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ISSN-e:
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DISPOSITIVA Revista da disciplina Leitura e Produção de Textos em Ambientes Digitais Curso de Letras - PUC Minas
imigração. intertextualidade. mídia
DISPOSITIVA, v. 1, n. 4, p. 1-74, 1º semestre de 2020
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Dispositiva é uma publicação semestral da disciplina Leitura e Produção de Textos em Ambientes Digitais - Curso de Letras - PUC Minas.
DISPOSITIVA, v. 3, n. 4, p. 1-74, 1º semestre de 2020
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Izabela de Souza, Karissa Gomes e LetíciaRodrigues...........................................................................................................................................6
IMIGRAÇÃO INSERÇÃO CULTURAL DE REFUGIADOS NO BRASIL: Dificuldades e Possibilidades Larissa Gouveia Duarte, Larissa Machado Pereira, Leandro Martins de Sousa, Lorena Costa de Faria, Luciene Bernardo Quirino, Luísa Lana Viegas, Maria Luiza Assis Souza Ferreira e Mikaella Pereira da Silva...............................................................................................................9
USO E NÃO USO DE PREPOSIÇÕES DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA ESCRITA DE UNIVERSITÁRIO ESTRANGEIROS Roberto Carlos Gonçalves de Souza e Vanessa Vieira Rodrigues ............................................................................................................15
INTERTEXTUALIDADE IMITAÇÃO, RESSONÂNCIA OU INAUGURAÇÃO? Análise dos processos intertextuais entre os filmes E.T.: O Extraterreste e A Forma da Água Brenda Godinho Oliveira e Luana Rodrigues Pires .................................................................................................................35
MÍDIA PEÇAS PUBLICITÁRIAS: Comparação das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino Izabela De Souza, Leandro Martins e Luciene Quirino ............................................................................................................................44
MÍDIA E SOCIEDADE: Uma leitura por meio de charges Larissa Machado Pereira, Mikaella Pereira Da Silva e Nathaly Ohanna Da Silva ............................................................................................................59
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APRESENTAÇÃO A Revista Dispositiva reúne, neste número, textos sobre imigração, intertextualidade e mídia. Em seu conjunto, os artigos e os ensaios refletem sobre temas atuais relativos a essas grandes temáticas e trazem análises importantes para discussão em torno delas. Entre os trabalhos selecionados apresentamos reflexões a respeito do tema imigração nos artigos “Inserção Cultural de Refugiados no Brasil: dificuldades e possibilidades” e “Uso e não uso de preposições do português brasileiro na escrita de universitários estrangeiros”. Encontramos considerações acerca da temática intertextualidade no artigo “Imitação, ressonância ou inauguração? Análise dos processos intertextuais entre os filmes E.T.: O extraterrestre e A Forma da Água”. Por fim, discussões sobre mídia se apresentam nos ensaios “Peças Publicitárias: comparação das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino” e “Mídia e Sociedade: uma leitura por meio de charges”. O artigo “Inserção Cultural de Refugiados no Brasil: dificuldades e possibilidades”, de Larissa Gouveia, Larissa Machado, Leandro Martins, Lorena Costa, Luciene Quirino, Luísa Viegas, Maria Luiza Ferreira e Mikaella Pereira objetiva identificar as dificuldades de inserção cultural dos refugiados no Brasil, caracterizando quais são essas barreiras, e buscando uma forma de serem superadas. No artigo “Uso e não uso de preposições do português brasileiro na escrita de universitários estrangeiros”, de Roberto Carlos Gonçalves e Vanessa Vieira, propõese a abordar as possíveis dificuldades que estudantes do projeto Português como Língua Estrangeira têm no emprego de preposições na escrita de textos da Língua Portuguesa. Divide-se o artigo em cinco seções nas quais apresentam teóricos que discorrem sobre as preposições, outra em que caracterizam os participantes da pesquisa, numa terceira há a transcrição dos textos colhidos e em seguida há a discussão do material colhido junto à teoria e, por fim, as considerações finais, em que os autores discorrem sobre os resultados obtidos. O artigo “Imitação, ressonância ou inauguração? Análise dos processos intertextuais entre os filmes E.T.: O extraterrestre e A Forma da Água”, de Brenda Godinho e Luana Pires, pretende discutir as relações dialógicas que compõem essas duas obras cinematográficas. O artigo ancora-se em reflexões feitas pelo Círculo de Bakhtin acerca de seus estudos linguísticos sobre intertextualidade e dialogismo. O estudo realizado nesse artigo tem a intenção de evidenciar como os discursos 6
presentes nesses dois filmes entrelaçam-se e como se estabelece as relações intertextuais e interdiscursivas, partindo do pressuposto de que nada está posto, de que nada é original, mas que tudo se dá por meio daquilo que está a pairar pelos discursos de outrem. No ensaio, “Peças Publicitárias: comparação das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino”, de Izabela de Souza, Leandro Martins e Luciene Quirino, propõe-se a abordar sobre as comparações de identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino nas peças publicitárias, apontando os efeitos de sentido, mudanças sociais, e transformações no que se refere à desigualdade de gênero, por meio da análise de propagandas. Encerrando este volume, temos o ensaio “Mídia e Sociedade: uma leitura por meio de charges”, de Larissa Machado, Mikaella Pereira e Nathaly Ohanna, que pretende abordar como a mídia tem se tornado elemento essencial para a sociedade, discutindo como ela tem um papel importante, principalmente, na reprodução de discursos, a forma como se apropria desses discursos e como a mídia contribui para a ressignificação de discurso que estão postos na sociedade. Nesse ensaio, as autoras buscam refletir sobre o papel da mídia por meio das charges de natureza verbal e não verbal, que serão analisadas a partir da perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa.
Izabela de Souza* Karissa Gomes Leticia Rodrigues
*Discentes
do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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IMIGRAÇÃO
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INSERÇÃO CULTURAL DE REFUGIADOS NO BRASIL: Dificuldades e Possibilidades Larissa Gouveia Duarte* Larissa Machado Pereira Leandro Martins de Sousa Lorena Costa de Faria Luciene Bernardo Quirino Luísa Lana Viegas Maria Luiza Assis Souza Ferreira Mikaella Pereira da Silva
RESUMO Pensando nas recentes crises humanitárias nas mais diversas regiões do mundo, o presente artigo objetiva identificar as dificuldades para a inserção cultural de refugiados no Brasil. Como metodologia, escolheu-se a observação participante, a partir de Oliveira (1996), baseando-se nos pressupostos do “Olhar, Ouvir e Escrever”. Realizaram-se, para isso, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com pessoas de diferentes origens. Além de Oliveira (1996), apoiamo-nos em Ahlert & Almeida (2016), Moreira (2014) e Polivanov (2013). Como resultado, notou-se que a questão linguística se torna particularmente relevante para pessoas falantes de idiomas de famílias linguísticas diferentes da nossa, enquanto pessoas negras tendem a sofrer racismo. Palavras-Chave: Crise humanitária. Refugiados. Pesquisa etnográfica. Observação participante
ABSTRACT Thinking of the recent humanitarian crises in the most diverse regions of the world, this article aims to identify the difficulties for the cultural insertion of refugees in Brazil. As a methodology, participant observation was chosen, starting with Oliveira (1996), based on the assumptions of “Olhar, Ouvir e Escrever”. For this, informal conversations and semi-structured interviews were conducted with people from different backgrounds. In addition to Oliveira (1996), we rely on Ahlert & Almeida (2016), Moreira (2014), and Polivanov (2013). As a result, it was noted that the linguistic issue becomes particularly relevant for people who speak languages from different linguistic families, while black people tend to suffer racism. Keywords: Humanitarian crisis. Refugees. Ethnographic research. Participant observation
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Discentes do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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INTRODUÇÃO Em uma época em que várias regiões do mundo se veem afetadas pela crise humanitária relacionada aos refugiados, faz-se necessário o entendimento da cultura do outro. Quando investigamos especificamente sobre a questão no Brasil, tomamos conhecimento de diversos casos de xenofobia sofrida por essas pessoas, havendo, inclusive, casos de refugiados assassinados. Desse modo, torna-se urgente compreender os motivos das dificuldades de inserção cultural de refugiados no Brasil, bem como desenhar, em conjunto com eles, suas possibilidades de expressão no país. Este trabalho tem como objetivos identificar o que representa maior dificuldade para a inserção de refugiados no Brasil: o choque cultural ou a comunicação, por geralmente serem falantes de uma outra língua; investigar a origem dos problemas enfrentados por eles e como esses problemas podem ser superados; e perceber, pela visão dos refugiados, se o brasileiro está aberto para conviver com o diferente. A metodologia utilizada, nesta pesquisa, baseia-se nos pressupostos do “Olhar, Ouvir e Escrever”, propostos por Oliveira (1996) em um texto no qual o autor problematiza o trabalho do antropólogo. Segundo ele, o Olhar, o Ouvir e o Escrever são três momentos/movimentos estratégicos para quem procura fazer uma pesquisa etnográfica. Pensando nisso, adotamos como base metodológica a observação participante, na qual pesquisador e grupo pesquisado estabelecem uma relação dialógica, de maneira que ocorra um encontro/diálogo entre (quase) iguais. Foram realizadas quatro conversas informais ou entrevistas semiestruturadas com pessoas de origens diferentes, nas quais procuramos observar o local no qual o refugiado estava inserido e a sua relação com as outras pessoas. Em seguida, passamos para a parte do ouvir, procurando estabelecer uma relação de diálogo com os refugiados, e por último fizemos os registros da observação/conversa que tivemos com eles, em forma de relatórios. Além da observação em campo, realizamos uma pesquisa bibliográfica a fim de compreender melhor a realidade do refugiado, tendo como base teórica Moreira (2014), Ahlert & Almeida (2016) e Polivanov (2013).
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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Conforme Moreira (2014), um migrante que é forçado a se deslocar para outro país é detentor de outra identidade cultural, é estranho aos códigos compartilhados pelos cidadãos do país que o acolherá. Assim, o refugiado, ou um coletivo de refugiados, pode se ver obrigado a sair de seu país de origem e temer à ele voltar por motivos extremos, como tragédias ambientais, miséria, questões religiosas, étnicas, perseguições políticas, por fazer parte de determinado grupo, regimes repressivos, conflitos regionais, internacionais ou outras violações aos Direitos Humanos (MOREIRA, 2014; AHLERT & ALMEIDA, 2006). A condição jurídica de refugiado deveria ser um estatuto provisório, visando sua repatriação quando terminassem os conflitos que o levaram a sair de seu local de origem. Porém, os laços afetivos criados no país de acolhimento podem fazer com que sua condição dure anos, dificultando o retorno à terra de origem. Ainda segundo Moreira (2014), há uma fronteira entre a inclusão e a exclusão, sendo aquela a responsável por definir os refugiados que serão acolhidos ou não pelo Estado. A integração do refugiado ocorre por meio de um processo dialético entre ele e a sociedade que o recebe, envolvendo, conforme Ager & Strang apud Moreira (2014:89), questões relativas ao acesso a emprego, moradia, educação, saúde, direitos, bem como às relações pessoais, podendo questões linguísticas e culturais funcionarem como possíveis barreiras estruturais. Na atualidade, como explicam Ahlert & Almeida (2016), o número de refugiados tem crescido exponencialmente, principalmente em países desenvolvidos, o que torna a realidade um tema preocupante tanto em nível social quanto governamental. Criou-se o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) com o objetivo de dar assistência às pessoas que precisam de refúgio, visando auxiliar o refugiado a enfrentar os problemas pelos quais passará e garantir sua permanência e direitos em determinado país. No caso do Brasil, apesar de leis que assegurem o abrigo e condições de sobrevivência, tais pressupostos não são sempre cumpridos, chegando alguns refugiados a exercerem trabalhos que se aproximam do trabalho escravo. Temos aproximadamente 7.000 refugiados vindos de diversos lugares do mundo, sendo que 400 deles são reassentados, ou seja, são deslocados para outro lugar. Isso ocorre pelo fato que, mesmo nos Estados nos quais os refugiados são assentados e lhes proporcionam condições de sobrevivência, há 11
muitas pessoas que não concordam com o ato de abrigar refugiados, e acabam agredindo-os verbal ou fisicamente. Tal atitude, denominada xenofobia, deve ser mitigada, pois, independentemente de sua origem, a partir do momento em que o indivíduo está em território brasileiro, ele possui direitos iguais a todos, conforme está respaldado na Constituição Brasileira (ALARCÓN, 2016 apud AHLERT e ALMEIDA, 2006). Os autores nos apresentam também o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), criado pela Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997, que analisa os pedidos de reconhecimento da condição de refugiado e coordena as ações relativas à proteção, integração e apoio jurídico. Além disso, a Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997, é de extrema importância, uma vez que ela apresenta a definição de refugiado. Essa definição torna-se necessária, pois, por falta de conhecimento, muitas pessoas tomam as palavras refugiado e estrangeiro como sinônimos. Observa-se que a Lei nº 9.474/97 apresenta exceções para que uma pessoa seja reconhecida como refugiada. Essa restrição refere-se à casos em que o indivíduo comete crimes que vão contra os Direitos Humanos, mesmo que esses crimes tenham sido praticados em seu país de origem. RESULTADOS A primeira visita ocorreu no dia 10 de novembro de 2018, em uma lanchonete síria, e consistiu na observação do ambiente e em uma entrevista semiestruturada. A segunda foi uma conversa livre realizada em uma loja de produtos árabes, no dia 15 de novembro de 2018. A terceira se deu durante os dias 19 e 20 de novembro de 2018, com um cidadão de Togo, por meio do Facebook; porém isso fez com que perdesse sua característica de pesquisa etnográfica, sendo o método adaptado à realidade da modernidade tardia em que estamos inseridos. Conforme explicitado por Polivanov (2013), os ambientes virtuais já não deveriam ser tratados como não-lugares, sendo possível aplicar de forma online a abordagem etnográfica. Esse tipo de pesquisa vem sendo desenvolvida desde 1992. Pesquisas na internet podem ser do tipo lurking, que consiste em o pesquisador limitar-se a observar o ambiente virtual, ou, como no caso do presente trabalho, insider. Segundo Braga (2006), citado por Polivanov, inclusive, a pesquisa lurking pode ser considerada participante, já que o pesquisador está inserido no meio e, de alguma forma, sua presença pode ser inferida. Finalmente, a 12
última pesquisa foi realizada no dia 20 de novembro de 2018, em uma padaria, com um rapaz jamaicano que morava no Haiti, e consistiu em entrevista semiestruturada. A barreira linguística discutida por Moreira (2014) foi determinante nos casos dos dois refugiados árabes, sendo sua superação determinante para que fossem integrados à sociedade. Também é interessante notar que, nos dois casos, os refugiados não receberam auxílio para aprender a língua. Apesar dos intentos de proteção ao refugiado e aos seus direitos, conforme explicados anteriormente na Metodologia, no caso do rapaz de Togo tivemos o exemplo de um refugiado que, além do choque cultural, teve de enfrentar a xenofobia. Nesse caso, a solução encontrada para superar o entrave foi a naturalização, o que, segundo ele, lhe permitirá também acesso a novas condições de emprego. Finalmente, no último caso, o do jamaicano, temos outro exemplo de intolerância. Ainda que nas palavras do entrevistado no Brasil haja também pessoas boas, percebemos como barreira principal o racismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que não se possam fazer generalizações sobre a situação dos refugiados e as principais barreiras enfrentadas por eles apenas com quatro exemplos, bem como não é possível afirmar que outras pessoas das mesmas origens passarão exatamente pelas mesmas dificuldades, pudemos realizar algumas inferências ao final desta pesquisa. Primeiramente, imaginamos que outros refugiados que possuem como língua materna idiomas de famílias linguísticas diferentes da nossa, como no caso do árabe, ou mesmo idiomas indo-europeus de ramos que não sejam latinos, apresentarão a língua como um grande entrave, mesmo quando outras questões forem apresentadas. Da mesma forma, podemos inferir que outros refugiados negros tenderão a sofrer racismo, já que essa realidade, infelizmente, está presente também no dia a dia do cidadão brasileiro negro. Enfim, retomando os objetivos desta pesquisa, constatamos que: o que representa maior dificuldade para os refugiados em um primeiro momento é a barreira linguística, e que os problemas enfrentados por eles são de origem cultural e histórica, como no caso do racismo sofrido no Brasil. Já em relação à receptividade do povo brasileiro, pudemos constatar que não há como generalizar, pois, como citado pelos refugiados, há brasileiros “bons e ruins”, sendo mais uma característica individual de cada ser humano do que de um povo em si. 13
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AHLERT, Mara; ALMEIDA, Alcione de. A inclusão social das pessoas na condição de refugiado no Brasil à luz dos Direitos Humanos. Barbarói, Santa Cruz do Sul, Edição Especial n.47, p.09-21, jan./jun. 2016. MOREIRA, Júlia Bertino. Refugiados no Brasil: reflexões acerca do processo de integração local. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXII, n. 43, p. 85-98, jul./dez. 2014. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 1996, v. 39 n° 1. POLIVANOV, Beatriz. Etnografia Virtual, Netnografia ou Apenas Etnografia? Implicações dos Termos em Pesquisas Qualitativas na Internet. Intercom– Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da comunicação XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação– Manaus, AM – 4 a 7 set. 2013.
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USO E NÃO USO DE PREPOSIÇÕES DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA ESCRITA DE UNIVERSITÁRIOS ESTRANGEIROS Roberto Carlos Gonçalves de Souza Vanessa Vieira Rodrigues RESUMO De modo geral, o estudo da escrita e da fala de pessoas que têm o português brasileiro como segunda língua vem crescendo muito – principalmente, na última década no Brasil. Investigar uso ou não de preposições por parte de estrangeiros universitários é o foco deste artigo. Discute-se que o uso e não uso das preposições varia de acordo com o contexto e, a partir disso, utilizamos o conceito de transferência (interferência) da L1 sobre a aprendizagem e uso da L2 para explicar casos de apagamentos e usos corretos e não corretos de preposições por parte de estudantes estrangeiros. Levantamos questionamentos que induzem ao exercício crítico e reflexivo, desejando que possamos contribuir para as pesquisas neste campo. Aspiramos que tal estudo seja alvo de reflexão sobre a aprendizagem de uma segunda língua – em especial o PB – e que, de certa maneira, contribua para a inovação do ensino de português para estrangeiros.
Palavras-chave: Preposições. Semântica. Transferência. Interferência. Estrangeiros.
ABSTRACT In general, the study of writing and speech of people who have Brazilian Portuguese as a second language has been growing a lot - especially in the last decade in Brazil. Investigating the use or not of prepositions by university foreigners is the focus of this article. It is argued that the use and non-use of prepositions varies according to the context and, from this, we use the concept of transference (interference) of L1 on learning and use of L2 to explain cases of erasure and correct uses and not of the prepositions by foreign students. We raise questions that induce critical and reflective exercise, wishing that we can contribute to research in this field. We hope that this study will be the subject of reflection on the learning of a second language – especially the BP – and, in a way, contribute to the innovation of teaching Portuguese to foreigners.
Keywords: Prepositions. Semantics. Transfer. Interference. Foreigners.
Discentes do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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INTRODUÇÃO O estudo da escrita e da fala de pessoas que têm o português brasileiro como segunda língua vem crescendo muito – principalmente na última década no Brasil. No mundo, tal estudo também se revela grande e varia, claro, de língua para língua (a que será estudada). Dessa forma, o tema deste artigo versa sobre o uso ou não de preposições na escrita de alguns alunos estrangeiros da Pontifícia Universidade Católica. Como aponta Oliveira (2009), “as preposições possuem, em sua estrutura semântica, informações esquemáticas sobre os elementos que elas relacionam, usualmente sintagmas nominais ou formas nominalizadas” (...). (OLIVEIRA, 2009, p.6). Muitos são os questionamentos acerca desse estudo. Para este trabalho, fizemos as seguintes perguntas: A. Como se dá o uso (ou não) de preposições na escrita de estrangeiros universitários? B. Há transferência da L1 sobre a L2? Em que casos ela ocorre? Temos, como objetivo geral, apontar possíveis dificuldades enfrentadas por estudantes do Projeto Português como Língua Estrangeira (PLE – 2019.2) na aplicação de preposições na escrita de textos em Língua Portuguesa. Como específicos, temos: i) identificar situações em que ocorre o apagamento das preposições; ii) levantar hipóteses acerca da influência da L1 sobre o aprendizado do uso de preposições no Português e iii) verificar a natureza das preposições omitidas e/ou mal usadas. Após uma observação em uma aula de PLE (Português como Língua Portuguesa), ministrada por um dos monitores, foi observado o apagamento de preposições em certas construções como, por exemplo, a frase: “Janeiro 2017”, que revela a omissão da preposição “de”, nesse caso. Com esta pesquisa, pretendemos identificar situações em que construções como essa se repetem em textos escritos pelos alunos para, assim, auxiliar na criação de futuras metodologias de ensino do uso das preposições na Língua Portuguesa para estrangeiros – universitários ou não. Foram selecionados, para a elaboração deste artigo e, também, para a pesquisa dele, quatro textos teóricos. Dois deles versam sobre transferência da Língua Materna (L1) sobre a língua a ser aprendida ou em processo de aprendizagem (L2). São estes os autores: Dota (1998) e Durão (2008), que tratam de questões de transferência da 16
L1 sobre a L2 – e há este fenômeno na escrita dos estudantes estrangeiros que foi analisada. Um outro texto versa sobre a descrição e abordagem metodológica de preposições no português brasileiro. Ele é de Vilela e Rocha (2017), que foi escolhido, pois examina: a) a descrição do que é uma preposição; b) a natureza da semântica da preposição e c) a descrição do modo como se apresentam os termos que cercam uma preposição (termos antecedente e consequente) – elementos tão caros à elaboração desta pesquisa. Por fim, o último texto é a tese defendida por Oliveira (2009). Como metodologia, propomos a análise de textos que foram produzidos pelos alunos a partir de uma proposta de redação elaborada previamente. Dessa produção, podemos analisar os aspectos propostos nos objetivos – a redação foi feita em língua portuguesa PB. Após a realização da atividade, coletamos os dados a partir dos textos produzidos e os analisamos. Pretendemos, ainda, analisar comparativamente a escrita do PB e de sua L1 – neste momento, entra em jogo a hipótese da transferência. Este artigo se organiza em cinco grandes seções, a saber: em Análises Teóricas, discutimos as diferentes visões sobre a preposição; em Caracterizando os participantes da pesquisa, descrevemos a nacionalidade, o sexo e o grau de escolaridade dos participantes da pesquisa e, além disso, também nela é descrita a forma de aplicação do questionário respondido pelos universitários estrangeiros; na parte do Corpus, transcrevemos os textos colhidos; na Análise do corpus, apontamos e discutimos teorias sobre o tema do presente artigo e, relacionados aos objetivos (geral e específico), indicamos possíveis interpretações das teorias aplicadas à prática e, por fim, na seção das Nossas Considerações, discutimos os resultados obtidos através da pesquisa – segundo os objetivos.
ANÁLISES TEÓRICAS Para início de conversa, o que são as preposições? Para Cegalla (2010) a preposição “liga um termo dependente a um termo principal ou subordinante, estabelecendo entre ambos relações de posse, modo, lugar, causa, fim, etc.” (CEGALLA, 2010, p. 268). Para Neves, (2011, p. 603), “a preposição funciona no sistema de transitividade, isto é, introduz complemento.” Para Cunha e Cintra (2017), “chamam-se preposições as palavras invariáveis que relacionam dois termos de uma oração, de tal modo que o sentido do primeiro (antecedente) é explicado ou completado pelo segundo (consequente)” (CUNHA & CINTRA, 2017, p. 569). 17
Para Perini (2019) a preposição é uma palavra que se coloca antes de um SN de maneira que a sequência resultante é um sintagma adjetivo ou um sintagma adverbial. (...) A preposição é, portanto, uma das palavras cuja função é criar, a partir de uma construção pertencente a uma classe, outra construção pertencente a uma classe diferente. (PERINI, 2019, p. 440-441).
Haja vista essas colocações, chegamos à conclusão de que a preposição é um conectivo: ela liga uma palavra à outra para dar relação coesa para toda a frase, oração ou sentença. Após um estudo comparativo de autores e o que eles dizem sobre as preposições, Vilela e Rocha (2017) chegam à seguinte conclusão: “o aspecto mais instigante consiste em se considerar, para uma mesma preposição, uma possível flutuação semântica relacionada ao fato de ela poder ou não ter sentido.” (VILELA & CUNHA, 2017, p. 308). As autoras chegam a tal conclusão, pois, ao mesmo tempo em que autores dizem que as preposições possuem uma carga semântica de grande valor, outros discordam – e a maioria dos autores não explica o porquê de a preposição ter uma carga semântica plausível e também não explica quando ela não a tem. Conceituar a preposição e seus usos é, de fato, algo difícil de se fazer, pois quando os gramáticos sugerem que o conceito de proposição seja, em suma, “a existência de um significado unitário ou de base” (VILELA & CUNHA, 2017, p. 308), [eles] acabam por esquecer dos variados usos e das variadas funções que uma só preposição desempenha em determinado contexto. A preposição só desempenha aquela função que os gramáticos prescrevem naquele contexto do exemplo dado por eles e, portanto, quando fora desse contexto, elas não assumem as mesmas funções – daí a importância de saber quando (em que contexto) se deu o uso de determinada preposição na frase de alguém. A
TRANSFERÊNCIA
(E
SEU
CONCEITO)
DA
L1
SOBRE
A
APRENDIZAGEM DE L2 Acreditamos que existam casos de transferência nos textos do nosso corpus, uma vez que é através da L1 que lemos e interpretamos os códigos de L2 e, nessa operação, a L1 pode interferir nos usos de determinadas construções em L2.
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Afinal, o que é transferência? Para Odlin (1989, p. 26-27) apud Dota (1998, p. 26), ela é “a influência resultante das semelhanças e diferenças entre a língua alvo e qualquer outra língua que tenha sido previamente (e talvez de forma imperfeita) adquirida.” (ODLIN, 1989, p. 26-27 apud DOTA, 1998, p. 26) Ainda citando Odlin (1989), Dota (1998) nos mostra uma parte do texto daquele autor que nos parece a mais pertinente para nosso artigo: “…a influência surge do julgamento consciente ou inconsciente do aprendiz de que alguma coisa na língua materna (mais tipicamente) e alguma coisa na língua alvo são semelhantes, se não, exatamente o mesmo.” (ODLIN, 1989, p. 26-27 apud DOTA, 1998, p. 26). Em se tratando da aquisição da L2, a linguagem possui/possibilita, via L1, a função de mediá-la, pois o indivíduo estrangeiro, em relação à língua sendo aprendida, já domina códigos morfológicos, sintáticos e semânticos da L1 – é daqui que parte a nossa suposição da interferência da L1 sobre a L2. É necessário, agora, que nos debrucemos na questão da “transferência”, pois ela parece explicar a regência da frase (uso ou não uso da preposição em certas construções). Muito provavelmente, há influências/resquícios da língua materna sobre a aprendizagem de uma L2. É possível percebermos, em alguns textos, que, em vez de facilitar a tarefa de empreender a nova aprendizagem, os conhecimentos já adquiridos (da L1) prejudicam o desenvolvimento do novo conhecimento (na L2). Vamos dar um exemplo concreto: quando uma pessoa que, antes de conseguir sua carteira de habilitação, já dirige e possui “manhas” (vícios), é mais difícil, de maneira geral, passar em seu primeiro exame de direção na rua, pois, neste, não é permitido qualquer vício, como, por exemplo, dirigir com uma só mão ou dirigir com uma mão no volante e a outra no câmbio. Aqui, a transferência foi negativa e, portanto, chamase interferência. CARACTERIZANDO OS PARTICIPANTES DA PESQUISA Os participantes da pesquisa são estudantes da graduação e da pós (especialização, mestrado e doutorado). Eles são quatro homens e uma mulher. Foi entregue a eles um termo de consentimento livre e esclarecido, que segue aqui em apêndice, explicando sobre o nome da pesquisa, como se daria a participação do aluno na pesquisa, a garantia do sigilo das informações prestadas na atividade, etc. 19
Eles o assinaram, aceitando a participação na pesquisa, e o aluno Roberto Carlos, como aplicador da atividade, também assinou para assegurar que recebeu o termo de forma voluntária para a participação do estrangeiro neste estudo. Os participantes são das seguintes nacionalidades: colombiano, marroquino, italiano e dois haitianos. Foi solicitada a nacionalidade dos participantes para o exercício analítico de comparação entre L1 e L2.
O CORPUS O corpus deste artigo é constituído por cinco textos em que os participantes da pesquisa descreveram o dia e o modo em que chegaram ao Brasil: se foram recepcionados por alguém e quem o foi, o que mais gostam e desgostam no país e a previsão de até quando devem ficar. A atividade solicitada foi aplicada no dia 30 de setembro do de 2019, na sala 213 B do prédio 6, PUC Minas, Coração Eucarístico, à noite. Os textos estarão, a seguir, transcritos como no original – para revelar a escrita dos participantes e suas possíveis dificuldades na hora de escrever. Em um dos textos, uma palavra estará grifada: é porque o participante a grifou.
Texto 1 (estudante 1 - E1): Eu sai do meu pais Colombia Quinta feira do 12/09/2019) deixe atras meu emprego, meu casa, meus padres e todo, fique com uma nueva perspectiva do estudios, eu cheque ao Brasil a aeroporto Galego em Rio de Janeiro de pois de um voo de seis horas, depois pegue um voo pra Belo Horizonte e cheque as 9:00 AM do outro dia, fui recebido por uma amiga que conheci na copa do futebol do ano 2014 em sua casa con seus padres e tudo foi legal o que mais goste do ciudade e clima e a boa comida, adoro a tropeiro e feijoada y Guarana de mais, vou ficar em Brasil ata Março do 2021 quando sea meu formatura, mais eu no se eu estou enamorando do povo Brasileiro e de Nossa Patria Amada Brasil.
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Texto 2 (estudante 2 - E2): -
Eu sai do meu pais (Marrocos) dia 02/11/2018
-
Eu chegou aqui por A Vião
-
Eu foi recebido bien, por qui me esposa estava esperando na o aeroporto
-
Eu tenh 10 meses aqui, Eu Acho que sempre ou 5 Anos
-
Eu gosta no Brasil: comida - musica - pessoas - cultura
-
Eu não gosta no Brasil: Droga - crime
Texto 3 (estudante 3 - E3): Eu saí do meu país no dia 19 de julho e cheguei em Buenos Aires no dia 20. Desde o dia 20 até o dia 28 eu e à minha namorada ficamos viajando e no dia 29 a gente chegou em Rio de Janeiro. Nos dormimos no airiporte e de manhã pegamos um ônibus para ir até Belo Horizonte. À primeira noite à gente foi dormir para uma amiga da minha namorada e à partir do segundo dia eu ja tinha um quarto no bairro coraçâo eucaristico. Agora moro com outros 3 pessoas, todos brasileiros mas acho que eu vou deixar a casa no fin do semestre porque é muito custoso: 700 reais por o quarto!! Dado que eu vou morar em BH até o fim do primeiro semestre eu gostaria de mudar quarto para um mais barato. (Mesmo se eu gosto das pessoas que moram comigo mas dois deles vam embora em dezembro também). Aqui, em qualquer caso, eu estou feliz. Eu gosto da cidade, mesmo se é gigante; eu gosto da comida mineira e de aprender cozinhar os pratos tipicos!; até setembro eu comencei também um curso de capoeira pois eu gostava de conhecer mais em profundidade a cultura do Brasil. Está andando bem também com a universidade, agora curso as aulas de história, antropologia e pedagogia. Em este ano eu gostaria de fazer uma pesquisa e escriver uma dissertaçâo sobre a cultura afro brasileira! Obrigado pelas pesquisa! Ah, eu sou italiano!
Texto 4 (estudante 4 - E4): Eu sou haitiano. Eu moro no Brasil, há dois anos e oito meses. Cheguei ao Brasil no dia 19 de fevereiro de 2017. Mas, saí do meu país, Haiti, no dia 14 de 21
fevereiro de 2017. Primeiro, fui à República Dominicana de ônibus. Fiquei uns dias na capital, Santo Domingo. Em seguida, fui à cidade Punta Cana no dia 18 de fevereiro e peguei o meu voo no dia seguinte. Sendo assim, cheguei de avião no Brasil, na cidade de São Paulo, no dia 19 de fevereiro de 2017. Porém, o meu destino final era a cidade Palmas, capital do Estado Tocantins. Cheguei a Palmas à meia noite no dia 20. Eu fui muito bem recebido em Palmas. Na verdade recebido pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins. Fiquei dois meses na casa do coordenador do curso. Eu estou no Brasil para fazer doutorado e ficará até defeza da minha tese. Provavelmente, apresentarei a tese no início de 2021. Eu estou gostando muito da cultura brasileira sobretudo os ritmos musicais seguintes: pagode, samba, MPB, Forró e bossa nova. O que eu não estou gostando seriam as desigualdades sociais, a exclusão e o racismo. Por enquanto, eu acho que o Brasil é um país maravilhoso. Se eu encontrar muitas oportunidades de emprego, posso timar a decisão de ficar até mais um ou dois anos após a defesa da minha tese, quer dizer até 2023.
Texto 5 (estudante 5 - E5): Há algumas coisas sempre vão ficar na nosso memória. Isso, é o meu caso. Viver longe da sua família, cultura, seus amigos não é tão fácil. Uma segunda-feira 13 de fevereiro 2017 deixei tudo: minha família, minha cultura, meus amigos para vir no Brasil, eu tînha que chega lá no dia seguinte, infelizmente, isso não foi acontecido assim. Cheguei no Brasil no dia 20 de fevereiro 2019 ás duas horas da madrugada. Eu fui recebido po um amigo da mesma terra, cheguei cansada, pois passei quase 12 horas no avião. Ele foi me recebida no Confins ás duas horas da madrugada. Eu venho para estudar e há dois anos e oito meses desde que eu estou aqui no Brasil. O dia que eu cheguei no Brasil, foi meu primeiro dia de aula do português e fiquei 6 meses. Os três primeiros meses aqui não foram fáceis, chorava muito, tinha muitas dificuldades com o idioma, ficava doente por muitos dias por causa da temperatura, tinha problema com as comidas, não gostava e que hoje é totalmente diferente. Do dia a dia, o hábito começa entra no meu vocabulário e hoje eu me sinto como uma brasileira foi perdida num outro país. Como que o gosto de todo mundo é diferente, eu tenho minhas preferênciais aqui no Brasil Como: Música 22
(Sertanejo, Pagode, Bossa nova); Comida (Feijoada, feijão tropeiro) Lugares (Palmas, Foz do Iguaçu, Florianopolis), há tantas outras coisas que eu gosto, estou gostando e na futura gostaria. Na realidade não há muitas coisas que não gosto aqui no Brasil, mas tem a discriminação dos negros que não gosto daqui e outras coisas sem importância. Criei uma nova família aqui e me sinto muito bem, depois meus cinco anos de estudo, vou embora, e o Brasil com todas coisas boas vão ficar uma lembrança inesquecível. Sou haitiana.
ANÁLISE DO CORPUS Como os estudos discorridos na seção 1 podem colaborar para a análise do corpus deste artigo? Em certa medida, ajuda no tocante a analisá-lo a partir das análises e discussões que trazem, pois há construções dentro das cinco produções escritas pelos estudantes que apresentam questionamentos – e explorá-los foi o que fizemos. Primeiro, a preposição “de” é, por muitas vezes, apagada antes do ano. Há, por exemplo, uma frase do E5 em que ocorre esse apagamento, mas antes do mês ela aparece: “...20 de fevereiro 2019…”. O E1 também possui uma construção igual: “... do ano 2014”. Já o E4 coloca a preposição “de” antes do ano, mas não coloca antes da cidade, por exemplo: “...a cidade Palmas…”. Além disso, o mesmo estudante 4 utiliza a preposição “a” para se referir à cidade. Exemplo: “Cheguei a Palmas…”. São usos diferentes. A carga semântica, em determinados registros de uma mesma preposição, parece mudar de uso para uso. Pode haver influência da língua inglesa quanto ao uso da preposição “de” antes do ano? A seguir, analisamos os textos um a um que compõem o corpus desta pesquisa – observamos as preposições ausentes, mal-usadas e corretamente usadas. Abaixo de cada tabela, fizemos uma análise sobre as preposições apresentadas no texto.
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Texto 1 (estudante 1 - E1):
Texto
Eu sai do meu pais Colombia Quinta feira do 12/09/2019) deixe atras meu emprego, meu casa, meus padres e todo, fique com uma nueva perspectiva do estudios, eu cheque ao Brasil a aeroporto Galego em Rio de Janeiro de pois de um voo de seis horas, depois pegue um voo pra Belo Horizonte e cheque as 9:00 AM do outro dia, fui recebido por uma amiga que conheci na copa do futebol do ano 2014 em sua casa con seus padres e tudo foi legal o que mais goste do ciudade e clima e a boa comida, adoro a tropeiro e feijoada y Guarana de mais, vou ficar em Brasil ata Março do 2021 quando sea meu formatura, mais eu no se eu estou enamorando do povo Brasileiro e de Nossa Patria Amada Brasil.
Preposição ausente
Preposições não corretamente usadas
Preposições corretamente usadas
“Para”, em “deixe atras meu emprego”;
“Ata”, querendo dizer “até”, em “vou ficar em Brasil ata Março do 2021”.
“Com”, “Ao”, “Em”, “De”, “Para” - mas ele escreveu “pra”, “por” e “Em”: em+a, “Do”: de+o.
Acreditamos que, pelo fato de a língua (espanhol) desse participante ser, de um modo geral, parecida com a nossa (português brasileiro), ele apresentou mais acertos no uso das preposições. Houve, inclusive, a tentativa de acertar a preposição “até”, mas ele escreveu “ata”. Isso se deu, pois •
pode ter havido uma interferência de sua L1 sob a L2?
•
Foi, simplesmente, um erro de ortografia? Cognitivamente, o aluno parece saber que ali é o local para preposição. É um
dos aspectos que discutimos na seção 1.1.
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Texto 2 (estudante 2 - E2):
Texto
Preposições ausentes
Preposições não corretamente usadas
Preposições corretamente usadas
Eu sai do meu pais (Marrocos) “No”: em+o, “Por”, “No”: a “Do” e “No”. dia 02/11/2018 “Por”, “Para”. construção “na Eu chegou aqui por A Vião o”. Eu foi recebido bien, por qui me esposa estava esperando na o aeroporto Eu tenh 10 meses aqui, Eu Acho que sempre ou 5 Anos Eu gosta no Brasil: comida musica - pessoas - cultura Eu não gosta no Brasil: Droga – crime
No caso do participante 2, que é marroquino, a contração “em + o", que resulta em “no”, não aconteceu. Houve a tentativa: tanto que o estudante escreveu “na o”. Da mesma maneira que o estudante 1, da análise anterior, semântica e sintaticamente, o estudante 2 sabe que, ali, depois de “esperando” e antes de “aeroporto”, há o local para uma preposição: ele a coloca, mas fica em dúvida e põe, também, o artigo definido “o”. Com base nessas informações, acreditamos, a partir de seu texto, que o aluno não possua tanto conhecimento em português brasileiro. Consideramos ser provável que um maior conhecimento em PB refletiria em mais acertos e, não obstante, em menos erros – e, além disso, é possível que o estudante, munido de mais conhecimentos, não erraria, usaria mal e acertaria uma mesma preposição em seus diferentes usos, como dito acima, no caso da preposição “no”. Falta “no” na frase “Eu sai do meu pais (Marrocos) [no] dia 02/11/2018”. Ao invés de “por”, deveria ser “de” em “Eu chegou aqui por A Vião” - grifo nosso. Falta “por” e “para” em “Eu tenh 10 meses [por] aqui, Eu Acho que [para] sempre ou [por] 5 Anos”.
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Texto 3 (estudante 3 - E3):
Texto
Preposição ausente
Eu saí do meu país no dia 19 de julho e Não houve. cheguei em Buenos Aires no dia 20. Desde o dia 20 até o dia 28 eu e à minha namorada ficamos viajando e no dia 29 a gente chegou em Rio de Janeiro. Nos dormimos no airiporte e de manhã pegamos um ônibus para ir até Belo Horizonte. À primeira noite à gente foi dormir para uma amiga da minha namorada e à partir do segundo dia eu ja tinha um quarto no bairro coraçâo eucaristico. Agora moro com outros 3 pessoas, todos brasileiros mas acho que eu vou deixar a casa no fin do semestre porque é muito custoso: 700 reais por o quarto!! Dado que eu vou morar em BH até o fim do primeiro semestre eu gostaria de mudar quarto para um mais barato. (Mesmo se eu gosto das pessoas que moram comigo mas dois deles vam embora em dezembro também). Aqui, em qualquer caso, eu estou feliz. Eu gosto da cidade, mesmo se é gigante; eu gosto da comida mineira e de aprender cozinhar os pratos tipicos!; até setembro eu comencei também um curso de capoeira pois eu gostava de conhecer mais em profundidade a cultura do Brasil. Está andando bem também com a universidade, agora curso as aulas de história, antropologia e pedagogia. Em este ano eu gostaria de fazer uma pesquisa e escriver uma dissertaçâo sobre a cultura afro brasileira! Obrigado pelas pesquisa! Ah, eu sou italiano!
Preposições não corretamente usadas “Em”, “Até”.
“À”
Preposições corretamente usadas
e “No”, “De”, “Em”, “Até”, “Para”, “Com” e “Sobre”.
Esse participante é italiano. A língua italiana, de um modo geral, possui semelhanças com o Português, pois ambas são consideradas neolatinas. No texto do participante 3, houve: i.
nenhum erro de preposições,
ii.
três usos inadequados, e
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iii.
sete preposições usadas corretamente.
É, de certa maneira, aceitável o uso da preposição “em” na seguinte frase: “e no dia 29 a gente chegou em Rio de Janeiro”; porém, não é muito utilizado por falantes nativos de PB – isso só significa que um nativo brasileiro entenderia a construção feita pelo italiano. Não obstante desta análise, ainda há a seguinte frase que, em vez de de “para”, o E3 poderia ter colocado “em”: “à gente foi dormir para uma amiga da minha namorada” – grifo nosso. O italiano poderia ter usado “em”, em vez de de “até”, nesta passagem: “até setembro eu comencei também um curso de capoeira”, pois “até” carrega uma carga semântica, neste contexto, de indicação de limite de tempo – o que a preposição “em” não carrega, por isso, seu uso seria o mais adequado. Observando o verbo “comencei’, percebemos que ele está conjugado no passado, apontando que essa ação (de começar a capoeira) já aconteceu. Ademais, o participante escreveu o texto no dia 30/09/2019, ou seja, já era o último dia do mês. Tudo isso nos apresenta que o estudante possui, satisfatoriamente, conhecimentos sintáticos e semânticos quanto aos usos das preposições do/no PB, pois um falante nativo de português brasileiro consegue compreender satisfatoriamente as falas, construções e sentenças desse estudante. O participante colocou, equivocadamente, crases em “À primeira noite à gente foi dormir para uma amiga da minha namorada e à partir”, pois, na verdade, é somente artigo – grifos nossos – o que nos revela o não conhecimento eficaz do uso da crase.
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Texto 4 (estudante 4 - E4):
Texto
Preposição ausente
Eu sou haitiano. Eu moro no Brasil, há “De”. dois anos e oito meses. Cheguei ao Brasil no dia 19 de fevereiro de 2017. Mas, saí do meu país, Haiti, no dia 14 de fevereiro de 2017. Primeiro, fui à República Dominicana de ônibus. Fiquei uns dias na capital, Santo Domingo. Em seguida, fui à cidade Punta Cana no dia 18 de fevereiro e peguei o meu voo no dia seguinte. Sendo assim, cheguei de avião no Brasil, na cidade de São Paulo, no dia 19 de fevereiro de 2017. Porém, o meu destino final era a cidade Palmas, capital do Estado Tocantins. Cheguei a Palmas à meia noite no dia 20. Eu fui muito bem recebido em Palmas. Na verdade recebido pelo Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins. Fiquei dois meses na casa do coordenador do curso. Eu estou no Brasil para fazer doutorado e ficará até defeza da minha tese. Provavelmente, apresentarei a tese no início de 2021. Eu estou gostando muito da cultura brasileira sobretudo os ritmos musicais seguintes: pagode, samba, MPB, Forró e bossa nova. O que eu não estou gostando seriam as desigualdades sociais, a exclusão e o racismo. Por enquanto, eu acho que o Brasil é um país maravilhoso. Se eu encontrar muitas oportunidades de emprego, posso timar a decisão de ficar até mais um ou dois anos após a defesa da minha tese, quer dizer até 2023.
Preposições não corretamente usadas
Preposições corretamente usadas
“No” e “Até”.
“No”, “Do”, “De”, “À”, “Na”, “Pelo”, “Em”, “Para”, “Até” e “Da”.
A partir da leitura desse texto, percebemos que o estudante possui grande conhecimento de PB, apresentando duas ausências de uma mesma preposição, duas preposições usadas não corretamente e dez acertos. Falta a preposição “de” nas seguintes construções: “fui à cidade [de] Punta Cana” e “meu destino final era a cidade [de] Palmas”. Tais frases, sem a preposição, não impossibilitam a 28
compreensão por parte de falantes nativos do PB, mas, pela sintaxe de regência, é necessário que se coloque a preposição “de”. As duas preposições usadas não corretamente são: i.
“no”, em “Cheguei a Palmas à meia noite no dia 20” (que poderia ter sido “do” e
ii.
“até”, em “posso timar a decisão de ficar até mais um ou dois anos” (que poderia ter sido “por”.
O bom conhecimento da L2 – PB –, por parte desse estudante, parece para nós, ser refletido nesse texto, pois apresentou pouquíssimos erros e bastantes acertos.
Texto 5 (estudante 5 - E5):
Texto
Preposições ausentes
Há algumas coisas sempre vão ficar na “De” e “Ao”. nosso memória. Isso, é o meu caso. Viver longe da sua família, cultura, seus amigos não é tão fácil. Uma segundafeira 13 de fevereiro 2017 deixei tudo: minha família, minha cultura, meus amigos para vir no Brasil, eu tînha que chega lá no dia seguinte, infelizmente, isso não foi acontecido assim. Cheguei no Brasil no dia 20 de fevereiro 2019 ás duas horas da madrugada. Eu fui recebido po um amigo da mesma terra, cheguei cansada, pois passei quase 12 horas no avião. Ele foi me recebida no Confins ás duas horas da madrugada. Eu venho para estudar e há dois anos e oito meses desde que eu estou aqui no Brasil. O dia que eu cheguei no Brasil, foi meu primeiro dia de aula do português e fiquei 6 meses. Os três primeiros meses aqui não foram fáceis, chorava muito, tinha muitas dificuldades com o idioma, ficava doente por muitos dias por causa da temperatura, tinha problema com as comidas, não gostava e que hoje é totalmente diferente. Do dia a dia, o
Preposições não corretamente usadas “No”, “Por”, “Na”.
Preposições corretamente usadas
“Às”, “Na”, “Da”, “Do” e “De”, “Para”, “Desde”, “Por” e “Como”.
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hábito começa entra no meu vocabulário e hoje eu me sinto como uma brasileira foi perdida num outro país. Como que o gosto de todo mundo é diferente, eu tenho minhas preferênciais aqui no Brasil Como: Música (Sertanejo, Pagode, Bossa nova); Comida (Feijoada, feijão tropeiro) Lugares (Palmas, Foz do Iguaçu, Florianopolis), há tantas outras coisas que eu gosto, estou gostando e na futura gostaria. Na realidade não há muitas coisas que não gosto aqui no Brasil, mas tem a discriminação dos negros que não gosto daqui e outras coisas sem importância. Criei uma nova família aqui e me sinto muito bem, depois meus cinco anos de estudo, vou embora, e o Brasil com todas coisas boas vão ficar uma lembrança inesquecível. Sou haitiana.
Essa haitiana apresentou, em seu texto, a ausência de duas preposições, cinco preposições não usadas corretamente e sete usadas corretamente. De certa maneira, a estudante mostra possuir um bom conhecimento em PB. Pensamos que há influência de sua L1 sobre a L2, pois antes de ano, aqui no Brasil, colocaríamos a preposição “de”. Veja: “13 de fevereiro 2017”. Além disso, não usamos – embora entendamos – o seguinte uso da preposição “no”, que deveria ser “ao”: “meus amigos para vir no Brasil”. A estudante acerta, cognitivamente, o uso da preposição nesta frase: “Eu fui recebido po um amigo da mesma terra”, embora tenha errado na escrita, faltando a letra “r” ao final. É interessante perceber que a estudante, noutras ocasiões, acerta a escrita da preposição “por”. Na construção “estou gostando e na futura gostaria”, para nós, parece haver a influência de L1 sobre a L2, pois a palavra “futuro”, que aqui é tida como substantivo masculino, lá, no Haiti, pode ser feminina e, por isso, a aluna colocou “na futura”. A partir das análises supracitadas, que seguiram o modelo de comparação (OLIVEIRA, 2009), podemos perceber certos apagamentos e intrigantes usos de algumas preposições. O primeiro questionamento postulado neste artigo é o seguinte: “Como se dá o uso (ou não) de preposições na escrita de estrangeiros universitários?” Tal pergunta tem respostas reveladas nas análises acima. Em outras palavras, é 30
através da carga semântica – sua importância na frase – que a preposição é (ou não) escolhida para fazer a sua função de ligar as palavras a fim de se ter a coesão da sentença, da oração ou da frase. Como já debatido, acreditamos que há o lugar para a preposição “entrar”, mas isso não ocorre ou, ainda, em algumas construções, é utilizada uma preposição, mas não é a mais adequada para aquele sentido pretendido. O estudante sabe que tem ali uma palavra que ligará outra: seleciona uma e a coloca, mas não seria a mais indicada para aquele uso. Como transferência → interferência, discutida na seção 1 deste artigo, temos as seguintes passagens como exemplos para a interferência: i) o estudante 2 sabe que ali, depois de “esperando” e antes de “aeroporto”, há o local para uma preposição: ele a coloca, mas fica em dúvida e põe também o artigo definido “o”; ii) o estudante 4 apresenta falta da preposição “de” nas seguintes construções: “fui à cidade [de] Punta Cana” e “meu destino final era a cidade [de] Palmas” - tais frases, sem a preposição, não impossibilitam a compreensão por parte de falantes nativos do PB, mas, pela sintaxe de regência, é necessário que se coloque a preposição “de”; iii) a estudante 5 escreve “13 de fevereiro 2017”, sem a preposição “de” antes do ano e, além disso, na construção “estou gostando e na futura gostaria”, a palavra “futuro”, que aqui é tida como substantivo masculino, lá, no Haiti, pode ser feminina e, por isso, a aluna colocou “na futura”. NOSSAS CONSIDERAÇÕES De modo geral, o uso ou não de preposições por parte de estrangeiros universitários varia de acordo com o contexto (em uma construção o aluno errou uma preposição, mas noutra, do mesmo texto, ele a acerta). A partir disso, relacionados aos textos teóricos utilizados para esta pesquisa, descobrimos que há casos de transferência (interferência) da L1 sobre a aprendizagem e o uso da L2. Ademais, identificamos situações em que ocorre o apagamento das preposições, como a haitiana que não colocou “de” antes de “2017”, e levantamos hipóteses acerca da influência da L1 sobre o aprendizado do uso de preposições no Português, como na construção “estou gostando e na futura gostaria”, que nos parece haver a influência de L1 sobre a L2, pois a palavra “futuro”, que aqui é tida 31
como substantivo masculino, lá, no Haiti, pode ser feminina e, por isso, a aluna colocou “na futura”. Por fim, essa pesquisa não está isenta de questionamentos. O que nos interessou, com este artigo, foi propor um exercício crítico e reflexivo que possa contribuir para as pesquisas neste campo – em desenvolvimento e as que ainda serão iniciadas. Esperamos que o estudo que aqui realizamos seja significativo e motive, a todos os interessados, a buscar respostas para hipóteses aqui levantadas e criar outras. Ademais, esperamos que tal estudo seja alvo de reflexão sobre a aprendizagem de uma segunda língua – em especial o PB – e que, de certa maneira, contribua para a inovação do ensino de português para estrangeiros.
REFERÊNCIAS CEGALLA, Domingos Paschoal. Preposição. In: CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48ª. ed. rev. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010, p. 268-288. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Preposição. In: CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Lexikon, 2017., cap. 15, p. 569-592. DOTA, Maria Inez Mateus. Transferência na aprendizagem de leitura em língua estrangeira: algumas reflexões. Alfa, São Paulo, v. 42, p. 23-32, 1998. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/4266/3855. Acesso em: 24 out. 2019. DURÃO, Adja Balbino de Amorim Barbieri. Transfrerência (Interferência) linguística: um fenômeno ainda vigente? Polifonia, Cuiabá, v. 15, p. 67-85, 2008. Disponível em: http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/1035/811. Acesso em: 24 out. 2019. NEVES, Maria Helena de Moura. As preposições. In: NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. 2ª. ed. rev. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 603-738. OLIVEIRA, Aparecida de Araújo. Relações semântico-cognitivas no uso da preposição ‘em’ no português do Brasil: semântica e cognição. In: OLIVEIRA, Aparecida de Araújo. Relações semântico-cognitivas no uso da preposição ‘em’ no português do Brasil. Orientador: Heliana Ribeiro de Mello. 2009. Tese (Doutorado em Letras) UFMG, Belo Horizonte, 2009. p. 317. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/LETR8T9NRJ/1/tese_aparecidaaraujooliveira.pdf. Acesso em: 24 out. 2019. 32
PERINI, Mário Alberto. Conectivos. In: PERINI, Mário Alberto. Gramática descritiva do português brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 2016. cap. 39, p. 440-447. VILELA, Thatiana Ribeiro; ROCHA, Elizabeth Gonçalves Lima. Um breve panorama: descrição e abordagem metodológica de preposições no português brasileiro. Estudos Linguísticos, São Paulo, p. 296-310, 2017. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/1761/1226. Acesso em: 24 out. 2019.
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INTERTEXTUALIDADE
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IMITAÇÃO, RESSONÂNCIA OU INAUGURAÇÃO? Análise dos processos intertextuais entre os filmes E.T.: O extraterrestre e A Forma da Água Brenda Godinho Oliveira* Luana Rodrigues Pires
“Espelho, espelho meu: diga a verdade, quem sou eu?” (Roseana Murray, 2003).
RESUMO
Este trabalho se destina a averiguar os processos de intertextualidade, em seus inúmeros aspectos, percebidos entre as peças cinematográficas E.T.: O extraterrestre, de Steven Spielberg e A forma da Água, de Guillermo del Toro, baseando-se no que fundamentam alguns dos principais estudiosos do assunto. Ao se tratar de tal tema, não se deve olvidar de considerar a perspectiva dialógica, para fazer as condignas análises. Para isso, conta-se com as teorias de Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov.
Palavras-chave: Intertextualidade. Diálogo. E.T. A Forma da Água.
ABSTRACT
This work aims to investigate the processes of intertextuality, in its many aspects, perceived among the cinematographic plays ET: The extraterrestrial, by Steven Spielberg and The form of water, by Guillermo del Toro, based on what some of the main scholars base of the subject. When dealing with such a theme, one should not forget to consider the dialogical perspective, in order to make the appropriate analyzes. For that, it relies on the theories of Mikhail Bakhtin and Valentin Volóchinov.
Keywords: Intertextuality. Dialogue. E.T.The Shape of Water.
*
Discentes do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS Aristóteles em seus tempos longínquos, já dizia que “a finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, não copiar sua aparência”. Mas será que esse raciocínio é realmente o que ocorre? Nas teorias linguísticas, há quem discorde, sobretudo os componentes do Círculo de Bakhtin, por crerem que os discursos existentes, incluindo os artísticos, são resultados de já ditos, do que é preexistente. Ou seja, é difícil mensurar ou mesmo pontuar, que existe um “início” para diversas questões que permeiam a humanidade, mesmo no que tange à arte. Ora, sendo a arte resultado da atividade humana, como não dizer que a ela também se aplicam essas teorias? E finalmente, como dizer que não há uma relação entre uma e outra forma de se manifestar artisticamente? Acontece que o elemento que suscita esse debate é a presença da palavra “copiar” na passagem de Aristóteles, uma vez que dela é possível depreender que o ideal seja a não cópia das coisas. Todavia, as relações intertextuais se dão dessa maneira. Claro que não uma cópia de fato, mas através da influência que, um objeto artístico pode exercer sobre outros, ainda que inconscientemente e entre tipos distintos de arte. Quando se dão de maneira mais clara, costumam identificar a “origem” que suscitou aquele intertexto. Sendo a “essência das coisas” percebida, porque há seres humanos que refletem a respeito de sua existência e a repetem, então como dizer que não se copia o que as coisas aparentam ser? O resultado de uma análise é, o que o analisador entende e assimila, através de sua observação. Então, nem mesmo essa ação é auferida igualmente. Tratando-se da relação humana, mesmo em sua interação com objetos, é possível fazer a mesma afirmação, tendo em vista que a realidade percebida, pelos sujeitos enquanto seres humanos é resultado da ponderação sobre as coisas. A reflexão humana é, então, subjetiva, ou melhor dizendo, intersubjetiva, já que se funda na interação com o outro, para a construção da própria subjetividade e, consequentemente, na construção do conhecimento, de sentidos e significados. O que se pretende, com essa discussão, é colocar que a “cópia” é inevitável, nos termos dialógicos, considerando-a como um exercício de influência, de ressonância que uma obra ou objeto refletem em outros incontáveis. Ao mesmo tempo, isso não significa dizer que se trata de uma atitude de plágio, de mera cópia. Pelo contrário, os discursos não são palpavelmente distinguidos do que está implícito naquele objeto analisado, o que justifica a relevância daqueles que se dedicam à 36
análise de sopesar esses pontos. Propõe-se isso, neste momento, em virtude das correspondências verificadas, entre os objetos que se pretende analisar. O intertexto ali contido, não é mera cópia de textos e imagens. É na verdade, tão imbricado, que prescinde de esmerado exame, para que sejam trazidos à tona, os vínculos intertextuais, que ressaltam como os criadores desses objetos pretendem constituir ou reconstituir os significados ali presentes. ANÁLISE Peças cinematográficas são, invariavelmente, influenciadas por diversas formas de referências, seja na estética ou na história contada. Já afirmava Bakhtin, no final do século XX, que os discursos estão repletos de “palavras dos outros”, de um grau vário de alteridade, de relevância, de aperceptibilidade. Partindo desses pressupostos dialógicos e das noções a respeito da intertextualidade, pode-se afirmar que há nas obras “A Forma da Água” e “E.T. – O Extraterrestre” um arguto diálogo. A “Forma da Água” é um premiado filme do diretor mexicano Guillermo del Toro de 2017 cujo enredo é ambientado no contexto da Guerra Fria. Já de início nos deparamos, com a curiosa escolha do título, visto que a forma não é característica da água. Pelo contrário, ela assume o formato do recipiente que a contém. Note que a opção é feita pela preposição, “da” e não “na”, o que nos leva ao mencionado raciocínio. A água, marco orientador do enredo, está presente em quase todas as cenas: nos copos de água para tomar medicamentos, na banheira da protagonista, no cozimento dos ovos, no ambiente em que se encontra a figura misteriosa. Elisa, a protagonista, é uma faxineira em um laboratório, que leva a vida pacatamente até que um dia, uma criatura aquática é trazida para ser estudada pelos pesquisadores. Ela se identifica com a tal criatura desde o princípio, por ambos não possuírem habilidades para a fala. Ela é muda desde criança, pois teve suas cordas vocais retiradas e ele, mesmo com uma forma humanoide, não é um ser humano e não manifesta tal aptidão. Apesar desse empecilho inicial, ambos acabam conseguindo se comunicar, por intermédio de gestos, de música ou mesmo através do fato de Elisa levar ovos cozidos, para atrair sua atenção. No desenrolar da trama, a protagonista desenvolve sentimentos afetivos pela criatura, tão intensos que a fazem ser capaz de resgatá-lo, do laboratório, quando fica claro que, os pesquisadores pretendem eliminá-lo. Ela vê nele sua própria aceitação, uma vez que, diferentemente 37
dos outros seres, com quem ela está habituada a conviver, para a criatura ela não é falha, não está incompleta. Há aqui um questionamento a respeito das limitações do ser humano e possivelmente uma reflexão sobre como conviver com essa inegável fatalidade. A condição pontuada da mudez pode representar o fato de que, nos anos de 1960 nos Estados Unidos, as mulheres não tinham voz na sociedade. Todavia, além de Elisa, ainda assim, ser a personagem que mais se comunica ao longo dos acontecimentos, a música, incluindo filmes musicais, são exibidos a todo momento. Em contraponto a ela, há a mulher que estereotipa o papel da “esposa”, a “barbie”, que não tem muitas preocupações além das cotidianas próprias de uma matriarca, no tocante à sua família. Seu marido, o coronel Strickland, homem branco de classe alta personifica o “provedor” e contém em si grandes paradoxos, uma vez que se destaca, nessa posição, por fazer parte dos privilegiados que alcançaram o ideal americano, louvável para a época, ao mesmo tempo em que ocupa a posição de anti-herói, do vilão, a partir do ponto de vista dos interlocutores da obra. O tratamento dos personagens aborda, sutilmente, as questões sociais, como racismo, machismo e homofobia. Além dos já mencionados, temos Zelda Dalila, mulher negra, melhor amiga de Elisa e sua companheira de trabalho e Giles, outro dos amigos da protagonista, que, por ser homoafetivo, perde inúmeras oportunidades de trabalho como pintor. Zelda Dalila, por seu segundo nome, pode fazer referência à passagem bíblica da história de Sansão e Dalila. Todos estão à parte da sociedade por carregarem consigo estigmas naquele momento da história americana. Em função disso, pode-se realizar um paralelo com a criatura capturada. Inspirado na obra “Monstro da Lagoa Negra”, o ser fantástico de del Toro é, para sua aldeia de origem, um Deus, contudo, em terras norte americanas é apenas mais uma dentre todas as figuras estigmatizadas, inclusive pelo fato de os cidadãos estadunidenses se considerarem no direito de dominá-lo, apagando sua identidade e desdenhando de suas idiossincrasias. Nessa disposição de temas, há detalhes tênues, mas muito relevantes. Há o emprego das cores, sobretudo o verde, apresentado como a cor do futuro. Ele está destacado nas tortas de limão, nos doces do coronel, no carro tido como o mais moderno da época. Ainda, a depender do ambiente, pode ser visto também como a cor da própria água. 38
No universo do simbolismo, ovos representam a fertilidade. Eles aparecem em muitas cenas, desde seu preparo até seu consumo. Existem teorias que declaram ser a forma do ovo a mais perfeita, especialmente por sua simetria. Isto é, mais uma vez fica evidente a atenção que é dada às formas. Sendo a água o fio condutor do filme, crê-se em sua relação com a tentativa de mensurar o tempo no filme, objeto de recorrente abordagem. São mostrados vários relógios, a contagem de tempo para o resgate, a acomodação de um calendário, que marca especificamente, a data em que aumentarão as chuvas, para que a criatura possa ser libertada. É notável que, a partir de abordagem tão sutil, restem visíveis certas questões a respeito da vivência humana, sobretudo em relação à tentativa de controlar o tempo ou mesmo retardá-lo. No longa-metragem de Steven Spielberg, lançado em 1982, o tópico tempo também está presente. O E.T. pequeno alienígena, que dá nome à obra, anseia por voltar para sua casa. No desenrolar da história, o garoto Elliot tenta escondê-lo até que consigam se comunicar com a “família” dele. O tempo é mensurado pela falta que o pequenino sente dos seus e quando sua vida é colocada em risco, mas acima de tudo quando as crianças se embrenham numa fuga para ajudá-lo. Essa é a cena clássica, em que os garotos voam em suas bicicletas, para fugir de seus perseguidores. Na película de Spielberg está presente também o louvor a tudo que é estadunidense, porém de modo mais idealizado, quase ufanista. Nesse aspecto, levando em consideração que o filme de del Toro é mais recente, infere-se que há uma possível retomada desse nacionalismo sob outra ótica. A proposta é se utilizar do próprio nacionalismo para questioná-lo, quase o desdizendo, já que o sonho americano e a família tradicional apresentados rompem com a ideia de que o que representa o patriótico é necessariamente bom, puro e correto. Há teorias que afirmam que a obra, depois de publicada, não pertence mais a seu autor e por isso, sua análise deve incidir sobre seu conteúdo, contudo, é significativo mencionar que del Toro é mexicano, informação que corrobora com esse distinto ponto de vista. Todavia, isso não é fator que desmereça a magnitude da obra, já que, além de sua tangível qualidade, ela foi laureada com o Oscar de Melhor Filme pela Academia. Spielberg nos conta a aventura partindo da perspectiva das crianças, pois a câmera está posicionada de cima para baixo em vários momentos. Essa atmosfera infantil é tão carregada que na primeira metade do filme não aparecem rostos adultos 39
exatamente. Ou eles estão de costas ou há algum feixe de luz que distorce sua imagem. O único adulto que de fato aparece nesse primeiro momento é a mãe das crianças. Ousa-se inferir que essa tendência diz respeito à mesma alusão à fertilidade, afinal, qual é o ser que mais a caracteriza que não a figura da mãe? Mesmo que as obras aparentem grandes distinções em seu cerne, em virtude de terem sido feitas em tempos diferentes, com propósitos diferentes, por atores e produtores diferentes, elas, ainda assim, possuem aspectos inegavelmente análogos em determinadas particularidades no decorrer da trama. Sendo E.T a primeira obra a ser produzida e, além disso, ser uma grande referência dentre as produções cinematográficas, no meio da ficção científica, é natural pensar que o filme “A Forma da Água” tenha se inspirado em cenas do filme E.T, que se delineiam em pormenores durante o roteiro. A figura do ciclo existe mesmo aqui, em que uma peça retoma a outra. Entre as figuras sobrenaturais, existem algumas outras semelhanças. Ambas possuem a capacidade de comunicação, mesmo que não através da fala propriamente. O E.T ainda consegue pronunciar algumas poucas palavras, mas o monstro aquático interage a partir da língua de sinais ou de movimentos corporais. Eles, em suas narrativas, morrem tragicamente, porém logram ressuscitar. Aqui existe uma paridade interessante, pois ambos ressuscitam apoiados em seus próprios poderes. O E.T por intermédio direto de sua amizade com Elliot e o monstro de del Toro, por sua própria habilidade de regeneração. Nesse último, ademais de se salvar, ele traz Elisa também de volta à vida. As criaturas, por fim, cumprem seu propósito de regressar ao princípio, de retomar sua existência cujo engrandecimento jamais seria possível sem atravessar tais episódios inesquecíveis. Os acontecimentos que dão início aos filmes, já nos introduzem ao espectro da história, mostrando o lugar de origem de ambas as criaturas que estrelam a peça. O céu do qual a pequena criatura, E.T, veio e a água, na qual vive a criatura da Forma da Água. Há, também, o contexto aeroespacial que é tematizado em ambos os filmes de maneiras diferentes, um pela própria aparição de um extraterrestre e pela presença de roupas espaciais, e outro pela corrida tecnológica advinda das necessidades do embate da Guerra Fria. Apesar das criaturas não serem fisicamente semelhantes, elas possuem características ou capacidades similares, como a compreensão e a reprodução de alguns aspectos da linguagem humana. O E.T através da língua em si, enquanto a 40
criatura aquática utiliza o ASL (American Sign Language). Ou mesmo competências além das humanas, como a cura por seu toque ou a reanimação em um estado crítico de saúde. Tais características são retomadas também ao final em ambas as obras, durante o salvamento das pessoas com as quais as criaturas compartilham um vínculo afetivo, Eliott e Elisa. Ambas as criaturas também são extremamente curiosas sobre o mundo novo, apresentado para elas pelos personagens humanos, protagonistas da trama. As criaturas também são introduzidas de maneira análoga, iniciando pelas mãos. O ser humano é conhecido pela sua habilidade de manusear objetos a partir da origem dos polegares opositores. A ciência acredita que essa tenha sido a maior evolução da espécie, talvez sendo esse o motivo pelo qual haja foco tão marcado nas mãos de ambas as criaturas, como se a indicar que elas são tão evoluídas quanto a própria espécie humana. Existem também aspectos mais sutis, a exemplo do medo de animais domésticos, como cães e gatos, o uso de uma van para a fuga e transporte deles e mesmo aspectos como a referência a algum tipo de conto de fadas. No E.T, está implícita a similaridade com Peter Pan e na Forma da Água, a correlação com a Bela e a Fera. A presença de um cientista disposto a ajudar de alguma forma, seja qual for a proposta, também é um elo comum em ambas as películas, bem como o uso de algum cômodo específico da casa para esconder e acomodar a criatura de alguma forma, sendo no E.T o armário e na Forma da Água, o banheiro. Os vínculos intertextuais que ocorrem nessas obras não são dos mais escancarados, nem se restringem à figura do texto. Os elementos que se relacionam são os mais diversos, desde imagens a ideias, conceitos, cores e até mesmo temas. Essa variedade tamanha é significativa para perceber que a capacidade humana de elaboração é praticamente ilimitada, e, que ao final, quando composições são recuperadas, ocorre ao mesmo tempo a retomada de significados e a criação de outros tantos, inaugurando, possivelmente, outras maneiras de dizer.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Destarte, depreende-se que a maneira pela qual as histórias são contadas influenciam sim umas às outras, mesmo que inconscientemente. Elas conversam entre si e denegam as potenciais limitações do tempo, da vida e da própria condição humana. Obras com mais de trinta anos de intervalo entre lançamentos não possibilitam apenas a aplicação da intertextualidade, elas sugerem que as interrelações são ainda mais melindrosas do que se atreve a imaginar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. A finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, não copiar sua aparência. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/MTYxNjUw/>. Acesso em: 23 abr. 2019. BAKHTIN, Mikhail. A Criação da Estética Verbal. Tradução por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 2ª ed. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Tradução por Maria da Glória Novak e Luiza Neri. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. E.T.: The Extra-Terrestrial. Directed by Steven Spielberg. Produced by Kathleen Kennedy and Steven Spielberg. United States: Amblin Entertainment & Universal Studios, 1982. 1 DVD (114 min.). MURRAY, Roseana. Recados do Corpo e da Alma. São Paulo: FTD, 2003. THE SHAPE of Water. Directed by Guillermo del Toro. Produced by Guillermo del Toro and J. Miles Dale. United States: Bull Productions, 2017. 1 DVD (123 min.). VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. HUCITEC, 2006. 12. ed. VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas Fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
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MÍDIA
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PEÇAS PUBLICITÁRIAS: Comparação das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino Izabela de Souza* Leandro Martins Luciene Quirino RESUMO
Visto que as propagandas acompanharam as mudanças da sociedade no que se refere aos papéis ocupados por homens e mulheres e, consequentemente, as transformações no tange à (des)igualdade de gênero, este ensaio tem como objetivo discorrer sobre a comparação das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino em algumas peças publicitárias, analisar os efeitos de sentido produzidos nessas peças, observar as mudanças de papéis ocupados por homens e mulheres que acabam refletindo nas propagandas. Para contribuir com a análise e reflexão sobre o assunto aqui abordado, o ensaio apresenta como base teórica Charaudeau (2007), Gregolin (2007) e Orlandi (2005). Além disso, o corpus aqui analisado foi composto por algumas propagandas selecionadas de produtos de limpeza, alimentação e beleza.
Palavras-chave: Publicidades. (Des)igualdade de gênero. Identidade. Discurso.
ABSTRACT
Since the advertisements followed the changes in society with regard to the roles occupied by men and women and, consequently, the transformations regarding gender (in) equality, this essay aims to discuss the comparison of social identities built for the female and male gender in some advertising pieces, analyze the effects of meaning produced in these pieces, observe the changes in roles occupied by men and women that end up reflecting in advertisements. To contribute to the analysis and reflection on the subject addressed here, the essay presents Charaudeau (2007), Gregolin (2007) and Orlandi (2005) as the theoretical basis. In addition, the corpus analyzed here was composed of selected advertisements for cleaning, food and beauty products.
Keywords: Publicity. Gener (dis)equality. Identity. Speeches.
*
Discentes do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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Este texto discorre sobre a comparação realizada das identidades sociais construídas para o gênero feminino e masculino, e os efeitos de sentido produzidos em algumas peças publicitárias. Além disso, tem-se a finalidade de observar como as propagandas acompanharam as mudanças da sociedade no que se refere aos papéis ocupados por homens e por mulheres e quais as transformações que tangem à (des)igualdade de gênero. O corpus será composto por propagandas selecionadas de produtos de limpeza, alimentação e beleza. Para entender a publicidade, devemos ter em mente que ela é um gênero textual que promove um produto ou uma ideia sendo veiculado pelos meios de comunicação de massa: jornais, revistas, televisão, rádio e internet. Podemos encontrá-las também em outdoors, panfletos, faixas ou cartazes fixados na rua, no ônibus, no metrô etc. A principal característica desses tipos de textos é, precisamente, o convencimento do consumidor para a compra de um produto ou serviço. Os publicitários, ou seja, aqueles que produzem os anúncios, cujo objetivo é convencer o consumidor, utilizam diversas ferramentas discursivas, como o, uso de imagens, de linguagem simples e humor. Além disso, precisamos entender também que existem dois tipos principais de propaganda: os comerciais, que são criados com a finalidade de ganhar dinheiro com o produto ou serviço anunciado; e a propaganda social, que é criada com o objetivo de conscientizar as pessoas sobre questões importantes, como sobre saúde, estado em que vivem, questões sociais, e assim por diante. Em seu livro “Discursos das mídias”, Charaudeau (2007) apresenta a definição de dois tipos de discursos que nos são válidos: “discurso informativo” e “discurso propagandista”. Para o autor, ambos os discursos têm em comum o fato de estarem particularmente voltados para o seu alvo. O propagandista, para seduzir ou persuadir o alvo, o informativo para transmitir saber. Em ambos, a organização do discurso depende das hipóteses feitas a respeito do alvo, especificamente a respeito dos imaginários nos quais este se move (CHARAUDEAU, 2007, p.60).
Além
disso,
a
propaganda
é
uma
parte
integrante
da
sociedade
contemporânea, é um meio de comunicação massiva, que ajuda a vender produtos e outros serviços por meio de técnicas persuasivas que “afetam” o público de diferentes maneiras. 45
Orlandi (1996) aponta que a linguagem é constituída pela incompletude. Ainda que a linguagem tenda para a unicidade: o completo e a discrição, ela não consegue impedir a diversidade de sentidos e leva em conta o sujeito enquanto ser histórico, social e cultural, por isso, podem surgir outras interpretações em relação às peças. Vemos que o principal objetivo das propagandas, em geral, é provocar algum tipo de interesse no público-alvo e influenciar a opinião dele em favor desse ou de outro produto, ou serviço de acordo com a cultura do sujeito, situação econômica, estado emocional, etc. Por isso, observamos que tais propagandas selecionadas podem gerar um papel negativo e/ou positivo na vida de seus alvos. Dessa forma, a mediação entre o leitor da peça e mundo acontece através das representações feitas e, por isso, a materialidade do texto midiático contribui para a produção dos efeitos de sentido, porque há muitos modos de significar e a matéria significante tem plasticidade, é plural. Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processo de significação diversos: pintura, imagem, música, escultura, escrita, etc. A matéria significante - e/ou a sua percepção afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele. (ORLANDI, 1996, p. 12)
Diante disso, e para ilustrar o que foi mencionado, a propaganda de vitamina abaixo, publicada em 1939, apresenta, no primeiro quadro, um escrito com uma letra maior, com o homem diz: “Quanto mais duro a mulher trabalha, mais linda ela fica”. No outro, pergunta a esposa: “Deus, amor, você parece dar conta de limpar, tirar pó, e eu estou sempre cansado. Qual é o seu segredo?” - Ela responde: “Vitaminas, querido! Eu sempre tomo minhas vitaminas!”.
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Figura 1 - Anúncios do cereal Pep de trigo integral da Kellogg 1939
F ONTE : HTTP :// WWW . GHOSTOFTHEDOLL . CO . UK / RETROMUSINGS / VITAMINS - FOR PEP /
A cena enunciativa é construída por um casal em um ambiente domiciliar, no qual o homem parece ser caracterizado como um homem de negócios que trabalha fora e a mulher como uma dona de casa, que tem em sua mão um espanador. A materialidade discursiva é construída pela linguagem verbal e não verbal, e cada uma irá desempenhar um papel importante na construção de sentido. A linguagem não verbal é a principal estratégia para a construção da cena enunciativa, que caracteriza o ambiente e os personagens. A forma como o casal está disposto na cena também podem oferecer uma forma de interpretação do texto, pois, aparentemente, quem toma vitaminas, é mais feliz e têm ânimo para as atividades do dia a dia, assim tal imagem pode ser uma forma de representar a realidade por meio da mídia. Nesse sentido, Gregolin (2007) afirma que as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta. (p. 16)
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A linguagem verbal, por sua vez, contribui para a construção da imagem do homem e da mulher, bem como suas posições ideológicas. Ao utilizar o primeiro quadro para examinar a visão do homem, que diz: “quanto mais duro a mulher trabalha, mais linda ela fica” parece ser estabelecida uma relação com o discurso que a publicidade ajudou a sustentar de que :“a responsabilidade de cuidar da casa é, exclusivamente, da mulher”, uma vez que o que está escrito remete a homens machistas, e, na mesma medida, reforça o produto vendido. Ou seja, isso mostra que são vendidas duas ideias. A mulher, nessa peça, compra tal ideia e se compraz quando afirma que são as vitaminas que a faz conseguir dar conta de tudo. A publicidade nessa propaganda ajuda a reforçar a ideia de que “a mulher tem que ser submissa ao marido”. Vale ressaltar que, em razão de as sociedades estarem sempre em mudanças e transformações, ressignificando as coisas e sua própria cultura. As propagandas, na maioria das vezes, se não em todas, são produzidas de acordo com essas mudanças, apresentando novos discursos. Prova disso é que, durante séculos – apesar de hoje isso não ser diferente, mas só mais tênue – o discurso machista de que a mulher é vista como aquela que está destinada aos afazeres domésticos, como pôde ser observado na propaganda anterior, sempre esteve enraizado na sociedade. Em razão disso, as propagandas de produtos de limpeza sempre tiveram mulheres como protagonistas, uma vez que as propagandas tinham como público alvo as mulheres. Entretanto, tem-se percebido que o discurso de que só as mulheres encarregam-se de afazeres domésticos, como se percebe na propaganda anterior, tem se enfraquecido, pois tais tarefas também são uma prática recorrente entre homens, mas, como já foi dito, ainda não se compara com as mulheres, pois estas ainda são maioria nessas funções. Haja vista a participação do homem nos afazeres domésticos, muitas propagandas de produtos de limpeza têm ampliado sua visão de público alvo, ou seja, as propagandas não têm se limitado apenas ao público feminino, mas têm se estendido ao masculino. Diante disso, muitas propagandas de produtos de limpeza têm usado homens com o objetivo de conquistar, também, esse público. Por isso, há uma preocupação por parte das publicidades em saber quem é seu receptor e como atingi-lo, pois, segundo Charaudeau (2007, p.37), o receptor nunca é apenas o alvo ideal usado pelo fornecedor da informação. Sendo assim, é conveniente, na análise de todo tipo de informação, distinguir efeito visado e efeito produzido, e, por conseguinte, levantar uma nova série
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de questões: que efeito é visado quando se quer informar e que tipo de destinatário é o alvo? (CHARAUDEAU, 2007, p.37)
Figura 2 - Comercial Veja
F ONTE : HTTPS :// WWW . HYPENESS . COM . BR /2017/03/ FINALMENTE - UMA - PROPAGANDA - DE - PRODUTO - DE - LIMPEZA ESCOLHEU - UM - HOMEM - COMO - PROTAGONISTA /
Um exemplo disso é o comercial da “Veja” em que tem um homem como protagonista, Daniel Cloud Campos, dançarino da Broadway e que já contracenou com Madonna e Michael Jackson. Embora permaneça com o mesmo argumento de que com os seus produtos a limpeza é mais rápida e eficaz, mesmo contra sujeiras mais difíceis, a propaganda apresenta uma abordagem nova, uma vez que visa a um novo público-alvo. Como se pode ver na imagem acima, o comercial é construído numa oficina de carros com um homem, mecânico, todo sujo de graxa, dançando e limpando ao som de “Maniac”, famosa música tema do filme “Flashdance”, de 1983. De acordo com a empresa, a produção de tal propaganda tem o objetivo de “inovar para acompanhar as mudanças da sociedade, que traz novos arranjos familiares e maior igualdade entre os gêneros”. Entretanto, embora a propaganda tenha essa pretensão, nenhuma informação pode pretender, por definição, à transparência, à neutralidade ou à factualidade. Sendo um ato de transação, depende do tipo de alvo que o informador escolhe da consciência ou não consciência deste com tipo de receptor que interpretará a informação dada. A interpretação se processará segundo os parâmetros que são próprios ao receptor, e que não
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foram necessariamente postulados informador. (CHARAUDEAU, 2007, p.44)
pelo
seu
sujeito
Já para a Análise do Discurso, é consensual que um discurso não circula em qualquer lugar, que não toma livremente uma forma genérica qualquer e não pode ser interpretado de qualquer maneira por qualquer um. Ou seja, para AD, de alguma forma, interessa especificar em que medida cada fator funciona como uma restrição sobre o discurso, seja sobre sua circulação, seja sobre sua interpretação. (MARINHO, 2001, p.22)
Sendo assim, apesar de o comercial ser construído com um homem sendo protagonista, a fim de estabelecer o intuito da empresa citado anteriormente, uma interpretação possível desse comercial é que ela só reforça o discurso machista, que estabelece uma divisão de funções entre homens e mulheres na sociedade; logo, o discurso machista se mantém na publicidade, só que de outra forma. A pergunta que se faz é a seguinte: será que, ao utilizar um homem numa propaganda de produtos de limpeza, o cenário não poderia ser uma cozinha, por exemplo? Pode-se supor que se a propaganda tivesse utilizado uma mulher como protagonista numa cozinha – como já é comumente visto – talvez não atingiria um público maior, que englobasse também os homens. E mais, talvez a propaganda não causaria um grande impacto e, por conseguinte, não aumentaria seu público alvo caso fosse um homem limpando uma cozinha. Dessa forma, uma leitura possível dessa propaganda é que, partindo-se do pressuposto de que as propagandas refletem a sociedade, apesar de tanto homens quanto mulheres usarem produtos de limpeza, eles os fazem em condições diferentes. A mulher o faz num ambiente familiar, o que reforça ainda mais sua posição e função na sociedade, como dona de casa. O homem, por sua vez, fá-lo em um ambiente ditado como sendo um ambiente ocupado por homens. Diante disso, acredita-se que o comercial não condiz com a afirmativa da empresa, quando essa diz que se trata de uma inovação consoante as transformações da sociedade, a qual traz “novos arranjos familiares e maior igualdade entre os gêneros”. Pelo contrário, ela só reforça um discurso que já está enraizado socialmente há séculos, pois, essa propaganda não apresenta um arranjo novo de família e tampouco igualdade de gênero. Isso pelo fato de que, primeiramente, o comercial não é construído num ambiente familiar, mas sim profissional; e segundo, não há uma igualdade entre homens e mulheres. Haveria igualdade caso o homem estivesse limpando uma cozinha, por exemplo, e/ ou a mulher estivesse trabalhando numa oficina mecânica. “Todas essas considerações 50
apontam para a incompletude: porque são várias as linguagens possíveis, porque a linguagem se liga necessariamente ao silêncio, porque o sentido é uma questão aberta, porque o texto é multidirecional enquanto espaço simbólico” (ORLANDI, 1996, p.18). Sendo assim, o informador, neste caso, a publicidade, “deve perguntar-se não se é fiel, objetivo ou transparente, mas que efeito lhe parece produzir tal maneira de tratar a informação e, concomitantemente, que efeito produziria uma outra maneira, e ainda uma outra, antes de proceder a uma escolha definitiva” (CHARAUDEAU, 2007, p.38), uma vez que a linguagem (verbal ou não-verbal) “é cheia de armadilhas. Isso porque as formas podem ter vários sentidos (polissemia) ou sentidos próximos (sinonímia)” (Idem). Além do mais, como afirma Charaudeau (2007, p.38), “a significação é posta em discurso através de um jogo de dito e nãodito, de explícito e implícito, que não é perceptível por todos”. Logo, na construção dessa propaganda, que dispõe predominantemente do imagético, é possível perceber o discurso machista pelo não-dito, isto é, implicitamente. Já na seguinte propaganda, da marca “Ariel”, empresa de produtos de limpeza, pode-se dizer que este comercial expressa, verdadeiramente, uma inovação de mudança, que vai de encontro ao discurso machista presente na sociedade. O comercial apresenta uma nova reformulação das funções exercidas pelos membros de uma família e, com isso, propicia do discurso da valorização à igualdade de gênero. Por tratar-se de um comercial indiano, deve-se salientar, anteriormente, que, segundo algumas pesquisas, 76% dos homens indianos acreditam que apenas as mulheres devem exercer tarefas domésticas. Tal porcentagem só demonstra o quão machista é essa sociedade. Assim, a mídia apresenta um caráter de reforçar ou atenuar determinadas questões sociais. Com a propaganda, a qual também é um tipo de mídia, não é diferente. Isso pode ser verificado na propaganda apresentada anteriormente, a qual tem o caráter de intensificar uma posição ocupada pelo homem, e não pela mulher, na sociedade, que é a profissão de mecânico.
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Figura 3 – Comercial Ariel
F ONTE : HTTPS :// WWW . YOUTUBE . COM / WATCH ? V =8 J 8CV LLL JU O
No comercial “Por que só a mulher tem que lavar a roupa suja?”, da marca “Ariel”, mais do que vender seu produto, a empresa coloca em questão os papéis ocupados por homens e mulheres na sociedade, para ser mais específico, na Índia. A propaganda tem como protagonista um pai que, não sente orgulho da filha e que apesar de trabalhar fora e ocupar-se dos afazeres domésticos, sente pena dela, pois vê que esta faz as tarefas de casa sozinha, sem a participação do marido e do filho. Diante de tal circunstância, ao escrever para a filha, ele se sente culpado, pois tampouco ajudou a mãe dela com os afazeres domésticos. Com isso, é possível perceber que, de uma geração à outra, há uma reprodução do discurso de papéis sociais entre homens e mulheres, sem que haja a possibilidade de mobilidade de papéis sociais. Como se observa pela fala do pai na propaganda, o discurso de que o papel da mulher está voltado para os afazeres domésticos é construído desde a infância, na qual a menina cresce brincando de casinha, enquanto o menino brinca com brincadeiras consideradas para meninos. Diante desse discurso, ao escrever uma carta, o pai não pede desculpas a; filha só por ele, mas pelo marido e pelo sogro dela, e por todos os pais, que – direta ou indiretamente – transmitiram esse discurso às gerações seguintes.
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Figura 4 – Comercial Ariel
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=8j8CVlllJUo
Embora o protagonista perceba a quão errada é esta visão de papéis, o qual denota um discurso de desigualdade entre os gêneros, ele vê que não é tarde para corrigir esse problema. Desse modo, a partir de um esforço consciente, ele procura ajudar sua esposa com as tarefas de casa. Ao utilizar o verbo “ajudar”, podemos interpretar
que,
por
meio
da
fala
do
protagonista,
a
empresa
Ariel,
inconscientemente, apropria-se do discurso de que as tarefas domésticas ainda é um dever da mulher e que seu marido apenas a ajuda. Se a propaganda tivesse usado a palavra “compartilhar”, por exemplo, demonstraria uma igualdade entre homens e mulheres. Após a reflexão do protagonista, o comercial é encerrado com a frase “Why is laundry only a mother's job?” (Por que lavar roupas é apenas um trabalho de mãe?) Como foi dito anteriormente, a propaganda não tem o objetivo de vender um produtor, pelo menos não diretamente, mas, por meio da reflexão de um pai, gerar em outros homens, e até mesmo nas mulheres, uma reflexão acerca da divisão de papéis estabelecida por um discurso machista e numa sociedade patriarcal. Trata-se de uma atitude psicológica por parte do informador que teria interesse no valor da verdade da informação que transmite, o que o levaria a defendê-la ou criticá-la de maneira parcial. Para que essa atitude produza efeito sobre quem recebe a informação, é preciso que seja marcada discursivamente. (CHARAUDEAU, 2007, p.54)
No caso desta campanha publicitária, o informador explicita seu engajamento sobre o modo da convicção, afirmando a confiança que deposita em sua fonte. A informação produz, então, efeito paradoxal: o informador, comprometendo-se com o valor de verdade de sua informação [...] insiste em manifestar sua adesão e sua sinceridade, mas, ao mesmo tempo, seu engajamento aponta para uma convicção que lhe é própria, e não para uma evidência de seu dizer (CHARAUDEAU, 2007, p.54).
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Assim, a ideia é que o espectador se coloque no lugar daquele pai e reflita sobre essa desigualdade de gênero, que foi construída social e historicamente. Diante disso, a partir do momento que a propaganda deixa de reforçar o papel de submissão da mulher, ela – a propaganda – deixa de legitimar o discurso de que as mulheres nasceram com a missão de cuidar de casa, do marido e dos filhos. Embora a frase “Uma imagem fala mais do que mil palavras “seja considerada clichê, esse ditado popular é permeado por uma verdade. O homem por ser um ser de linguagem não pode nem quer se afastar dessa premissa. É, também, um ser visual, condicionado, muitas vezes, por aquilo que vê e, não é à toa, que as empresa de campanhas publicitária, em suas propagandas exploram esse ponto fraco e fazem de tudo para atingir o consumidor, tornando inevitável o consumo dos produtos apresentados. Inicialmente, as propagandas de produtos de beleza e/ou de uso pessoal eram voltadas mais paras as mulheres que, desde pequenas, eram e ainda são levadas a crer que por serem mulheres devem se cuidar. Por isso, não é de se estranhar o quão frequente são as propagandas de produtos para cabelo, cuidados com a pele, maquiagem e roupas que existem nos meios de comunicação, principalmente, de materialidade imagética. Com isso, a sociedade foi solidificando um imaginário estereotipado de mulher e, atualmente, de homem também. Para isso, as agências publicitárias sempre buscam por celebridades para realizarem as campanhas, pois a maioria deles carregam características do homem e/ou mulher ideal. A propaganda utiliza-se disso, fazendo referência constante a esse papel “cuidador”, (López-Barreyro apud Ficher 2001) dos outros e de si mesmas, que as mulheres teriam “naturalmente”. Esse papel é acompanhado de outros estereótipos, que mostram e moldam o ideal de comportamento dos indivíduos do sexo feminino na sociedade ocidental atual. [...] Elas passam ideologias, ideias, incluindo ideais dos papéis sociais que devem ser desempenhados, por exemplo, pelas mulheres, o que muitas vezes recai em estereótipos simplistas e discriminadores. (LÓPEZ-BARREYRO, 2017, p.7)
A propaganda de Dove Men Care, por exemplo, criada pela empresa de comunicação Ogilvy & Mather Brasil, em março de 2013, tinha como objetivo promover a nova linha de produtos de cabelo para homens. A propaganda mostra dois homens em seu ambiente de trabalho, um vai ao encontro do outro e percebe que há algo diferente no colega que está sentado. Este apresenta em sua característica física longos cabelos lisos, cor de mel, que a todo o momento, no mínimo movimento, agita-se com o vento, como nas propagandas clichês de shampoo feminino, em que mostram mulheres, também, com longos 54
cabelos lisos. Até que o colega questiona se ele tinha feito algo no cabelo, pois ele estava parecendo com os cabelos de comercial de shampoo feminino. Após esse comentário, o homem lembra-se do shampoo que havia usado pela manhã e percebe que de fato era o produto feminino e sai correndo, até esse momento a propaganda mostra-se bastante cômica. Porém, quando o homem sai correndo, ele se mostra desesperado, isso deixa nítido que, de alguma maneira, fazer uso de produtos femininos é algo negativo, pois de alguma forma usar esse produto atribuiu a ele características femininas e isso não é visto como algo bom.
Figura 5 – Dove Men Care
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Neste comercial, é possível perceber o discurso estereotipado presente nos comerciais femininos, os lindos cabelos longos e lisos, e também o discurso machista que busca sempre de alguma forma anular características femininas que os homens possam ter ou adquirir. Ao final da propaganda, a voz do narrador diz “Shampoo feminino não foi feito para você.” (a cena mostra o homem com os cabelos curtos), “Dove Men Care, foi” e a cena é cortada para o vidro de shampoo feminino sendo atirado pelo vidro de shampoo da nova linha. Esse final atesta, então, o discurso machista. A análise a seguir é de duas propagandas da barra de chocolate Snickers. Ambas mostram um grupo de amigos, todos homens, porém uma se passa em uma república e o outro em um vestiário masculino. Nas duas situações mostram, em cada um, uma mulher (Betty Faria e Cláudia Raia), ambas agem de maneira desagradável, agressiva e mal humorada. Logo em seguida, um dos amigos oferece a barra de chocolate, assim fica esclarecido que o comportamento é consequência da fome, após 55
comer da barra a “mulher” volta a sua forma original, ou seja, um cara que faz parte do grupo de amigos. Figura 6 – Snickers República (Betty Faria)
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Figura 7 – Snickers Vestiário (Cláudia Raia)
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Segundo López-Barreyro (2017), essas idéias estereotipadas sobre as mulheres giram em torno, basicamente, de: a fragilidade, a delicadeza, o sentimentalismo, a impulsividade, o cuidado, a vaidade, a saúde, a limpeza, a ordem, a calma. Assim, acaba sendo mal vista a mulher que mostra força, razão (ao invés de emoção), desleixo, desordem (que demonstra inconformidade com a ordem estabelecida), mal humor/infelicidade, impaciência. Isso acaba resultando numa constante vigilância por parte das mulheres a respeito de seu comportamento, ao mesmo tempo em que um descontrole é esperado (por ela ser “histérica” impulsiva e sentimental, ao invés de racional e conseqüente). (LÓPEZBARREYRO, 2017, p.11)
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[...] as mulheres são descritas de modo muito diferente dos homens, não porque o feminino é diferente do masculino, mas por se continuar a pressupor que o espectador “ideal” é masculino e a imagem da mulher se destina a lisonjeá-lo. (LÓPEZ-BARREYRO apud BERGER, 1987)
As duas propagandas promovem um discurso machista, pois usam a imagem da mulher para construir um perfil de pessoa mal humorada devido à fome. As mulheres são nessa campanha publicitária, taxadas como chatas, reclamam de tudo, mal humoradas e agressivas. Dessa forma, reitera-se o discurso de que todas as mulheres são assim em qualquer ocasião. Resumidamente, a partir da observação dessas peças publicitárias, podemos entender que elas são uma parte fundante da sociedade contemporânea, pois influenciam por meio do discurso x ou y pensamento a respeito do papel e/ou comportamento do homem e da mulher na sociedade. Esses discursos são construídos por meio da mídia e fontes de informações que circulam socialmente. Sendo assim, nos leva à várias interpretações do que está sendo submetido, e de certa maneira, induz também o comportamento da sociedade espectadora das peças publicitárias sejam elas de qualquer natureza.
REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. O que quer dizer informar. In: CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007, p. 33-63. GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, vol 4, n. 11, p. 11 – 25, nov. 2007. GEREMIAS, Daiane. Este comercial de sabão em pó é uma revolução nos papéis de homens x mulheres. Mega Curioso, 2016. Disponível em: <https://m.megacurioso.com.br/comunicacao/98056-este-comercial-de-sabao-empo-e-uma-revolucao-nos-papeis-homem-x-mulher.htm>. Acesso em: 02 de out. de 2019. HYPENESS. Finalmente uma propaganda de produto de limpeza escolheu um homem como protagonista. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2017/03/finalmente-uma-propaganda-de-produtode-limpeza-escolheu-um-homem-como-protagonista/>. Acesso em: 02 de out. de 2019. LÓPEZ-BARREYRO, Luz Amparo. A Imagem das Mulheres nas Propagandas Televisivas: uma análise na perspectiva de gênero. Revista Gestão e Políticas Públicas, v. 7 n. 1 (2017). Disponível em:< 57
http://www.revistas.usp.br/rgpp/article/view/137724>. Acesso em: 09 de nov. de 2019. ORLANDI, E. P. Michel Pêcheux e a Análise de Discurso. Estudos da Língua(gem), [S.l.], v. 1, n. 1, jun. 2005. Disponível em: <http://periodicos2.uesb.br/index.php/estudosdalinguagem/article/view/973>. Acesso em: 28 de set. de 2019.
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MÍDIA E SOCIEDADE: Uma leitura por meio de charges Larissa Machado Pereira* Mikaella Pereira da Silva Nathaly Ohanna da Silva
“Uma sociedade, repetimos, não se distingue das formas de comunicação que ela torna possíveis e que a tornam possível.” (Maingueneau, 2001)
RESUMO
Este ensaio tem por objetivo discutir o que é mídia e como ela está presente no nosso cotidiano. Através da lente da Análise do Discurso, tentaremos mostrar como as charges se apropriam dos discursos presentes na sociedade, como são construídas e quais suas finalidades. Por fim, analisaremos três charges, publicadas no jornal O Tempo, feitas pelo cartunista Duke. Palavras-chaves: Mídia. Gênero Discursivo. Charge.
ABSTRACT This essay aims to discuss what media is and how it is present in our daily lives. Through the lens of Discourse Analysis, we will try to show how cartoons appropriate the discourses present in society, how they are constructed and what their purposes are. Finally, we will analyze three cartoons, published in the newspaper O Tempo, made by cartoonist Duke.
Keywords: Media. Discourse Genre. Cartoon.
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Discentes do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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A DIMENSÃO MIDIÁTICA O ensaio a seguir irá tratar da mídia que está em todos os cantos, presente em todas as partes, faz parte do nosso cotidiano, faz parte da nossa experiência no mundo contemporâneo e se apresenta de forma tão essencial que não conseguimos mais enxergar o mundo sem ela. Nas palavras de Silverstone (2014), a mídia é isso: onipresente, diária e uma dimensão essencial de nossa experiência contemporânea. Há de se assumir que no mundo contemporâneo é impossível escapar à presença e à representação da mídia. Seja no jornal que lemos, no programa de televisão que assistimos, na internet que interagimos e navegamos, no outdoor que vemos na rua, enfim, em todas as circunstâncias, a mídia se faz presente mesmo que não percebamos. A dimensão da mídia é tão grandiosa que passamos também a depender dela, seja para as coisas mais básicas como ouvir um jogo de futebol, receber uma notícia, fazer um anúncio, seja para coisas mais complexas como a nossa capacidade de compreender o mundo, produzir e partilhar significados. Sim, a mídia tem esse poder de contribuir para nossa compreensão de mundo. Isso porque a mídia é extremamente ideológica, assim como nossos discursos são ideológicos. Mas essa é uma discussão que se segue na próxima seção. O DISCURSO MIDIÁTICO Gostaríamos de começar esta seção refletindo sobre a epígrafe colocada no início de nossa discussão. Em Mídium e Discurso (2001, p.72), Maingueneau aponta que uma sociedade não se distingue das formas de comunicação que ela torna possíveis e que a tornam possível. Sendo assim, para tratarmos do discurso midiático, devemos inicialmente perceber que as formas de comunicação — mídium conforme conceituado pelo autor - não se distinguem da sociedade na qual se fazem presentes. Nesse sentido, o discurso midiático (ou discursos midiáticos) não se distingue dos discursos presentes na sociedade, pois são exatamente esses discursos que alimentam o discurso midiático e o tornam possível. De forma a reafirmar esse pressuposto, trazemos novamente as contribuições de Silverstone (2014) que diz que “tanto a estrutura como o conteúdo das narrativas da mídia e das narrativas de nossos discursos cotidianos são interdependentes, que, juntos, eles nos permitem moldar e avaliar a experiência.” (SILVERSTONE, 2014, p.31). Ora, se eles nos permitem moldar e avaliar a experiência — expressão que toca a natureza estabelecida da vida 60
no mundo — juntos, mídia e discurso, contribuem para nossa compreensão de mundo de forma essencialmente ideológica, pois em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
Assumindo a perspectiva de que em toda sociedade a produção de discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída, fica evidente que a mídia não só reproduz os discursos, como também os controla, os seleciona, os organiza e os redistribui. É por isso que, conforme Maingueneau (2001, p. 71), não podemos considerar o mídium como um simples meio de transmissão dos discursos, pois esse “imprime certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que dele podemos fazer.”. Em suma, ao mesmo tempo em que a mídia se apropria dos discursos presentes na sociedade, ela também reconfigura esses discursos e os torna disponíveis por meio de um mídium, o qual imprime certas características que contribuem para a configuração de um discurso midiático. A fim de exemplificar as discussões feitas até aqui, vamos tratar do gênero discursivo
Charge e, a partir da lente da Análise do Discurso, tentaremos propor
uma reflexão sobre os discursos materializados em suas formas verbais e não-verbais, no intuito de que percebamos como as charges se apropriam dos discursos presentes na sociedade e como elas os reconfiguram, possibilitando novas leituras em função do discurso chargístico. Na seção a seguir, tratamos do discurso chargístico e fazemos a análise de três charges.
O DISCURSO CHARGÍSTICO Para tratarmos do discurso chargístico devemos anteriormente fazer algumas perguntas: o que são charges? Onde elas são publicadas? Para quem elas são destinadas? Qual a natureza das charges? Iniciaremos falando da origem da palavra charge. O termo charge tem origem na língua francesa e deriva do verbo charger que significa carregar, exagerar. As charges se constituem como um gênero discursivo de caráter iconográfico e dissertativo e são comumente entendidas como um discurso que critica um personagem, fato ou acontecimento político específico, em um determinado 61
momento histórico, a partir da sátira. De acordo com Flôres (2002, p. 11), as charges, de maneira geral, versam sobre o cotidiano — questões sociais que afligem, irritam, desgostam e confundem, sendo que essas questões focalizam universos de referência do público, expondo testemunhos, registrando perplexidades, apontando falhas, satirizando pontos de vista, etc. Além disso, a autora define charge como “um texto usualmente publicado em jornais sendo via de regra constituído por quadro único” (FLÔRES, 2002, p.14). Sabemos que para leitura e interpretação de uma charge é necessário que se situe sobre o contexto social no qual este gênero discursivo está inserido. Tal contexto é visto nos jornais, que servem de mídium para informações do cotidiano social, logo, o lugar de maior presença das charges são os jornais (impressos ou digitais), pois eles acompanham em tempo real os acontecimentos da sociedade. Ora, já que as charges são comumente publicadas em jornais, devemos perceber que seu mídium é de cunho jornalístico, e, portanto, as charges acabam sendo uma espécie de “editorial gráfico” (MARINGONI, 1996) de um determinado jornal no qual elas são publicadas. Isso significa que, conforme discutido anteriormente, as charges publicadas em um determinado jornal vão conter características daquele mídum, que contribuem para a configuração de um certo discurso midiático e não outro. Mas se as charges são publicadas em jornais, para quem elas são destinadas? Em função de o jornal se tratar de um mídium bastante difundido, podemos assumir que as charges são destinadas a um grande número de leitores, sejam eles os mais diversos. O que não podemos perder de vista é que esses leitores são sujeitos socialmente situados, ou seja, são sujeitos já inscritos na ideologia e por isso podem fazer diferentes leituras de um mesmo texto, pois “um texto pode alternativamente ser associado a outros textos, já lidos e com os quais os leitores mantêm relações diversas (de crença, de ideologia, de conhecimento etc.)” (POSSENTI, 2001, p. 26). Além disso, é preciso que entendamos o texto da charge como um espaço de produção de sentidos, uma vez que ele também está submetido às “ restrições históricas que normalmente o afetam, e que afetam, portanto, seu autor e seu(s) leitor(es), submetendo-os tanto às regras de circulação quanto às de interpretação.” (POSSENTI, 2001, p. 30). Por fim, ao considerarmos o gênero discursivo charge, devemos entender que esse é um gênero de natureza polêmica. A charge — palavra do francês que significa 62
carga, “carga de cavalaria” — não permite muitas acrobacias de estilo e conteúdo. “Ou ela é contra ou a favor, ou ela é porrada ou não” (MARINGONI, 1996, p. 86). É por isso que podemos dizer que o discurso chargístico apresenta uma grande carga ideológica e que o mostrar e o dizer da charge têm lugar social bem inscrito. De forma sintética, respondemos às perguntas iniciais afirmando que as charges são um gênero discursivo de natureza social e ideológica — assim como todos os gêneros discursivos —; são publicadas em jornais que se apropriam, selecionam e reconfiguram determinados discursos; são destinadas a sujeitos socialmente inscritos em uma ideologia e, por isso, sujeitos propensos a fazer diversas leituras de uma mesma charge; e são, essencialmente, polêmicas, por apresentarem uma grande carga ideológica em seu conteúdo. Após refletirmos sobre essas questões iniciais, nos propomos a aprofundar um pouco mais sobre o discurso chargístico, partir da lente da Análise do Discurso, a qual propõe que se fale sobre o discurso e não sobre o texto. Além disso, “o que temos, como produto de análise, é a compreensão dos processos de produção de sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições.”(ORLANDI, 2002a, p. 72). Nesse sentido, é que procuramos analisar as charges a seguir, retiradas do Jornal “O Tempo”, buscando compreender os discursos nelas inseridos e o processo de produção de sentidos, levando também em conta os ditos e não-ditos, “procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras”. (ORLANDI, 2002a, p. 59). Charge 1 - Publicada em 13 de agosto de 2016
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Nesta primeira charge, ao considerarmos a sua constituição discursiva e interdiscursiva, podemos identificar vários dizeres que remetem ao discurso da meritocracia. No discurso meritocrático, todo indivíduo seria capaz de prosperar somente com suas capacidades sem precisar de ajuda da sociedade, Estado ou família, ou seja, todo indivíduo prosperaria e alcançaria seus objetivos por seus próprios e únicos méritos. Ao serem incorporados na charge os enunciado “Era pra ser”, m contraposição aos enunciados “Mas não se esforçou”, “Mas não teve determinação”, “Mas lhe faltou força de vontade”, percebemos que o discurso meritocrático é trazido à tona, uma vez que esse discurso é que remeteria o “insucesso” dos personagens à falta de esforço ou de mérito, sendo eles os únicos sujeitos responsáveis pela situação em que se encontram. Em contraposição ao discurso meritocrático trazido na forma de enunciados, podemos identificar outros discursos trazidos nos recursos iconográficos. Ao observarmos as crianças da charge, fica claro para nós que há um discurso que se contrapõe ao primeiro aqui mencionado, que é o discurso das desigualdades sociais. Em um primeiro momento, vemos uma criança nadando na enchente, fugindo de sua casa que se situa próxima a um barranco. Essa é uma cena que já foi vista por nós em jornais, e que traz à tona a situação de precariedade da moradia de alguns cidadãos brasileiros. No segundo momento, vemos outra criança, de pele negra, que foge de balas perdidas, realidade também muito relatada nos vários jornais e que traz à tona o discurso da violência. Em um terceiro momento, vemos mais uma vez uma criança, dessa vez uma menina negra, que está fazendo trabalhos domésticos em uma casa de situação também bastante precária. Cada um desses momentos traz vários outros discursos à tona, como por exemplo, o discurso do trabalho doméstico em contraposição ao discurso de que a criança deveria estudar e não trabalhar. Além disso, conseguimos perceber que há uma gradação de minorias, como se a charge quisesse evidenciar que dentro das próprias minorias — que nesse caso se tratam de minorias sociais — também existem minorias de raça, no caso do garoto negro e minorias de gênero, no caso da menina que é mulher e negra. Do ponto de vista da formulação discursiva, cabe-nos ressaltar que tal charge foi publicada no período dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016, os quais ocorreram no Brasil. Certamente, foi em função deste acontecimento que o autor usou como estratégia nomes de atletas olímpicos para se fazer uma comparação que remete ao discurso meritocrático. O mais interessante é que se formos mais a fundo e pesquisar 64
o esporte praticado por cada atleta citado, veremos que tal esporte está estreitamente relacionado com o contexto apresentado na charge. Michael Phelps é um nadador branco americano e, em contrapartida, temos um menino branco que nada nas enchentes. Usain Bolt é um corredor jamaicano negro, em comparação temos um menino negro que corre de balas. Simone Biles é uma ginasta negra americana e, em paralelo, temos uma menina negra que se contorciona e se equilibra em cima de uma cadeira para poder dar conta dos serviços domésticos. Sob o ponto de vista da Análise do Discurso (PÊCHEUX, 1990), podemos dizer que os elementos A e B — sendo A entendido como a representação social dos atletas e B da representação social de pessoas marginalizadas — designam algo diferente da presença física de organismos humanos individuais. Se o que dissemos faz sentido, resulta, pois, que A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social. Neste sentido, os processos discursivos designam uma série de formações imaginárias que que fazem com que A e B se projetem em um lugares sociais determinados, ou seja, A não tem a mesma representação social de B, mesmo que suas características humanas individuais sejam bastante semelhantes. Algumas outras reflexões ainda podem ser levantadas a partir dos recursos imagéticos contidos na charge, como por exemplo: Por que os personagens são crianças? E por que essas crianças são crianças em situação de vulnerabilidade? Podemos dizer que esses questionamentos fazem parte dos implícitos, ou seja, daquilo que não foi dito “o implícito é o não-dito que se define em relação ao dizer” (ORLANDI, 2002b, p. 106). Se relacionarmos essas perguntas ao que foi dito, podemos associar a escolha dos personagens como uma escolha que coloca em xeque o discurso meritocrático, afinal, se tratam de crianças, sujeitos que, em tese, ainda teriam uma expectativa de vida. E por que essas crianças se encontram em situação de vulnerabilidade? Ora, se pensarmos bem, há a possibilidade de essa representação ser lida como uma crítica à meritocracia que, para Chalhoub (2017), “como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade.”.
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Charge 2 - Publicada em 26 de junho de 2018
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Nesta segunda charge, podemos perceber a seguinte cena: posicionado à frente, uma mulher chora ao lado do corpo de um jovem. Ao fundo, temos cinco pessoas olhando para a imagem de um jogador de futebol que chora em campo, exibida em uma loja de televisão. A descrição é válida, entretanto não abarca os diversos discursos possíveis que podemos perceber através de uma análise discursiva. Comecemos pela semelhança entre a caracterização da mulher (possivelmente mãe do jovem) e o jogador: a semelhança é notória, visto que ambos estão ajoelhados, com as mãos cobrindo o rosto e isso nos dá a ideia de choro, desapontamento, sofrimento, etc. No entanto, não há semelhança entre eles quanto ao seu “sofrimento”, pois temos a imagem de uma mãe que sofre pela morte de seu filho, negro, estudante (pelo fato de estar de mochila, livro na mão) e o jogador Neymar (dono da camisa 10) sofre por um jogo perdido ou um lance que não deu certo, etc. Outra questão comparativa é a visibilidade dos dois acontecimentos, bem como a atenção dada pela sociedade para o ocorrido. O jogador ganha visibilidade por ser transmitido na mídia (a TV) e retém para si a atenção de todos, enquanto que a mãe chora a morte de seu filho, sozinha, sendo portanto, invisível. Mas e os discursos? Para afirmar, por exemplo, que o discurso da violência está presente nessa charge precisamos nos atentar para a materialidade, os textos verbais e não-verbais que o gênero charge nos possibilita. Não há textos verbais nesse exemplo, os sentidos estão disponíveis no texto imagético e é construído pelo leitor, a partir de múltiplas possibilidades de interpretação e discursos da sociedade e/ou os que estão vinculados às notícias publicadas no jornal. Com ironia, a charge constrói uma crítica à violência 66
étnico-racial e socioeconômica, ao descaso da sociedade com esses sujeitos que sofrem tal violência e também critica o discurso midiático, que exclui os “sem-nome” e entroniza os populares. A ironia está tão presente que o menino morto usa uma chuteira, remetendo ao jogador de futebol (o menino Neymar), o que faz refletir que esse estudante negro assassinado poderia ser um jogador de futebol. Esses movimentos de semelhança e diferença causam uma tensão entre as realidades sociais. Tensão essa que causa questionamentos e respostas a alguns deles: quem são alvos da violência? O pobre e negro. Quem ou o que a mídia coloca em destaque? O menino Neymar, o jogo de futebol. Quais sofrimentos a sociedade têm dado importância? Quem são os sujeitos visíveis? Quem são os invisibilizados? Por quem são? Esses sujeitos estão, em muitos casos, nas notícias de jornais. São representações do real que colocam em xeque alguma situação que gera um desconforto ou revolta na sociedade. O contexto no qual a charge foi publicada era de Copa do Mundo e uma notícia que chocou o Brasil, ocorrido na favela da Maré, foi o assassinato do estudante Marcos Vinicius da Silva no caminho de sua escola. Os disparos foram feitos pelas Forças Armadas em operação. Logo, podemos confirmar o vínculo das charges com as notícias jornalísticas.
Charge 3 - Publicada em 14 de março de 2019
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Por fim, a terceira charge apresenta um homem, uma mulher e um cano de revólver. Associando os recursos imagéticos, principalmente o do cano do revólver, aos dizeres dos personagens, podemos identificar dois discursos na charge: o armamentista e o anti-armamentista. Antes de analisarmos esses discursos, gostaríamos de delimitar a diferença entre porte e posse de arma. De acordo com o site Brasil Escola, a posse de arma é o registro e autorização para comprar e ter armas de fogo e munição em casa ou local de trabalho, mas não autoriza a pessoa a portar ou andar com a arma. Já o porte de armas é a autorização para o cidadão andar armado fora de sua casa ou local de trabalho. Além disso, apenas agentes de segurança, policiais, membros das forças armadas entre outros, possuem permissão para andarem armados. Consideramos importante para esta análise trazer essa delimitação, pois a diferenciação entre porte e posse de armas foi um dos argumentos utilizados por sujeitos que se apropriaram do discurso armamentista no contexto das últimas eleições à presidência do Brasil, no qual a charge foi publicada. Em contraposição, sujeitos que se apropriaram do discurso anti-armamentista contra argumentaram em relação a isso, tendo em vista que, para esses, tanto a posse quanto o porte de armas significariam uma ameaça à população. Na própria charge, encontramos esses dois discursos: o de quem apoiaria o armamento e o de quem não o apoiaria. Na fala do homem, em que ele pensa ser uma “luz no fim no túnel”, encontramos o primeiro. Sabemos que, essa expressão é usada, normalmente, quando as pessoas se deparam com uma situação difícil e encontram uma solução para os problemas. E foi exatamente os discursos da solução e da resolução dos problemas, que foram utilizados por esses sujeitos que viam no armamento uma forma de resolverem a violência no país e se sentirem mais seguros. Já o segundo se encontra representado pelo desenho e pela fala da mulher, evidenciando que, na verdade, o túnel é um cano de revólver e não uma luz no fim do túnel, o que sugere que o armamento não resolveria as questões de violência no país. Além disso, percebemos que a charge foi publicada em 14 de março de 2019, um dia após o massacre de Suzano, um atentado que ocorreu na escola Estadual Professor Raul Brasil no município de Suzano em São Paulo, onde dois ex alunos entraram armados e atiraram contra funcionários e alunos matando 5 pessoas e deixando 11 feridos. 68
Considerando este contexto, pode-se admitir que, a partir do discurso antiarmamentista, o discurso chargístico propõe que a liberação do acesso às armas pode ser arriscado já que, poderia aumentar a violência e os casos de massacre como o que ocorreu em Suzano pois, facilitaria a obtenção de armas por pessoas que não estariam totalmente preparadas para utilizarem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um importante desafio foi proposto no decorrer da análise: o debruçar sobre textos verbais e não-verbais e analisar os possíveis discursos que os permeiam. Tal análise só foi possível graças às contribuições dos autores até aqui mencionados e dos demais que hoje atravessam esta escrita. Retomando a reflexão de Orlandi (2002) sobre os ditos e o não-ditos, “procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras” (ORLANDI, 2002a, p. 59) que atravessam os discursos, esta atividade de análise proporcionou uma maior compreensão dos processos de produção dos textos midiáticos e suas relações com a sociedade. Além disso, permitiu compreender melhor a existência de questões ideológicas que fazem parte tanto da mídia quanto das charges, bem como as críticas sociais abordadas no discurso chargístico e os múltiplos discursos em sua materialidade. REFERÊNCIAS CAMPOS, Lorraine Vilela. Diferença entre posse e porte de armas. Brasil Escola. Disponivel em: <https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/diferencaentre-posse-porte-armas.htm>. Acesso em: 09 nov. 2019. CHALHOUB, Sidney. A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, Campinas, 07 de jun. de 2017. Seção Especial cotas étnico-raciais Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-ummito-que-alimenta-desigualdades-diz-sidney-chalhoub>. Acesso em: 26 nov. 2019. FLÔRES, Onici. A Leitura da Charge. Canoas: Ulbra , 2002. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. MAINGUENEAU, Dominique. Mídium e Discurso. In: Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. 69
MARINGONI, Gilberto. Humor da charge política no jornal. Comunicação & Educação, São Paulo, (7): 85 a 91, set./dez. 1996. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002a. ____. Língua e conhecimento linguístico: para uma história das idéias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002b. PÊCHEUX, Michel. (1969). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. In: GADET, F; HAK, T. (orgs.). Campinas-SP: Editora da Unicamp, 1990. POSSENTI, Sírio. Sobre a leitura: o que diz a análise do discurso. In: Marinho. M (org.) Ler e navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2001. SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia? São Paulo: Edição Loyola, 2014. p 9-32.
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