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COMO SE DÁ A EVOCAÇÃO BÍBLICA NOS POEMAS RELIGIOSOS DE GREGÓRIO DE MATOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE

COMO SE DÁ A EVOCAÇÃO BÍBLICA NOS POEMAS RELIGIOSOS DE GREGÓRIO DE MATOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA INTERTEXTUALIDADE

RESUMO

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Talytha Cristina da Trindade Victor Oliveira Aparecida

Este artigo procura analisar poemas religiosos do poeta Gregório de Matos e Guerra; um grande nome do movimento Barroco. Este artigo foi pautado nas noções advindas do fenômeno da Intertextualidade e que estão presentes na construção desses poemas, tais noções nomeadas de referência e alusão. Os teóricos usados para dar embasamento a essa atividade são os linguistas brasileiros Ingedore Grünfeld Villaça Koch, Anna Christina Bentes, Mônica Magalhães Cavalcante e José Luiz Fiorin, além do pensador russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin.

Palavras-chave: Alusão; Referência; Barroco; Bíblia.

INTRODUÇÃO

Este artigo coloca em pauta um debate acerca do fenômeno da intertextualidade presente em poemas de Gregório de Matos Guerra, escritos no período do Barroco no Brasil. Tais poemas foram reunidos em uma antologia organizada por José Miguel Wisnik, chamado Poemas Escolhidos de Gregório de Matos: Seleção, prefácio e notas, publicado pela editora Companhia das Letras. A antologia é a mesma publicada pela Editora Cultrix em 1975, entretanto, foram acrescidos algumas correções e ajustes. Além disso, a obra foi dividida sumariamente em três ordens: poesia de circunstância, amorosa e religiosa. De ora em diante, foram subdivididas em poesia satírica, encomiástica, lírica, erótico-irônica e, por fim, religiosa. Em nota do organizador José Miguel Wisnik, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, a primeira edição feita pela Editora Cultrix, visava à necessidade de construir uma coletânea crítica de Gregório de Matos que pudesse ser acessível para os estudantes e demais leitores, todavia, ainda hoje não se tem nenhuma obra desse tipo. Os poemas escolhidos para servirem de objeto de análise são de ordem religiosa e foram: A Jesus Cristo Nosso Senhor, Buscando a Cristo, Ao dia do Juízo A análise do fenômeno intertextual e discursivo presentes nos poemas serão realizadas à luz de Mikhail Bakhtin (2006), Fiorin (2005) Koch et al (2007), tendo em vista o capítulo nove do autor russo, O Discurso de Outrem e o capítulo seis da obra Intertextualidade- diálogos possíveis, das linguistas brasileiras.

INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE: AS BASES TEÓRICO-

CONCEITUAIS DO ESTUDO

Em o “Discurso de outrem”, capítulo 9 da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin retrata o discurso reportado, isto é, o discurso que em sua constituição apresenta ecos da voz de outrem. E esses ecos podem vir do tipo direto, indireto ou indireto livre. De acordo com Fiorin, ao longo da obra de Bakhtin não temos uma remissão direta aos termos que conhecemos por interdiscurso, intertexto, interdiscurso, interdiscursividade, intertextualidade. (FIORIN, 2005, p.162) Uma das problemáticas a qual Fiorin trabalharia seria encontrar o interdiscurso em Bakhtin sobre outro nome. Nesse caso, podemos afirmar que o discurso de outrem surge como uma forma de conceituar esse interdiscurso. Para Bakhtin: “O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo.” (BAKHTIN, 2006. p. 147), ou seja, temos uma “existência autônoma” que permite que o discurso de outrem conserve primitivamente sua estrutura e “integridade linguística”, entretanto, quando o narrador toma a palavra desse outro sujeito para integrar sua enunciação, ele elabora novas regras sintáticas e estilísticas a fim de aglutinar a enunciação de outrem na sua —ainda que conserve de maneira rudimentar a “autonomia enunciativa do discurso de outrem”. Essa dada conceituação feita por Bakhtin nos permite analisar diferentes discursos, de diferentes enunciadores, que são evocados em um novo discurso, de um outro enunciador. Isto é, posicionar em um novo discurso algo que pertence à voz de outrem, que precede aquele que está em evidência no exato momento de analisar.

Quando tomarmos em consideração as análises do corpus deste artigo, será perceptível o trabalho que o poeta tem em tomar para os seus poemas algumas passagens da Bíblia, a fim de atribuir-lhes um novo efeito de sentido, ou seja, a voz poética elabora novas regras sintáticas e estilísticas, com novos propósitos, etc., mas ainda assim é possível através desses poemas, reconhecer e buscar a fonte original — textos bíblicos. Na ótica das autoras, bem como os grandes estudiosos da área por elas referenciados, a Intertextualidade é o diálogo entre textos que sistematizam um cruzamento de noções que percorrem, em seus respectivos campos, distintos conceitos. Essas noções e conceitos são, muitas das vezes, os pilares da construção de um texto.

Essa assertiva pode ser muito bem vista também no estudo publicado na revista Critique, feito pela escritora, crítica literária e psicanalista, Julia Kristeva. Tal estudo feito pela autora é pautado nas discussões das ideias Bakhtinianas que transcorrem nas obras de Dostoiévski—, “Problemas da poética de Dostoiévski” e “A obra de François Rabelais”. No entanto, a autora observa que, na visão de Bakhtin, o texto em sua edificação, nada mais é que um conjunto de sentidos, cruzamento de textos e diálogos. Entende-se que, a composição de um texto, está intimamente repleta de outros diálogos, — dizeres, e em sua

estrutura outros textos.

Alusão e referência

Nos poemas de Gregório de Matos, podemos ver noções de alusão e referência que estão, de fato, na sustentação desses poemas. Vimos anteriormente que essas noções vêm do campo da Intertextualidade. É válido ressaltar que a Intertextualidade é um campo bastante amplo, e não cabe apenas dentro do conceito de um diálogo em relação a outro diálogo, e nem na atuação de um texto tendo como base algum outro. Existem dois recursos que estão imersos no campo da Intertextualidade. Esses recursos estão tratados na obra “Intertextualidade: diálogos possíveis”, como intertextualidade das semelhanças e das diferenças. As autoras da obra ressaltam a Intertextualidade das Semelhanças, a qual contém segmentos — fragmentos, próprios ou alheios, tratando-se de citações diretas como um suporte a um dito, assegurando o que está sendo dito. Quanto a Intertextualidade das Diferenças, se conceitua pela ideia de refutar o que está sendo dito ou desdizer. Por Maingueneau (2001) é nomeado por valor de subversão. Nesta obra, também é restaurado a noção de Intertextualidade Restrita, conceituada como a inserção de um texto no outro, ou fragmentos de textos já produzidos, resgatando consigo a ideia de memória discursiva. Com isso temos um termo usado na construção dos poemas de Gregório de Matos, a “Alusão”.

Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciado de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. (CAVALCANTE, 2006. p.5).

Desse modo, a alusão pode ser vista no momento em que o leitor, por sua bagagem e experiências leitoras, consiga reconhecer o texto fonte — o texto original, pois do texto original

(como fragmento) fora reproduzido um novo texto e então é gerado o movimento de alusão. Dessa maneira, a alusão está efetivamente implícita no texto. Como ocorre em alguns dos poemas de Gregório, que só é possível perceber tal alusão, se o leitor, com sua bagagem, estiver ciente do livro bíblico, ou conhecimento de algumas de

suas passagens. Um pouco diferente do conceito de alusão, tem-se o termo “Referência”, que também faz parte desse amplo campo da intertextualidade. A referência se resulta no momento em que é inserido em um texto, elementos que levam o leitor a reconhecer de forma imediata, o que está sendo tratado, embora não preceda da existência da citação literal. No entanto, pressupõe que tanto a alusão quanto a referência, em seus conceitos, mantêm uma relação em comum entre uma e outra, pois, se a referência pode agir em sua plena implicitude, as diferenças entre os dois movimentos não serão totalmente distintas, pelo contrário, são bem próximos.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E METODOLOGIA DO ESTUDO: DESCREVENDO O CORPUS

A metodologia desta pesquisa será pautada em profunda atividade analítica sobre os poemas de Gregórios de Matos levando em consideração os textos bíblicos e o contexto histórico do período Barroco no Brasil. Dessa maneira, os poemas escolhidos foram selecionados da antologia “Poemas escolhidos de Gregório de Matos: seleção, prefácio e notas” organizado pelo músico e professor de literatura brasileira da USP, José Miguel Wisnik. A obra de José Miguel Wisnik reúne os maiores clássicos de Gregório nessa coletânea dos anos 70. A versão, agora revisada, chega ao leitor carregada de grandes feitos de Gregório na literatura barroca, condensando o seu jeito de fazer poesia nos mais diversificados temas como satirização, religião, etc. O Barroco chegou ao Brasil através dos colonizadores portugueses, sendo eles leigos ou religiosos. Esse estilo se espalhou por todas as ramificações da arte, seja na arquitetura das igrejas, em prosa como as de Padre Antônio Vieira, poesia como em Gregório de Matos, etc. Vale ressaltar ainda que havia duas divisões no Barroco, o estilo cultista e o conceptista. O primeiro tinha como representante o poeta Gregório, que utiliza metáforas, figuras de linguagem, e linguagem rebuscada em seus poemas. Já o segundo, era representado por Antônio Vieira, com o uso de paradoxos e argumentação persuasiva em seus sermões.

O estilo do Barroco sobreviveu no país até cerca das duas primeiras décadas do século XIX. Todavia, a fase que serviu de referência ao estudar o poeta Gregório de Matos é em meados do século XVII.

Como uma espécie de Missão Jesuíta, o Barroco também tinha por objetivo representar o divino, conter a reforma protestante, catequizar os indígenas e lembrar, a todo momento, os fiéis de se virarem para Cristo e deixarem de lado todos os seus atos desregrados. Outras questões também alimentaram o projeto do Barroco no país, como diz Wisnik:

O círculo de ferro da opressão colonial vai-se apertando em todo correr do século XVII, e não passa urn ano em que se nao invente uma forma de sugar a colônia, tolhendo-lhe por todos os meios o livre desenvolvimento. [...] Os proprietários rurais endividavam-se, o engenho via aguçada a sua crise com a baixa do preço do açúcar. [...] A essas transformações socioeconômicas correspondiam mudanças no quadro político, caracterizando as formas de domínio e controle da metrópole sobre a colônia: as Câmaras, representativas do poder local, iam sendo debilitadas a medida que se fortalecia o poder dos governadores e demais funcionários reais, representantes do poder metropolitano. (WISNIK, 2010, p. 20-21).

Atento a essa realidade da época, Gregório de Matos tratou de colocar em seus poemas uma temática construída com elementos que remetesse ao momento exato em que se vivia. Para tratar dessa realidade de maneira crítica, o poeta escrevia poemas os quais podemos chamar de satíricos. Sobre isso, Wisnik acrescenta:

[...] Gregorio registra em vários pontos essas tensões: a crise ("O açúcar já se acabou? ..... Baixou./ E o dinheiro se extinguiu? ..... Subiu. / Logo já convalesceu? ..... Morreu"); a debilitação das Câmaras ("Quem haverá que tal pense,! Que uma Câmara tão nobre,! Por ver-se mísera e pobre, / Nao pode, nao quer, nao vence"); a ascensão do negociante português ("Salta em terra, toma casas, / arma a botica dos trastes, / em casa come baleia,! na rua entoja manjares./ [...] (WISNIK, 2010, p. 21).

Já na lírica amorosa, a dualidade

torna a ganhar espaço com a presença de contraposições de ordem do ascetismo e sensualismo, espírito e matéria, e paradoxos como no poema “Anjo no nome, Angélica na cara”, em que o sujeito poético evidencia uma dualidade na função de anjo da amada, como visto no seguinte trecho: “Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda”. (WISNIK, 2010, p. 28) Nos poemas religiosos, os quais serão analisados neste artigo, a dualidade se pauta na culpa e perdão. Isso pode ser visto no poema “Buscando a Cristo”, por exemplo, no trecho: “Pois, para perdoar-me, estais despertos; E, por não condenar-me, estais fechados”

A Bíblia como um livro majoritariamente popular, demarca grande importância como um auxílio nesta atividade analítica, levando em conta que serão identificados os campos que vem do movimento intertextual, como já proferidos aqui — referência e alusão. Como

movimento de referências e alusões, a Bíblia, efetivamente, foi utilizada de maneira explícita na construção dos poemas de Gregório de Matos, tanto na linguagem das passagens, quanto, mais evidentemente, nos títulos. Sendo assim, vale ressaltar que, para uma leitura mais efetiva, o sentido do texto é produzido a partir do entendimento do leitor, isto é, por mais que a Bíblia seja um livro popular e bem conhecido nas esferas sociais, ainda é possível, por uma minoria, seja desconhecido.

Em toda parte, é o cruzamento, a consonância ou dissonância de réplicas do diálogo aberto com as réplicas do diálogo interior dos heróis. Em toda parte, um determinado conjunto de ideias, pensamentos e palavras passa por várias vozes imiscíveis, soando em cada um de modo diferente (BAKHTIN, 1981, p. 235).

Essa questão talvez distancie o leitor a interpretação proposta pelo autor do texto. Vale enfatizar que a aproximação do leitor desses conhecimentos facilita a articulação de maneira eficaz, o que está sendo dito nas implicitudes do texto. O sujeito leitor que não está a par de um conhecimento mais nocivo sobre os capítulos e passagens bíblicas interpreta o texto de forma dessemelhante.

ANÁLISE DO CORPUS

Em se tratando do Barroco, fica muito claro que o nome principal responsável por recriar e “abrasileirar” o Barroco Europeu para o Brasil é Gregório de Matos. Com toda sua poesia satírica, lírica e religiosa. O corpus que será analisado aqui levará em conta apenas os poemas religiosos, a fim de identificar e analisar o caminho que o poeta levou para reconstruir e ressignificar passagens, parábolas, termos e conceitos provenientes da Bíblia Sagrada. Elementos esses que Gregório aparenta saber muito bem como trabalhá-los, afinal, como já dito anteriormente, o momento histórico do século XVII, as carências e necessidades da população, impactam diretamente na poesia de Gregório, influenciando-o a inserir ao longo de toda sua obra marcas legítimas do Barroco Brasileiro.

Para compreender melhor as marcas intertextuais utilizadas para construção dos poemas, é necessário entender os principais movimentos realizados— a dualidade entre o

sagrado e profano — . De acordo com Martins, Souto e Silva, doutoras em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba:

É comum nos poemas de Gregório de Matos a presença de imagens que remetem à religiosidade, principalmente no que diz respeito a sua poesia religiosa que tematiza a culpa e o arrependimento. O poeta baiano se entrega a diálogos e súplicas para externar seus sentimentos em relação àquele que é considerado o filho de Deus. Sua poética é impregnada da junção do sagrado e do profano [...] (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

Essa temática impregnou seus poemas profundamente, fazendo com que o poeta tivesse na Bíblia o recurso necessário para completar sua missão: satirizar e evocar outros sentidos para o texto bíblico. Tendo Gregório como poeta principal da época barroca, seus poemas eram os mais disseminados, garantindo uma certa eficácia nos seus objetivos com a poesia, principalmente, a satírica e religiosa, mais marcantes em sua obra. Sobre isso as autoras ainda citam Bosi e Segismundo:

Segundo Alfredo Bosi (2006, p. 37), sua poesia merece ser conclamada tanto como “documento da vida social dos Seiscentos” quanto “pelo nível artístico que atingiu”. Já para Segismundo Spina (2004, p. 114), Gregório foi “o primeiro prelo e o primeiro jornal que circulou na Colônia’. (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

Tendo em mente essa importância do poeta barroquiano e a disseminação de sua poesia, podemos perceber como seus dizeres sobre a Bíblia podem ser apreendidos de diferentes maneiras pelas pessoas. Isso fica muito claro quando levamos em conta a teoria da intertextualidade de Koch et al, afinal, para apreender o texto bíblico por trás do poema, é necessário levar em conta a bagagem cultural e histórico-social do leitor, pois apenas assim seria possível perceber explicitamente ou implicitamente os ecos bíblicos na poesia de Gregório. É possível considerar a diferença do leitor no período barroco e contemporâneo, pois cada um irá apresentar uma ótica diferente para a poesia de Gregório. Afinal, a experiência religiosa de cada indivíduo é diferente, ou seja, levar em conta que, naquela época, as pessoas viviam em constante dualidade entre o pecado e o perdão, e influenciadas massivamente pelo

papel da Igreja, contrapondo à leitura que as pessoas fariam atualmente, visto que a Igreja já não tem um espaço tão grande para influenciar as pessoas, repreender seus costumes, etc. Parte disso vem da ideia de um estado laico.

Além do mais, no período Barroco, as pessoas estavam literalmente vivendo a dualidade que o poeta descrevia com tanta precisão em seus poemas. Dentre a contextualização feita, e as explicativas sobre o propósito do trabalho, bem como o objetivo que este artigo visa alcançar, a seguir será feito as análises dos respectivos poemas de Gregório de Matos.

A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória.

(MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 313).

Neste poema de Gregório de Matos, precisamos nos manter atentos ao Barroco como característica, em que a religião — catolicismo, se torna iminente acerca da construção dele. O catolicismo entra no poema através da questão bíblica em todos os versos e no título: “A Jesus Cristo Nosso Senhor”, o qual o autor faz referência direta ao divino. É interessante ver que o poema nas entrelinhas, pode ser interpretado como uma afronta à ideia de Deus e o conceito que esse ser divino carrega na humanidade. Com isso, podemos ver alguns contrastes que esse eu lírico evoca ao usar o argumento sagrado, sendo parte do pressuposto um argumento cristão, ou seja, a parábola usada teria como fim sanar a culpa do pecador. Vale ressaltar que, o eu lírico no papel de advogado usa esses argumentos de maneira constante no segmento do poema, constatando assim uma espécie de retórica nesse diálogo com o “divino”.

A intertextualidade então é evidenciada através da remissão à parábola da ovelha perdida, a qual pode ser vista em alguns momentos da Bíblia. As principais foram descritas pelos apóstolos Mateus e Lucas:

O que acham vocês? Se alguém possui cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixará as noventa e nove nos montes, indo procurar a que se perdeu? E se conseguir encontrá-la, garanto-lhes que ele ficará mais contente com aquela ovelha do que com as noventa e nove que não se perderam. Da mesma forma, o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca. (BÍBLIA, Mateus, 18, 12-14) Qual de vocês que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da ovelha perdida, até encontrá-la?” (...) / “Eu lhes digo que, da mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam arrependerse. (BÍBLIA, Lucas, 15, 4 e 7).

O fenômeno da intertextualidade usado nesse poema, vista nos trechos a seguir, é a

alusão:

Se uma ovelha perdida e já cobrada Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na sacra história, [...] Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada [...]

De acordo com Cavalcante:

Reputamos a alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. (cf. CAVALCANTE, 2006:5).

Dessa maneira, pode-se afirmar que a alusão é vista a partir do momento que é reconhecida pelo leitor, tendo em vista seu conhecimento do texto-fonte, ou seja, do texto original que gerou aquela alusão. Portanto, para ser percebida a remissão à parábola da ovelha desgarrada o leitor deve buscar em sua bagagem cultural e histórico-social. A alusão à parábola da ovelha perdida foi usada em um sentido de certa maneira, deturpado, pois foi utilizada pelo eu lírico para coagir Deus a lhe perdoar. Isto é, se a ovelha, que representa o pecador, foi buscada pelo pastor — metáfora para figura divina, o eu lírico pecador também deve ser perdoado. No artigo “A Lógica Sacrificial e o Deboche da Expiação na Poesia de Gregório de Matos”, de João Paulo Ayub da Fonseca, doutor em Ciências Sociais, diz o seguinte:

Com base nas investigações propostas por René Girard [...] a culpa, a violência e a relação entre as esferas sagrada e profana atravessam os versos de Gregório, transmutando-se em novas formas e significados. Por entre as dobras da estética barroca de Gregório, o significado profundo de tais elementos é transfigurado, assim como adquire novos matizes a leitura e interpretação do texto bíblico. (AYUB, 2015).

Isso é muito próximo ao que Bakhtin diz em “O discurso de outrem”: “A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente [...]” (BAKHTIN, 2006, p. 148), podemos entender isso como o enunciador trazendo a enunciação de outrem e construindo um novo sentido, para apoiar nele seus argumentos de defesa em uma espécie de ato de contrição (confissão perante a figura religiosa). Outro ponto interessante é a alusão muito próxima a um salmo da Bíblia: “Desgarreime como a ovelha perdida; busca o teu servo, pois não me esqueci dos teus mandamentos” (BÍBLIA, Salmos, 119, 176) e o trecho do poema: “Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobraia”.

Podemos ver, claramente, que tanto no salmo, quanto no poema, o eu lírico se assume como a ovelha perdida/desgarrada e pede que Deus o busque: “Busca o teu servo/Cobraia.” Quanto à dualidade no poema, nota-se a contraposição entre pecado e perdão, como visto nos trechos a seguir:

“Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido; Porque, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. [...] Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido” (Grifos nossos)

A tensão ao longo do poema é construída pelo eu lírico pecador que busca o perdão divino, por isso vemos os termos contrapostos: pequei-clemência, delinquido-perdoar e a expressão: “a vos irar tanto pecado abrandar-vos sobeja um só gemido.” Com esse poema, também percebemos um momento de intersecção entre a poesia religiosa e satírica do poeta. A essência desse poema é religiosa, entretanto, no ato de o eu lírico colocar Deus em uma posição de obediência e passividade a aceitar que deve “perdoar”

o pecador, visto que Deus precisaria do pecador cometer erros, para colocar em prática o ato de perdão. Esse foi um meio do eu lírico para satirizar o papel da figura divina. De acordo com Martins, Souto e Silva:

Por excelência a temática é religiosa, mas identificamos elementos “satíricos” quando se faz a inferiorização da imagem divina, no que concerne a supressão da superioridade de Deus, no sentido de que – como se expressa – este é quem necessita do homem pecador para exercer uma de suas supremacias divinas: o perdão. Fica-nos a seguinte indagação: Não seria uma dessacralização e/ou profanação, neste sentido, o rebaixamento de uma divindade e a elevação do ser humano em detrimento desta divindade? (MARTINS, SOUTO, SILVA, 2012.).

O “perdão” como notável temática de Gregório em seus respectivos poemas, não se restringe apenas ao poema “A Nosso Senhor Jesus Cristo”. Em “Buscando a Cristo” é evidenciado o sacrifício de Jesus como resultado da remição de pecados. Logo, percebemos a tensão pautada na dualidade Pecado/culpa e perdão.

Buscando a Cristo

A vós correndo vou,braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.” (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 316).

A dualidade entre pecado/perdão pode ser vista nos trechos a seguir:

“A vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos, Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.

[...]

Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados.” (Grifos nossos)

Além disso, antíteses são notáveis ao longo da construção do poema, tais quais: abertos e cravados, despertos e fechados. Esse uso, como já dito, é relevante tendo em vista o Barroco como um período de tensões e conflitos internos (matéria e espírito), no campo político e social.

O envolvimento do contexto bíblico a uma questão de sacrifício (significado da morte de Cristo) pode se inferir que realiza, no próprio poema, uma noção afrontosa do eu lírico. O eu poético em grande parte do poema, tenta relativizar os pecados por ele cometido, colocando a ideia de que a humanidade tem relação ao divino Cristo— como bondoso, galardoador, etc., de maneira persuasiva, a fim de atingir o seu propósito, o perdão. Dessa maneira, a crítica é dirigida ao fato de Jesus conceber o perdão mesmo àqueles que sabem que são pecadores e culpados. Como o eu lírico diz no trecho: “para perdoar-me, estais despertos, / E, por não condenar-me, estais fechados.” Outra inferência que podemos apontar é a semelhança desse eu lírico em relação a um dos ladrões que foram crucificados ao lado de Jesus. Na Bíblia, essa assertiva se põe da seguinte maneira: “[...] ‘Nós estamos sendo punidos com justiça, porque estamos recebendo o que os nossos atos merecem. Mas este homem não cometeu nenhum mal’. Então ele disse: "Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino". Jesus lhe respondeu: "Eu garanto: Hoje você estará comigo no paraíso" (BÍBLIA, Lucas,23, 41-43) Vale ainda ressaltar a ânsia desse eu lírico no final do poema, em que, além de querer o perdão sob os pecados cometidos, dispõe da vontade de querer viver atado, junto, ao lado de Cristo, apesar de tudo que foi cometido de maneira pecaminosa. Essa união foi reiterada ao longo do texto com o uso de anáfora, através do “A vós”, sempre sendo direcionado a Jesus, como nos trechos: “A vós, lado patente, quero unir-me / a vós, cravos preciosos, quero atar-me / Para ficar unido, atado e firme.” A intertextualidade nesse poema fica por conta da busca do poeta pela crucificação de Cristo e seu significado para a Igreja e fiéis — sacrifício daquele que sofreu na Cruz em nome dos pecadores — a fim de servir como recurso para o efeito de sentido que queria alcançar ao fazer o poema: tratar da ambivalência entre ser pecador/ culpado e pedir perdão e ser perdoado pelo divino. Um dos trechos na Bíblia, que possivelmente serviu de informação quanto a

crucificação de Cristo, é o seguinte: "Os soldados teceram de espinhos uma coroa e puseramlha sobre a cabeça e cobriram-no com um manto de púrpura”. Aproximavam-se dele e diziam: “Salve, rei dos judeus!”. E davam-lhe bofetadas." (BÍBLIA, João19, 2 e 3) e “Cristo ofereceu pelos pecados um único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à direita de Deus” (BÍBLIA, Hebreus ,10,12). Conseguinte, para finalizar, o poema que será analisado a seguir “Ao dia do Juízo” se dispõe como pleno movimento alusivo ao livro bíblico de Apocalipse, que é conhecido de maneira popular por retratar o julgamento final de Cristo perante toda à humanidade e os pecados por ela cometido.

Ao Dia do Juízo

O alegre do dia entristecido, O silêncio da noite perturbado, O resplandor do sol todo eclipsado, E o luzente da lua desmentido.

Rompa todo o criado em urn gemido. Que é de ti, mundo? onde tens parado? Se tudo neste instante está acabado, Tanto importa o não ser, como haver sido.

Soa a trombeta da maior altura, A que a vivos e mortos traz o aviso Da desventura de uns, de outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso, Erga-se o morto, deixe a sepultura, Porque é chegado o dia do juízo.” (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik. p. 351).

Na primeira estrofe do poema, é possível notar antíteses proporcionadas pelos contrastes das palavras alegre e entristecido / silêncio e perturbado. Então, podemos ver que esses contrastes se dão ao longo do poema, pois, tais contrastes são evidenciados também na terceira estrofe do poema, onde retrata que, no “grande dia” ao soar da trombeta — instrumento que também aparece na bíblia no livro de Apocalipse no cap. 8. ver, 2. na passagem “Eu vi os sete Anjos que assistem diante de Deus. Foram-lhes dadas sete trombetas…” — para alegria de uns e infelicidade de outros, o grande dia chegou. [...] “Da desventura de uns, de outros ventura”. Em alusão a passagem da Bíblia que também se encontra em Apocalipse dessa

maneira: “Feliz e santo é aquele que toma parte na primeira ressurreição! Sobre eles a segunda morte não tem poder, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo: reinarão com ele durante os mil anos.” (BÍBLIA, cáp. 20 ver. 6) onde entende-se que, aqueles que cumpriram sua passagem de maneira plena na Terra, bem como obedeceu aos mandamentos de Cristo, e se arrependeu dos seus pecados, o dia para eles é de felicidade, contrário dos que fizeram o oposto. Tais passagens bíblicas apresentadas anteriormente são a base intertextual a qual Gregório utilizou para construir seu poema, fazendo um movimento de alusão com o texto bíblico, ele busca em livros como o de Apocalipse e se inspira para escrever uma suposição do que seria o dia do juízo final, com elementos como a trombeta tocada por anjos, o fim do mundo como no trecho: “Acabe o mundo, porque é já preciso, /Erga-se o morto, deixe a sepultura, / Porque é chegado o dia do juízo. ” E a imagem de fim de mundo, com expressões como “O silêncio da noite perturbado, /O resplandor do sol todo eclipsado” e “Que é de ti, mundo? onde tens parado? /Se tudo neste instante está acabado”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, é notório a riqueza de elementos de ordem intertextual — alusão e referência, como base fundamental e indiscutível para a construção de diferentes efeitos de sentido presentes ao longo dos diferentes poemas de cunho religioso do poeta. Sua relação intrínseca com a realidade histórico-social que vivia a influência da Igreja, dentre outros fatores, serviu de estímulo para que Gregório buscasse cada vez mais inspirações para sua escrita. Também, é válido enfatizar a importância e relevância de Gregório de Matos para o movimento barroco, bem como a bravura de sua escrita que o levou a ser chamado de “Boca do Inferno”. Tal poeta precisa cada vez mais de reconhecimento por toda a sua contribuição para um dos momentos mais ricos da literatura brasileira. A nós cabe apenas contribuir para a disseminação da riqueza e singularidade de suas obras.

Eu sou aquele, que os passados anos cantei na minha lira maldizente torpezas do Brasil, vícios e enganos. Gregório de Matos

REFERÊNCIAS

BARROCO Brasileiro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo63/barroco-brasileiro. Acesso em: 26 maio, 2020.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

DESCOMPLICA. Barroco no Brasil: Quer que desenhe?2017. (4m17s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cMVti1H1ASE. Acesso em: 26 maio de 2020.

FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e intertextualidade. apud BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Editora Contexto, 2005. p. 161-192.

FONSECA, João Paulo Ayub da. A Lógica Sacrificial e o Deboche da Expiação na Poesia de Gregório de Matos. In II Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e III Seminário de Poesia, Filosofia e Imaginário, Vol. 1, p. 1-11, Uberlândia, MG, Brasil, 2015.

KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade - outros olhares. In KOCH, Ingedore G. Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Intertextualidade: Diálogos Possíveis. São Paulo: Cortez, 2007.

MARTINS, Izabel Cristina Oliveira. SOUTO, Ângela Maria. SILVA, Michelle Pinto. Marcas do sagrado na poesia de Gregório de Matos. In XIII Encontro da ABRALIC Internacionalização do Regional, 10-2 outubro 2012. UEPB/UFCG – Campina Grande, PB.

MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Seleção e organização de José Miguel Wisnik.

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