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03 | Jimmy
3 Jimmy
Certa manhã, em um fim de semana, Max Knight, um garoto de 12 anos, e seu pai foram de carro para o centro de Lynn. O pai de Max tomava conta de um pequeno aeroporto perto da cidade. Sempre havia trabalho aos finais de semana, e Max gostava de acompanhá-lo. Achava divertido ver os aviões, a maioria pulverizadores de pesticidas agrícolas, pousando e decolando.
Perto do centro, Max viu um menino bem mais novo — devia ter uns 6 anos — andando pela rua, seguido por um beagle que se parecia muito com Queenie, sua cachorra. O pai concordou que a semelhança era impressionante e encostou o carro para que Max saísse e olhasse mais de perto. O menininho saiu correndo na mesma hora, com o beagle em seu encalço. Max não queria assustá-lo e correu atrás dele, gritando para que parasse. Correram cerca de um quarteirão e meio, até que o garoto tentou se esconder atrás de uma árvore. Max percebeu e se aproximou. Para seu espanto, o outro tremia. Quase oitenta anos depois, Max lembraria que ele parecia “apavorado com alguma coisa, morto de medo”. Max se apresentou. O menino disse que se chamava Jimmy. Max declarou: “Tenho um cachorro igual a esse”. Jimmy deve ter achado que estava sendo acusado de roubo, pois respondeu, na defensiva: “Esse cachorro não é meu. É de um vizinho e veio atrás de mim”.
Max se sentiu mal. Não queria ofender ninguém, apenas ver mais de perto aquele beagle tão parecido com Queenie. Mudando de assunto, contou que estava dando uma volta com o pai, que tomava conta do aeroporto. Com os olhos brilhando, Jimmy disse que adorava aviões. Max o chamou para ir até lá qualquer dia, para vê-los de perto.
Não demorou muito, e lá estava Jimmy no aeroporto, todo final de semana. Vivia grudado em Max e dizia ao sr. Knight que queria ser piloto um dia. O pai de Max ficava contente em ouvir isso. Muitas crianças da região gostavam de ficar nos arredores do aeroporto vendo os pousos e as decolagens, mas Jimmy o impressionou tanto que até conseguiu regalias. Podia chegar perto dos aviões, tocar neles e conversar com os pilotos enquanto preparavam as aeronaves. Para o sr. Knight, não havia dúvidas: Jimmy Jones adorava aviões mais que tudo na vida, e falava sério ao dizer que, graças ao sr. Knight, seria piloto quando crescesse. Max começou a ver Jimmy como um irmão mais novo. Só não eram mais próximos por causa da diferença de idade, mas, sempre que ia ao centro de Lynn, Max fazia questão de visitar o novo amigo, ver como ele estava. Jimmy dava a entender que as coisas em casa não iam bem, principalmente por causa de um pai cruel, de quem morria de medo. Jimmy parecia tão carente que conquistou a afeição e despertou o instinto de proteção de Max.39
Antes de entrar para a escola, Jimmy Jones já conhecia bem as ruas de Lynn. Não havia nada incomum nisso: mal aprendiam a andar, os meninos da cidade corriam para todo lado. Fazia parte do ciclo natural do desenvolvimento. De início, não passavam de um ou dois quarteirões ao redor de casa; depois, iam enveredando pelo bairro e por fim, já em idade escolar, iam para a escola e voltavam a pé. Dali, passavam para os campos e bosques do entorno, sempre a pé, até que completavam 10 ou 11 anos e ganhavam uma bicicleta, o que ampliava bastante seu raio de ação. Os pais não se preocupavam muito, certos de que todos os adultos da cidade vigiavam os garotos. Já as meninas não iam tão longe. Enquanto os meninos eram incentivados a sair para brincar, o que se esperava das garotas, desde a mais tenra idade, era que ficassem por perto e ajudassem a mãe a cozinhar e a cuidar da casa. Aonde quer que as crianças fossem, sempre havia alguém de olho. Além do mais, a presença de estranhos nunca passava despercebida. As crianças estavam seguras.40
O curioso sobre a fase pré-escolar de Jimmy era que seus pais, ao contrário dos demais, não eram nada vigilantes. Mesmo assim, desde suas primeiras andanças, não faltava quem zelasse por ele. Dois casais
de tios também moravam na Grant Street: as tias faziam o papel de mãe quando Lynetta se trancava em casa — ou seja, quase sempre. Serviam lanches ao menino se tinha fome e faziam curativo se esfolava o cotovelo ou o joelho. As primeiras crianças com quem Jimmy brincou foram os primos. Havia dezenas de crianças na família Jones, que moravam em Lynn ou em propriedades rurais das redondezas. Como a faixa etária de Jimmy era intermediária, ele sempre tinha companhia. E, assim como as outras crianças, voltava para casa antes de escurecer.41
Porém, as coisas mudaram no primeiro ano de escola. A mãe de Jimmy trabalhava o dia todo, e o pai continuava frequentando o salão de bilhar. Desde que começara a trabalhar na fábrica de vidros em Winchester, Lynetta estabeleceu uma regra: Jimmy só podia entrar em casa depois que ela chegasse. A cidade inteira logo ficou sabendo da imposição. Ninguém entendia o motivo, nem tinha intimidade com ela para perguntar, mas todos se solidarizavam com o menino, e os parentes estavam sempre de portas abertas para recebê-lo.42
Acontece que Jimmy quase nunca os procurava: preferia perambular pelas ruas de Lynn, parecendo solitário e indefeso. O abandono do menino era evidente, e senhoras de toda a cidade, que nem eram da família, faziam o mesmo que qualquer boa alma em seu lugar: convidavam-no para lanchar ou até jantar, quando ele dizia estar com muita fome. Jimmy jurava para todas elas que era a comida mais gostosa que já tinha provado. Era um menino muito educado, que demonstrava gratidão pelas menores gentilezas. As senhoras acabavam criando elos com Jimmy, que descobria afinidades com cada uma, como um interesse comum por flores, animais ou artesanato.43 Foi assim com Myrtle Kennedy.
Myrtle era esquálida, media 1,88 m e tinha vergonha da sua altura. Em uma cidade já religiosa, levava sua fé ao extremo. O marido, Orville, era pastor na Igreja do Nazareno de Lynn. Os nazarenos seguiam um código social bastante conservador: não era permitido dançar, beber, nem falar palavrão. As mulheres nazarenas nunca usavam vestidos curtos ou sem manga, para não despertar a luxúria nos homens. Em Lynn, não era costume tentar atrair fiéis de outras igrejas, mas Myrtle era exceção. Para ela, quem não se convertesse à Igreja do Nazareno estava condenado ao inferno. Não havia alternativa. Nas tardes de domingo, era conhecida por interpelar as pessoas na rua para saber se haviam ido à igreja naquele dia, pois no culto nazareno não estavam. Sua maior alegria era testemunhar o batismo de um convertido no rio próximo à cidade.44
As pessoas perdoavam o fanatismo porque, de resto, Myrtle era um doce de pessoa. Não havia em Lynn alguém mais generoso com os necessitados. Por causa do trem e das duas rodovias que cortavam a cidade, a crise dos anos 1930 levou muitos andarilhos à cidade, todos atentamente vigiados pelos moradores. Os mais suspeitos eram enxotados por onde passavam, mas os inofensivos e desvalidos quase sempre ganhavam comida. Ninguém era mais caridoso com os pedintes que Myrtle. Tinha fama de assar dezenas de tortas e deixar pedaços quentinhos na janela, para quem quisesse pegar. Junto do alimento vinha o sermão de Myrtle sobre a fé nazarena. Ela dizia que entrar para a igreja traria glória na outra vida, se não naquela. Uma prova de sua bondade era que ela continuava a deixar as tortas na janela, mesmo sem nunca ter convertido ninguém.
Mas Myrtle via potencial no pequeno Jimmy Jones. Afinal, o menino não frequentava igreja nenhuma. Seus pais nunca o levaram ao culto de domingo. Estava crescendo sem Deus. Além do mais, era uma linda criança, que herdara da mãe os cabelos e olhos escuros, mas não o comportamento arredio. Myrtle e o marido também moravam na Grant Street. Eram os vizinhos da frente dos Jones. Todos os dias, Myrtle via o pobre Jimmy vagando pela rua. Era natural que o convidasse e o enchesse de torta quando tinha fome — ou seja, sempre. Supostamente, a mãe lhe dava um sanduíche para enganar a fome durante o dia, mas, sempre que Myrtle perguntava se tinha comido alguma coisa, Jimmy dizia que não, e um menininho de ouro como aquele jamais mentiria.
Terminada a torta, Myrtle aproveitava para dividir com Jimmy a Palavra de Deus, e falar que Ele gostaria que todos fossem nazarenos. Os menos esclarecidos achavam as regras da Igreja do Nazareno muito repressoras, mas a ideia era apenas para garantir que todos se adequassem aos padrões de conduta estabelecidos na Bíblia. Myrtle fazia leituras das Sagradas Escrituras para Jimmy, que ouvia atento cada palavra. Em pouco tempo começou a recitar o Evangelho. Era emocionante.
O passo seguinte de Myrtle foi levar Jimmy à igreja aos domingos. Lynetta não se importava. Estava sempre exausta pelo trabalho da semana. Se a enxerida da vizinha queria ficar com Jimmy pela manhã, era uma coisa a menos com que se preocupar em seu dia de descanso. Assim, todo domingo, Jimmy ia à Igreja do Nazareno com a sra. Kennedy e ouvia o sr. Kennedy falar do Senhor e de tudo que não era da vontade d’Ele.
Com o tempo, Jimmy começou a passar algumas noites na casa da família Kennedy, o que tampouco incomodava sua mãe, que nutria nada além de desprezo por quem acreditava em um Deus celestial que, mais dia, menos dia, despachava todo mundo para o céu ou para o inferno,
a depender das circunstâncias. A espiritualidade de Lynetta era muito mais profunda; envolvia reencarnação, uma vida após a outra, destino. Às vezes, o destino grandioso de uma pessoa, em uma de suas tantas vidas, era frustrado pelos que não sabiam lhe dar valor ou invejavam sua superioridade. Era o que estava acontecendo com ela. Mas seu filho seria um grande homem naquela encarnação, isso era certeza. E grandeza nada tinha a ver com a baboseira de Myrtle Kennedy. Lynetta provavelmente dizia isso a Jimmy de vez em quando, só para se certificar de que o garoto não estava se deixando levar. Fora isso, que andasse com a senhora Kennedy, que fosse à igreja com ela. Era até bom, assim largava da barra de sua saia. Além do mais, achava que, em um contexto cósmico mais amplo, isso não faria a menor diferença.
Mas quando Myrtle levou Jimmy para a igreja, o menino adorou. O pequeno demonstrou uma incrível aptidão para lembrar tudo que ouvia, em especial as leituras bíblicas. Em questão de semanas, já conseguia repetir longas passagens da Bíblia. Mal aguentava esperar o domingo para ir à igreja com a sra. Kennedy. Quando estavam a sós, passou a chamá-la de “mãe”. Myrtle estava em êxtase. Havia salvado uma alma para Jesus. Já podia colher a recompensa merecida, vendo o menino crescer na graça de Deus, de acordo com a Bíblia e a Igreja do Nazareno.
Foi então que as coisas tomaram um rumo inesperado. Jimmy gostava do culto da Igreja do Nazareno, mas também tinha curiosidade de como eram as outras igrejas da cidade. Começou a frequentar encontros de avivamento que aconteciam na região. Todas as igrejas da cidade organizavam tais encontros, e havia também os promovidos por pastores sem denominação. Depois disso, em alguns domingos, Jimmy passou a ir à Igreja Metodista de Lynn, ou a se juntar aos quacres ou aos Discípulos de Cristo. Nos anos que se seguiram, aderiu a todas as igrejas, foi batizado nas que exigiam, e jurou lealdade às que não impunham esse pré-requisito. Jimmy estudava de tudo. Havia domingos em que passava parte da manhã no culto de uma igreja, depois corria para pegar o finalzinho do sermão de outra. Esse hábito chamou a atenção de toda a cidade. Pelo jeito, o filho dos Jones era tão excêntrico quanto os pais — ainda que de uma forma positiva. Em algum momento, haveria de sossegar e escolher uma igreja. Até lá, pelo menos ia ao culto, ao contrário dos pais.45
Com a mãe, Jimmy só aprendeu o distanciamento. A arte de fazer os outros acreditarem que compartilhavam as mesmas crenças e esperanças era um dom só seu. Ainda pequeno, usava a lábia para justificar atitudes que pareciam contradizer seu discurso. Esse talento ficou claro em sua relação com Myrtle Kennedy depois que começou a frequentar outras
igrejas. Se fosse qualquer outra pessoa, Myrtle ficaria magoada, encararia o fato até como uma traição. Havia colocado o menino no caminho certo, e ele se desvirtuara. Mas, de alguma forma, Jimmy não perdeu a afeição de Myrtle. O que quer que tenha dito a ela — que, por exemplo, só frequentava outras igrejas para ver de perto como expressavam sua fé da maneira errada — funcionou. Myrtle continuou a adorá-lo da mesma forma.46 Tempos depois, Jim Jones viria a ser acusado de usar as pessoas de modo inescrupuloso, manipulando-as friamente para conseguir o que queria, e de não se importar com ninguém, nem com os que mais o apoiaram. Em muitos casos, havia várias provas disso, mas não no de Myrtle Kennedy. Mesmo depois que Jimmy foi embora de Lynn e de todas as guinadas que deu na vida, nunca perdeu o contato com a nazarena que o acolhera. Fosse na cidade grande, em Indianápolis; na Califórnia, onde conquistou fama; ou até na selva da Guiana, a cada semana ou quinzena de sua vida adulta, Jim Jones se sentava e escrevia para Myrtle Kennedy, contando-lhe versões abrandadas do que andava fazendo e desejando tudo de bom para ela. O gesto não guardava intenções ocultas: Jones queria apenas que Myrtle soubesse que ele nunca a esquecera e que era muito grato por sua bondade.47
Em setembro de 1977, Jim Jones diria em uma entrevista, planejada como parte do registro de suas memórias, que nunca acreditara de verdade em Deus. A religião era vista por ele como uma oportunidade de se “infiltrar” na igreja e arrebanhar cristãos para o socialismo. 48 Talvez fosse verdade. Não há como sondar a mente de uma pessoa para saber em que acredita de verdade. Algumas demonstram uma devoção fervorosa na infância, perdem a fé depois de adultas e dizem que nunca acreditaram. Mas não há dúvida de que Jimmy se sentiu atraído pela religião desde muito cedo. Para uma criança que, como o próprio Jones admitiria mais tarde, “tinha tanta necessidade de aprovação”, a igreja permitia aspirar à perfeição.49
Max Knight morava na vizinha Spartanburg, mas, sempre que estava em Lynn, passava na casa de Jimmy para ver como estava o amigo mais novo. Certa vez, quando bateu à porta e não encontrou ninguém, foi procurá-lo na casa da sra. Kennedy, do outro lado da rua. Pensava que ela fosse avó de Jimmy, porque ele vivia por lá, e o carinho que havia entre os dois era evidente. A sra. Kennedy disse que Jimmy devia estar brincando no bosque ali perto. Como estava com tempo, Max foi até lá. Procurou, procurou, até que ouviu uma voz alta vinda das árvores. Foi andando na direção dela, até que deparou com Jimmy. O menino não percebeu sua presença porque estava de costas. De pé em um toco de árvore, com a mão
no coração, fazia um sermão — Max guardou a cena como “um espetáculo, uma história cheia de ‘Jesus te ama’, que dizia o quanto você precisava crer n’Ele para ser salvo e ir para o Céu”. Max gritou: “Ei!”. Jimmy virou depressa e deu de cara com ele, quase caiu do tronco e começou a chorar, como no dia em que Max o vira pela primeira vez, andando com o beagle. Max não entendeu direito — já fazia um tempo que se conheciam, não era nenhum estranho. Jimmy deveria estar assim porque se sentiu desmascarado — vivia dizendo a ele e ao sr. Knight que queria ser piloto quando crescesse, e agora era pego fazendo aquilo.
Max, no entanto, não se zangou. “Se quer ser pastor, tudo bem. Vai em frente, se te faz feliz.” Nos meses seguintes, Max flagrou “a mesma cena no bosque mais duas ou três vezes”. Jimmy confessou que queria ser pastor, mas tinha medo de virar alvo de chacota, ou que dissessem que não podia. Max respondeu: “‘Faça o que tiver vontade. Não deixe ninguém te impedir. Seja dono do seu nariz.’ Depois, quando nos encontramos novamente, já adultos, Jim me lembrou disso. Disse que era uma criança medrosa e me agradeceu pelo apoio”.50