no texto Como se dá a evocação bíblica nos poemas religiosos de Gregório de Matos: uma análise à luz da intertextualidade, para compor, na verdade, um estudo linguístico sobre os traços de intertextualidade em três poemas de uma antologia do barroquista. Os poemas em estudo são de ordem religiosa e bebem em outros textos bíblicos, colocando em evidência a relação intertextual que ali se encontram. Também retomando os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade teorizados

por Ingedore Villaça Koch e Mikhail Bakhtin, Paula Woyames Costa Leite faz uma instigante análise intertextual entre o livro Amor de Capitu, de autoria do mineiro Fernando Sabino e Dom Casmurro, do realista Machado de Assis no artigo Relações de interdiscursividade e intertextualidade presentes na obra Amor de Capitu. São fundamentados na análise entre as obras, importantes conceitos que demonstram, segundo a autora, que “em todos os discursos

existem outros dizeres. Em todas as “vozes” existem outras ‘vozes’. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse. O discurso é sempre vinculado a outros.” . Contista, romancista e poeta mineiro, Luiz Ruffato compõe o corpus de estudo

intertextual no artigo A intertextualidade e o projeto literário de Ruffato, escrito por Isadora Barbosa da Silva e Lucas Daniel Ferreira. Os autores elencam dois fragmentos e as duas epígrafes do seu não convencional e premiado romance Eles eram muitos cavalos para compreender como o escritor, através dos processos intertextuais materializados em movimentos de alusão e referência, anuncia o seu projeto literário. Para alcançar o objetivo desse estudo, os autores voltam aos conceitos de Ingedore Villaça Koch e José Luiz Fiorin, reunindo ao arcabouço teórico um estudo de Ivete Walty e Raquel Junqueira Guimarães sobre a escrita de Ruffato.

A análise do discurso de linha francesa é a abordagem teórica do ensaio intitulado A dimensão discursiva da crônica jornalística de Antônio Prata, de autoria de Anne Caroline, Fabiana Camargo e Laura Drummond. Nesse trabalho, as autoras debruçaram sobre os possíveis efeitos de sentido provocados pela historicidade dos discursos na leitura do gênero crônica jornalística. São apresentadas, de forma concisa, as principais categorias teóricas usadas pelo analista de discurso Dominique Maingueneau, tendo como objeto da análise a crônica de um reconhecido cronista brasileiro que aborda questionamentos atuais e de grande relevância. Por fim, as autoras refletem sobre a formação leitora e discursiva dos possíveis interlocutores.

Outro convidativo artigo envolvendo as discussões acerca dos movimentos intertextuais é Vambora pro inverno, cariocas, da autoria de Roberto Carlos Gonçalves de Souza. De modo a fundamentar sua pesquisa, o autor recorre à autores como Ingedore Villaça Koch, Mikhail Bakhtin, José Luiz Fiorin, entre outros, para analisar a dialogicidade da linguagem presente em canções de uma das grandes vozes da MPB: Adriana Calcanhoto. As músicas que elucidam a atualização de discurso nessa envolvente análise do autor são “Inverno”, “Vambora” e “Cariocas”. Ainda no campo da Linguística Textual no que diz respeito aos eixos da intertextualidade e interdiscursividade, o artigo Como a intertextualidade e a

interdiscursividade são imprescindíveis na construção do humor nas tirinhas da Mafalda, da autora Maria Luísa Rodrigues Sousa, comtempla os teóricos Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e José Luiz Fiorin para analisar e discutir os discursos e enunciações contidas nas tiras de nossa querida personagem Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, popularmente conhecido como Quino.

Aspectos gramaticais da nossa singular língua portuguesa foram contemplados pelas autoras Bruna Motta Debarry, Caroline Machado Gomes e Gabriela Lapa Almeida Araujo, no artigo O uso dos pronomes demonstrativos em textos de pré-vestibular. Nesse texto, o leitor compreende a dificultosa e duvidosa aplicação desses pronomes que desafiam os estudantes na escrita de redações para pré-vestibular e em especial para o ENEM, avaliação tida como de maior relevância pela maioria dos pré-vestibulandos em nosso país. Para clarificar o assunto, as autoras recorrem às gramáticas normativas de Leila Lauar Sarmento e Domingos Paschoal Cegalla e, como fim de análise, tomam produções de alunos cadastrados na plataforma online de redação Imaginie. Para fechar nossa atual edição, contamos com um dos grandes pensadores do círculo bakhtiniano sendo resenhado por Tiago Almeida Assumpção. O capítulo O discurso de outrem, da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, torna-se objeto de uma síntese clara sobre os principais conceitos e ideologias vigentes do pensamento de Valentin Volochínov. Categorias como discurso citado, discurso direto e indireto são revisitadas para uma clara compreensão do leitor sobre a representação do discurso alheio. Como se percebe, os textos que formam o quarto volume da Revista Dispositiva entregam reflexões importantes para a área de linguística, produzidos por alunos ingressos do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. São evidenciadas as

diferentes frentes de reflexão contidas no ensaio, resenha e artigos, que podem ser de grande importância ao serem divulgadas para o público, visto que aprofundam o debate intelectual e teórico para novos olhares e perspectivas sobre o funcionamento da língua e da linguagem. Esperamos que a leitura seja instigante e de grande contribuição para estudos de iniciantes no percurso acadêmico-científico da área aqui contemplada.

Belo Horizonte, 30 de novembro 2020.

RELAÇÕES DE INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE PRESENTES NA OBRA "AMOR DE CAPITU"

Paula Woyames Costa Leite

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o livro intitulado “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino,e a relação de intertextualidade presente com a obra “Dom Casmurro” de Machado de Assis. A obra analisada se trata de uma releitura da obra de Machado de Assis que mantêm o enredo da obra base, apenas alterando o narrador e algumas expressões a fim de atualizar o discurso machadiano e possibilitar que o leitor chegue a uma conclusão da suposta traição de Capitolina (Capitu). A base teórica para a elaboração do artigo foram Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e Affonso RomanoSant’anna. Palavras-chave: Intertextualidade; Paráfrase; Alusão; Atualização do discurso; Citação.

INTRODUÇÃO

O presente artigo propõe uma análise teórica das relações de intertextualidade e de interdiscursividade presentes na obra “Amor de Capitu”, escrita por Fernando Sabino, em relação à obra de Machado de Assis intitulada “Dom Casmurro”. O livro a ser analisado, lançado no ano de 1998, é uma releitura da obra machadiana do ano de 1899e mantêm o enredo da obra inspiradora, alterando apenas o narrador e palavras para que as referidas se adequem ao tempo no qual a releitura é publicada. Além dessas alterações mencionadas, o autor também tem o objetivo de fazer com que o leitor possa chegar a uma conclusão da suposta traição da personagem Capitolina (Capitu), posto que ele, relendo a obra machadiana, não chegou a nenhuma. No próprio livro, Fernando Sabino deixa clara sua intenção ao reescrever a famosa história de Machado de Assis. Na página 228, no livro “Amor de Capitu”, Fernando Sabino diz que:

Ultimamente ando de novo intrigado com o enigma de Capitu. Teria ela traído mesmo o marido, ou tudo não passou de imaginação dele, como narrador? Reli mais uma vez o romance e não cheguei a nenhuma conclusão. Um mistério que o autor deixou para a posteridade. (SABINO, 2001, p. 288).

OBJETO DE ESTUDO

O objeto de estudo a ser analisado será o livro intitulado “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino no ano de 1998. A obra se trata de uma releitura da obra literária “Dom Casmurro”, de Machado de Assis escrita em 1899.

O artigo irá analisar os processos de intertextualidade presentes na composição de “Amor de Capitu”. O objetivo do estudo é analisar, por meio de explicações, a função discursiva a partir da presença do intertexto no texto em estudo, usando exposições de trechos das duas obras mencionadas de citações comparativas e que justifiquem afirmações feitas nesse estudo. Será analisado, também, em qual contexto e com qual finalidade o autor, Fernando Sabino, reescreveu a obra de Machado de Assis.

O artigo foi estruturado tendo como base teórica os estudos de Mikhail Bakhtin, Ingedore Villaça Koch e Affonso RomanoSant’anna para justificar os processos de intertextualidade presentes no estudo da obra como a paráfrase e alusão. De fato, os três linguistas citados apresentam conceitos certeiros em relação aos processos de intertextualidade presentes na obra de Fernando Sabino os quais embasam todo o estudo. O artigo pretende, por fim, comprovar a importância da intertextualidade e seus processos na composição de novas obras literárias e como elas são organizadas no tempo e contexto em que são escritas, sendo influenciadas por obras já feitas a anos ou séculos passados.

DESCRIÇÃO DO CORPUS

O corpus do artigo é constituído fundamentalmente pelo livro “Amor de Capitu”, escrito por Fernando Sabino no ano de 1998. Em relação à referida obra, será estudada a publicada pela editora Ática, 4aedição do ano de 2007, possuindo 295 páginas. Em sequência, será analisada a forma como o livro foi estruturado tendo como base a obra sob a qual foi inspirado: “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, escrito em 1899, lançado pela editora Garnier, no ano de 1992 que contêm 236 páginas.

ABORDAGEM TEÓRICA

Fernando Sabino tem como objetivo fazer uma releitura do romance entre Bentinho e Capitolina (Capitu) sem a presença do narrador em 1ª pessoa, que, no caso em questão, é o próprio personagem, Bentinho. Estruturando a história dessa maneira, o autor tenta dar mais espaço ao leitor para que se possa analisar de maneira mais subjetiva a tão suposta e famosa “traição” de Capitu, a fim de se chegar a uma possível conclusão sem as opiniões expressadas por quem o narra na obra machadiana.

Na capa do livro de Fernando Sabino, há o título e, abaixo, sobre o que ele irá falar. Há, também, a descrição: “Leitura fiel do romance de Machado de Assis sem o narrador Dom Casmurro”. Pressupõe-se, então, que o leitor conheça previamente a obra machadiana à qual a releitura faz alusão.

Segundo o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin (ano), em todos os dizeres existem outros dizeres, um discurso é sempre vinculado a outros. O discurso machadiano em “Dom Casmurro” será percebido na releitura de Fernando Sabino por meio de diferentes formas que manterão a essência da obra inspiradora. No caso da obra em pauta, um discurso narrativo irá apresentar marcas que são fundamentais para a autenticidade de um discurso introduzido a outro, pois transferem uma enunciação dita do domínio da construção linguística para o contexto desejado pelo falante. O autor, ao reescrever a obra de Machado de Assis, realiza uma paráfrase. Esse recurso de interpretação textual consiste na reformulação de um texto alterando e trocando algumas palavras e expressões originais da obra inspiradora para facilitar o entendimento do leitor e atualizar a obra ao tempo em que ela é reescrita. Porém, a ideia principal do texto base é mantida.

Quanto a essa alteração de palavras e atualização da obra machadiana, no capítulo “E BEM, E O RESTO?”, na página 233 de “Amor de Capitu”, Fernando Sabino diz que:

Algumas expressões idiomáticas da época, ou de flagrante herança lusitana, que pareciam desusadas ou mesmo chulas ao leitor de hoje, foram substituídas por vocábulos de sinonímia ou acepção equivalente que não trouxessem a marca do tempo – como “lábios” em vez de “beiços”,” rosto” em vez de “cara”, “é verdade” em vez de “é deveras”, “encabulado” em vez de “enfiado”, “estupefato” em vez de “estúpido”, “zombeteiro” em vez de “chocarreiro”, “raspado” em vez de “rapado”, etc. Só não me pareceu adequado substituir por “amante da própria esposa” o supramencionado “comborço”- feio substantivo que, segundo o dicionário, quer dizer “aquele que é amante de uma mulher em relação ao marido ou outro amante dessa mulher” (um pouco difícil de entender). Procurei moderar também o uso do ponto-e-vírgula, um tanto excessivo como recurso de estilo machadiano. (SABINO, 2001, p. 233).

Ao contrário de “Dom Casmurro”, em que o narrador é o personagem Bentinho (narrador em 1ª pessoa), Fernando Sabino estrutura sua obra sem sua a presença e, assim, tornao observador (narrador em 3ª pessoa). Logo, os diálogos entre narrador e leitor são suprimidos, e, fazendo isso, o autor expande a possibilidade de dúvidas e análises quanto à suposta traição de Capitu, posto já que, na obra machadiana, o leitor é levado a uma conclusão quase que imparcial por parte de quem narra os fatos.

Fernando Sabino foca no romance entre as personagens Bento e Capitu, alterando a posição de capítulos do livro para que a narrativa romântica fique linear. Ele dedica um capítulo final, o apêndice, intitulado “O CRONISTA DOM CASMURRO”, somente aos capítulos que contêm as interveniências e digressões do narrador, que são constantes na obra machadiana. Ressalta-se que não houve nenhuma alteração na estrutura desses capítulos quando reescritos, isto é, o autor apenas tenta organizar a estrutura do romance para que a leitura fique mais fluida. Encontram-se, ali, os capítulos “DO TÍTULO”, “DO LIVRO”, “TIO COSME”, “D. GLÓRIA”, “É TEMPO A ÓPERA”, “O ADMINISTRADOR INTERINO”, “O IMPERADOR”, “O SANTÍSSIMO”, “PANEGÍRICO DE SANTA MÕNICA”, “UM SONETO”, “CHAMADO”, “O DEFUNTO”, e por fim, “A POLÊMICA”. Anterior ao capítulo mencionado, há um cujo título é “E BEM, E O RESTO?”, em que se percebe clara a intertextualidade com o último capítulo de “Dom Casmurro” nomeado “É BEM, E O RESTO?”. Nesse capítulo, Fernando Sabino faz suas considerações finais acerca de sua releitura e o porquê de tê-la feito. Assim como Machado de Assis, na perspectiva de seu personagem Bentinho, o autor da releitura o usa para concluir sua obra: Fernando Sabino conclui seu livro e, Bentinho, a traição. Usando o mesmo título (entre aspas, visto que, há alusão à obra machadiana), Fernando Sabino coloca o sentido do título em questão e o deixa à deriva para outros usos e

interpretações. Ele dará voz para a personagem que cria em “Amor de Capitu”. Depois de analisados esses dois capítulos, analisar-se-á a estrutura da reescrita e releitura do romance entre os personagens. Um dos processos da intertextualidade presente na obra “Amor de Capitu” é a paráfrase. Esta ocorre quando existe uma “ligação” de um texto a outro que serve como alusão para a execução de um novo conteúdo, sobre o qual Sant’Anna (1985, pag. 24) afirma: “ocorre um jogo de diferenciação em relação ao texto original, sem que, contudo, haja traição ao seu significado”. Em sequência, define-se intertextualidade como: “os diálogos entre textos como relações de transtextualidade, a transcendência textual, tudo o que põe em relação ainda que “secreta”, um texto com outros e que inclui qualquer relação que vá além da unidade textual em análise.”(KOCH, 2003, pág 119). Os temas das duas obras irão pelo mesmo caminho, mesmo os autores sendo diferentes. Sant´ana, mencionado no texto do capítulo 6, “Intertextualidade – outros olhares”, da obra “Desvendando os segredos do texto” de Ingedore Koch, ainda diz que “a paráfrase é uma

reiteração de uma ideia e opera como uma intenção esclarecedora do texto-fonte, daí por que muitas vezes se manifesta de forma mais extensa que ele”. (KOCH, 2003, p 142). Koch (1997, pag. 46) afirma que a paráfrase “revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, retoma, alude, ou a que se opõe”. Ao construir um narrador em 3ª pessoa, o autor mantém a ideia central, isto é, do romance e da suposta traição, porém insere no texto o discurso indireto livre. Uma vez que o narrador é deslocado à terceira pessoa, o que não existe na obra base, uma vez que o narrador é em 1ª pessoa, faz-se com que a história seja contada por um ponto de vista único. Para mais, a mudança de capítulos e palavras confere à obra estatuto de atualizada, estando em consonância com a linguagem atual. Para Bakhtin, o discurso indireto livre é uma variação do discurso indireto e:

tem uma tendência inerente a transferir a enunciação citada do domínio da construção linguística ao plano temático, de conteúdo. Entretanto, mesmo assim, a diluição da palavra citada no contexto narrativo não se efetua, e não poderia efetuar-se completamente: não somente o conteúdo semântico mas também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis, de tal forma que a substância do discurso do outro permanece palpável, como um todo auto-suficiente. Manifesta-se assim, nas formas de transmissão do discurso de outrem, uma relação ativa de uma enunciação a outra, e isso não no plano temático, mas através de construções estáveis da própria língua. (BAKHTIN, 1990, p. 148).

Para perceber essas mudanças e a presença dos recursos textuais mencionados, apresenta-se um trecho retirado do livro “Amor de Capitu” e o mesmo trecho retirado de “Dom Casmurro”: TRECHO 1, pág. 19, “Amor de Capitu”:

Com que então ele amava Capitu, e Capitu o amava! Realmente andavam sempre juntos, mas não lhe ocorria nada que fosse secreto entre os dois. Antes de ela ir para o colégio, eram só travessuras de criança; depois que saíra do colégio, é verdade que não haviam restabelecido logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco e no último ano fora completa.

TRECHO 2, pág. 33, “Dom Casmurro”:

Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa.

No 1º trecho, percebe-se o discurso indireto livre ausente no 2º trecho. Nota-se, também, a mudança de palavras na obra reescrita. A palavra “mocetona” em especial chama a atenção quando se lê “Dom Casmurro”, posto que se refere à Capitu. Em “Amor de Capitu”, Fernando Sabino a substituirá pela expressão uma “moça e tanto”. Apresenta-se, aqui, o trecho na página 157, de “Amor de Capitu”, em que há a alteração da palavra e, em seguida, o trecho original da obra machadiana, situado na página 174:

“Moça e tanto” era vulgar. José Dias achou coisa melhor a dizer. Foi a única pessoa que os visitou na Tijuca, levando abraços dos parentes e palavras suas (..) (AMOR DE CAPITU, 1998, p. 157). “Mocetona era vulgar; José Dias achou melhor. Foi o único a nos visitar na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas (...)” (DOM CASMURRO, 1899, p. 174).

Quanto a essa mudança de palavra, Fernando Sabino diz que:

Quanto a ser ela chamada de “mocetona”, não achei a palavra apenas vulgar, como qualificou José Dias, mas grosseira sugestão eufônica de uma parte da anatomia feminina. Em vez de substituí-la por “mulherão”, ou equivalenteemenda pior do que o soneto-, preferi respeitar a eufonia com uma expressão de significado semelhante: uma “moça e tanto”. (AMOR DE CAPITU, 1998, p. 234).

Além da paráfrase, a alusão também está presente na releitura de Fernando Sabino. No que diz respeito a esse recurso, Koch, citando Cavalcante, diz que:

Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não dito. (cf. Cavalcante, 2006: 5) (KOCH,1997, p. 127).

Koch, quanto a alusão, também afirma que:

Na alusão, não se convocam literalmente as palavras nem as entidades de um texto, porque se cogita que o co-enunciador possa compreender nas entrelinhas o que o enunciador deseja sugerir-lhe sem expressar diretamente. (KOCH, 1997, p. 127).

A alusão se faz por meio da suposição e percepção do co-enunciador: espera-se que haja o reconhecimento do texto-fonte que foi introduzido na obra lida. O enunciado supõe a percepção de uma relação entre ele e outro ao qual remete tal ou tal de suas inflexões, que só são reconhecíveis para quem tem conhecimento do texto-fonte.

CONCLUSÃO

Todo o processo de construção de uma nova obra literária é influenciado diretamente por discursos já ditos em outros tempos: não há discursos homogêneos. Segundo o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, em todos os dizeres existem outros dizeres, um discurso é sempre vinculado a outros. Para o estudioso:

O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. (BAKHTIN, 1929, p. 150).

Em todos os discursos, existem outros dizeres. Em todas as “vozes”, existem outras “vozes”. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse. O discurso é sempre vinculado a outros. Logo, ao trazer o discurso do outro para um determinado enunciado em um contexto específico, há a apropriação deste ao modo de quem o irá fazer. Porém, tal fato não faz com que a essência do discurso incorporado seja perdida, fato demonstrado por Fernando Sabino ao realizar uma paráfrase em seu livro tendo como base a obra machadiana. O discurso que foi introduzido será percebido por meio de diferentes formas que manterão tal essência.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem, 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 1990.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. Ed. Contexto,1997.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. 168p.

SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e CIA. Série Princípios, 2ª ed. Ed. Ática, 1985.

SABINO, Fernando. Amor de Capitu, 4ª ed. Ed. Ática, 2007.

DE ASSIS, Machado, Dom Casmurro, 2ª ed. Ed. Garnier, 1992.

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