Diversidade na palavra

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Título Diversidade na palavra: uma antologia © Copyright 2022 Editora PUC Minas Editor Victor Sadi Dias dos Santos Revisão Igor Vieira Luciano Luana Rodrigues Pires Capa e projeto gráfico Jurandy Wesley de Jesus Oliveira Leonardo Mesquita Viana Imagens da capa Freepik Rawpixel Coordenação editorial Daniella Lopes Dias Ignácio Rodrigues


Diversidade na palavra: uma antologia Organizadores: Daniella Lopes Dias Ignácio Rodrigues Igor Vieira Luciano Jurandy Wesley de Jesus Oliveira Leonardo Mesquita Viana Luana Rodrigues Pires Victor Sadi Dias dos Santos



Sumário Prefácio

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Apresentação

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Contos Prefácios Hora do adeus Ode a Ófelia Devaneios Por trás da face Respingar de minha alma Permissão Primeiro dia de aula A fenda Estranho no espelho

15 17 23 29 35 37 41 43 47 53 77

Poemas (Ex)pressões 金星の崩壊 (Colapso de Vênus) Identidade Phóbos (恐怖) Uma bolada Carimbo Nós

85 87 89 91 95 97 99 101


Sapatos Vacas De-versos Argila Amálgama Idade da adversidade Autores

103 105 109 113 117 119 121


Prefácio

por Ivane Laurete Perotti Quem nunca, por entre campos e sentidos, espreitou palavras? Semeadas. Semeantes. Ôntico véu? Quem nunca, no jogo das resistências, arremessou verbos? Versos. Flexão de base. Meio-de-jogo. Carrossel? Vai por aí a construção desta coletânea: movente “flor do Lácio”. Tão bela quanto a verve bilaquiana. Tão rica quanto o mais diligente viridário. Plural. Sólida nas reentrâncias fincadas em terreno côncavo. Telúrica. Ardente. Denunciatória. Esta coletânea levanta poemas. Estende narrativas. Contos de apoios. Desaboios. Versos em dó final. Inicial. Notas de reflexão e mira. Certeira mira literária das(os) acadêmicas(os) do Curso de Jornalismo, VI ano, da PUC/MG, sob a tutela e incentivo da Professora Doutora Daniella Lopes Rodrigues. São 15 contos e nenhum real. Réis? Aqui não tem Marcela, de Machado, mas tem Catarinas, reais, todas elas, mergulhadas na ficção dobrada em quatro. Ou cinco. Meses de trabalho e amor devoto às letras. À edição. Compilação planejada. Estoque de ideias. Margens em brios linguísticos. Régua em riste. Devem ter rido. Eles e elas. Não há prazer que não cobre a si mesmo. E este é um prazer que chega ao leitor sublinhando possibilidades. Muitas. Do inaugurado, ao inaudito. Do experimento, ao legítimo. Belas escritas. Belíssimo trabalho. No primeiro conto, Prefácio, de Bruno Calvo Dorfman, o leitor caminha pela complexidade madura e vigorosa de uma escrita instigante. Provocadora. O autor “dá as cartas”. Constrói um jogo primoroso de antecipações e desvios. Desbrava implícitos tão bem arquitetados que obriga à leitura incessante. Permanente. É leitura para quem tem coragem de ler e assumir contágio. Apaixonante. Em Hora do adeus, a narrativa corre a pele. Assombra. Re-


vela: “assombração é um inimigo que é quase impossível de combater. Não podemos ver, simplesmente ela aparece nos momentos mais inoportunos.” Golpeia o inesperado. Assim, Gabriela Duarte diz do que nos chega e, às vezes, fica. Tal qual os temas perigosamente caros: vida e morte, morte em vida. Quase a mesma trilha que se segue em Ode a Ofélia, quando os fios indisciplinados da existência revelam a experiência sagrada. Ímpar. E na autoria de Denise, a brincadeira torna-se séria. Única. Indissolúvel. As reflexões orquestradas em Devaneios, conto escrito por Sadi, o leitor empunha a espada dos desbravadores. Cavalga o espaço das antigas leituras e quase diz, quase, por onde volto? Não volta. A leitura confisca facilidades. O preço do arresto é a liquidez da interpretação batendo à porta. Portas. Por trás da face, de Emily Bertoli Ferreira, o leitor assume a profunda solidão que avança sobre a carne: “Às vezes, a razão é a verdade mais cruel que devemos aceitar.” Vertigens atravessam a escrita, a forma. Ler este conto é invadir o que já é nosso. A narrativa carrega senhas. Sentidos oblíquos. Cabe ao leitor não deixar que passem. Não passam. Fluem, como em Respingar de minha alma, de Sadi, que pulsa um cenário tão íntimo quanto físico. Inteiro. Des/conhecido. E a escrita registra o movimento dos sentidos confessos. Inóspitos. Tão eloquente quanto a voz das montanhas. Híbridas, dançam vozes no conto de Isadora Barbosa da Silva, Permissão. Na engenharia que planeja os personagens, duplicam-se espelhos. Quebram-se imagens. Padrões estéticos. Diversidade empunha verbos. Não falta o toque do empoderamento. O vinho que corre o tempo. Nas bagas do relógio, a corrida tem eco. Tem sequência do outro lado da página. Avança. Toma espaço. Seduz a morfologia. A sintaxe, que não está órfã, encarrega-se de, em Primeiro dia de aula, mostrar as garras do bullying. Conto escrito por Carolina Coutinho, indicia as dores da pré-adolescência. As pontes suspensas do autismo. Nunca obstáculo. Sempre aprendizado.


Pois travessia é ordem. Como também ocorre em A fenda, narrativa de Luana Rodrigues Pires, que desenha imbróglios metafísicos: “Às vezes, o começo é tão parecido com o fim que é complicado distinguir qual é qual.” Para quem pensa que a forma não prega peças, os poemas seguem em um total de 11. Onze ondas de sonora acuidade. Criativos. Divergentes. Insolentes. Novos-antigos modos do dizer líquido. As palavras soprando cartas no tabuleiro aceso pelos sentidos. Construídos. Armados de bagagem opaca. Densa. Como “sininhos” que antecipam a quebra das esquinas. Atenção! Chega mais uma escrita: o poema (Ex)Pressões, de Roberta Colen Linhares. Tem alma livre. Incisiva. Agulhas poéticas lancinando o melhor da veia literária. Literárias veias ofertam-se. Dúbias, em perfeito propósito. Polissêmicas, no tecido da língua. Muitos caminhos . Potentes. Possíveis. Uma seta. Muitas leituras. Em O Colapso de Vênus (金星の崩壊), o jogo corre por fora das linhas. Imprensa o leitor. |Imprint. Imprinting. Sem “apoucar” a leitura. Precisa ser lido. Devorado. É a escrita de Jurandy Wesley de Jesus Oliveira. Promessas generosas de outros projetos. E segue o poema Identidade, de Jurandy Wesley de Jesus Oliveira, que provoca puxões entre os fios da submissão. O não dito solta chispas. Faíscas. Tira do lugar. Vem chegando Phóbos (恐怖), escrito por Jurandy Wesley de Jesus Oliveira em um emblemático registro de nossas buscas. Das sombras e dos medos. Retrato sígnico de experiências nada passivas. Pacíficas. No poema Bolada, dedilhado por Jurandy Wesley de Jesus Oliveira, o ritmo “dobra” o leitor. Aciona sentidos postos. Indispostos. Orquestra o processo da apresentação. Escrita. Bonita. Sanciona a lei da atração semântica. Letras e notas. Versos e gestos de leitura que disparam para mais um poema: Carimbo, de Waldir Freire da Silva Neto. Sinuosamente marcado. Escrita que instiga e desvia. O leitor precisa correr. Um alvo. Um desafio poético. Combinação perfeita entre obra e operário. Trabalho.


Siga, leitor. E quando chegar em Nós de Ana Carolyne Batista dos Santos, compreenderá, na superfície da pele, o blefe da língua. A longa baforada de quem descobriu estratégias. A leveza de uma possibilidade. Então, a leitura multiplicar-se-á. Perguntas ao texto. Respostas à mão? Longe delas. Eis o looping do contentamento. Movimento que alcança Sapatos, obra de Natália Schimpf; outro poema que atinge a epiderme. A cadência faz emergir o que se mantinha lacrado. Sete chaves. Saltam. Abertas. Basta aceitá-las no decorrer da leitura. Aventura. Fruição. Quando Ramon Linhalis Guimarães escreveu Vacas, montou em versos um diagrama. Social. Atual. Revigorado pela construção do ritmo. Da constelação das palavras. Quase esdrúxula. Brilhante pela adrenalina linguística. Filosofal. Constatável. Maciçamente real. De-versos, escrito por Stefany de Jesus Silva denuncia a ilusão. Aquela que beira a cegueira fria da sociedade. Das escolhas. Dos caminhos. Versos sobre trilhas. Andanças. Passos. Rótulos. O viés sem bainha de nossas buscas. Ilustre investida. Assim como no poema Argila, de Stefany de Jesus Silva, que vai do sólido ao sonoro em um só ato. A cena temperando a linha dos versos. Versus! Cena. Poema. Arquitetura formal. Em Amálgama, de Roberta Colen Linhares, os versos deitam à pena. Estatelam-se diante dos olhos leitores. Olhos de leitura fina. Poema de divina ubiquidade. Assim, o leitor chegará em A Idade da Adversidade, escrito por Aline Palmieri. Confere lides. Trabalho. Transpiração. Fotografia poética vista em close up. Foco no sentido em pleno devir. É o poema de encerramento da antologia. Não das leituras. Estas, certamente traçam convites duradouros. Convites que permeiam a coletânea do início ao fim. Do início ao início. Um fim. Um propósito que deixará em cada leitor o contorno de uma promessa: autores no prelo!


Apresentação Este livro é o fruto de nosso trabalho na disciplina Leitura e Produção de Textos em Ambientes Digitais, ministrada pela Prof.ª Daniella Lopes. Foi um desafio novo, mas muito agradável. Com a escolha de um tema tão amplo para esta obra (diversidade) queríamos trazer à tona as múltiplas facetas da raça humana — seja cultura, língua, cor, gênero etc. Numa sociedade que tenta a todo custo negar sua pluralidade, esperamos, com este projeto, lançar um pouco de luz sobre narrativas que recebem o destaque que lhes é devido. Nos textos que se encontram a seguir, contos e poemas escritos por estudantes da PUC Minas, é possível vislumbrar, mesmo que brevemente, os contrastes que marcam a construção das mais diferentes identidades presentes entre nós. Esperamos que esta seja uma leitura enriquecedora; que não sejam apenas palavras num papel, mas, sim, o despertar para várias reflexões sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos.

Os editores

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UMA ANTOLOGIA

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Prefácios

Bruno Calvo Dorfman

Prefácio à primeira edição da Nova Gramática Oficial do Português Brasileiro Os autores deste livro ousam a lisonjear que as regras por ele propostas e encomendadas logram justificarem a si mesmas, sendo eminentemente corretas e razoáveis. Decidimos, pois, que este espaço melhor serviria a uma explicação deste livro, e do interesse do governo em sua produção. Temos certeza de que isso também é eminentemente razoável àquele seleto grupo do corpo discente que poderíamos denominar ‘mentalmente privilegiado’ (ao qual, portanto, dispensamos da leitura desta parte e encorajamos que se adiante no estudo daquelas que se seguem), mas muitos, infelizmente, não pertencem a ele. Preocupações de inclusividade e acessibilidade, então, nos obrigam à escrita deste prefácio. Repito a questão: por que este livro? Naturalmente porque um país unido precisa de uma língua unida — e uma apenas — mas há uma pergunta mais interessante: como este livro? Nosso país sempre foi um de diversidade, várias raças vivendo em harmonia. É minha opinião pessoal que a marca definitiva do reconhecimento disso é o romance Iracema. Lá estão todos — indígenas, portugueses, franceses, holandeses, italianos e africanos. Surge, portanto, uma preocupação de garantir que a língua brasileira não exclua nenhum grupo. Por isso, para o fim de

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UMA ANTOLOGIA

modelar as novas regras da língua, os editores (escolhidos por um governo consciente da diversidade nacional e composto por pessoas de várias origens) consultaram muitas fontes, de todo tipo que podemos considerar legítimo e diversos autores, de Machado de Assis ao Padre Vieira e Luís de Camões. Naturalmente, também nos preocupamos com a acessibilidade deste arquivo. Previmos que nem todo estudante usaria aparelhos com tela touch. Portanto, também, fizemos este livro compatível com detecção ocular. Assim todos poderão ler a nova gramática do português brasileiro. Assinado, os editores Marcos Oliveira Gonzaga, Pedro Lafaiete Gonzaga, Ana Gonzaga Gonzaga e Rafael Cândido Gonzaga. ⌇

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Prefácio à segunda edição da Nova Gramática Oficial do Português Brasileiro Esta segunda edição veio mais rápido do que esperávamos e, francamente, desejávamos. Entretanto, os eventos seguintes à publicação da primeira edição forçaram-nos. A maior mudança entre a primeira edição e a segunda é a revisão de nossa previamente mal-examinada aceitação da predominância da próclise. Doravante, esse mecanismo será considerado vulgar. Esperará-se que o leitor e autor bem-educado manifeste visível preferência pela ênclise. Por fim, urgimos aos leitores que se atentem às cópias deste livro impressas ilegalmente. Uma verdadeira epidemia de impressões ilegais assolou a primeira edição desta gramática e, apesar de várias medidas tomadas à ocasião do lançamento da segunda, certamente veremos a continuação das cópias ilegais. O leitor deve lembrar-se que a Nova Gramática Oficial do Português Brasileiro não pode ser lida senão por meio de aparelhos eletrônicos em conexão ativa com a internet. ⌇

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Prefácio à terceira edição da Nova Gramática Oficial do Português Brasileiro Nós tivemos mais tempo para preparar esta edição do que fi-lo-emos para a última. Vós podeis, pois, esperar mudanças muito mais drásticas do que vistes na segunda edição, agora absolutamente obsoleta. Isso não deixa de ser infeliz, sobretudo considerando a ampla adoção de suas regras — ou de algo convincentemente semelhante a elas — mas nós temos certeza de que as novas propostas surgem simples e organicamente da língua, e que os leitores deste livro adotá-las-ão com facilidade. O primeiro item que precisamos corrigir é a absoluta dominância da ênclise, a qual tivemos a infelicidade de sugerir. Percebemos, agora, que a melhor solução para a divisão entre próclise e ênclise é que encontre-nos-emos no meio. Portanto, sempre que pudermos usar a mesóclise, deve-lo-emos. A expansão de nossas referências para incluir textos canônicos ou mais antigos também nos convenceu que é imperativo eliminar aquela abominável quimera ‘você’, a profana união entre as segunda e terceira pessoa. Regulações estão por ser passadas em todas as examinações ministradas por órgãos governamentais que penalizarão severamente qualquer uso desse pronome. Do mesmo modo, o leitor deve lembrar-se de jamais empregar a expressão ‘a gente’, que pode bastar para desqualifi-lo-car de muitas vagas. Embora possa pare-vos-cer cruel, essas medidas são necessárias para a realização de uma língua unificada, que não exclua parte alguma do povo brasileiro. Por fim, anunciamos que esta gramática não mais oferece suporte para tela touch. Para não prejudicar o ensino, a interface agora exige aparelhos mais avançados. ⌇

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Prefácio a quartae edicioni de novae gramaticae oficiali de portuguesis brasileiri Conforme recente lege de senati, novae provae exigirão correctam aplicacionem de casi de substantivorum. Leitor cultus não pode confundir casos. Leitor também deve ser advertidus que usus estensivus de pronominum é marca de ineducati. É importans característica escritae elegantis omitir pronomines. Em sistema simplece e coherente de nossae línguae, não é acceptabilis fazer errores assim. Escrever em língua culta é fácilis. Todi têm meios para escrever como classicis, e devem escrever como classicis. ⌇

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UMA ANTOLOGIA

Officiali nouissimae linguae grammaticae editioni praefatio brasilicae

Alumni, saluete. In editione qua ante oculos tenent, occasio est uobis prima quattuor quinqueque cognoscere declinationes. In proxima, speramus de sonibus docere breuibus et longis. Meminote! Aduocatus non adiuocatu Paucus non pocu Hodie non oie Uisibilis non uisiuiu Qui alieno loquet modo barbarus est. Loquere non sapit, et omni scriptae ignorans est. Sortem uobis bonam.

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Hora do adeus Gabriela Duarte

O burburinho crescente não deixa dúvidas: o auditório está lotado. Pela lateral do palco, dou uma bisbilhotada e assisto a uma cena que, há alguns anos, poderia parecer apavorante: um mar de pessoas prontas para me ouvir. Noto que a música ambiente é uma canção instrumental bastante familiar: “Time to say Goodbye”, que ouvi tantas vezes na voz de Andrea Bocelli. Nada mais oportuno, afinal, era realmente hora de dizer adeus àquela mulher que, por muito tempo, foi dominada por fantasmas do passado. Eu ainda tenho alguns minutos antes de ser anunciada pelo reitor. Procuro por uma sala vazia e me sento em um grande pufe preto. Um lustre com luz amarelada chama a minha atenção e, como um daqueles pêndulos que usam em sessões de hipnose, volto para algumas décadas da minha vida. Domingo, céu nublado, tempinho frio. Nada planejado. A ansiedade típica da adolescência não aceitava de bom grado os dias ociosos — dias que, atualmente, considero preciosos. Pego um jornal, passo direto pela parte de economia e de esportes, e vou para a sessão de entretenimento. Encontro o resumo da minha novela favorita, e meus olhos percorrem cada linha. Uma linha, duas linhas, três linhas... Mas o que estou lendo mesmo? Volto para a primeira letra do capítulo de segunda-feira e começo a reler: “Juliana coloca um ponto final no seu casamento com Marcos. Aurora não aceita a partida de Felícia...” — Será que botei comida para o gato?

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“Mercedes se entrega ao amor de Tadeu.” — Ah, meu Deus! Amanhã tem prova, droga, ainda tenho que estudar. “Capítulo de terça-feira: Arlindo mata Sousa.” — Como assim já é terça? O que vai acontecer na segunda mesmo? Retorno para a metade do capítulo de segunda-feira e procuro as informações que não assimilei. Leitura e pensamentos soltos se misturam novamente. Paro, respiro e busco a paciência que já está se esvaindo. Mais do que impaciente, estou frustrada. Por que isso acontece com tanta recorrência? Tem algo de errado comigo, só não sei o que é. Encontro algumas possíveis explicações, mas uma em especial não me agrada: “Posso não ser tão inteligente assim”, penso, mais uma vez. Procuro afastar essa velha reflexão da minha cabeça. Mas como um fantasma, ela aparece, volta e meia, para me assombrar. As palavras da minha mãe só reforçam essa suspeita. Não era incomum eu receber o adjetivo de “lerda” toda vez que eu demorava para entender alguma orientação ou ordem que ela dirigia a mim. E a voz da minha mãe não só alcançou os meus ouvidos, mas atingiu o meu peito e o marcou com a força da sua pancada. E por muitos anos, continuei ouvindo a dolorosa palavra “lerda”. Não da forma literal, mas através de lembranças que surgiam violentamente sempre que eu não conseguia entender algo tão rápido como eu gostaria — ou como esperavam. E assombração é um inimigo que é quase que impossível combater. Não podemos ver, simplesmente ela aparece nos momentos mais inoportunos. Como acontecia nos primeiros dias na faculdade de jornalismo, sento-me na primeira fila para diminuir a chance de me distrair com frivolidades. Próxima ao professor, atento-me para cada palavra proferida. Com o caderno em mãos, anoto tudo o que julgo importante — hábito que adquiri depois de descobrir que ele me ajuda a manter as informações fixas na minha cabeça.

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Aula chegando ao fim, sentimento de satisfação e de dever cumprido. Olho para o lado e imagino que, para muitos, é só mais uma aula. Para mim, é a comprovação de que não sou tão burra assim. Porém, uma pergunta interrompe meus pensamentos e me puxa para a realidade. Foi o professor! Mas o que ele disse? Por que todo mundo está me olhando? Para meu alívio, ele volta a perguntar: — Gabriela, pode dizer a diferença entre os pensamentos de Walter Benjamin e Theodor Adorno? Coração palpitando forte, mãos suadas, rosto pegando fogo, vontade de sumir e de nunca mais voltar. Eu havia assimilado todas as explicações e certamente cheguei a anotar as distinções entre os dois pensadores. Mas ter que explicar para todos aqueles universitários é demais para mim. Eu já estava prevendo a cena: eu gaguejando, tentando expor minhas ideias e a turma toda rindo da minha burrice. E, no dia seguinte, eu ficaria popular na faculdade por toda a minha estupidez. Para enterrar de vez a minha pontinha de segurança, pude ver a minha mãe entrando na sala e dizendo na frente de todo mundo: — Lerda! Os segundos pareciam horas e todos estavam à espera de uma resposta — que deveria ser genial, no mínimo. Olhei para o professor e fiz um tímido sinal de negação com a cabeça. Subitamente, outra menina acabou com qualquer possível chance de me redimir. Não era uma solução genial, mas era uma resposta mais digna que o meu silêncio. Ao colocar os pés para fora da sala, senti-me fortemente humilhada, ultrajada, envergonhada. Uma verdadeira bomba atômica foi jogada em cima de mim e acabou com toda a minha breve sensação de vitória. Eu só pensava em como gostaria de voltar no tempo e dizer para quem quisesse ouvir — principalmente para mim: “Se eu cheguei até aqui é porque sou capaz de responder a essa pergunta”. Contudo, foi o sentimento de fracasso que me

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acompanhou por todo o ano acadêmico. Por muitos anos, tive que esconder dos outros o meu grande segredo: na verdade, posso até parecer inteligente, mas eu sou “lerda”. Quando eu conseguia um novo emprego, tinha certeza de que passei na entrevista porque fingi ser capaz de fazer o que o cargo solicitava. Na verdade, eu era uma fraude! Foi durante uma sessão de terapia que entendi que eu me autossabotava o tempo todo. E foi também com a minha psicóloga que contei toda a minha história: desde as leituras que pareciam eternas, até as palavras da minha mãe, que me gravaram a ferro quente como se eu fosse um boi. Tais relatos me levaram para uma consulta ao neurologista que, depois de vários testes e consultas, deixou outro rótulo em mim: o de portadora de TDAH. Mas diferente das palavras da minha mãe, esse rótulo não servia para me taxar de forma negativa. Pelo contrário: era um rótulo de um remédio bem forte e eficaz, daqueles que melhoram vários sintomas antigos e incômodos. De repente, virei novamente aquela garota que não entendia o porquê de não conseguir entender as linhas do jornal. Mas, dessa vez, ao invés de me julgar, comecei a ser gentil comigo mesma. Diante da médica que acabara de me dar o diagnóstico, as lágrimas escorriam incessantemente. Julguei que ela pudesse pensar que eu estava triste, por isso, tratei logo de explicar o motivo da minha emoção: — É que a vida toda eu esperava por uma resposta. E ela veio. De alma lavada e um peso de toneladas retirado das minhas costas, saí daquela sala com uma sensação de vitória. A mesma que aquela estudante de jornalismo perdeu com a pergunta do professor. Dessa vez, existia uma resposta científica para meus esquecimentos, falta de atenção e tantos outros sintomas que me faziam sentir tão diferente das outras pessoas. Antes, ao invés de ter o suporte de uma explicação lógica, eu me apoiava em palavras proferidas sem uma intencionalida-

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de. Finalmente entendi — e passei a acreditar — que eu não era lerda, não era burra, não era incapaz. Eu tinha um transtorno de base neurobiológica, causado por uma vulnerabilidade genética, ou seja, totalmente além da minha escolha e controle. Sentia como se um clarão estivesse iluminando o que estava tão escuro e confuso. Era libertador entender que eu não entendia uma informação por dificuldade em focar, não por inépcia. Muito menos por ser “lerda”, palavra essa que me impediu de trilhar muitos caminhos da vida. Agora, eu me sentia amparada por meios reais para lutar contra um problema real e não mais contra um fantasma onipresente. Batidas à porta interrompem a minha visita ao passado e uma voz avisa que faltam cinco minutos para me chamarem. Levanto do confortável pufe e caminho pelo corredor com luzes amarelas. Ainda com a cabeça assimilando as últimas lembranças, percebo que esbarro em alguém. Peço desculpas, continuo andando e noto o quanto estou ansiosa e com as mãos geladas. Aprendi há um certo tempo que existem características que fazem parte da sua essência. E o nervosismo para falar em público faz parte da minha. Mas tem uma diferença significativa: aqueles fantasmas do passado não ditam mais o que eu vou fazer. Quem diria que eu daria uma palestra! Ainda mais para dar algumas dicas a fim de driblar a timidez e ter uma carreira de sucesso. Só eu sabia o quanto meu coração teimava em bater acelerado! Eu não deixei de ser tímida ou insegura, mas entendia, a muito custo, que minhas diferenças não tinham o peso que eu lhes atribuí por tantos anos. De repente, escuto uma voz chamando o meu nome — e anunciando o motivo da minha visita à faculdade na qual eu me formei: — Hoje temos o prazer de receber aqui a jornalista Gabriela Duarte, que se formou na nossa instituição. Respiro fundo e, com o pé direito, piso firme em direção ao palco. O reitor me dá um abraço gentil e faz a seguinte pergunta:

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gou?

— Conte para todos nós: foi fácil chegar aonde você che-

Sob muitos aplausos, olho para a multidão e, no meio de tantos rostos desconhecidos, encontro o semblante da minha mãe. Por uma fração de segundos, achei que fosse ouvir aquele maldito adjetivo de novo. Porém, dessa vez, escuto-a dizendo: — Você é capaz. Solto o ar que estava preso sem que eu tivesse percebido e abro um sorriso. O meu melhor sorriso. E inicio a noite com uma resposta que eu estava devendo há muito tempo: — Se eu cheguei até aqui é porque sou capaz de responder a essa pergunta.

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Ode a Ófelia

Denise

Naquela manhã de abril, com o céu nublado, branco pelas nuvens, ela resolveu se matar. Decidiu que dali não passaria. Passou anos de sua vida com pensamentos à solta, rodeando-a, agora era demais para aguentar, daquele dia não iria passar. Pensou em diversas formas de fazer, afinal de contas, já tinha visto diversas vezes em filmes ou detalhado em livros. Poderia pegar uma corda e colocar em volta do pescoço e pendurar pela grade que tinha na área de serviço. Seria fácil. O pescoço iria quebrar e, crack, iria embora para sempre. Aquela corda, a corda que comprou para pular e se exercitar porque queria chegar aos 50 bonita, pois o que vale uma moça que aceita envelhecer? Estaria bela e jovem. Riu. Daquele dia não passaria, seria bela e jovem para sempre. As pessoas iriam lembrar dela e diriam “ah, aquela moça que morreu tão jovem, que tragédia”, se não fosse jovem, será que seria uma tragédia? Levantou da cama e resolveu lavar o rosto. Queria morrer bela. Foi ao banheiro e passou água no rosto. Viu seu reflexo no espelho. Era tão bonita, jovem, tinha os traços de uma boneca, mas isso não era o bastante, porque rapazes sempre acham um defeito para dizer que não te querem. Eles falam para os amigos e riem pelas suas costas dizendo “ah, aquela? eca”. Mas o que era eca quando era tão bonita? Escutou tantas vezes que era bonita. Estariam mentindo para ela? Percebeu que tinha um olho maior que o outro, talvez fosse isso, talvez fosse o fato do seu olho ser maior que o outro. Lembrou que tinha corretivo, talvez isso ajudaria a esconder um pouco as olheiras e ficaria mais alerta, o olhar

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abriria. Foi no quarto, pegou o corretivo e passou. Esfumou um pouco para não ficar artificial. Estava melhor. Já que estava pegando maquiagens, resolveu pegar o rímel, afinal de contas iria abrir o olhar ainda mais. Quando viu o resultado ficou satisfeita, estava linda para morrer. Ah, essa dor no peito que não parava mais era como um peso que a puxava para baixo e arrastava e arrastava. Não tinha apetite, afinal, quando tinha 15 anos, sua mãe havia dito que estava gorda e precisava emagrecer. Perdeu 5 quilos e havia ficado magra demais, e a mãe agora mandava engordar. Quando iria ficar perfeita? Afinal de contas, não era isso que era esperado? Ser perfeita? Lembrou do resultado da prova do dia anterior. Quando viu as notas no papel, elas não pareciam pertencê-la, mas pertenciam e, o pior, dizem uma parte dela que recusa acreditar, porque por toda sua vida foi esperado algo dela que não conseguiu retribuir. A perfeição nunca seria alcançada, porque talvez não fosse para ser alcançada, e isso assustou mais que tudo na vida. pra que viveria se a perfeição não existe? Pra que viver se não for para ser perfeita? Pensou em todos os setores da sua vida: a beleza, o trabalho, o lazer e os relacionamentos. Estavam todos perto de algo que esperava para si mesma? Estava namorando o cara que sempre pensou. Viu-se triste com a situação, o namorado era sem graça demais, era menino demais, brincava demais, e ela era séria demais, não combinavam, mas o garoto gostava dela e a idolatrava. Será que o que sentia era tão importante assim? Ele gostava dela, precisaria de algo mais? Talvez não ou talvez sim. Todos os aspectos da sua vida não a deixavam feliz. Tinha largado Jesus e por isso não tinha medo, nenhum medo de se jogar com uma corda no pescoço. Com qual roupa morreria? Olhou o guarda-roupa, vendo algumas peças coloridas e outras neutras, tons de azul e tons de verde. Não havia peças decotadas, ou vestidos curtos, porque o pai desde cedo colocou em sua cabeça que rapazes têm pensamentos sujos e poderiam fazer algo com ela. Disse diversas vezes que, mesmo coberta, eles iriam descobrir formas de olhar para seu corpo, não precisava esconder tanto. Alguma

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menina em algum lugar talvez tivesse pensado nisso “se eu usar uma roupa decotada pensarão que sou fácil e com isso não tentarão dar em cima de mim, pois caras adoram um desafio”. Mas não é assim que o pensamento humano funciona, alguns rapazes gostam do desafio, e outros gostam das coisas fáceis e acessíveis. É assim que funciona, isso é vida, combinações que não fazem sentido. Gostava de um macacão verde, um tom musgo, que apertava bonito na cintura, a cintura fina que a fazia parecer uma modelo. Não podia usar um soutien, mas não tinha problema, afinal estaria morta mesmo, pelo menos a roupa era bonita. Com o que seria enterrada? Um tom de vermelho para parecer viva? Nossa, quem vestiria um defunto para parecer vivo? Vestiu o macacão e em seguida ouviu a campainha. Desceu as escadas rapidamente. Encontrou a vizinha perguntando se tinha deixado o portão aberto, disse que não, e ela foi embora. Isso a fez pensar. Quem a encontraria? Morava sozinha, poderia passar dias sem que alguém a encontrasse. Resolveu então comer algo. A garrafa estava vazia e por isso teve que fazer café. Enquanto a água fervia, olhou pela janela e viu que o sol estava saindo, e um dia ensolarado iria aparecer. Era um ótimo dia para estender uma roupa, provavelmente iria secar rapidinho. Resolveu que essa seria sua última ação antes de se matar. Foi ao quarto e pegou a muda de roupas brancas no cesto de roupa suja. Era assim que tinha aprendido a lavar roupa, separando por cores, muitos não sabiam disso e misturavam tudo. Aquele conhecimento prático de casa era inútil agora, não iria mais usar. Pegou a roupa e desceu as escadas, aquelas escadas eram tão chatas para subir. Quando chegou naquela casa pela primeira vez, achou que era um máximo casa com escadas, mas logo se viu cansada. Enquanto a água fervia e borbulhava, agitou-se e colocou a roupa no tanquinho, enchendo de água e sabão em pó. Colocou um pouco de água sanitária. Por que estava lavando roupa? Aquela roupa era inútil, nunca mais a usaria. Parecia que um movimento de sempre fazer o que era certo a perseguia. Como uma obsessão, precisava acordar antes das sete, precisava dormir

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UMA ANTOLOGIA

antes da meia noite e sempre fazer suas tarefas. Se não fossem realizadas, sua paz acabava. Resolveu voltar para a cozinha e passar o café. Voltou logo para fechar a torneira e não desperdiçar água. Foi à cozinha e pegou o que era necessário para tomar seu café da manhã. O café era o único momento em que momentos eram apenas momentos presentes e não se via perturbada por pensamentos futuros. Quando acabou, percebeu que era hora de se matar… mas não… a roupa tinha acabado de bater, tinha que trocar a água. Isso demoraria um pouco. Resolveu então voltar para o quarto, enquanto o tanquinho batia pela segunda vez a roupa. Viu, ao entrar no recinto, que a cama estava bagunçada, por isso resolveu arrumar as coisas, dobrar as roupas e ajeitar tudo no seu devido lugar. Separava as coisas por cores, assim economizava tempo e tudo parecia pertencer a uma ordem. Tudo tinha ordem em sua vida, as roupas, os sapatos e os cremes, eles estavam todos ajeitados no seu devido lugar. Queria que alguém colocasse ordem em sua vida da mesma forma que colocava os sapatos no lugar, alguém para mandá-la tomar banho ou comer, como sua mãe era na infância. Porém a mãe não estava ali, estava trabalhando e com isso não tinha quem a mandasse fazer as coisas. Uma vez chegou a dormir sem tomar banho, ninguém se importava como andava, apenas quando suas ações envergonhavam a outras pessoas. Cresceu com aquela ideia de pessoa perfeita, que, a cada dia, parecia uma mentira, nada era perfeito e nada era certeiro. Será que seu primo sentia-se assim, ou os garotos do curso que fez anos atrás? Eles, com suas escolhas e decisões, em que tudo parecia tão fácil? Cresceu pensando que seria uma das três coisas: filha, mãe e esposa, mas não queria ser nenhuma das três, queria ser ninguém, ao mesmo tempo que queria ser mandada, queria ser livre para fazer o que desejava. Esses pensamentos atribulados a fizeram lembrar da roupa batendo no tanquinho e desceu. Trocou a água, uma, duas e a terceira vez, como a mãe havia ensinado. Torceu com força e sentiu os calos formarem nas mãos. Após aquilo, sentiu-se um pouco feliz. Pensamentos som-

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

brios voltaram a atormentar sua mente, e se viu pensando novamente na ação que iria realizar pela manhã, todos os dias acordando sendo forçada a comer e tomar banho. Uma vida de acontecimentos sem sentido que, por alguns segundos, trariam-na felicidade, como acender uma vela ou então lavar uma roupa e tirá-la do varal, banhos de piscina ou sentir o cheiro de tempero do mercado. Mas todos esses momentos valem a pena? Por uma vida de surpresas, que nem sempre eram surpresas boas? Não tinha feijão cozido e por isso resolveu fazê-lo, catar feijão, colocar água, umas três folhas de louro e colocar pressão na panela. O cheiro era bom. O cheiro de feijão cozinhando era bom. Talvez devesse viver por aquele feijão. Andou de um lado para o outro, não havia pegado o celular a manhã toda e resolveu verificar se havia alguma coisa. O plano de saúde havia mandado o boleto para pagar, mas por quê? Não havia assinado. Será que estão renovando anualmente? Por que fariam aquilo? O coração estava palpitando, estava tendo um ataque de pânico, daqueles que provocam uma taquicardia e a faziam chorar, quis chorar tanto e tanto, chorar era o único jeito que havia encontrado na vida para retirar um pouco de angústia. Sua mãe a mandava parar de chorar, porque chorar a fazia parecer fraca na frente das pessoas, e quando uma mulher teria o privilégio de parecer fraca? Quando chorava, sentia tanta raiva e tanto ódio de não poder chorar e assim chorava mais, porque quando chorava sentia que estava desestabilizada ou louca. Homens não choram… Principalmente porque não podem, porque, se pudessem, também chorariam, se todos pudessem, também iriam chorar, porque tirar um peso do peito deveria ser algo a ser feito sem críticas, sem julgamentos. Por que julgam a forma de se livrarem da dor? Por que não marcou a hora que colocou o feijão para cozinhar? Deveria ter marcado, agora não sabia quando desligar, resolveu desligar. O que iria almoçar? Já passava a hora, talvez devesse se matar ao entardecer. Ou talvez não? Ou talvez sim? Por que agora duvidava de uma decisão formada? Por que sentia que deveria não duvidar? Por que não

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UMA ANTOLOGIA

podia mudar de ideia antes que passasse a corda em volta do pescoço e se jogasse da cadeira e, assim, o pescoço quebraria, sua consciência iria embora para sempre, talvez fosse para o inferno? Não lidaria com as situações que passava. Em toda a sua vida, não se contentou em ser apenas uma pessoa, queria ser a pessoa, não queria ser Ofélia que se matou e só serviu para deixar Hamlet mais enlouquecido. Pobre Ofélia, jogou-se no rio e morreu. Será que foi assim? Só se sabe que ela ficou maluca antes de se matar, deveria ter prestado mais atenção ao ler a peça. Assim, quando era criança, gostava de brincar de histórias que provavelmente nunca aconteceriam e se enchia de sonhos que nunca aconteceriam. A vida era um pouco mais feliz, mas agora havia crescido e se tornado quase-pessoa. Para se tornar uma pessoa era um pouco mais complicado, porque você precisa lidar com o que o mundo te dá e isso não é uma situação boa. Teria que lidar com os dias, os dias que veriam e a fariam querer tomar decisões como a de hoje. Resolveu esperar mais um dia. Talvez amanhã receberia uma notícia boa.

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Devaneios Victor Sadi

“Nosso pai… Você nos fez a sua semelhança, mas não dividiu conosco a sua força.” Olá, amigo. Olá, amig… Essa forma de te nomear é estranha, pois um amigo demonstraria benevolência e compaixão com o próximo. Recordo-me que, no templo, o falso profeta falava que todos éramos irmãos. Todo dia santo ele abria as escrituras sagradas e nos apresentava um novo discípulo que falava que, perante a Deus, seríamos iguais. Essa igualdade acabava após o fim do seu show para aquele gigantesco público. Aquela plateia poderia espancar e calar a voz de qualquer pessoa que se opusesse ao seu Deus. Tenho frequentado aquele templo regularmente, pois a fome me acompanha e aos domingos me fornecem o de-comer. Então, calo-me e escuto com atenção. Isso é uma baboseira sem tamanho, como o falso profeta diz: “eles são apenas ovelhas guiadas por um pastor”. Esse pastor é movido pela sede de poder e vai corromper as ovelhas em nome da religião. Eu conheço a palavra sagrada e ele não abraça os ensinamentos divinos, só usa do seu pedestal para espalhar preceitos que jogam irmão contra irmão. Loucura. A humanidade tem sede de liderança como um bebê anseia pelo leite materno. Certamente é por isso que são presas tão fáceis de tiranos e ditadores. Por que não percebem que a fé mais verdadeira de alguém é a fé em si mesmo? O que lhe causou desespero a ponto de buscar alguém que lhes mostre o caminho?

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UMA ANTOLOGIA

Já chega. Alimentei-me e vou embora para o meu lar. Esse profeta está espalhando preceitos contra minha pessoa. Ao longo da história, meus irmãos de sangue foram perseguidos e mortos pela nossa cor de pele. Hoje, não posso expressar meus sentimentos em público que já sinto os olhares de nojo cair sobre mim. Sorte quando são apenas olhares. Porque esses fanáticos justificam qualquer coisa em nome de sua fé. Que tipo de religião prega ódio e violência? Enquanto caminho estou vigilante aos olhares que me circundam, o movimento ligeiro dos meus semelhantes ao guardar algum objeto com o receio que eu venha a furtar. Sabe, são esses pequenos detalhes que me fazem pensar em alguns versículos bíblicos. Recordo deste trecho do evangelho de Mateus: “E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Se Deus, um dia, saísse do seu trono e viesse em pessoa a terra eu o processaria. Pense comigo, se esse filho da put-. Desculpa. Se Ele realmente criou esse mundo tão diverso, deveria responder pela omissão perante as injustiças contra os fracos e oprimidos. Nossos irmãos de pele escura estão morrendo de fome na rua e, Deus, infelizmente, somos muitos. Quantas vezes fui acordar um semelhante e seu corpo estava gélido? Reflita junto à minha pessoa: se somos semelhantes à figura divina, por que somos tão cheio de falhas? Quantas vezes eu já presenciei um semelhante ser morto de forma brutal nas ruas, seja ele homem ou mulher, no fim, isso não importa, pois estão atacando contra nossa existência. Pessoas estão morrendo em Seu nome há vários anos e Ele não intervém. Como Ele quer que eu ame meu semelhante como a mim mesmo, se Ele quer me ver morto? Morrer com tais pensamentos incrustados em meu ser seria um desperdício. Pego meu velho, desgastado e sujo diário. Coloco meus devaneios no papel e jogo o diário sobre a ponte. Palavras ao vento e outros ouvirão os meus devaneios ordinários.

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Por trás da face

Emily Bertoli Ferreira

Não importa o que tenha ou quem seja, diante da loucura, não há inimigo mais perigoso que você mesmo. Em Nottingham, na Inglaterra, morava um dos homens mais ricos e influentes de todo o país. Não se sabia ao certo porque entre tantos lugares, David escolhera se isolar numa das cidades mais modestas desse país. — Com licença, senhor, o jantar está pronto! — Disse um dos seus empregados. — Obrigado, pode me servir aqui mesmo! — Sussurrou David. Cansado de administrar seus bens e conhecer países, decidiu isolar-se em sua mansão. A fortuna já não lhe trazia felicidade, muito menos as pessoas, consolo. Mantinha contato com sua família através das redes sociais, apenas para sua tranquilidade. Mergulhar em sua piscina e observar o balanço das árvores eram os melhores momentos do seu dia. — Mãe, estou muito bem onde moro. Não pretendo me mudar! — David, o que aconteceu, me responda? Transparentes iguais às águas de um rio, seus olhos verdes silenciaram suas palavras. Christa, assim se chamava a mulher, cujos cabelos representavam o fogo e a beleza, a paz que tanto buscava. Como uma salvação, estava a sua frente numa das páginas sociais que seguia. — Olá Christa, obrigado por me aceitar na sua página!

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UMA ANTOLOGIA

— Imagina, não precisa agradecer, David. — Posso perguntar onde mora? — Moro na cidade de Tréveris, na Alemanha. — Respondeu ela. — Magnífico lugar, eu já tive a oportunidade de conhecer. Christa carregava uma grande dor e indignação causada pelo seu ex-noivo, que a traíra na véspera do seu casamento. Desde então, estava há dois anos presa em sua solidão. Após aquele primeiro contato, Christa e David continuaram se falando. — Boa noite, Christa! — Boa noite, David! — Dê uma olhada no seu e-mail, fiz uma montagem dos lugares mais belos do mundo. — David, eu amei, é incrível. Parece até que já conheceu todos esses lugares! Dias e meses foram se passando e não havia tempo mais feliz que aqueles. Dormiam e se levantavam sempre ansiosos pelas suas conversas. — Christa, já se passaram oito meses, deixa eu te ver. — David, estou te esperando, durante todo esse tempo eu te amei. Nunca nos vimos, mas tem sido a única razão que me faz sorrir. — Uma rosa vermelha, é assim que irei te identificar no restaurante no qual já fiz reserva para daqui dois dias. — Chegará o momento que já não irei mais me surpreender com você, pois esse é o seu jeito de ser. David, estarei usando um vestido azul. Naquele mesmo dia, David viajou para Tréveris, na Alemanha, pois precisava olhar nos olhos da mulher que havia conquistado o seu coração. Às vezes, a razão é a verdade mais cruel que devemos aceitar. — David, é você? Eu não acredito, esperei tanto por isso. — Christa, sou eu! David havia aprendido com o seu pai todos os princípios

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

que eram necessários para o caráter de um bom homem e, um deles, era jamais menosprezar alguém pela sua aparência. Estava completamente extasiado, decepcionado ou até enfurecido, pois fazia parte de um jogo, em que o fantoche brilhava por receber os comandos certos. Christa era o oposto do que representava ser, sua beleza não contemplava mais seu rosto. — Christa, irei te deixar em casa. No caminho conversaremos mais. — Aceito apenas se houver um segundo jantar. — Disse ela. — Então, jantaremos amanhã, passarei na sua casa para buscá-la. Em meio aquela grande decepção, não existiam palavras para compensar sua perplexidade. Os oito meses não passaram de um grande sonho, do qual já estava acordado. — Minha querida, sua sobremesa favorita, lembra? — Estou tão apaixonada por você, David! — Linda e incrível, não me enganei sobre você. Mesmo depois do choque, havia uma verdade no olhar, sua beleza interior reluzia tanto em seu rosto, que nada além daquilo importava. — Amanhã novamente iremos nos ver, o meu motorista irá passar em sua casa para te buscar, tenho uma surpresa... David preparou um jantar à luz das estrelas, com pétalas de rosas vermelhas jogadas no chão e taças transparentes que resplandeciam seu reflexo sobre a luz. Suas palavras agora eram um mistério até para si mesmo, fazia parte de um jogo de xadrez, podendo ficar ou descartar uma peça do seu adversário. — Razão do meu sorriso! - Sussurrou Christa, assim que abriu a porta e se deparou com David logo à frente. Ele estava de pé, segurando uma rosa vermelha, olhando para as estrelas. — Meu Deus, o que significa isso? — Todo esse tempo estava apenas brincando comigo! — Bramou David, enfurecido, assim que olhou para a porta e se deparou com uma mulher que

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UMA ANTOLOGIA

mais parecia uma fada de tão linda que era. Porém, aquela não era a mesma pessoa que havia saído com ele na noite passada. — Houve uma época em que a mulher que conheceu hoje, não existia. Meu noivo havia me traído, com ele levou todos os meus sonhos e planos. Revivi no instante em que o conheci, então precisava ter a certeza do homem que representava ser, por isso contratei uma pessoa para fingir ser eu. Você um dia foi meu sonho e hoje é a minha única realidade. — Amor meu, me perdoe pelo o que fiz? — Só se aceitar se casar comigo! — Disse ele. Estava segurando sua rosa vermelha com o vestido azul, que havia prometido no primeiro encontro, aqueles longos cabelos ruivos cobrindo os ombros resplandeciam o tom rosado em sua pele, expressando o olhar mais satisfeito e feliz sentido por alguém. — Já havia aceitado em meus sonhos todas as noites! — Respondeu ela com um sorriso em seus lábios.

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Respingar de minha alma

Victor Sadi

“Embora meu relato seja árido e pouco empolgante, tratando mormente de uma origem local e um fim simplório, tenho certeza que ajudará a consumir alguns momentos de ócio.” O Ninguém, em diálogo recente. Aos interessados. Se estão lendo esta carta é porque é de vosso saber o fim que levou esse de quem vos fala. Meu coração esteve batendo por longos oitenta e nove anos, mas isso não era sinônimo de estar vivo, pelo menos não para mim. Eu trabalhei por cinquenta árduos anos, comprei uma casa, um carro e tudo mais que o dinheiro possa comprar, e vocês não fazem ideia do que ele pode comprar... Sempre possuí todos os artigos que prometiam uma sensação de felicidade ou, melhor dizendo, uma falsa sensação. Me apeguei e virei refém do materialismo barato e isto não me trouxe nada além de uma casa cheia de móveis inutilizáveis e um coração vazio. Você pode ter tudo no mundo e ainda ser o homem mais solitário. E esse é o tipo mais amargo de solidão, o sucesso trouxe-me idolatria mundial e uma fortuna que nunca consegui gastar. Mas ele me impediu de ter uma coisa que todos nós precisamos: uma relação amorosa permanente. A minha vida pessoal sempre foi motivo de especulações na sociedade. Sou um apaixonado pelas artes, e sempre quis desfrutar da arte de amar e ser amado. Parece que meu erro

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UMA ANTOLOGIA

foi querer amar outro homem. Na minha juventude, amar alguém do mesmo sexo era assinar sua sentença de morte. Descobri isso ao ver meu amado revelar sua sexualidade e ser morto de forma brutal. Não encontro registros dele mais, ele foi apagado como tantos outros. Seu nome, não mais tem relevância, pois foi vítima da “higienização” que ocorreu naquela época. Sou um homem, de cabelos ralos da cor do algodão de minha plantação. De olhos caídos, e dentes que não me pertencem. Minha mãe sempre dizia que em eventos especiais é dia de vestir a melhor roupa; ela estava certa, não é sempre que se morre. Visto minha melhor roupa, um terno maravilhoso com uma gravata borboleta, está frio lá fora, então me protejo do vento com meu paletó. No entanto, antes de morrer quero, pela última vez, assistir a esse lindo e maravilhoso pôr do sol. Já não me recordo da última vez que sorri para um ser vivo. Li em algum lugar que cartas de suicídio são uma maquiagem para um pedido de socorro. Não há tempo para socorrer quem redigiu essa carta. A tristeza e a solidão fazem companhia à exaustão e preenchem o meu âmago. Tudo que eu quero é um descanso, um momento, uma pausa, um abrigo, um lar. Apenas fechar meus olhos e jamais acordar. Espero ansiosamente pela chegada dele, pois o nascer do sol é tão natural quanto morrer. Avisto a chegada dele no fim do horizonte, lindo e majestoso como sempre, iluminando e dando vida às plantas que estão em seu caminho. Ao vê-lo pela última vez, encontro o conforto que buscava, embora não da maneira que imaginava. Do meu bolso direito, conjuro uma pistola. Aponto para a minha cabeça e esvazio meu vigor. E ouço. O respingar de minha alma.

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Permissão

Isadora Barbosa da Silva

“Deus não fez um amor tão lindo para ser proibido e, se fosse, eu ainda te amava” (Santo - Jão) Eu não tenho permissão para me apaixonar. As lágrimas molhavam meu rosto enquanto eu, insistentemente, tentava convencer aquela cega criança traiçoeira a me flechar novamente, ao mesmo tempo em que ele teimava em dizer que a culpa do meu sofrimento não era dele. Era deles. Daqueles que me olhavam todos os dias e me pintavam de cinza, reduzindo o meu arco-íris a uma monocromia que eu me recusava a aceitar. Mas eu ainda não tenho permissão para me apaixonar. Pior, não tenho permissão para amar. Então me encontro nessa loucura de barganhar com o Amor, implorando-lhe permissão para ficar com os dois, ao invés de me forçar a escolher um. Como poderia? Eu o amo desde aquele primeiro novembro e a amo há uma vida, apesar de não ter notado antes. O Amor me encarava, não da mesma maneira que os Outros, mas com um olhar de pena. Eu não quero a sua pena, quero a sua permissão. Vou proclamar minhas paixões diante de ti, para que entendas a importância do meu pedido, a urgência da minha oração. Era vermelho, como na música da Taylor Swift no verso “apaixonante como o pecado”, só que você sempre fez com que

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UMA ANTOLOGIA

esse sentimento fosse sagrado, com que eu fosse a sua devota mais fiel. Ela segurou a minha mão na pior noite de tempestade que já senti, quando os raios explodiram dentro de mim e eu não conseguia controlar a descarga elétrica que me dominava. Na escuridão, ela me mostrou o vermelho de um nascer do sol que eu desconhecia. Ali, eu soube que a amava, que a amava do jeito que os pecadores amam. Agora, eu via os cabelos dela derramando-se em meu travesseiro, as ondas bagunçadas e incontroláveis criando o mais lindo mar. Poseidon ficaria com inveja. Agora, eu a via sorrir de canto ao notar nossas fotos penduradas na parede, naquele estilo bem brega que as pessoas apaixonadas costumam fazer. É um clássico, na verdade. Um dos meus clichês favoritos. “Você não tem permissão para amar”. Maldito Cupido! Continuei mesmo assim… Com ele, era laranja a mudança de toda a minha lista de tarefas. Soube que o amava naquele doze de novembro, quando uma chuva inesperada invadiu o céu e me obrigou a buscar abrigo naquela Capela. Uma capela solitária no fim da rua, assim como ele. O encontrei sentado no último banco, ouvindo aquela que seria a nossa música (conseguem adivinhar?), concentrado em esperar a chuva passar. Reparei primeiro nos olhos tristes, para depois encarar a rosa que ele segurava. Nada como as lágrimas de um Deus para aproximar duas pessoas que se escondem, não só de si mesmas, mas também do mundo. Sentei-me ao lado dele e puxei uma conversa, daqueles protocoladas, cotidianas. Depois, aprofundamos o assunto e, ao final, já éramos tão íntimos ao ponto de eu não querê-lo só como meu melhor amigo. Nosso sentimento germinou ali, porém, foram necessários outros novembros para que florescessem. Assim, meus dias se coloriram em uma explosão de amarelo, verde e azul, em uma tríade celestial estranha aos olhos dos Outros, acostumados a ignorarem a paleta de cores que existe

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

ao seu redor, impondo a existência de duas delas. Nós três dançávamos sob a luz anil da sala de estar, deixando que as estrelas artificiais iluminassem nosso amor e apagasse, pelo menos por um breve momento, a lembrança de que não tínhamos permissão para nos apaixonar. Parei por um momento para secar as lágrimas. Preciso continuar. Preciso convencê-lo de que não posso escolher só um deles. No Mito da Alma Gêmea, Platão conta que a alma foi dividida em duas partes, mas sinto informar que o filósofo se equivocou, pois a minha se divide em três: uma sou eu, a outra é ele e ela é a parte que me completa. Formamos o violeta que faltava. O Cupido me deu mais uma flechada, símbolo da minha permissão. Eu finalmente a tinha. Havia chegado a hora de eternizar meu sentimento. Neste altar, eu sussurrei “eu te amo” para ela ao colocar nossa aliança. Neste altar, eu sussurrei “eu te amo’’ para ele ao colocar nossa aliança. Neste altar, eu gritei “eu tenho permissão para amar” ao dar as mãos aos meus dois amores. Podem os Outros julgar, protestar, reclamar, espernear contra e inventar inúmeras curas milagrosas para este meu “problema”. Eu não me importo mais, pois o Amor me deu permissão para amar. E o Amor não vai me condenar, está escrito, e eu sei que ele cumpre as promessas dele.

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Primeiro dia de aula Carolina Coutinho

Esse é o meu primeiro dia de aula no sétimo ano. E o meu primeiro dia de aula em uma nova escola. Caminho pelos corredores até chegar em um pátio aberto. Vou até um canto onde estavam quadros com listas e mais listas de nomes. Fico procurando por “Catarina Azevedo Ventura” — meu nome, no caso — nas listas do sétimo ano. Vejo o meu nome na lista do 7º D. Aproveito para ler o restante dos nomes. Tem muitas Anas, Marias e Silvas, e obviamente deveria ter uma “Amanda” no topo da lista. Um nome me faz estremecer. “Paola Andrade da Costa”. A junção dos nomes das três principais pessoas que tentaram destruir a minha vida na minha antiga escola. Paola Rossi, a menina que me chamava de “débil mental”; Lucas Andrade, o cara que batia em mim e Angelina da Costa, a garota que me enganava e me humilhava todos os dias. — Oi! Levo um susto. Recuo ao ver uma menina muito parecida com Letícia, a representante de classe que dizia que meu sofrimento era só frescura. Pelo menos, a parte que a máscara não cobria era parecida. A garota riu e se virou para a lista. Ela passou os olhos e disse: — Paola Andrade da Costa… sou eu! Então a minha turma é D. Não consigo impedir as minhas lágrimas, mas fujo correndo para que a garota não perceba. Vou até um banco e sento,

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UMA ANTOLOGIA

colocando a mochila do meu lado esquerdo e tentando parar de chorar. Alguém toca no meu ombro e eu recuo. — Calma, eu sou Viviane, a coordenadora do Ensino Fundamental II. Olho para o vestido florido da moça. Ela se agacha e diz: — Olha nos meus olhos. Odeio quando me pedem pra fazer isso. Olho para o nariz dela. — Quem é você? — Catarina… do sétimo ano…— respondo, me encolhendo no banco. A mulher loira e jovem aproxima a mão de mim, mas eu digo antes que possa me alcançar: — Não gosto de toques. — Ok… — a mulher se senta na minha direita, e eu arredo para o lado oposto ao que ela se sentou — …por acaso você é Catarina Azevedo Ventura? Assinto. — Tem quantos anos? — Onze… mas vou fazer doze em dois dias. — respondo, ajeitando a blusa de frio no meu corpo. — Faz aniversário dia três? Legal…— Viviane comenta. Meu choro, que estava se acalmando, voltou. Viviane pediu, olhando para mim: — Toma um pouquinho de água… Pego a garrafinha presa no canto da minha mochila, tiro a máscara e bebo alguns goles de água. Enquanto bebo, Viviane pergunta: — Vai fazer uma festinha de aniversário? Fecho a boca da garrafa e recoloco a máscara. Logo depois, respondo: — Meus pais querem fazer, mas eu estou com medo. Viviane assente. Em seguida, ela questiona:

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

to?

— Você foi diagnosticada recentemente com autismo, cer-

— S-sim…— respondo, hesitante. Não estou acostumada a me identificar como autista. — Fiquei sabendo do seu caso. — Viviane comenta. — Saiu no jornal. — Não me lembre disso…— peço. Eu sofri bullying na minha antiga escola e os professores me odiavam. Assim que as aulas voltaram a ser presenciais, todos passaram a fazer brincadeiras sem graça com meu jeito e minha personalidade. No final do ano, pediram uma avaliação psicológica pra mim. Minha mãe me acompanhou em diversos psicólogos e psiquiatras até eu receber o diagnóstico de autismo. Foi só o povo da minha sala descobrir meu autismo que eles passaram a me odiar mais e mais. Os professores me humilhavam em sala de aula e, quando reclamei com minha mãe que reclamou com a coordenação, eles me expulsaram da escola. Meu pai entrou com um processo contra o colégio e ganhou. A escola teve que pagar uma multa, mas eu disse que não queria voltar para lá. Até que a escola atual ofereceu uma bolsa de 10% não no sexto ano, mas no sétimo. Minhas notas até aquele momento foram o suficiente para passar de ano. Durante todo o processo, eu disse que não queria dar entrevista e que queria aparecer o mínimo possível nas câmeras. Hoje, um jornal gravou minha ida até aqui para mostrar o “desfecho” do meu caso. — Não gostou de ter virado notícia? — Viviane pergunta. — Óbvio que não. — respondo. Fico olhando meus pés irem para frente e para trás enquanto Viviane questionava: — Por que você estava chorando? — Eu vi uma pessoa da minha sala que parecia com alguém que fazia bullying comigo. — respondo. — E ela tem o mesmo nome de outra pessoa que também me zoava.

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UMA ANTOLOGIA

Viviane suspirou e disse: — Só porque é o mesmo nome não significa que a pessoa vai ser ruim com você. — ela se aproximou de mim. — Se eu falar que você tem autismo pra sala, você vai ficar melhor? Assinto. Viviane olhou para o relógio de pulso que usava, depois olhou para mim, pegou na minha mão e pediu: — Venha comigo. A aula já vai começar. — Ok…— falo baixinho. Pego a minha mochila, coloco nas costas e sigo Viviane até a minha sala. Andamos por diversos corredores até uma sala com diversos alunos e um professor que havia acabado de chegar. Viviane faz um gesto para eu esperar e entra na sala. Olho para a sala e vejo Viviane falando: — Oi, sétimo ano! — OI, TIA VIVI! Levo as mãos aos meus ouvidos por um tempo. Odeio barulhos altos. Enquanto isso, Viviane sorri e diz: — Não sei se vocês ou algum outro parente assiste jornal. Mas, de qualquer forma, sabem do caso da menina autista que foi expulsa da escola por ser quem é? — Sim! — vejo que quem falou isso foi a tal Paola. — Fiquei com dó dela, e eu nem sei o que é “autismo”… Pensei que talvez ESSA Paola não seja tão ruim. Viviane continua: — Autismo é uma condição psicológica que faz com que a pessoa tenha certas… características diferentes. Os autistas podem ser muito dedicados no que gostam, mas terem dificuldades em socializar. Parei de olhar para Paola e virei meus olhos para Viviane, que continuou: — Essa menina se chama Catarina, e ela vai ser colega de vocês. Espero que cuidem bem dela.

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mão.

— Pode deixar! — disse Paola, fazendo um “joia” com a

Viviane olha pra mim e pede para eu entrar. Eu faço o que ela pediu e olho para a turma, aliviada de que tem mais meninas que meninos. O professor disse: — Pode se sentar. Qualquer coisa, pode contar comigo, ok? — Ok. — digo, me sentando em uma cadeira da frente. Agora estou de frente para o professor e Viviane, que diz, se retirando: — Cuidem bem dela, viu? — SIM! — todos dizem. Tapo os ouvidos por dois segundos devido ao barulho. O professor sorri para mim e depois olha para a turma, dizendo: — Meu nome é Marcos, sou professor de história. Pela primeira vez, me senti acolhida por uma escola.

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A fenda

Luana Rodrigues Pires

É fácil saber como a história acaba, mas é sempre complicado entender como ela começa e o que aconteceu para chegar até onde chegou. Como o nascimento de um amanhã transita tão rapidamente para a conclusão da chegada do anoitecer. Às vezes o começo é tão parecido com o fim que é complicado distinguir qual é qual. Assim se dá à luz: Leves sons dos trabalhadores ao redor, formando uma cacofonia rítmica ao fundo. Luzes artificiais brilhando suaves por toda a cidade intocada pela luz natural, espalhando as sombras em uma imitação simples, mas satisfatória, do alvorecer, refletindo na neve branca e suave que se contrastava com o concreto escuro e rígido. O vento frio permanente e constante durante todos os dias devido a própria escuridão proeminente e falta do calor acolhedor dos raios solares, espalhava-se preguiçosamente por entre os prédios altos em sopros preguiçosos, quase como se ainda não totalmente despertos durante esse começo da manhã. No centro da praça principal da cidade enormes olhos verdes brilhantes iguais ao amanhecer encaravam a figura indiferente e imaculada de uma estátua que se erguia imponente no centro do lugar. Uma plataforma circular de concreto cinza elevando-a ligeiramente do chão da praça recoberto de neve, a imagem de pé de um homem com feições angelicais, mas severas, de olhos brancos e perpetuamente direcionados para o horizonte, se mantinha por gerações e mais gerações. Um símbolo. Qual tipo de símbolo?

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UMA ANTOLOGIA

Muitos diriam do progresso, do desenvolvimento, do futuro, com seus olhos sempre à frente, rosto altivo e com feições que marcavam alguém sábio, conhecedor dos mais profundos segredos do universo. Uma de suas mãos erguidas em oferta do conhecimento, livro aberto em páginas que prometem todos os segredos que seus olhos e feições resguardam, a outra está em suas costas onde guarda uma pena, o símbolo da liberdade e sabedoria. Não existem, no entanto, nomes que identifiquem sua imagem. Fundador, é como o chamam, a criança que o observa sabe, ela o reconhece das histórias contadas pelos adultos. Histórias grandiosas cheias de admiração e finalidade. Facilmente se recordando de como seus rostos se acendem durante cada relato, ansiosos para responder todas as perguntas, espalhar a palavra, mesmo que não saibam o nome eles sempre sentem orgulho no passado, no símbolo. Mas ainda assim, mesmo com todas as histórias e contos, todas as ilustrações e formas... — Eu não entendo. — o rosto juvenil se contorce em confusão enquanto observa a imagem à sua frente com quase, o que pode se dizer, desconfiança. O que é tão importante em uma única pessoa? Não é como se o que ele fez foi tão importante assim. Por que cantar tantas vitórias em um homem morto? Alguém sem nome? Não existe nada demais em sua figura, magro e simples. Parece idiota com suas vestes pomposas e rosto exibido. Não era culpa desse homem todos tinham os problemas que tinham agora? Por que glorificar alguém assim? — Por que essa cara, pequena? — com um sobressalto a criança rapidamente virou para encontrar a figura alta e zombeteira de um rapaz, definitivamente mais velho, com belos olhos amarelados. Ele não parecia perturbado pelo sobressalto, rindo baixinho ao ver a bagunça que a criança aprontou antes de se abaixar e ajudá-la a se ajeitar, muito divertido e satisfeito com o amuar que recebeu em retorno. — Eu disse antes de virmos aqui que temos que manter a vigilância constante, irmãzinha. Onde sua cabeça foi parar dessa vez?

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A criança, emburrada e resmungando, deixando que as mãos grandes e calorosas de seu irmão ajeitassem suas roupas agora desalinhadas, vagamente reparou como não existiam diferenças em suas vestes, além do próprio tamanho. Roupas escuras, pesadas, casacos de luvas, calças, botas, cachecol e boné, sempre o mesmo para qualquer lugar onde olhassem. Tão tediosamente iguais. Ela não tinha a mínima ideia de onde seu irmão as tinha arranjado, bem sabendo que não tinham dinheiro para tais luxos, mas ainda necessários quando vagavam pela cidade. Afinal, eles tinham que se misturar para fazer seu trabalho, ela entendia isso, e vestir-se como o regulamento exigia recobrindo todas as diferenças que marcavam seu corpo era o mais importante de tudo. — Eu estava atenta! Você que é estúpido e não faz barulho quando anda! Ninguém pode te ouvir! — apesar da reclamação e irritação clara em sua voz infantil, indignada por ter sido repreendida, o leve tom de admiração pelas habilidades de seu irmão, o que sempre tinha quando falava sobre ele ou com ele, ainda permanecia presente, fazendo-o rir de bom humor. Com uma última encarada, seus olhos brevemente pousaram sobra a estátua mais uma vez antes de seguir caminho com seu irmão, passos apressados e difíceis a atravessar a neve acumulada na praça para adentrar em um dos muitos becos emaranhados nessa floresta de concreto. Tinham um trabalho a fazer. — Eu apenas não entendo por que eles são tão importantes. Não é por culpa deles que todos nos odeiam? Existia uma lenda, uma que todos conheciam e permaneceriam sempre a conhecer, que, há muito tempo, Norte e Sul viviam juntos na esperança de um glorioso futuro, usufruindo dos frutos da união e companheirismo. A paz que foi esquecida. Mas, em determinado momento de sua caminhada, alguns começaram a temer o caminho que estavam trilhando, questionando se realmente deveriam ir tão longe. Onde estaria o limite? Quando deveriam parar? E se fossem longe demais? O medo da consequência os fez

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acreditar que a busca pelo futuro, pela glória, era desnecessária, porque já a tinham. Entretanto, outros, aqueles que buscavam sempre o melhor e o que não poderiam alcançar, permaneciam insistentes que poderiam ser mais, ir mais longe, conquistar mais, abrir caminhos que nunca foram abertos. Duas visões tão dicotômicas eram destinadas a se colidir e, com o tempo, as discussões entre opiniões tão divergentes cresceram e crescem e cresceram até o ponto em que o que antes era uma pacífica cidade em espera para o amanhã lentamente se tornou a formula certa para uma poderosa implosão. Foi quando os Fundadores apareceram. Como um raio de luz e esperança, uma solução para seus problemas, dois irmãos, gêmeos, dotados de carisma e promessas, reuniram aqueles que discordavam e os dividiram em dois distintos grupos que se acomodaram em dois polos diferentes, afastados e isolados, para que assim pudessem crescer e viver como bem quisessem sem exigir do outro que caminhasse pelo mesmo caminho. Dizem que depois da grande divisão uma fenda se partiu entre ambos os lados, fisicamente separando aqueles que não poderiam conviver e se aceitar como eram. Cada qual partiu para criar o futuro que achava ser ideal e assim tanto a cidade do Norte como a cidade do Sul foram criadas, guiadas por vários anos por aqueles que as acolheram e as abraçaram com seu conhecimento e sabedoria. Como o sol e a lua, o inverno e o verão, a vida se seguiu para que ambos os polos jamais se tocassem novamente. — Eles fizeram o que acharam que era necessário na época, Cali. — o irmão resmungou, alto o suficiente para ela escutar, mas não o suficiente para serem percebidos pelo soldado que passava, com suas botas pesadas e engenhocas estranhas que guinchavam e chiavam com cada movimento de seu corpo trazendo um som bem característico que para a maioria dos habitantes da cidade era associado com conforto, mas, para eles, era nada mais do que o som doloroso da caminhada de um carrasco.

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Eles tinham um trabalho que precisava ser feito, o peso do pacote que traziam em sua mochila sendo mais pesado que suas próprias vidas carregadas em seus ombros ainda pequenos e jovens. A triste realidade de saber que precisavam do dinheiro daquele trabalho para a próxima comida, para as roupas que os protegeriam do clima imprevisível. A mesma realidade que os gritava, a cada passo, que o que faziam não era legal dentro dessa floresta de concreto e qualquer movimento errado os guiaria para o fim inevitável. Se fossem vistos ou encontrados, se descobrissem o que eram e o que faziam... Apenas pensar na possibilidade os enchia de ansiedade e medo, coração batendo acelerado enquanto se embrenhavam cada vez mais fundos pelas vielas e becos entre os prédios altos que tornavam todo o caminho ainda mais sombrio, mais escuro, principalmente com a lenta, mas constante, perda da iluminação artificial das lâmpadas que antes eram tão constantes. — Câmera. — a chamada suave, mas firme e demandante de seu irmão rapidamente a pôs em movimento, seus dedos cobertos pelas luvas grossas se moveram apressados, contorcendo-se sem ritmo ou propósito, uma energia esverdeada se formando ao redor deles, trepidando o ar, como eletricidade correndo ao redor de sua mão e unicamente de sua mão. Quase imediatamente a mesma energia envolveu as câmeras ao redor, mudando-as de posição para cobrir áreas as quais não passariam, longe da visão de seu caminho que agora se apressavam para caminhar, sempre atentos com qualquer passante que pudesse estar perdidos por entre as vielas normalmente desertas. Aquelas que não poderiam ser mudadas tiveram seus vídeos corrompidos ou mudados, tudo com o estalar ou balançar de um dedo, nenhum vestígio deixado para trás. — Se foi a melhor decisão no momento... — Cali, a pequena criança que acompanha seu irmão no trabalho de transportar a preciosa carga de um ponto a outro, sem nem mesmo saber seu conteúdo ou porque era tão importante, não precisando saber,

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se arriscou a perguntar, mesmo que soubesse que, ainda que não houvesse alguém nas proximidades, seria arriscado expor sua posição. — Por que todos eles nos odeiam? Magos. Eles eram magos e, como tal, não eram bem vistos. Não no Norte e muito menos no Sul. — Opiniões... Opiniões mudam, Cali. Em algum momento eles... Apenas decidiram que não gostavam do que fazíamos, do que somos. Não é culpa dos Fundadores, as pessoas fazem suas próprias escolhas e nos odiar foi uma delas. — Não é justo. Uma parte da lenda que foi esquecida por aqueles que não mais se importam com o resto da história, mas permaneceu na memória daqueles afetados por elas, é que depois de dividir a cidade em duas os Fundadores compartilharam seu conhecimento com aqueles que queriam aprender. Habilidades que deveriam ser impossíveis e ajudariam a reconstruir e remodelar a civilização como queriam. Aqueles capazes de aprender tais habilidades e prosperar foram conhecidos como Magos. Magos eram pessoas, qualquer pessoa, capaz de manipular uma energia exótica, como chamavam, que por sua vez conseguia dobrar os limites da realidade, tornando o impossível possível. Do mais simples, como criar água e fogo, até o mais complicado, como a manipulação do espaço e do tempo. Alguns, aqueles que conheciam sobre essa parte da lenda, acreditavam que os Fundadores foram os primeiros Magos conhecidos dentro de suas terras e aqueles que surgiram em seguida eram o subproduto de sua vontade, seus filhos de tudo, menos sangue. Mas assim como o progresso, apesar de habilidades tão ansiadas e desejadas, seu poder e sua diferença, as mudanças que o simples ato de ser capaz de usar magia trazia, acabou acarretando no medo ou na cobiça daqueles que não eram capazes de usar. O conhecimento para produzir novos Magos foi perdido com o passar dos anos depois da morte do criador, mas a magia nunca realmente sumiu. Pessoas mais sensitivas lentamente co-

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meçaram a surgir entre aqueles que nasciam comuns, natos para o que passou a ser uma sabedoria perdida, diferentes daqueles que agora se fixavam em ambos os hemisférios. Abominações, alguns chamariam. Animais, outros sussurravam. Mas não humanos, nunca humanos. Humanos não deveriam ser capazes de fazer o que eles fazem, ter a aparência que tinham. Agora eles não tinham lugar, uma minoria que permanecia a existir, ignorada por aqueles que outrora chamou de irmão. — A vida normalmente não é. Humanos normalmente não são. Nós apenas temos que aprender a viver com isso. Foi fácil descobrir quando chegaram em seu ponto de entrega. Não apenas devido a própria aparência de seus arredores que se divergia do resto da cidade. Apesar dos mesmos prédios de concreto escuro que se erguiam até onde a vista poderia alcançar, passando por sobre as grossas nuvens que encobriam os céus durante todos os dias e noites, mergulhando a cidade na escuridão constante, seus formatos eram diferentes dos que se encontravam nas áreas mais nobres e centrais da cidade do Norte. Brutos, mal cuidados, printados e quase derrubados, alguns se encontravam abandonados, outros tinham avisos que alertavam sobre possível desmoronamento. Prédios velhos e esquecidos como seus habitantes. Mas não eram, definitivamente, o maior indicador de sua chegada. Eles sabiam que estavam no lugar certo porque na frente de um dos prédios um homem se encontrava parado, de pé em frente a um dos vários prédios daquele bairro tão pobre. Sua aparência foi o que chamou mais a atenção, exatamente porque não se misturava com o ambiente a seu redor, destacando-se como uma ferida infeccionada. Primeiro porque não vestia as roupas normatizadas pela cidade, ainda que estivesse bem agasalhado para se proteger do frio. Tecido colorido se destacava contra a paisagem branca e preta ao seu redor, chamativas e desalinhadas, totalmente contra as normas de vestimenta de um cidadão comum, mas ele não parecia se importar, com sua postura relaxada e folgada esperando-os se aproximar.

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Não era surpresa também que não se importasse vendo suas características tão descobertas. Esse era o segundo ponto que o destacava e provavelmente o mais importante. Ele era um Mago e não tinha vergonha de mostrar que era. Magos eram fáceis de distinguir dos demais exatamente porque não compartilhavam a pele, cabelos e olhos claros que a maioria dos habitantes da cidade do Norte compartilhavam, mas também não tinham as características escuras que todas as pessoas que viviam nas terras ensolaradas do Sul possuíam. Não, Magos se destacavam exatamente por não terem nenhuma característica em particular que os marcava como tal. Eles poderiam ser tudo e qualquer coisa, coloridos e diferentes. Diversos, era uma maneira de colocar. O homem a frente, o qual se aproximavam com cautela, orgulhosamente mostrava seus cabelos vermelhos brilhantes assim como sua pele morena coberta por pequenas e delicadas manchas por sobre seu rosto que se misturavam com grotescas cicatrizes de batalha. Seu sorriso era enorme, insano, com caninos pontudos e afiados que deixavam seu aspecto mais animalístico do que Cali jamais viu, mesmo nos animais que muitas vezes se aventuravam ao redor de sua casa uma vez ou outra. Tinha olhos azuis que queimavam e brilhavam no escuro do lugar, corpo largo e alto, de braços e peitos grossos de alguém que praticava constantemente. O que ainda estava para ser discutido. Seus traços eram humanos, Cali poderia dizer, mas suas cores não eram. Suas cores eram Magos, ainda que sua postura orgulhosa não combinasse com nenhum Mago que ela jamais tivesse conhecido alguma vez, sem temor de ser visto ou descoberto mesmo que as consequências de tais foram o fruto dos mais profundos pesadelos da garotinha. — A carga? — a voz grossa e profunda do homem perguntou, quebrando o silêncio que se formou quando se aproximaram o suficiente para fazer contato. — O pagamento? — seu irmão rebateu, desafiante, ainda

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que não fosse metade do tamanho do homem que tinha a frente e provavelmente não tendo também metade de seu poder. — Vocês, Fugitivos, estão ficando muito atrevidos ultimamente apesar de serem ratinhos covardes. — o homem riu, alto, divertido, ao mesmo tempo que estendia um maço gordo na direção de seu irmão que, ao mesmo tempo em que erguia uma mão para pegar o meço erguia a outra para entregar o pacote. — O tempo pacífico na Fenda parece estar fazendo bem a todos vocês. Fugitivos. Eles eram Fugitivos. Magos que evitavam o conflito e as áreas da cidade para viverem pacificamente dentro da Fenda, não aparecendo a não ser quando era extremamente necessário, como agora. O homem a frente era um Revolucionário, como se chamavam. Magos ativistas que usavam de seus poderes, de seus talentos e capacidades, para lutar contra a opressão dos “Normais”. Eles não se importavam com a violência ou quem seria atingido no meio do fogo cruzado, exatamente porque esses mesmos Normais nunca se preocuparam com eles quando os caçavam todos os dias. Era a primeira vez em todos os seus oito anos de vida que Cali via um deles, tão confiantes e orgulhos. Ela quase os invejava por serem capazes de agir dessa maneira e não se esconder em buracos como os Fugitivos como ela faziam. Esses eram dois dos muitos destinos que um Mago poderia ter quando surgisse. Magos não nasciam, não comumente, eles surgiam, como a maioria deles se referia, ainda que a possibilidade de um nascimento como um Mago não fosse fora das expectativas dentro de sua raça. Eles poderiam facilmente ter nascido de dois Normais, terem as mesmas características simples de cada um deles durante a maior parte de suas vidas, incapazes de qualquer produção ou manipulação de energia exótica. Até que, um dia, sem qualquer gatilho ou explicação, suas cores começavam a mudar, cabelo, peles e olhos se tornavam tingidos das mais diversas cores exóticas que poderia se ter existido e, lentamente, sua magia começava a

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se formar, dando-lhes capacidades que iam muito além do que se poderia explicar. Depois disso existiam várias decisões que poderiam tomar ou seriam tomadas por eles para continuar vivendo. Uma delas seria se esconder. Os Escondidos eram Magos que tentavam fingir ainda serem Normais, escondendo seus traços marcantes e coloridos de todos aqueles a seu redor para continuar vivendo suas vidas normais como sempre haviam vivido. Normalmente essa era a escolha de Magos que surgiam quando mais velhos. Outro passo era se tornar um Fugitivo. Nesse caso suas chances de sobrevivência eram maiores, sendo capazes de encontrar outros lugares onde poderiam viver sem precisar esconder o que eram constantemente, mas ainda caçados e procurados por todo o resto do mundo, correndo o risco de serem pegos e se tornarem Experimentos ou Cães. Experimentos e Cães eram Magos que apenas poderiam existir dentro da cidade do Norte, vendo como qualquer chance de sobrevivência terminaria a partir do momento que um Mago fosse encontrado no Sul. Histórias de terror eram contatadas por Magos que conseguiram, afortunadamente, escapar das garras dos soldados ao Sul, contos de fogueira e tortura e sofrimento intermináveis. Experimentos eram Magos pegos pelos soldados do Norte e levados para o centro de pesquisas, os laboratórios onde procuravam compreender e reproduzir os princípios da magia, a anomalia que muitas vezes era vista como uma doença virulenta que se espalhava por entre os celetos de seu povo, mas também a resposta para suas perguntas de grandeza e superação, uma forma de sobrepassar mesmo os limites impostos pelo próprio universo. Não se sabia o que acontecia com esses Magos, apenas que nunca mais seriam vistos; Cães, por outro lado, eram escravos. Magos que faziam contratos com as autoridades e trabalhavam junto a elas para capturar outros magos, os mais problemáticos. Não tinham escolha ou vontade própria, eram cães que apenas obedeciam a seu mestre e nada mais. Eles eram a principal resis-

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tência contra os Revolucionários, Magos cujo objetivo era criar uma nação onde poderiam viver por sobre a nação criada pelos próprios Normais. Para Revolucionários o pior tipo de Mago, o pior destino para qualquer um deles, era se tornar um Cão. Eles preferiam a morte. — Oh! O que temos aqui? Como vocês conseguiram uma nascida? — os olhos azuis do enorme homem pousaram em sua pessoa e sua voz profunda e carregada de interesse facilmente a tiraram de seus pensamentos. Um sorriso cheio de interesse facilmente caiu sobre si antes de seu irmão interpor-se entre ela e o Revolucionário que riu divertido. — Não se preocupe, ratinho. Não vou roubar sua garota. Mas eu gosto de seus olhos, criança. São olhos que ainda tem muita vontade de lutar. Se mudar de ideia sobre o que quer ser, sempre pode me procurar. Sempre temos espaço para mais Magos que desejam lutar. Seu irmão não parecia feliz com a ideia, rapidamente empurrando-a para longe do homem que continuava a rir, como se tivesse ouvido a melhor piada de todas, antes mesmo que tivesse tempo de pensar sobre o que acabara de ouvir. Eles se afastaram e partiram de volta para casa com o som ecoante das gargalhados do homem fazendo-lhes companhia. Loucos, era como a maioria dos Fugitivos se referia aos Magos que lutavam dentro dos domínios da cidade do Norte, a única cidade que tinham alguma chance, mesmo que pequena, de sobreviver. Cali achava que poderia ver o motivo agora, mesmo que uma certa fagulha de admiração e interesse tivesse se acendido perante tal confiança vinda de um Mago. Ela sempre admirou seu irmão não apenas pela maestria que fazia seu trabalho e como outros confiavam nele com sua sobrevivência dentro da pequena comunidade na Fenda que criaram, mas também por sua força e coragem. Mas ela não poderia negar que o ressentia um pouco por não lutar mais contra a opressão que constantemente caia sobre eles e tornava tão difícil a vida, forçados a ter vergonha do que eram, do que eram capazes.

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Ela não queria ter vergonha. Cali queria gritar aos céus suas capacidades e forças, mostrar ao mundo que a tratava como lixo como ela poderia ser poderoso. Queria poder parar de se conter, parar de se esconder, parar de fugir. Por tal, não poderia deixar de admirar também o Revolucionário que tão claramente fazia o mesmo que ela tanto ansiava ser capaz. — Lembre-se, Cali. — Seu irmão a chamou, enquanto caminhavam para fora dos domínios do Norte, afastando dos prédios altos e escuros e neve fofa e branca para se adentrar na fenda que separava os dois hemisférios, o buraco onde os Fugitivos haviam encontrado um lar para morar e ser quem poderiam ser. Seus olhos verdes, repletos de sentimentos complicados demais para serem compreendidos em sua idade, subiram para encontrar os amarelados de seu irmão, vendo agora seus encaracolados cabelos loiros como palha que outrora estavam encobertos pelo chapéu, recaindo sobre seu rosto em cachos delicados, sujos e oleosos. A seriedade que o tomava manteve presa sua atenção, apesar do quão caótica era sua linha de pensamento. - Mesmo que eles nos odeiem, mesmo que não tenhamos um lugar para ficar e sempre estamos fugindo e nos escondendo, nada de bom vai surgir se atacarmos de volta. Violência apenas traz mais violência. Entendeu? Ainda sobrecarregada, Cali consentiu, mesmo que não soubesse se tinha compreendido totalmente o que seu irmão queria dizer. Não seria melhor se defender? Lutar para sobreviver? Eles tinham poder! Eles eram fortes! Eles poderiam lutar! Mas ela respeitava seu irmão o suficiente para escutar suas palavras e seus ensinamentos e carregar sua vontade bem dentro de seu coração. A Fenda era literalmente uma fissura profunda na terra que se abriu há muito tempo, separando as cidades do Norte e do Sul que apenas se conectavam por uma ponte velha e enferrujada de metal retorcido que nunca era usada, nem mesmo para comércio. Ao Norte a neve e as sombras se alastravam por cada recanto de seu território, marcada por nuvens sempre carregadas de neve e cinzas. Ao Sul estavam o imaculado sol caloroso que sempre bri-

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lhava forte no céu, demarcado pelas árvores frondosas e ar paradisíaco. Ao centro, aonde ambos os polos se encontravam, a Fenda se destacava como uma ferida profunda na terra, não quente e não fria, não escura e não clara, caracterizada por seus ventos fortes, formações rochosas muitas vezes pontudas e perigosas e fauna e flora exótica, assim como seus ocupantes. Para descer era preciso encontrar um ponto particular onde existia um leve declínio nas paredes íngremes da Fenda. Escadas haviam sido esculpidas e entalhadas na pedra para guiar os ocupantes para o fundo, assim como dar acesso ao topo, feitas para serem imprevisíveis e de difícil passagem, desencorajando desconhecidos que não tinham uma forma particularmente mais fácil ou desconheciam os meandros particulares de seu uso. Ao fundo, onde Cali e seu irmão se dirigiam, estava o que poderia ser chamado de vila, repleta de pequenas e simplórias casas feitas dos mais diversos materiais que poderiam ser encontrados ou mesmo que não poderiam ser encontrados, incrustradas dentro das paredes da enorme Fenda ou espalhadas por seu largo e espaçado centro no qual se caracterizava uma planície terrosa que, em métodos convencionais, não poderiam ser semeadas. Cores banhavam cada pequeno recanto do lugar, nas plantas, nas moradias, nas pessoas, brilhando em vida e movimentação. Pessoas das mais diversas formas, tamanhos e cores caminhavam por entre as pequenas vielas que demarcavam a vila, suas casas iluminadas e um clima de festividade se erguendo por entre elas. Decorações que variavam de esculturas de gelo até fios de metal lentamente se criavam ao redor com o passar das pessoas, energia voraz crepitando pelo ar como uma fagulha inflamável que arrepiava a pele e acelerava o coração. Mesmo há alguns metros de chegar completamente ao fundo já era possível ouvir o som das vozes, da música e risadas das crianças que corriam de um lado para o outro se divertindo com as decorações que pouco a pouco eram postas pelos adultos. Era o Dia da Magia. Um dia entre eles, Fugitivos, que se

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comemorava a criação de sua espécie, o ensinamento compartilhado pelos Fundadores que deram origem a sua história. Era um momento em suas vidas que procuravam trazer alegria com o que lhes trouxe isolamento e tristeza, da um sentido positivo a algo que era visto como negativo. Empoderamento, Cali lembrou-se de um dos velhos na vila ter resmungando alguns dias antes. Era tomar para si o sentido que outros deram e dar-lhes um significado que lhes agradasse mais. Com o aproximar da vila seu irmão vou se tornando mais relaxado, seu enorme sorriso retornando para seu rosto pálido e pintado com pequenas pintas marrons, a seriedade de outrora totalmente desaparecida quando finalmente alcançaram o chão e a arrastou para dentro, dançando e rindo enquanto cumprimentava aqueles pelos quais passava com alegria. As roupas que haviam levado para o Norte agora guardadas dentro da bolsa que seu irmão carregava, deixando que aproveitassem a leveza de suas vestes mais simples e mais compatíveis com o ambiente que tanto estavam acostumados. A pequena vila não tinha muitas pessoas, nunca existiam muitos Magos, mesmo que fosse tão velha quanto a própria existência deles, portanto, não era tão complicado que reconhecessem tão facilmente os rostos ao redor, principalmente quando ninguém era igual a ninguém. A moça da padaria, de longos cabelos surpreendente verdes que adorava criar flores para misturar em suas receitas, fazia bolos e guloseimas deliciosas que adorava distribuir por entre as poucas crianças que viviam nas redondezas; O sapateiro, de olhos roxos como as galáxias descritas em livros roubados do Norte, que tinha uma especialidade com couro e poderia facilmente tingi-lo de todas as cores e formatos que bem desejasse, era insistente que todos vestissem a melhor qualidade possível, principalmente quando tantos animais peçonhentos adoravam passear ao redor junto a eles; O ferreiro, homem estranho, que tinha os olhos cor de ferrugem e cabelos tão negros quanto o carvão, que mesmo ra-

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bugento sempre tinha um brinquedo ou outro separado para dar as crianças que vinham à sua porta todos os dias para perguntar o que tinha feito. Todos diferentes, todos especiais a sua própria maneira, todos especializados em seus próprios conhecimentos e que criaram sua própria casa entre outros que compartilhavam de histórias semelhantes, mesmo nunca tendo os conhecido antes. Pessoas boas, pessoas estranhas, pessoas não tão boas. Pessoas. Cali adorava poder correr ao redor e fazer perguntas sobre tudo e todos, porque sempre existia algo novo para aprender, algo que apenas alguém sabia. Era diferente das terras na cidade do Norte onde todos pareciam iguais. Ela se orgulhava do que criaram, da forma como se tratavam, se orgulhava das pessoas que conhecia. A maioria não tinha mais casa ou família, vieram expulsos procurando refúgio, a maioria das crianças que ali corria e a chamava em vozes animadas e cheia de vida nunca conheceram seus pais e eram criadas por todos na vila, chamando cada adulto, cada senhor e senhora de mãe, pai, tio, tia, avó e avô, ela própria não sendo uma exceção. Todos eles, apesar dos sorrisos no rosto, carregavam olhares assombrados e carregados de um peso que não poderia ser explicado, pois conheciam a fome, o medo, a morte, conheciam o abuso, conheciam a tristeza e conheciam o desespero, crescendo mais rápido do que deveriam. O alivio que tinham era saber que existiam outros como eles, outros que compreendiam sua dor e sofrimento, que os acolhiam como suas famílias não se preocuparam em acolher. Com um último empurrão de seu irmão, sorriso encorajador em seu rosto, Cali desembestou na direção de seus amigos, muitos mais novos, outros mais velhos, e os acompanhou até o centro da vila onde o contador, homem velho e experiente, esperava sentado em um dos bancos. Feições envelhecidas pelo tempo, com a pele morena tão escura quanto o barro, mas olhos claros de cores leitosas, sempre caloroso observava sempre as crianças se aco-

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modarem a sua volta, animadas e excitadas em ouvir seu próximo conto, sua próxima história. Seus relatos de vidas que passaram, de vidas que viveu, de vidas que nunca existiram. Vorazes pelo conhecimento que ele estava disposto a passar e o único entretenimento que poderiam ter. Ele sorriria, esperaria que as petições fossem feitas, que decisões fossem tomadas, antes de balançar as mãos e pequenos bonecos feitos de delicados fios como teias se formassem a seus pés. A história estava para começar. — E o grande guerreiro despertou um dia, com sua pele escuro agora tingida de manchas brancas que se espalhavam por todo seu corpo, cabelos outrora negros como se orgulhava lentamente desbotando para um azul tão claro como o mar que jamais havia visto. Temendo o que aquilo poderia significar, o guerreiro procurou ajuda de seu irmão jurado, por muitas batalhas os dois passaram, lado a lado confiaram-se a vida, lealdade que nunca se viu. O guerreiro acreditou que se existia alguém que poderia confiar para o segredo manter, definitivamente esse amigo deve ser. Mas ao ver as cores em seus cabelos e as manchas em sua pele, tal amigo, que por tantas batalhas o defendeu, rapidamente o apreendeu e para os carrascos o levou para que na fogueira seja queimado como todos os outros que caíram como o agora condenado. Traído e sentenciado a morte o guerreiro, preso nas amarras cruéis de seus irmãos e povo que toda sua vida havia dedicado, sentido as labaredas do fogo começando a queimá-lo, usou de suas últimas forças para sua vida conseguir salvar. A energia libertou, manifestada de seu próprio desejo de viver, foi tão poderosa que mesmo o chão tremeu e os céus escureceu. Aproveitando o medo e o caos que criou, o guerreiro assim escapou, tão longe quanto poderia alcançar, para o mar que nunca jamais viu e uma vida longe daqueles que o traíram. — E depois? — uma criança perguntou, sentada sobre seus joelhos e inclinada para frente, ansiosa para saber o destino do guerreiro de fios de aranha encontrou depois de alcançar o mar.

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— Quem sabe? Talvez um dia o guerreiro retorne ou talvez ele tenha encontrado um lugar onde possa pertencer, onde não tenha que se preocupar com amigos que o levem a fogueira. — o velho respondeu, suas mãos nunca deixando de se mexer para acompanhar o movimento das marionetes que criou. — E ele encontrou? — Cali agora perguntou, olhos brilhando em curiosidade e excitação assim como todas as outras crianças ao seu redor, imergida completamente na história do velho contador. — Ele encontrou um lugar para viver? Um lugar onde seria aceito? — Talvez, talvez não. Talvez ele tenha encontrado um lugar pior ou talvez tenha encontrado o paraíso. Nunca saberemos. — a voz solene e profunda do velho contador encheu as crianças de sentimentos mistos de esperança e frustração, cada uma deixando sua imaginação ir tão longe quando poderiam alcançar com sua pouca experiência de vida, com seu pouco conhecimento sobre o mundo, ansiando, desejando, que um lugar tão bom quanto jamais poderia sonhar estaria logo depois das únicas terras que conheciam, da única realidade que eram capazes ver. Antes que o próximo conto começasse, no entanto, toda a magia se perdeu e os bonecos se dissolveram em fragmentos de luz que não deixavam rastros, como se nunca tivessem estado lá em primeiro lugar. Isso não porque a própria magia tinha desaparecido, mas porque a atenção do contador agora se encontrava em outro lugar. Seus ouvidos já não eram mais os mesmos, mas ele nunca se esqueceria do som de fogo quente sobre madeira crepitando e gritos ecoando, sejam de dor ou sejam de raiva. Eram apenas sons que você não esquecia, marcados na memória como ferro quente, cicatrizes incuráveis tão profundas que às vezes sangravam e sangravam até não sobrar mais nada. Em um salto ele estava de pé, as crianças já tendo notado que algo estava errado. Cali poderia sentir o calor começando a aumentar, trazido pelo vento que lentamente parecia aumentar com o cair da noite, crescendo e crescendo para uma ventania que

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aos poucos trazia também os cheiros fortes de madeira e carne queimada, os sons inconfundíveis de tiros e gritos de agonia e passadas apressadas. Toda a alegria do festival havia terminado. Logo a agitação não era mais de alegria, mas de medo. As crianças começavam a chorar e se agitar sem saber o que deveriam fazer, assustadas, apavoradas, encurraladas sem alguém para guiá-las, mesmo que o pobre senhor contador de histórias tentasse guiá-las na direção do refúgio, do esconderijo preparado para esse tipo de situação. Pois não era a primeira vez e não seria a última. Em pouco a moça da padaria, não mais jovial e alegre como a conheciam, se aproximou em passadas apressadas e esbaforidas, apressando cada uma das crianças a começar a correr. Seu e quvestido tão bonito, florido em um verde delicado, agora se encontrava rasgado, queimado e manchado em vermelho assim como seus sapatos. Seu rosto parecia preso em uma expressão de puro pavor, seus olhos assombrados pelo que tinha visto em sua caminhada até ali, mas Cali não poderia realmente se importar. Seus olhos presos no incêndio que se aproximava, no campo de batalha que lentamente se alastrava para as outras partes da vila trazendo o fedor da morte e da perdição. Não importava que a moça da padaria estivesse tentando puxá-la para junto das outras crianças, não importava o desespero em sua voz, os sons estavam embotados em seus ouvidos e seus olhos só poderiam enxergar a paisagem em caos a sua frente. Onde estava seu irmão? Sem pensar, coração tamborilando em seu peito descontroladamente, enchendo suas veias de adrenalina, desatou a correr na direção do incêndio, do campo de batalha, ignorando os gritos e os chamados. Mesmo quando ultrapassou a linha onde as chamas cresciam e engoliam tudo em seu caminho, onde poderia ouvir gritos desesperados de dor e agonia, mesmo quando pessoas desesperadas corriam ao seu redor procurando um lugar seguro, procurando desesperadamente fugir para salvarem suas vidas, sua

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mente apenas conseguia evocar a imagem de seu irmão o quão não era capaz de ver ou saber se estava bem. Chegou a saltar por sobre o corpo do ferreiro, já irreconhecível, manchado em sangue, cinzas e fuligem, seus olhos opacos encarando o nada meramente refletindo a luz das chamas que continuavam a queimar, queimar e queimar. Um nó se formou em sua garganta com a visão, a bile subindo antes de empurrá-la novamente para trás, olhos lacrimejando, ardendo devido as lágrimas e as chamas, apressando-se em continuar sua buscar sem parar para pensar no que tinha visto, mesmo quando o sapateiro passou correndo, esbravejando e gritando e implorando, pois seu corpo queimava em chamas que não conseguia apagar, correndo sem ter para onde fugir, sem o alívio da morte que lentamente se aproximava. Não pense, não pense, não pense. Gritou o nome de seu irmão, embrenhou-se por entre o caos que se formava e esquivou-se de soldados que passavam com suas engrenagens barulhentas e armas em suas mãos, alguns ainda muito ocupados em queimar as casas, matar aqueles que resistiam e arrastar ao laço aqueles que conseguiam por suas mãos. A Colheita havia começado. Cali não se lembrava de nenhuma, muito jovem quando a última acontecerá, mas as descrições e os relatos eram precisos e assustadores os suficientes para ela compreender, mesmo em sua inexperiência, o que estava acontecendo. Ela sabia, bem no fundo, em sua alma, em seu desespero, que se não encontrasse seu irmão, se não fugissem, era o fim. Seriam levados e desmantelados, dissecados em mesas frias de metal em prol do que era chamado de progresso. Ou seriam forçados a compactuar com seus captores por suas vidas, forçados a trabalhar em trabalhos ingratos contra seus próprios, ordenados como animais prontos para levar chibatadas apenas por respirar na forma errada na direção de seus supervisores. Com determinação em seus passos e desespero em sua mente, ela atravessou o caos, atravessou as chamas, atravessou o

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UMA ANTOLOGIA

medo e a travessou a dor. Quando seus olhos finalmente encontraram a forma de seu irmão, abrindo caminho para que outros pudessem fugir, um sorriso finalmente se abriu em seu rosto e alívio tomou seu peito, sentindo que uma parte de si poderia respirar novamente. Porém, ela se esqueceu. Cali se esqueceu que o caos ainda reinava e o perigo ainda não havia partido, mesmo que seu irmão estivesse bem agora o futuro era mais incerto do que nunca, doloroso e difícil. Ela era apenas uma criança, desesperada pelo único que a cuidara e amara. Quando a arma foi apontada em sua direção a raiva lhe tomou o peito, atiçada pela situação e pelo medo, seu grito poderia ter ecoado por todo o vale e congelado o tempo. Ao seu redor a energia se acumulou, ela poderia sentir a força crescendo e crescendo dentro de seu peito até o ponto de sentir que iria explodir, como um tsunami, uma correnteza poderosa, quebrando a barragem que era sua resistência. O fogo pareceu se afastar para dar espaço a sua raiva e a energia que crescia e escapava de seu pequeno corpo, as ferramentas e maquinários que os soldados carregavam com tanto orgulho, usando para exterminar seu povo, para atacar seu irmão, sem remorso ou hesitação, estalaram e chiaram, voltaram-se contra seus mestres quando a energia, tão exótica, tão nova, tocou-os com sua enfurecida agitação. O ar estalou, dessa vez não pelas chamas, eletricidade parecia encher o ar, chiando e faiscando, nenhuma piedade também refletida nos olhos tão novos e ferozes e uma criança de oito anos. — Cali! Cali, não! — a voz de seu irmão ecoou em meio a explosão, alcançando-a em seu momento mais sombrio. Não mais em perigo, mas sem poder se aproximar para consolar a garotinha, para tirá-la da linha de fogo. Como se a despertar de um sono, ou mesmo de um pesadelo, toda a energia se dissipou, Cali recordando-se das palavras de seu irmão quando deixaram o Revolucionário. Violência apenas traria mais violência e, ainda que achasse que eles mereciam, ela acatou a ordem, pois respeitava seu irmão e não queria que ele es-

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

tivesse em mais problemas. Seu interior ainda se enraivecia, mas agora seu poder estava de volta em seu controle, não mais controlando as máquinas ou afastando o fogo, o ar parou de faiscar e uma estranha tranquilidade tomou conta do campo de batalha. Ninguém parecia querer ousar quebrar o silêncio que tal demonstração de poder, de fúria, havia gerado. Vendo seu irmão agora fora de perigo, Cali deu seu primeiro passo para encontrá-lo, ansiedade queimando seu coração. — Cali! — mas seu irmão gritara novamente, feições contorcidas no mais puro e sincero pavor que ela jamais viu em toda sua vida. Por um momento se questionou o que poderia ser, seu poder já sob seu controle não mais causava problemas, não no maquinário e não nas chamas. Porém, percebeu, o olhar, tão assustado de seu irmão, não estava realmente olhando em sua direção, mas além dela. Seu rosto se virou para encontrar a arma apontada para seus olhos, o cano tão próximo que podia não apenas ver o vaco escuro dentro de sua forma, mas também sentir o calor de seu bafo raivoso, fumaça branca cheirando a pólvora queimada lentamente escapando, indicando que havia sido usada não há muito tempo. Oh. Assim se dá a escuridão: O som caótico da luta e dos gritos retumbando ao seu redor. O brilho forte das chamas que permaneciam a queimar e a crescer constantemente, alimentando-se das casas ao redor sem o menor pudor, lentamente consumindo a pequena vila, outrora tão alegre, às cinzas. O bafo quente da ventania que se alastrava pelo lugar, ajudando a espalhar as chamas para lugares mais longínquos e trazendo o calor insuportável das chamas, queimava seu rosto e ardia seus olhos, espalhando as cinzas com tal força junto a fumaça que era provável que mesmo a parte superior da Fenda deveria estar banhada pelos restos da vila e das pessoas que nela moravam, acelerando e acelerando no cair da noite, assobiando e rosnando como um predador noturno que apenas mostrava suas

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UMA ANTOLOGIA

garras quando suas presas estavam prestes a adormecer, em seu ponto mais vulnerável. Ao centro de todo caos, enormes olhos verdes, outrora inocentes, encaravam o rosto frio e indiferente da máscara do soldado que agora apontava a arma para seu rosto, vendo refletida em suas lentes frias nada mais do que o mais puro e sincero nada. Não havia emoções. Não raiva, não ódio, não medo, não havia nada que pudesse ver mesmo por detrás de tal equipamento, uma máscara de gás fria e insensível que recobria o rosto do soldado, como se mesmo respirar o mesmo ar que eles, seria o suficiente para infectá-lo com sua existência. Foi quando a pequena criança percebeu. Percebeu porque seu irmão não lutava, percebeu porque ele acreditava que a violência não era a resposta. Pois não existia vontade de captura nos olhos frios que a encaravam, mesmo que estivesse totalmente desarmada e despreparada, mesmo que fosse uma presa fácil, a única vontade, a única ação que o soldado a sua frente expressava era a de aniquilação completa. Afinal, ela era um perigo, uma ameaça, alguém que poderia facilmente derrotá-los, alguém que resistiria. Eles não precisavam daqueles que lutavam, eles precisavam daqueles que obedeciam, os desesperados e não os esperançosos. Se lutassem, se resistisse, então as chances de sobrevivência seriam tão nulas quanto as chances de convivência. Eles eram nada mais do que ratos encurralados em um labirinto. Foi assim, também, que ela percebeu. Percebeu que eles não os odiavam. Tudo isso, toda a dor e sofrimento e isolamento não era uma derivação do ódio, mas da apatia. E, com toda a sinceridade de seus breve oito anos, ela não poderia pensar em algo mais assustador. Pois ódio poderia ser mudado, sentimentos poderiam ser alterados, poderiam ser movidos, poderiam ser coagidos, mas a completa falta deles? O completo descaso e indiferença para com sua situação? Olhar uma criança nos olhos, sabendo que a vida dela estava em suas mãos, e puxar o gatilho sem sentir nada? O quão assustador não era essa perspectiva?

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

E o quão triste não era para que uma criança de meros oito anos esteja enfrentando tal triste realidade. Pois pior que o ódio e a raiva, era a apatia completa perante a vida de outro ser. Pois isso significava que ele não era nada. Não um animal, não um inseto e definitivamente não um humano, provavelmente menos do que um objeto. Tudo por serem diferentes. Na calada da noite, enquanto o fogo queima, o tiro ressoa e a inocência se perde.

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Estranho no espelho

Luana Rodrigues Pires

Tem um estranho no espelho. Você não sabe quando ele surgiu ou mesmo quando você se deu conta de que até mesmo estava ali, de frente para você do outro lado do seu espelho encarando de volta com petições e desconfortos. Você apenas sabe que existe um estranho em seu espelho que por algum motivo desconhecido parece... Errado. É difícil e complicado descrever, você o encara de cima a baixo, procurando o que te incomoda tanto na imagem. Talvez seja a forma, talvez seja o rosto, talvez sejam os olhos, talvez seja a boca, talvez não seja nada ou talvez seja tudo, você não consegue saber, não consegue achar, você apenas sabe que tem algo errado e isso te incomoda, tanto quanto incomoda o estranho no espelho. Você quer consertar, quer tornar o errado certo, fazer o estranho no espelho um conhecido, talvez um amigo? Um parceiro. O olhar que é transmitido pelo estranho lhe arrepia a pele e torce suas entranhas e, vagamente, você se pergunta se esse olhar não é um reflexo de seu próprio, assim como todos os movimentos do estranho parecem iguais aos seus. Sua jornada começa frustrante, sem saber quais passos são os certos e quais são os errados. Tentativa e erro, tropeço e levantar, destruir e recomeçar. Você veste e transveste o estranho cuidadosamente com os recursos que tem em mãos. Talvez uma blusa mais folgada, uma calça ou um vestido, talvez algo falte no cabelo ou talvez seja a maquiagem sobre o rosto, mas, de fato, nada parece realmente certo, sempre algo falta. O incômodo per-

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UMA ANTOLOGIA

sistente rastejando por sob a pele em uma coceira difícil de alcançar, formigando e arranhando enquanto a frustração cresce e cresce dentro de seu peito até o ponto que uma bolha se forma em sua garganta, guardando o grito que não quer escapar, não pode escapar. O estranho sempre te encara de volta, olhos conhecedores, compreensivos, mas frustrantemente quietos. Como se ele também não soubesse a resposta, mas se frustrasse tanto quanto você, pois não está certo, não se sente certo, como se a pele não fosse sua, o corpo não fosse seu, mas não sabe o que é então não tem como consertar. A coceira apenas permanece a crescer profundamente debaixo de sua carne, de suas veias, de seu sangue, rastejando como pequenos insetos escorregadios, formiguinhas incomodas que de alguma forma conseguiram passar pela epiderme e se aprofundaram nos vasos sanguíneos, caminhando e caminhando para cima e para baixo até você finalmente sentir e nunca mais conseguir esquecer o sapatear de suas patinhas zanzando de um lado para o outro. Ao ponto onde você deseja cravar as unhas sobre a pele e coçar, cavar e cavar até encontrar as formiguinhas e arrancá-las de dentro de você, tirar a carne por onde elas andaram a desfiar os vasos que exploraram, a máscara que você não consegue reconhecer. Tem dias, dias tranquilos e calmos em que você pode se dedicar completamente ao estranho no espelho, que o repara com um olhar mais atento, mais crítico, mais analítico. Você pensa, talvez seja a altura, alto demais, baixo demais; você pensa nos ombros, muito largos ou não largos o suficiente; você pensa no rosto, muito fino ou muito grosso, não o formato certo; você pensa, talvez, apenas talvez, seja o gênero. Você olha para os seios, para o quadril, para os braços, observa a curvatura da cintura, das cochas e dos ombros, observa o cabelo, os lábios, os olhos. Você decide que não gosta que a forma esteja errada, a aparência está errada que o gênero está errado. Mas saber disso não torna o trabalho mais fácil.

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

O estranho no espelho enrubesce e se contorce enquanto você o desveste tão forçadamente, arrancando-lhe a roupa, a pele e a carne para chegar até seu ser, seu núcleo, o que o faz o que é. O que parece errado. Você não sabe se gosta da resposta, mas não tem como mais voltar atrás, porque a máscara foi retirada e agora você tem que pôr as peças de volta no lugar da maneira correta ou então as formiguinhas vão voltar e vão caminhar e caminhar até te deixar louco, você apenas precisa fazer isso certo. Aos poucos, você encontra o que gosta e o que desgosta, vê o estranho no espelho lentamente se transformando, se formando para algo confortável, compreensível, amigável, algo certo. Você ainda consegue vê-lo se contorcer às vezes, bochechas escuras polvilhadas de vermelho profundo enquanto te encara de volta, timidez em suas feições, mas uma satisfação proibida escondida por trás de seus olhos. Você sabe que a imagem lhe agrada, mas o estranho gosta de se esconder, mesmo quando você passou tanto tempo tentando descobri-lo. Você o entende, e às vezes você odeia que consiga entendê-lo. Odeia que saiba o quão difícil é para ele aparecer, para mostrar o que é, o que se sente confortável, o que goste e o que não goste. E se não gostarem? Às vezes, você pensa, você o odeia. Odeia o estranho no espelho, odeia como apenas sua existência fez seu mundo todo mudar. Você odeia que ele tenha lhe apresentado os erros, as falhas, porque, até aquele momento, não eram erros ou falhas. Não havia problemas, não é? Eles diziam que não tinha, você era meio estranho, como o estranho no espelho, mas estava tudo bem. Tudo estava bem. Você poderia ter vivido sem saber, poderia ter crescido sem saber, não precisava saber. Poderia ter suportado as formiguinhas, suportado o desconforto, poderia ter suportado. Era ruim? Ruim que quisesse agradar o estranho no espelho? Era errado querer vê-lo sorrir? Se sentir confortável em sua própria pele pela primeira vez? Era errado querer se livrar das formiguinhas? Do desconforto? Do que estava errado?

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UMA ANTOLOGIA

Por que sentir vergonha? Às vezes parece que os olhos do estranho no espelho te perguntam. Por que se esconder? Do que tem medo? Do que está fugindo? Mas o olhar no estranho do espelho, apesar de estranho, ainda é preferível aos olhares que lhe seguem e lhe julgam. São preferíveis do que a rejeição, a dor, o sofrimento, a exclusão, a negação, a categoria. Às vezes você olha para aqueles ao seu redor, faz perguntas e recebe respostas e não pode deixar de se maravilhar como nenhum deles parece ter dúvidas sobre si mesmas. Isso te frustra também. É apenas você? Apenas você tem um estranho em seu espelho com enormes olhos questionadores e cheios de pedidos impossíveis de aceitar? É apenas você que duvida? Que não tem certeza? Você está sozinho? Tem dias, os piores dias, turbulentos e cheios de dúvidas e lamúrias e formiguinhas, que a bolha em sua garganta cresce o suficiente par ser difícil respirar, o suficiente para te fazer chorar e implorar aos céus para que pare. Faça-te normal, faça as formiguinhas sumirem, faça você ser igual a todos os outros, porque o estranho no espelho às vezes é muito feminino e às vezes é muito masculino e você odeia, odeio tudo isso, odeio como não parece certo, como dói, como frustra. Por que te fizeram assim? Por que te fizeram errado? Todos são certos, por que você é o errado? Você não quer ser errado e você odeia o estranho no espelho por mostrar o quão defeituoso você é, o quão feio e horrível você é. Você deseja nunca ter sabido a verdade, deseja nunca ter cavado por entre o sangue e a carne e a pele para encontrar a terrível verdade. A mentira é doce como mel e a ignorância é a felicidade incompreendida do paraíso. Se você nunca tivesse descoberto então você seria certo, não é? Talvez você apenas tenha que querer ser certo, não tem que mudar nada você só precisa aceitar o que você é e esquecer o que você não é, não pode ser. É o que todos dizem, é o que todos parecem dizer. Se você nasceu assim é porque você deve ser assim, por que mudar? Por que ser outra coisa? É simples, por que complicar?

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Mas o estranho no espelho parece não gostar do simples. Quando ele volta com o que não gosta, com a aparência que não lhe encaixa, com a forma que não é sua, as formiguinhas se tornam mais persistentes, mais vorazes, subindo e descendo, explorando onde não se pode explorar, fazendo coçar onde não consegue coçar. O estranho no espelho parece desesperado e você odeia que te olhe assim, como se você fosse o culpado por sua timidez, sua covardia, sua incapacidade de se encaixar. “Eu te odeio!” você grita para o estranho no espelho, lágrimas banhando seus olhos enquanto a unha cava a carne como se quisesse arrancá-la de uma vez. Uma pele que não é sua, um estranho em seu próprio corpo. “Eu te odeio! Te odeio! Te odeio por ser assim! Te odeio por me mostrar que estava errado! Te odeio por me mostrar a verdade! Te odeio por me fazer diferente! Eu apenas quero ser normal, como todo mundo! Por que você tinha que me mostrar que tudo estava errado quando deveria ser certo?!” E, como sempre, o estranho não lhe responde. Ele encara rosto corado e agitado, olhos queimando em julgamento, como se também te odiasse, respiração ofegante igual a sua, talvez pela frustração de te ver tão agitado, tão inconformado com o que é. Que culpa tem afinal? É apenas um estranho no espelho. Um estranho que procura se encontrar, não pediu que você manchasse suas mãos com seu sangue ao cavar em sua carne e pele, não pediu que você encontrasse o que não gostava, apenas queria se sentir confortável em sua própria pele, livre das máscaras e coberturas que lhe eram impostas. Alguns dias, os não bons, mas também não ruins, apenas dias, você tenta aplacar o sentimento, encontrar um meio termo, uma forma de fazer o estranho no espelho parecer certo sem ser certo. Você rapidamente percebe que é mais frustrante do que tentar ser o que não é, menos doloroso, mas mais frustrante. Porque é próximo, mas não lá, ainda não. Não é feminino o suficiente ou masculino o suficiente. Fe-

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UMA ANTOLOGIA

minino demais ou masculino demais. Às vezes não é balanceado o suficiente, a neutralidade lhe escapa não querendo nem um nem outro. Outras a mistura não parece adequada, não é o balanço perfeito o exato intermédio das duas faces. Em noites muito escuras, no silêncio de seu quarto, sem ser capaz de encarar o estranho em seu espelho, você se pergunta se existem outros iguais a você. Você chora e lamenta se perguntando se está sozinho, ansiando por alguém que não apenas possa compreendê-lo, mas ajudá-lo nessa caminhada árdua que é para não apenas aceitar o estranho em seu espelho, mas também encontrar a imagem certa que lhe cabe. Uma forma de não se sentir mais um estranho dentro de sua própria pele, um intruso em uma face que não é sua, brincando no teatro de outra pessoa em um papel que não era o que você queria. “É tão errado querer ser o que não nasci sendo?”, os olhos do estranho parecem lamentar e você não pode deixar de se questionar o mesmo. Tão errado é? Tal pecado de ansiar se sentir confortável em sua própria vida, nas rédeas do que lhe foi dado. É muito ganancioso de sua parte querer mais? É egoísta querer mudar? Querer se encaixar sem ser rejeitado? Ser o que sente que deveria ser? Tempo, não demora a descobrir, é a resposta mais simples para a maior parte dos problemas que se resumem a indecisão. Aquele que procura o caminho que anseia a encontrar, com o tempo, encontrará a estrada que vai guiá-lo para onde deseja ir, com pessoas que também possuem um estranho no espelho, que também passaram pela mesma luta e sofrimento que você passa todos os dias tentando decidir e distinguir o certo e o errado, separando opiniões e sugestões e visões que lhes foram apresentadas até finalmente encontrar a sua própria. Elas vão sorrir e abraçar o que você desenterrou debaixo de sua carne. Vão limpar o sangue de suas mãos com palavras empáticas e animações ansiosas, vendo você como um deles. Vão ensinar a ter confiança, a caminhar em suas próprias pernas e

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

aceitar a si mesmo antes de olhar para o outro e se perguntar o que pensa. Eles vão te mostrar o estranho no espelho e apresentá-lo como um amigo e não um estranho que deve ser derrotado, que deve ser odiado. “Você pode ser o que quiser.” Eles dizem, às vezes sem nem mesmo terem seus próprios estranhos no espelho, sem terem passado por lutas parecidas, mas compreensivos da mesma forma. Amáveis, gentis. A aceitação que você não conseguia encontrar em si mesmo agora é refletida em olhos alheios que lentamente te convencem que você pode ter isso para si mesmo também. Libertar das amarras da atuação e começar a viver finalmente. “Um passo de cada vez. Apenas um passo de cada vez, até encontrar quem você realmente é.” Ainda existem dias que você vai encarar o estranho em seu espelho e odiá-lo. Ver o que era, o que foi errado e você quer apagar. Momentos que as formiguinhas debaixo de sua pele se tornam insuportavelmente sensíveis e você manchará suas mãos de sangue novamente, cavando e cavando como uma punição por ter nascido errado, por ser errado, por ser diferente. Dias que os olhos de julgamento são maiores e mais numerosos que os olhos de compreensão e acolhimento, que as palavras são duras e frias e cortam sua carne e te fazem querer encolher e esconder debaixo de sua cama, debaixo das cobertas como fazia quando era ainda uma criança e tudo era mais simples e mais fácil de entender. Mas esses são os dias ruins. Dias sofridos, mas lentamente escassos, raros. Nos dias normais, você sorri, encarando o estranho no espelho que parece mais feliz do que nunca, finalmente sentindo-se livre, longe das amarras do teatro de sua vida para caminhar pelas ruas com as roupas certas, o cabelo certo, a forma certa, o olhar certo, a vida certa. Existe um estranho no seu espelho e você o acolhe como um velho amigo.

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(Ex)pressões

Roberta Colen Linhares

Em terra de cego quem tem olho é rei? Não. É capacitista, Alma mumificada, corpo-sarcófago. O pior cego é aquele que não quer ver! Juízo de valor, Véu da ignorância. Fica dando uma de João sem braço! Metonímia infeliz do corrupto, Burguês disfarçado de político. Mudinho, aleijado, retardado... Narrativas estereotipadas, Minorias sociais oprimidas.

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UMA ANTOLOGIA

Nordestino cabeça chata! Segregação geopolítica, Xenofobia. Bicha, veado e mulherzinha! Discurso de ódio, Homofobia. Loira burra e piranha, merece morrer! Objetificação feminina, Herança machista assassina. Preta preguiçosa e macumbeira! Rastro violento do racismo, Intolerância religiosa. Autista, anjo azul! Romantização que desumaniza, Infantilização. Conhecer, conviver e respeitar! Desconstruir o senso comum.

plot twist da vida.

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金星の崩壊 (Colapso de Vênus)

J.W.J Oliveira

Diziam que era muito grande Mas não era sua grandeza o que viam Enxergavam apenas a crosta Então tentou diminuir E foi diminuindo, diminuindo Encolhendo, reduzindo, apoucando Porém não percebia Seu espelho era si mesmo E seu reflexo era muito trapaceiro Disseram, e ele escutou Escutou tanto que repetiu E só sabia repetir

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UMA ANTOLOGIA

E afrouxou e murchou E chorou e sofreu E seu reflexo continuou a trapacear Então esbranquiçou e esmaeceu E, enfraquecido, adoeceu E já não era grande Nem por fora nem por dentro Já não tinha tamanho Nem o espelho mais refletia Era sem forma e vazio

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Identidade

J.W.J Oliveira

Eu sou o axé Eu sou o maracatu Eu sou a araruna Sou o bumba-meu-boi Sou a mangabeira e a carnaúba Sou Ariano, Elba e Pedro Zabelê e Metara Graciliano e Djavan Eu sou o sertão, o agreste, o mangue Sou a terra onde canta o Sabiá Onde as aves gorjeiam como não gorjeiam em outro lugar

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UMA ANTOLOGIA

Sou o fogo morto, a bagaceira, o pescador de caranguejos Sou as terras do sem-fim, onde mora o sertanejo Eu sou Carnaval e São João Quadrilha, fogueira, balão Sou o início e o fim de Virgulino Onde o candeeiro alumiou e foi apagado Sou preto, branco, amarelo, vermelho Sou multicolorido e não tenho cor Sou muitos e sou um só Eu já tive tantos nomes Conceição, Gabriela, Macabéa, Dandara Já fui Fabiano, Severino, Volta Seca e João Grilo E não estou só em mim Fiz minha descida pelo país Pra ver se um dia, quem sabe, Descanso feliz

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

É... tão cheio de histórias Não sou nenhum esboço E, pra saber quem sou, Não é preciso qualquer esforço Pra me conhecer, apenas basta saber Que não sou nenhum besta, seu moço

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Phóbos (恐怖)

J.W.J Oliveira

Tenho medo por não ser como eles Nossas diferenças sempre foram um abismo Não nos conhecemos Não nos gostamos Tenho medo de que falem comigo Que suas palavras me cortem como navalhas Que seus olhares frios acabem me congelando Que mesmo sua respiração me deixe sem ar Tenho medo de que invadam meu quarto Sua fúria nunca deixou minha memória Eles não têm nada contra mim Ainda assim me perseguem incessantemente

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UMA ANTOLOGIA

Tenho medo de que me machuquem Que tirem de mim todo o nada que possuo Que me façam sentir a dor de ser inocente E que me culpem por senti-la Tenho medo de que o medo deles acabe me matando Entendo que o medo, às vezes, nos torna irracionais Estou sempre alerta e não posso baixar a guarda Não os quero por perto Não importa o quanto eu corra (Parem!) A maior distância ainda é curta demais (Por favor!) Chego sempre ao mesmo lugar (Não!) Sempre retorno a mim (Perdão...) — Mas vocês não se importam, não é?

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Uma bolada

J.W.J Oliveira

Inesperada, vinda do nada No ouvido Logo depois, o zumbido Uma bolada Uma bolada de ódio Um ódio invisível Do qual eu nunca soube o motivo Um ódio onipresente Sem forma fixa Mas que tinha seu gênero Sempre bem perto de mim

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UMA ANTOLOGIA

Uma bolada Forte e certeira Ouvido esquerdo zumbindo O direito captava as risadas Uma bolada Uma vez Não a primeira Talvez não a última Um medo Todas as vezes Sempre o mesmo medo Sempre o mesmo resultado Foi uma bolada Foram risadas Não teve ajuda Foi silêncio Ignorei E continuei andando…

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Carimbo

Waldir Freire da Silva Neto

Verdades. O que são verdades? Como são essas verdades? Como se criam essas verdades? Quem as escolheu como verdade? Pior, quem vestiu o meu corpo e as escolheu como sendo as minhas verdades? A única verdade que me atravessa, é a de que a carne vai em busca da carne. Seja qual for a carne. Seja quem for a carne.

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UMA ANTOLOGIA

A nossa preferência? Foi sendo des-re-construída por experiencias, por valores impostos por uma tal “sociedade”. Aquela mesma, que coloca o preço nos açougues, agride, viola e impõe valores se, por acaso, você for uma parte das diversidades, se for contra às suas verdades. A sociedade insiste em tentar racionalizar um instinto animal, que só quer nos mostrar que, na verdade, a carne só procura a carne.

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Nós

Ana Carolyne Batista dos Santos

Ela gosta de refri, ele prefere suco. Maria come de colher, João gosta de garfo. Eles amam o frio, só Marcos que não gosta. Ela fala alto, sua amiga é mais discreta. Marcela ama doces, José só come lights. Ângela é da moda, mas seu irmão é do futebol. Maria vai ao culto, Sandro vai à missa. Branco, negro, amarelo e ruivo. Alto, baixo, médio e anão.

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UMA ANTOLOGIA

Gordo, magro, “modelo”. Crente, ateu, espírita, católico... Pobre, rico, bilionário... Somos nós, somos humanos. Somos o que somos e estamos em toda parte.

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Sapatos

Natália Schimpf

Pra me apontar e me criticar Antes ande em meus sapatos Hoje eu acordei pra ser feliz Mas a felicidade foi passageira O mundo a minha volta ergue muros E queima bandeiras Bandeiras tão difíceis de tecer Ver o outro apanhar por quem é Ou por quem quer ser Ver seus sonhos desmanchar Aos pés dos que os veem morrer

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UMA ANTOLOGIA

Pra me apontar e me criticar Antes ande em meus sapatos Você pode falar o que quiser Mas você não pode me ferir É seu direito ir e vir Mas só até o começo do meu gramado A sua bandeira não é maior que a minha A sua causa não é mais especial Você é mais no mundo, buscando pelo essencial Pra me apontar e me criticar Antes ande em meus sapatos Corra a minha maratona Sue a minha camisa Habite a minha carne E mesmo assim você verá que calça outro número

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Vacas

Ramon Linhalis Guimarães

Às vacas malhadas: Ah, as vacas... Se as vacas soubessem de sua força, Se acaso vislumbrassem, No arame farpado, A imagem Do inepto mal esticado...

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UMA ANTOLOGIA

Se as vacas soubessem... — Coragem! Que uma simples peitada Romperia os fios Que as mantêm, Que as retêm Nos cercados; Se soubessem resgatar sua consciência, Descobririam o que é liberdade E que o pasto, Uma fração insignificante do todo, Revela-se apenas uma distração Para mantê-las em seu estado de exposição. Isoladas Crescendo e procriando. Sempre isoladas Crescendo e procriando. Indefinidamente, Ordinariamente, Num ciclo de vida artificial, predeterminado, Predestinado!

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Se as vacas soubessem que existe vida após a morte. Se, ao menos, reconhecessem os falsos profetas; Se as vacas percebessem os benefícios da dieta vegana; Se compreendessem que o silêncio é cúmplice E se enxergassem os efeitos deletérios do regresso ao passado mitificado, Certamente desertariam. — Coragem! Romperiam os fios que as coíbem E não mais permitiriam qualquer tipo de submissão. Nunca mais!

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UMA ANTOLOGIA

Se as vacas soubessem o preço da arroba; Se soubessem que, no cercado, possuem destino traçado; Se as vacas ruminassem não somente as coisas sensíveis, Senão ainda as ideias; Se as vacas deixassem de viver na condição de ignorância, Não permitiriam o consumo de sua carne, Não aceitariam a futilidade da morte que lhes é imposta. Sairiam das sombras, E declarariam guerra à humanidade. Civilização? Não, irmandade, Seleto clube, Sem razão, Sem coração, Sem... — Coragem!

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De-versos

Stefany de Jesus Silva

Diversificar o descompasso do andar, olhando apenas pra onde eu quero chegar, sem temer o que vão falar. Falam da cor, do gênero, dos cabelos, dos espaços entre os dentes, das cicatrizes nos rostos. Parem de dizer, deixem quem quiser ser. Quem nasceu é e ponto.

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UMA ANTOLOGIA

Não devemos nos justificar porque nascemos e somos diferentes, belos, sem ter que decorar o nó. Aqui existe salvação. Existe remédio pra loucura. Amar o eu; Deixar o tu viver o eu. Ser sem enlouquecer. Ser a essência mais pura de você. Ei de crer que logo ali, existe: Liberdade Livre Identidade Liberdade. Vivemos num complexo: nos morros, nos colos das mães solo, nas dores dos nossos corpos. 110


DIVERSIDADE NA PALAVRA

Querem nos acorrentar, nos calar? Jamais vão conseguir. Somos diversos. Deversos. De versos. Cheios de versos. Eu não quero ser Discreto. Não vou dizer meu canto baixo. Vou G R I T A R

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Argila

Rafaela Neves Alves da Silva Medeiros

Qual é a minha forma? A alma tem cor? Sou argila em movimento, Sou a palavra que busca o poeta para o nascimento do poema. De qualquer forma pode ser meu corpo. Afinal, cada palavra de um poema não o pertence, Mas foi alisada delicadamente pelas mãos do poeta para se /encaixar ali. Então, por que ser preso a uma forma que conforma tudo que /tenho que ser? Com um padrão cheio de normas que até descaracterizam você?

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UMA ANTOLOGIA

O mundo é diverso por natureza, Mas muitos só querem se igualar a uma regra inexistente. Usurpadores de si mesmos? Por que ser resistente quando o assunto é simplesmente ser? Rigidez excessiva? A vida só pede viver e viver. É preciso entender as diferenças E não tentar enganá-las. Seja por crenças ou descrenças... Aceitar ou não aceitar o que é imposto Já é um passo para lhe desenformar E não conformar com tudo que os outros desejam. A pele não faz ninguém melhor E cada história merece seu respeito. Cada olhar é único, Ele traz a sua história, cultura, raça, língua e etnia. O seu olhar é vivo, Engasga, desengasga e diz Até mesmo o que você sente ou sentia, Tudo aquilo que doía ou lhe fazia sorrir.

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Mas o que sou eu senão um pedaço do todo? E se sou parte desse todo Por que ele próprio pode rejeitar E só aceitar o que não é de mim? Tenho meus hábitos, crenças e conhecimentos Que fazem parte de todos os seres que não são distintos de mim. É preciso respeitar o que é diferente, Mas a maldade às vezes corre pelo sangue... Tão vermelho quanto de qualquer outro. Rigidez excessiva? A vida só pede viver. Viva! Mas não se esqueça de esquecer-se de sofrer. Diga! Seja em qualquer idioma sem ter medo de dizer. Diga! Em qualquer sotaque quem é você. O que te define te faz crescer...

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UMA ANTOLOGIA

O seu corpo é um barro em movimento. Ganha forma com o toque delicado. Beba da sua liberdade de ser Que está dentro de você. É preciso se movimentar até encontrar a sua forma. Molde cada parte E sinta o frescor de ser alisado pela vida. Argila em movimento... Corpo em movimento desde o conceber. Querendo nascer, Querendo ser o que tiver que ser sem impedimento, Querendo viver o que tiver que viver Sem o sofrimento de sofrer por ser.

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Amálgama

Roberta Colen Linhares

Planetas, luas, estrelas, galáxias, um universo excêntrico Verão, outono, inverno, primavera, o tempo em metamorfose Água, terra, fogo, ar, a vida em movimento Irregularidade natural da existência Masculino, feminino, andrógino, essências heterogêneas Mamífero, anfíbio, réptil, crustáceo, inconstância abundante Campo, cerrado, caatinga, mangue, riqueza dessemelhante Fenômeno corporificado Cor, som, textura, sabor, janelas do conhecimento Dança, canto, pintura, escrita, experimentações miscíveis Arte, cultura, língua, ciência, inquietações em ebulição Transmutação

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UMA ANTOLOGIA

Seres camaleônicos Espécies mutáveis Diversidade Amálgama da sobrevivência

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Idade da adversidade Aline Palmieri

Quando estava perto de chegar lá, pensei que ainda tinha um longo período para percorrer A voz delas e deles, em conjunto com a reverberação da minha, fazia com que muitos acreditassem que o tempo havia expirado “Corra, antes que seja tarde”, elas e eles diziam Eu nem queria aquilo, mas corria atrás daquilo que elas e eles queriam A corrida que fui obrigada a correr só me deixava mais atrasada, já que ela só me fazia tropeçar nas reflexões

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UMA ANTOLOGIA

Eu segui tropeçando nas coisas importantes para mim, mas, para elas e eles, os tropeços eram bobagens de gente /inexperiente A casa onde o vinho efêmero está guardado é atrativamente /subversiva, porém, se eu continuar a correr sem tropeçar, vou ter o mesmo /final dela e, elas e eles, terão a certeza de que corri em vão em nome delas e /deles

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AUTORES

Aline Palmieri Pós-graduanda em Revisão de Textos pela PUC Minas. Já atuou como assistente de redes sociais, redatora e produtora de conteúdo em empresas relacionadas a jogos digitais. Atualmente, é User Experience Writer, ou seja, redatora da experiência do usuário, na CashMe, uma empresa de tecnologia do ramo financeiro. ⌇

Ana Carolyne Batista dos Santos Meu nome é Ana Carolyne Batista dos Santos, nasci em Guanhães, Minas Gerais, no dia 02 de novembro de 2000. Sou graduanda em Letras – Bacharelado e me encontro no segundo período. Comecei a escrever em 2020 e, por enquanto, sem publicação. No entanto, no mês passado, meu poema foi selecionado para a publicação no concurso Poesia Livre, e acredito que esse seja o início de muitas publicações. ⌇

Bruno Calvo Dorfman Residente em Belo Horizonte, Minas Gerais. Amante do estudo de línguas e dos livros velhos. Embora não um sujeito magro, amarelo e grisalho, bibliômano.

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Carolina Coutinho Escritora por hobby, já escreveu e publicou três livros que foram retirados de circulação pela própria autora. Já escreveu na plataforma online Wattpad. ⌇

Denise Não gosto de falar sobre mim ou dos meus interesses. Nasci no interior e digo a todos que sou 4 anos mais nova. Tenho 20 anos. Comecei a inventar histórias desde muito nova. Primeiro histórias orais, depois desenhos e, por fim, a escrita. Desejo, um dia, lançar um livro ilustrado por mim. ⌇

Emily Bertoli Ferreira Chamo-me Emily Bertoli Ferreira, tenho 29 anos e sou formada em Letras - Português/Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Sou apaixonada pela escrita e por tudo que envolve linguagem e comunicação. Atualmente, trabalho como professora particular de Português, porém continuo fazendo o que sempre fiz, que é escrever contos, poemas e dar vida às personagens que, no futuro, nunca morrerão.

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AUTORES

Gabriela Duarte Graduada em Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, pela PUC-Rio. Aluna de pós-graduação em Revisão de Textos na PUC Minas. Atua como produtora de conteúdo web no Gshow, portal de entretenimento da TV Globo. ⌇

Isadora Barbosa da Silva Isadora Barbosa da Silva, também conhecida como Isa, Dora, Isadorinha e Rainha Ovelha, tem 21 anos e é graduanda da licenciatura em Letras Português/Inglês pela PUC Minas. É acumuladora: de história, de memórias e de papéis; quer ser escritora e espera ser capaz de fazer as pessoas se apaixonarem pelas suas palavras e se identificarem, pelo menos um pouco, com ela e com as suas histórias. ⌇

J.W.J Oliveira Jurandy Wesley de Jesus Oliveira nasceu em 12 de fevereiro de 2000, no município de Itapicuru, Bahia. Começou a escrever cedo e, em 2017, teve alguns poemas publicados em um livro independente, fruto de um projeto escolar que reuniu poemas de vários alunos. Atualmente é estudante do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Luana Rodrigues Pires Escritora amadora desde os onze anos. Sempre tive paixão pela criação de histórias, talvez influenciada pela própria paixão pela leitura. Pretendo, um dia, publicar um romance autoral e manter uma carreira voltada para a fabricação de novos mundos e enredos. ⌇

Natália Schimpf Meu nome é Natália Schimpf, sou nascida em São Caetano do Sul, São Paulo. Em 2017, formei-me, pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), em Comunicação Social – Rádio, TV e Internet. Sou pós-graduanda em Revisão de Textos pela PUC Minas. Apaixonada pelos livros desde criança, tenho um blog com resenhas sobre cultura em geral: “Radialista é o nome”. ⌇

Rafaela Neves Alves da Silva Medeiros Natural de Vila Velha (Espírito Santo), 34 anos, mãe e empresária. Estudante de graduação Licenciatura Letras Português pela PUC/MG (2020-2024), estudante de pósgraduação em Revisão de Textos pela PUC/MG (2021-2023) e graduada em Serviço Social pela PUC/MG (2007-2010). Último estágio como revisora de textos no Colégio Santo Agostinho em 2021. 126


AUTORES

Ramon Linhalis Guimarães Graduado em Direito pela UFES, pós-graduado em Comunicação Jurídica pela Faculdade CERS. Graduando em Letras pelo IFES, pós-graduando em Revisão de Textos pela PUCMinas e em Direitos Humanos pela UFES. Atualmente ocupa o cargo de Assessor de Nível Superior I no Ministério Público de Contas do Estado do Espírito Santo (MPC/ES). Pai do pequeno Dom e marido da Carol. ⌇

Roberta Colen Linhares Sou mineira, natural de Belo Horizonte, mãe de Arthur e Isis, e graduanda do curso de Letras da PUC Minas. Sou amante da literatura, da poesia, sobretudo, das histórias da oralidade africana. Sou uma das autoras e organizadoras da “Breve Antologia da Poesia Feminista” lançada em 2021 pela Editora PUC Minas. ⌇

Stefany de Jesus Silva Meu nome é Stefany de Jesus Silva, tenho 23 anos, moro na região do Barreiro, na metrópole Belo Horizonte. Sou estudante do curso de Letras, licenciatura em Português, da PUC Minas e estou no 3º período. Escrever poesia, para mim, é o momento em que eu me desligo do mundo e apenas meus pensamentos vão para o papel.

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DIVERSIDADE NA PALAVRA

Victor Sadi Victor Sadi nasceu no dia 2 de abril, na região metropolitana de Belo Horizonte. O ano de seu nascimento não é um segredo, tal qual seu signo, que revela apenas coisas de ordem ordinária. Ele é um apaixonado pelas artes, em especial a nona, e também um amante dos esportes. Atualmente ele está cursando Letras na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. ⌇

Waldir Freire da Silva Neto Waldir Freire da Silva Neto nasceu em 7 de março de 1998, em Contagem, e cresceu em Esmeraldas - Minas Gerais. Atualmente, é graduando em Letras - Licenciatura em Português pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. No campo acadêmico, dedica-se aos estudos ligados aos campos da Literatura e da Análise do Discurso.

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Articles inside

Argila

2min
pages 114-117

Autores

4min
pages 122-131

Idade da adversidade

0
pages 120-121

Vacas

1min
pages 106-109

Amálgama

0
pages 118-119

Sapatos

0
pages 104-105

Nós

0
pages 102-103

Carimbo

0
pages 100-101

Phóbos(恐怖

0
pages 96-97

A fenda

36min
pages 54-77

Identidade

0
pages 92-95

Permissão

3min
pages 44-47

Primeiro dia de aula

5min
pages 48-53

Estranho no espelho

11min
pages 78-85

Por trás da face

4min
pages 38-41

Ode a Ófelia

9min
pages 30-35

Devaneios

2min
pages 36-37

Respingar de minha alma

2min
pages 42-43

Apresentação

0
pages 14-15

Prefácios

4min
pages 18-23

Prefácio

5min
pages 10-13

Hora do adeus

8min
pages 24-29
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