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COMO A INTERTEXTUALIDADE E A INTERDISCURSIVIDADE SÃO IMPRESCINDÍVEIS NA CONSTRUÇÃO DO HUMOR NAS TIRINHAS DA MAFALDA

COMO A INTERTEXTUALIDADE E A INTERDISCURSIVIDADE SÃO IMPRESCINDÍVEIS NA CONSTRUÇÃO DO HUMOR NAS TIRINHAS DA MAFALDA

Maria Luísa Rodrigues Sousa

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RESUMO

A intertextualidade e a interdiscursividade constituem dois temas de estudo da Linguística Textual e se fundamentam na ideia de que um texto não se materializa como discurso primário, mas sim a partir de outros discursos e outras enunciações anteriores. O corpus de análise deste estudo são as tiras da personagem Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino. Tratam-se de narrativas humorísticas com um tom crítico que recusa o mundo como ele é e se apresenta a partir de duas linguagens: a verbal e a não-verbal, ambas importantes para a compreensão da tira. Percebe-se que o intertexto está presente em várias tiras da Mafalda, de diversas formas: alusões a personagens bíblicos, a pessoas famosas e ao contexto histórico vivido pela personagem (ditadura e guerra no Vietnã), envolvendo o receio aos chineses e a crítica ao discurso socialista. O universo da Mafalda não é apenas o de uma América Latina urbana e desenvolvida, mas de um universo latino, em meio a uma ditadura, o que a torna mais verossímil do que muitos personagens de quadrinhos norteamericanos. Para atingir o humor a partir da leitura do quadrinho, o leitor deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva, pois se isso não ocorrer a construção do sentido de humor da tira estará prejudicada.

Palavras-chave: Intertextualidade; Interdiscursividade; Mafalda; Narrativas humorísticas.

INTRODUÇÃO

No dicionário, o conceito de intertextualidade é: qualidade do que é intertextual, relação entre dois ou mais textos (AURÉLIO, 2018). Nesse sentido, entendemos que a criação de um texto se dá a partir de outro pré-existente, podendo haver uma referência explícita ou implícita de um texto em outro. Também pode ocorrer com outras formas além do texto verbal, como em: músicas, pinturas, filmes e novelas. Toda vez que uma obra faz alusão à outra, ocorre a intertextualidade.

Por outro lado, a interdiscursividade é a relação entre discursos, cujo sentido de um discurso é produzido, retomado ou complementado por outro. Um grande estudioso dessa área é Mikhail Bakhtin2 e seu livro “Marxismo e filosofia da linguagem”, escrito ao final do século de 1920, faz parte dos fundamentos das mais atuais teorias textuais e semióticas3. No capítulo

2 Bakhtin foi um pesquisador da linguagem e seus escritos inspirou trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições: o marxismo, a semiótica, estruturalismo, a crítica religiosa; e em disciplinas tão diversas como a crítica literária, história, filosofia, antropologia e psicologia. É criador de uma nova teoria sobre o romance europeu, incluindo o conceito de polifonia em uma obra literária. Bakhtin é autor de diversas obras sobre questões teóricas gerais, o estilo e a teoria de gêneros do discurso. Ele é o líder intelectual de estudos científicos e filosóficos desenvolvidos por um grupo de estudiosos russos, que ficou conhecido como o "Círculo de Bakhtin". 3 Estudo da construção de significado, o estudo do processo de signo (semiose) e do significado de comunicação.

9 da obra, denominado “O discurso de outrem”, o autor inicia falando sobre o discurso de outro e afirma que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”. (BAKHTIN, 1929, p. 150). Ou seja, em todos os discursos existem outros dizeres, em todas as “vozes” existem ecos de outras “vozes”. Em outras palavras, trazemos para o nosso discurso o que o outro disse, uma vez que o discurso está sempre vinculado a outros: não existe um “adão do discurso” que discursa sobre algo como autor integral. Neste artigo, será analisado como a intertextualidade e a interdiscursividade são imprescindíveis na construção do humor nas tirinhas da Mafalda, do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino. Farão parte do corpus sete tirinhas da

personagem, retiradas do livro “Toda Mafalda”, publicada em 2010 pela editora Martins Fontes, que reúne todas as tirinhas publicadas do objeto analisado, que foram publicadas entre 1964 e 1973. Essas tiras foram traduzidas para diversas línguas, ficando mundialmente conhecidas e apresentam uma linguagem crítica e por vezes de difícil compreensão. As narrativas humorísticas de Mafalda são compostas pela relação entre dois códigos: a linguagem verbal, representada pelo texto escrito, e a linguagem visual, representada pelas imagens. Ambas são de extrema importância para o entendimento das histórias em quadrinhos. Em várias tiras da Mafalda encontramos alusões à personagens bíblicos, pessoas famosas, ao contexto histórico vivido pela personagem (ditadura e guerra no Vietnã) e o receio aos chineses e a crítica ao discurso socialista, ou seja, intertextualidade. Para que o leitor atinja o humor a partir da leitura do quadrinho, ele deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva pois, caso contrário, não será possível a construção do sentido do texto. Portanto, os objetivos específicos da análise serão: identificar a presença da intertextualidade e interdiscursividade em sete tirinhas da personagem Mafalda, compreender como o discurso da personagem Mafalda funciona através da intertextualidade, analisar como ocorre a introdução do interdiscurso e intertexto na tirinha (verbo antecedente, dois pontos, etc.) e, por fim, entender como o leitor deve ser capaz de reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto-fonte em sua memória discursiva para que haja a construção do humor presente na tira. Como um aporte teórico, será utilizado o conceito de intertextualidade proposto por Koch (2009) a partir dos estudos de Bakhtin, que trata da presença de textos anteriormente

produzido pertencentes à memória social de uma coletividade ou à memória discursiva dos interlocutores.

Em cada uma das tirinhas a intertextualidade se apresenta de uma forma distinta para que seja construído o humor. Visto que a intertextualidade é um tema amplo e se apresenta de diversas formas em cada tirinha, será compreendido como se comporta cada tipo de movimento intertextual identificado.

A importância da intertextualidade na construção do humor nas tirinhas da Mafalda foi escolhida para ser analisado devido às constantes transformações que vivemos, tanto no contexto pessoal, quanto no social. O contexto se modifica e, por isso, quando revemos velhos quadrinhos ou charges, podemos não compreender, em algumas das vezes, a intenção e o humor desses textos. Portanto, é importante a reconstrução desse contexto por meio das relações intertextuais, mesmo afastado temporalmente do acontecimento citado. Assim que entendido o que está implícito no movimento intertextual, surgirá o humor. Se o leitor não identifica o que foi utilizado do texto fonte, o efeito de sentido não é provocado. Ademais, entender uma tirinha não é apenas lê-la mecanicamente, mas também interpretá-la, e a interpretação demanda um trabalho extra do interlocutor que é perceber naquele texto outros discursos, de onde são e qual o objetivo do que está sendo dito no texto, enquanto que a leitura demanda apenas a compreensão das frases e ideias. A última é basilar, mas não suficiente para a interpretação, pois esta depende do que podemos concluir sobre o que está escrito no texto, o modo como interpretamos o conteúdo. Ademais, na interpretação, há o trabalho com a subjetividade, como que o sujeito entendeu sobre o texto. Os textos podem até permitir mais de uma leitura, mas sempre haverá “a certeira”, uma que o autor pretende que o leitor faça. A crítica política pode ser transitória, por exemplo, por explorar características específicas de determinados políticos ou etapas de um governo, como passa Mafalda. Sendo assim, as tiras analisadas exemplificam como a compreensão depende da intertextualidade e é essa a importância do estudo. Para que os objetivos sejam atingidos, este trabalho será dividido em cinco partes: referencial teórico, reunindo discussões já realizadas por outros autores sobre o tema, descrição e análise do corpus e por fim, as considerações finais.

REFERENCIAL TEÓRICO

Neste artigo, constam ideias difundidas por Bakhtin, Koch e Fiorin, pensadores que analisaram, discutiram e, por fim, contribuíram na construção conceitual do tema geral analisado: intertextualidade e interdiscursividade.

Segundo Bakhtin, nosso discurso é dialógico. Isso significa que o homem é um sujeito inexistente fora da relação com o outro em que se realiza na linguagem e que todo discurso concreto presente nos diferentes âmbitos sociais nunca é completamente novo, pois contém sempre resquícios de outros discursos. Mafalda, uma personagem inserida no contexto sociopolítico da Argentina no período entre 1964 e 1973, evoca discursos de outrem. Em seu livro denominado “Desvendando os segredos do texto”, Ingedore Villaça Koch recupera os estudos de Gérard Genette a fim de contribuir para a discussão acerca da intertextualidade:

Genette tratava, de modo geral, os diálogos entre textos como relações de transtextualidade, a transcendência textual, tudo que põe em relação, ainda que “secreta”, um texto com outros e que inclui qualquer relação que vá além da unidade textual de análise. O autor subclassificou as transtextualidades em cinco tipos, dentre eles aquilo que chamou de intertextualidade “num sentido reduzido”. (GENETTE apud KOCH, 2003, p. 119)

Os cinco tipos de intertextualidade se encontram no capítulo 6 do livro “Intertextualidade outros olhares”, em que Koch (2003) elenca exemplos dos diferentes tipos de

intertextualidade, que podem se resumir em:

1.

Intertextualidade: marcada/restrita (citação, alusão, plágio); intertexto alheio/intertexto

2.

3.

4.

próprio; enunciador genérico Paratextualidade

Metatextualidade

Arquitextualidade

5.

Hipertextualidade: hipertexto; hipotexto; paródia; pastiche; travestimento burlesco. Para Bakhtin, o discurso literário não é um sentido fixo, mas um cruzamento de outros diálogos, outros textos, cada texto é uma absorção e transformação de outro texto. Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem. A partir disso, está entronizada a noção de intertextualidade como procedimento

real de constituição do texto. Barthes define o texto como algo pronto e acabado que carrega a verdade, como observamos em sua definição:

O texto é uma arma contra o tempo, o esquecimento, e contra as velhacarias da palavra, que, muito facilmente, volta atrás, altera-se, renega-se. A noção do texto está, portanto, historicamente ligada a todo um conjunto de instituições: direito, igreja, literatura, ensino; o texto é um objeto moral: é o que está escrito, enquanto participa do contrato social; ele assujeita, exige ser observado e respeitado; mas em troca confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência ela não tem): a segurança. (BARTHES apud FIORIN, 2006, p. 164)

Nessa mesma vertente, Fiorin afirma que o texto é uma produtividade; é o teatro do trabalho com a língua, desconstruindo e reconstruindo. A língua não tem estabilidade e o texto é inacabado. O mesmo pode se dizer sobre Mafalda: seus textos e seu humor são inacabados. Segundo Bakhtin (1965, p. 68), “todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis”. A intertextualidade é a maneira real de construção do texto. Por outro lado, a interdiscursividade é a relação entre discursos, cujo sentido de um discurso é produzido, retomado ou complementado por outro. Podemos afirmar, portanto, que em todos os discursos existem outros dizeres, em todas as “vozes” existem ecos de outras “vozes”. Trazemos para o nosso discurso o que o outro disse, pois o discurso está sempre vinculado a outros. Sendo assim, não existe um “adão do discurso” que discursa sobre algo como autor integral. Mais uma vez, a personagem Mafalda não surge em cena “criando” nada, mas sim ecoando outras vozes. E de quem é essa voz que ela ecoa? A língua é um reflexo das relações sociais dos falantes, da sociedade, do tempo, dos grupos sociais e costumes. Os esquemas linguísticos têm a função de isolar o discurso citado para protegê-lo das entonações próprias do autor e impedir suas influências sobre o discurso citado. Segundo a teoria de Bakhtin, o falante traz para o seu discurso o que outro disse. Contudo, o discurso está vinculado a outros discursos. Trazer para um texto uma citação é trazer uma rede de sentidos de onde a citação foi tirada. Por exemplo, se em um discurso há a frase “lugar de mulher é na cozinha”, o falante não está apenas trazendo essa frase à tona, mas toda a universo discursivo machista em que a projeção da imagem da mulher tem sido caracterizada historicamente, socialmente e culturalmente como submissa. Apoiado a um regime patriarcal, em que a figura masculina representa a liderança, a ideologia do machismo está impregnada nas raízes culturais da sociedade há séculos, em todas as esferas econômicas, políticas, midiáticas, familiares e religiosas.

DESCRIÇÃO DO CORPUS

O corpus de pesquisa é constituído por sete tirinhas da personagem Mafalda do desenhista Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, retiradas do livro “Toda Mafalda”, publicada em 2010 pela editora Martins Fontes, que reúne todas as tirinhas publicadas da personagem Mafalda entre o período de 1964 a 1973. Mafalda é uma personagem que nasceu na Argentina, onde uma ditadura havia se instalado. Criada em 1963 para estrelar um comercial de eletrodomésticos, Mafalda deveria ter o nome com “Ma”, essa era a exigência que a empresa impunha a Quino. A campanha publicitária não vingou, mas a personagem está viva até hoje. No total, são 1.928 tirinhas publicadas em nove anos de publicação. Nas tirinhas é fácil observar o quadro político em que se encontrava o país e o mundo. Mafalda não se intimida com isso e questiona o que pode e como pode. Outros personagens do universo de Mafalda são: Manolito, um menino plenamente integrado num capitalismo de bairro e absolutamente convencido de que o valor essencial no mundo é o dinheiro; Filipe, o sonhador tranquilo; Susnita, a doente de amor maternal perdida em sonhos pequeno-burgueses; e, por fim, os pais de Mafalda, resignados, que aceitaram a rotina diária vencidos pelo tremendo destino que fez deles os guardiões da Contestadora. A menina é crítica e questionadora, mas cheia de compaixão e ternura pelos outros e pelo mundo onde vive, que considera extremamente doente. Por isso, no globo que usa para estudar geografia em casa, põe esparadrapos: para curar as feridas que ele tem. Antes de tomar medidas curativas para a doença do planeta, Mafalda se preocupa com ele. A garota ainda dialoga com o rádio que veicula notícias as mais preocupantes: guerras e conflitos de todos os tipos.

Ao longo das histórias, o público percebe que Mafalda é uma garota com o olhar perspicaz e filosófico de um adulto, sempre preocupada com o futuro do mundo, a se perguntar sobre as incoerências da vida. Apesar da inteligência e do sarcasmo, ela ainda tem dúvidas e sentimentos de criança. Isso a torna encantadora de uma forma única. Ao mesmo tempo que critica a relação dos Estados Unidos com a América Latina, como adulto, acha que, por morar na Argentina, está de cabeça para baixo no mundo — como pareceria razoável a uma criança que olhasse o globo terrestre. O público infantil pode se identificar parcialmente com ela. Mafalda tem a alma irônica de um adulto.

O processo de análise do corpus consistiu em: leitura inicial de todas as tirinhas da personagem estudada e observação de quais tirinhas contavam com a presença da intertextualidade de forma mais clara; segunda seleção, pois foram identificadas mais de sete

tirinhas; análise do geral da cena seguida de maior detalhamento; análise de como a intertextualidade se apresenta e como constrói o humor.

ANÁLISE DO CORPUS

Iniciaremos neste item a análise de sete tiras da personagem Mafalda, criada por Quino e publicadas entre 1964 e 1973, na Argentina. Como já dito anteriormente, as tiras para análise foram retiradas da obra “Toda Mafalda” de Lavado (2010). Serão consideradas tiras que contenham intertextualidade, além de outros fatores que podem auxiliar na compreensão das tiras para produzir o humor, como o conhecimento prévio e as inferências. Não se pretende esgotar aqui as possibilidades de análise das tiras em questão no que se refere à intertextualidade, mas mostrar algumas formas de interpretação dentro dos conceitos propostos neste estudo.

Tira 1 – Alusão

No primeiro quadrinho dessa tira, vemos a personagem Mafalda brincando e, ao receber uma ordem de sua mãe, vai lavar as mãos. Ao comentar as ordens que recebe diariamente de sua mãe em relação à lavagem das mãos, faz alusão a um personagem histórico: Pilatos. Essa intertextualidade presente na tira (alusão) trata-se de uma rápida menção a algo ou alguém quem, no caso da tira, está presente no sexto quadrinho, na fala de Mafalda: “que fixação em Pilatos, hein!”. Assim, para não haver prejuízo no entendimento da tira, é necessário que o leitor relacione a ordem de lavar as mãos, dada pela mãe, com a frase dita por Pôncio Pilatos no momento da condenação de Jesus. O intertexto bíblico se refere ao momento em que Pilatos lavou as mãos se isentando da culpa pela condenação e morte de Jesus Cristo.

A frase “lavar as mãos” ficou popularmente conhecida e é empregada quando a pessoa quer demonstrar que já não pode ou não quer fazer mais nada diante de um problema, dizendo “lavo as minhas mãos”. Porém, o jogo intertextual não é tão fácil de ser percebido. Apesar de o autor ter se referido explicitamente ao nome de Pilatos para que o leitor possa perceber a intertextualidade, é necessário não só saber quem foi Pilatos, um dos responsáveis pela condenação de Jesus. É preciso também se reportar à ação realizada por Pilatos ao lavar as mãos diante da condenação de Jesus. Dessa forma, o conhecimento prévio do texto é importante, pois se o leitor não tem esse conhecimento ficará difícil reagir ao efeito de humor

no texto.

Tira 2 – Intertexto próprio

Essa tira é constituída por apenas um quadro, em que a personagem Mafalda está sentada à mesa, com um prato de sopa e de outro alimento enquanto exclama: “A sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia!”. Aqui, a personagem demonstra não gostar de sopa e a compara com o comunismo de modo a construir a sua crítica e, para que a crítica seja entendida como negativa, é necessário observar a linguagem não-verbal da tira. A intertextualidade presente é classificada pela linguista Koch como “intertexto próprio”, isto é, a “retomada de segmentos de textos próprios do enunciador, uma espécie de autotextualidade” (2004, p. 127), uma espécie de memória discursiva. Nesse sentido, para que não haja um “ruído” no entendimento do humor da tira, o leitor deve trazer como conhecimento prévio que Mafalda não gosta de sopa, uma das características intensas da personagem. Indo um pouco além do quadrinho, a mãe de Mafalda representa uma figura de autoridade, insistindo a garota a comer para o seu “próprio bem”. Quino em uma entrevista para Rodolfo Bracel, em abril de 1987, em Buenos Aires, afirma que “a cena da sopa

é dada por uma autoridade a despeito da vontade do povo, era uma figura que representava a repressão, o repúdio ao governo vigente” (por isso a figura de autoridade materna). Dessa forma, quando Mafalda fala da sopa é construída uma analogia contra tudo aquilo imposto sem negociações. Logo, ela compara a sopa, que era imposta a ela, como o comunismo era imposto à democracia. Mafalda coloca o comunismo e a democracia em situação de antagonismo. A sopa é então uma metáfora desenvolvida por Quino para representar a violência contra a liberdade. Para Mafalda, o comunismo é uma violência contra a democracia

(que é, para a personagem, a liberdade). Diante do exposto, fica evidente que o leitor não entenderá a tira se não entender o contexto político e social que a tira foi escrita e as características da personagem.

Tira 3 – Alusão

A tira de número 3 é iniciada pela conversa da Mafalda com seu amigo Miguelito, enquanto ambos estão na praia observando o sol. Ela diz a Miguelito que o sol que os ilumina é o mesmo que iluminou Lincoln, Rembrandt, Bolívar e Cervantes. Essas quatro pessoas as quais ela se refere são grandes nomes da história. Lincoln foi presidente dos Estados Unidos e liderou o país de forma bem-sucedida contribuindo também para a abolição dos escravos. Rembrandt foi um pintor neerlandês e um grande nome da arte europeia. Bolívar é considerado um herói na América Latina que contribuiu para a independência da América Espanhola. Por fim, Cervantes, foi um romancista, dramaturgo e poeta espanhol, cujo trabalho resultou na obra prima mundialmente conhecida “Dom Quixote”. Essas pessoas têm em comum o fato de terem feito grandiosidades e serem vistas de forma positiva pela sociedade em geral, recebendo a admiração de Mafalda que se sente lisonjeada por ser iluminada com o mesmo sol que eles. No terceiro quadrinho, acontece a quebra de expectativa introduzida por Miguelito ao mencionar uma figura também conhecida de nossa história, mas não em sentido positivo como

as citadas por Mafalda. Miguelito fala de Mussolini, um político italiano unido ao fascismo. É uma figura negativa por fazer parte de um regime de extrema direita ligado à censura e ao autoritarismo. Assim, Mafalda se espanta e sai correndo, mas antes parece empurrar ou golpear Miguelito, que aparece no último quadro caído com as pernas para cima na beira do mar. Indicado pelo balão de pensamento, o menino, como que querendo se justificar por ter citado Mussolini, lembra que o avô contava maravilhas sobre ele. A intertextualidade está presente desde o primeiro quadrinho, quando Mafalda faz uma alusão explícita com o nome das pessoas, mas o que elas fizeram no passado fica implícito. Aqui, o sentido e o humor só poderão ser alcançados a partir do conhecimento prévio do que essas pessoas fizeram no passado.

Tira 4 – Citação

Nessa tira, Susanita, amiga de Mafalda, está sentada aparentemente no chão de uma sala lendo um livro. Nos dois primeiros quadrinhos ela lê “viemos do pó e ao pó voltaremos”. Em seguida, no terceiro quadrinho, ela exclama “danou-se a cosmética!” e então o humor da tira é alcançado. Nos dois primeiros quadrinhos, o discurso lido por Susanita é o bíblico, mais especificadamente presente no livro Gênesis. Para que esse discurso seja melhor identificado, há a presença da intertextualidade na forma de citação, em que podemos facilmente perceber devido ao fato de vir através do uso das aspas. Notamos, então, que se trata de uma citação direta. A frase em Gênesis apresenta a ideia de que tudo é passageiro, nada é eterno. Todavia, para que haja o entendimento da tira em sua completude, o leitor deve ter o entendimento da frase bíblica citada e de como é a personagem Susanita. Sabendo que a citação é para dizer que viemos do pó e nos tornaremos pó, e que a cosmética não resolverá todos os problemas para sempre, compreendemos o humor nas palavras de Susanita. A menina é uma

personagem doente de amor maternal com sonhos pequenos-burgueses e sempre está atenta à vaidade, sempre preocupada com maquiagens, roupas, sapatos, muitas vezes ignorando até mesmo os valores éticos e morais em busca de alcançar o que é belo aos olhos. O humor da tira pode ser ainda mais ampliado com essa informação sobre as personagens, pois entenderá o porquê de Susanita sempre se preocupar com a cosmética até em um texto bíblico.

Tira 5 – Citação

No primeiro quadrinho, Mafalda está desligando a televisão e dizendo os verbos imperativos conhecidos por induzir as pessoas ao consumismo. Mafalda se mostra irritada e esbaforida com essas palavras. Ainda no primeiro quadrinho ela pergunta “o que eles pensam que nós somos?”, como quem pergunta “eles pensam que vão nos convencer e que somos tão manipuláveis?”. No segundo quadrinho ela pensa melhor e se pergunta: “e o que nós somos?”. No quadrinho seguinte ela liga a televisão novamente e no último conclui pensando “os malditos sabem que ainda não sabemos”. Para que notemos a intertextualidade presente, precisamos conhecer que “use”, “compre”, “beba”, “coma” e “prove” são verbos imperativos utilizados nas propagandas midiáticas com o objetivo de venderem seus produtos. Portanto, Mafalda cita essas palavras para fazer referência às propagandas. Caso o leitor não entenda que esses verbos foram utilizados por Quino como referência às propagandas, ele não saberá que Mafalda está criticando, no primeiro quadrinho, as propagandas. Porém, no último quadrinho, Mafalda termina criticando a sociedade em geral, pois ainda não sabe quem são eles próprios por não pensar criticamente sobre algo.

Tira 6 – Alusão

No primeiro quadrinho dessa tira, Mafalda está lendo um livro para Miguelito e ele pede para que ela pare, pois não pode “nem pensar que o lobo vai comer a avó da Chapeuzinho!”. Nos próximos três quadrinhos os dois vão jogar boliche e, no último quadrinho, gerando uma quebra de expectativa na tira, Miguelito pergunta à Mafalda se o lobo comeu a avó de Chapeuzinho com maionese ou pura, ou seja, ele ainda estava pensando na situação da história. Podemos notar a intertextualidade desde o primeiro quadrinho em forma de alusão, ato ou efeito de aludir, de fazer rápida menção a alguém ou algo, uma vez que Miguelito menciona o livro denominado “Chapeuzinho Vermelho”. Se o interlocutor não conhecer esse clássico infantil, não irá compreender a discussão das crianças sobre os personagens do conto. Assim, poderá até entender a tira, mas sem alcançar um efeito completo.

Tira 7 – Interdiscursividade

Na terceira tira analisada, Mafalda se questiona, no primeiro quadrinho, por que uma mulher não pode ser presidente da república. No próximo quadrinho ela imagina uma mulher

lendo um livro, no qual está escrito na capa “segredo de estado” e nos próximos quadrinhos a mulher do pensamento para alguém após refletir. No último quadrinho, Mafalda descobre a

resposta para sua pergunta. Devemos perceber que o livro “segredo de estado” está no quadrinho de forma metafórica, para que apareça uma forma concreta do que não se deve dizer ou não ser do conhecimento de outrem. Mesmo sendo um sigilo e não devendo ser divulgado, a mulher que tem acesso a essas informações, conta para alguém. Logo, inferimos que a mulher é, então, fofoqueira. Para que cheguemos a essa inferência, temos que saber sobre a representação feminina no processo de interdiscursividade sobre a fofoca. Há uma subjugação da mulher na sociedade e tal acontecimento é representado nessa tira, nos pensamentos da personagem Mafalda. Este é o humor da tira: mulher não pode ser presidente da república porque contaria os segredos de estado. Para que não haja, portanto, uma dificuldade no entendimento do humor da tira, devemos conhecer o discurso de subjugação da mulher quando se trata de um segredo, independente de qual seja. Quino se baseia em tais discursos para criticar as mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando individualmente algumas tiras da personagem Mafalda, podemos observar como o entendimento da intertextualidade é imprescindível na percepção do humor nas tirinhas de Quino. Os exemplos de tiras fornecidos neste estudo procuram explicitar o quanto sua compreensão depende, em partes, de fatores como a intertextualidade e a interdiscursividade. Em vista da exposição teórica realizada e das tiras analisadas, é importante refletir sobre a leitura feita dos quadrinhos em questão. Entender um texto cômico não é apenas decodificálo, mas é também (e principalmente) interpretá-lo. Tal interpretação demanda um trabalho do ouvinte, enquanto que a decodificação demanda apenas um conhecimento. Cabe ressaltar, mais uma vez, que esse conhecimento é necessário, mas não suficiente para a interpretação. Além disso, diante das análises realizadas, notamos que todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro. O dialogismo, segundo Bakhtin, pode ser entendido como um espaço de luta entre as vozes sociais, relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social. O sujeito social, ao se deparar com outros enunciados, interage com os discursos num ato responsivo, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação. E é isso que Mafalda faz.

Ademais, a língua tem a propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. Ficou evidente na análise das tiras que o leitor deve estar atento e ser conhecedor das referências feitas pela personagem para que entenda o efeito de sentido proposto pelo autor. Mesmo num monólogo, tanto da personagem quanto qualquer outro, há dialogismo, pois nesse ato, aparentemente individual, há vozes que dialogam. Portanto, o dialogismo não se restringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestado em diferentes dimensões, como na última tira analisada: o enunciado ocorre apenas no plano de pensamento da Mafalda, em um texto não verbal e mesmo assim, há o interdiscurso.

Podemos firmar, portanto, que tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade são relações dialógicas e que, saber sobre contextos sócio-históricos, conhecer as personagens e outras referências nos é discretamente imposto quando realizamos a leitura de Mafalda. Um texto pode dialogar com outro de forma implícita ou explicita e, de todas as formas, exige o conhecimento prévio do leitor.

REFERÊNCIAS

AURÉLIO. Dicionário do Aurélio Online. 2018. Disponível em: https://dicio-nariodoaurelio.com/intertextualidade. Acesso em: 15 abr. 2019.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. 196p.

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Quino e Mafalda: criador e criatura. Correio Cidadania, 2012. Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/cultura-esporte/741324-07-2012-quino-e-mafalda-criador-e-criatura. Acesso em: 03 jun. 2019.

CAVENAGHI, Ana Raquel Beatriz. Mafalda: humor, ironia e intertextualidade. In: Encontro Nacional de Estudos da Imagem, 3., Londrina, PR. 2011. Anais... Londrina: UEL, 2011. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Ana%20Raquel%20Abelha% 20Cavenaghi.pdf. Acesso em: 03 jun. 2019.

FIORIN, José Luiz. Bakhtin: outros conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161-193.

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RIZZARI. Josiane. Mafalda, Mafaldinha. Anarcolítico Blog, 2011. Disponível em: http://anarcolitico.blogspot.com/2011/07/mafalda-mafaldinha.html. Acesso em: 04 jun. 2019.

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