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02 | Lynn
2 Lynn
Lynn, no estado de Indiana, era uma cidadezinha no meio de uma encruzilhada: localizada no ponto de interseção entre duas rodovias estaduais, a 27 e a 36, também era cortada pelas ferrovias New York Central e Pennsylvania Railroad. A maior parte da população, cerca de 950 pessoas, provinha de famílias que moravam havia gerações no condado de Randolph e seu entorno. Todos se conheciam. Era quase impossível guardar segredos. Havia uma regra velada de que, para viver lá, era preciso dançar conforme a música. Assim faziam os cidadãos de bem. Em parte, a função de Lynn era atender aos agricultores da região. Aos sábados, os habitantes da zona rural iam à cidade para trocar produtos como leite, manteiga, ovos, carne bovina in natura e aves por bens e serviços que não podiam plantar ou produzir. Em Lynn havia médicos, dentistas e veterinários, que muitas vezes eram pagos com galinhas ou tortas caseiras.21
A cidade tinha algumas mercearias, uma barbearia, um ou dois cafés, uma farmácia, um jornal diário, um salão de bilhar e várias igrejas — a religião era um dos pilares da cultura local. Reinava o protestantismo evangélico, como no resto do estado, tradicionalmente conservador. Lynn contava com pequenas igrejas cristãs de diversas denominações, como a metodista, a nazarena, a Discípulos de Cristo e a quacre, mas nenhuma católica. Se havia católicos por lá, eram discretos em sua fé e frequentavam a missa em outro lugar.
Lynn era um lugar bastante acolhedor, e os moradores se esforçavam para manter essa imagem. Os mais abastados não ostentavam. Todos se vestiam de forma parecida — bem-arrumados, mas sem extravagâncias. Os pais ficavam de olho nos próprios filhos e nos dos outros também. Não era costume trancar as portas ao sair: as pessoas sentiam-se seguras sabendo que ninguém em Lynn roubava, e que os vizinhos estavam sempre atentos à presença de suspeitos. Havia na cidade um senso reconfortante de rotina compartilhada: nas noites de quarta-feira, quando o tempo estava agradável, as pessoas se reuniam no centro da cidade para assistir às sessões de cinema ao ar livre, com projeções na parede lateral de um prédio. Os filmes de bangue-bangue, cheios de histórias de mocinho e bandido, eram os que mais faziam sucesso.22
Sábado era dia de fazer compras. Domingo era dia de igreja. A cidade toda ia. Não havia rixa entre pastores ou congregações. Quase sempre, em feriados importantes, os pastores de Lynn reuniam os rebanhos de fiéis para fazer mutirões. Toda sexta-feira, no último horário de aula, os estudantes do ensino médio se reuniam no ginásio da escola, onde os pastores se alternavam durante horas em palestras sobre virtude e a importância de conservar a pureza.23
Os homens de Lynn frequentavam sociedades secretas — os Odd Fellows e os Red Men tinham muitos adeptos; nos anos 1930, os maçons eram os mais proeminentes, embora a Ku Klux Klan tivesse ocupado lugar de destaque nas duas décadas anteriores.24 A zona de influência da kkk havia se deslocado mais para o norte de Indiana, e a Klan se tornara a maior organização de qualquer espécie em todo o estado. Em apenas um ano, entre julho de 1922 e 1923, o número de membros em Indiana explodiu de 445 para quase 118 mil. Ao contrário da orientação que adotava no Sul, a kkk em Indiana pouco se dedicava a promover o racismo. Embora temas como a supremacia branca e a pureza racial nunca deixassem de fazer parte da agenda da organização, a porcentagem de negros no estado não era tão expressiva (menos de 3%). Assim, a kkk em Indiana priorizava a melhoria do ensino público e o reforço à Lei Seca, ambas causas importantes em todo o estado, principalmente na zona rural. Através de seus líderes, o grupo se infiltrava de maneira ardilosa nas cidades interioranas, promovendo piqueniques comunitários e desfiles, pagando todas as despesas dos eventos e criando uma imagem de que também eram pessoas direitas, com os mesmos valores cristãos.25
A Lei Seca dos Estados Unidos foi instituída em 1920, após a aprovação de uma emenda constitucional, e revogada em 1933 — o que não fez a menor diferença no condado de Randolph e em Lynn, que já eram proibicionistas
e se orgulhavam disso. Os pastores de Lynn vociferavam contra o consumo de álcool. Naquela área urbana tão pequena e isolada, era impossível beber escondido. Até para conseguir bebida era preciso pegar um ônibus e atravessar a divisa com Ohio. Os poucos fornecedores clandestinos da região nem chegavam perto de Lynn. Nem mesmo o salão de bilhar da cidade, considerado por alguns um antro de pecado por causa dos jogos de azar, servia bebida alcoólica. Até hoje, moradores da região se queixam da existência de lojas de bebidas em cidades vizinhas, pois se sentem maculados por sua mera proximidade.
A educação pública de Lynn se destacava da melhor maneira possível. Durante décadas, as crianças da zona rural de Indiana frequentaram escolas bem precárias, onde alunos de todas as idades eram colocados na mesma turma e muitos professores não tinham sequer o ensino médio completo. Até que, por volta de 1910, a administração do condado de Randolph contratou o dr. Lee Driver para reformular seu sistema educacional. Trabalhador diligente, Driver organizou todas as turmas, que até então eram formadas por alunos de idades variadas, em colégios propriamente ditos sediados no perímetro urbano, e um deles ficava em Lynn. Também providenciou transporte escolar. Em vez de caminhar longas distâncias, as crianças da zona rural passaram a contar com ônibus para ir à escola e voltar para casa — e assim podiam frequentar as aulas. Driver fez questão de adotar um currículo bem estruturado e usou subsídios governamentais para contratar professores qualificados. O índice de conclusão do ensino médio saltou para 70%. Os alunos saíam preparados para conseguir um bom emprego ou até para ingressar em uma faculdade.26 Driver foi contratado pelo governo da Pensilvânia para operar o mesmo milagre na educação pública de lá; as escolas de Randolph ficaram tão conhecidas que começaram a atrair delegações do Canadá, da China e de outros estados norte-americanos que queriam conhecer de perto o sistema educacional local e levar ideias para aplicar em suas regiões. Os estudantes de Randolph estavam bem atendidos, principalmente em Lynn, onde se ensinavam vários idiomas (inclusive latim), matemática avançada e ciências. Pela primeira vez desde que se tinha lembrança, aqueles estudantes tinham a chance de fazer outra coisa da vida que não trabalhar no campo ou na indústria. Alguns se tornaram arquitetos, médicos ou até professores.
A Crise de 1929 mudou o perfil demográfico da população de Lynn, que ficou mais jovem. Antes, a maioria dos moradores era mais velha, pessoas que ao se casarem iam morar em propriedades rurais, onde constituíam família. Por volta dos 60 anos, quando não tinham mais saúde para o trabalho pesado na lavoura, passavam as terras para os filhos e iam morar na
cidade. Porém, no início dos anos 1930, a crise econômica obrigou muitos casais mais jovens a deixar suas terras e ir morar em Lynn com os filhos. Por sorte, muitos tinham parentes ou amigos na cidade. Os maridos recém-chegados foram trabalhar em fábricas em Winchester ou Richmond, as cidades grandes mais próximas. As jovens mães cuidavam da casa e dos filhos.27 Os novos habitantes não tiveram dificuldades em se ambientar. Assim se esperava que seria com Jim, Lynetta e Jimmy Warren Jones, do respeitado clã dos Jones.
Mas não foi.
Lynetta Jones, o marido e o filho tinham tudo para ser bem recebidos em Lynn. Jim era conhecido na cidade; fora lá, além de Crete, que havia passado a juventude. Era benquisto, e todos demonstravam compaixão e respeito por sua invalidez de guerra. A maioria dos moradores de Lynn revelava uma descrença em relação ao governo, mas não ao país. Patriotas que eram, todos admiravam Jim por ter servido na guerra e fariam o possível para ajudá-lo. Arrumaram para ele um trabalho de meio período em uma companhia ferroviária — serviço trivial de escritório, já que Jim não tinha mais condições de fazer esforço físico.28
Os familiares e vizinhos generosos ajudaram a família Jones a se estabelecer na nova casa na Grant Street. Para os padrões da cidade, não era o que havia de melhor, mas também não estava caindo aos pedaços. Era uma casa comum, com uma varanda agradável, onde Jim gostava de se sentar à noite. O imóvel incluía também uma garagem. Jim e Lynetta eram donos de um carro usado que pertencera a um dos irmãos dele e ainda dava para o gasto. Muitas famílias em Lynn nem carro tinham, e dependiam de ônibus para chegar aonde não podiam ir a pé. Em cima da garagem havia um sótão, que podia servir de depósito. Mas Jim e Lynetta não tinham muita coisa para guardar. Os móveis eram poucos, mas em bom estado, apesar de usados: alguns foram trazidos de caminhão da fazenda em Crete e outros doados por parentes de Jim. A família dispunha do necessário: mesa de jantar, algumas cadeiras, uma cama para Jim e Lynetta e um berço para o pequeno Jimmy.29 Muita coisa podia ser feita para deixar a casa mais simpática, porém isso era tarefa da esposa, e Lynetta não tinha jeito nem gosto para decoração.
Mas, a princípio, a dona de casa não era julgada pelos demais habitantes de Lynn pela falta de capricho. Naquela comunidade onde nada era segredo, todos sabiam que o casal estava sendo sustentado pela família de Jim. Talvez o que estivesse por trás da falta de mobília, aconchego e refeições tradicionais fosse orgulho. Jim e Lynetta provavelmente não queriam receber nem mais um centavo dos parentes além do mínimo necessário.
Lynetta, porém, sonhava com um modo de vida mais refinado. Gostava de se imaginar escritora, e acreditava ter sido uma em vidas passadas. Queria falar de coisas elevadas, como reencarnação e progressismo político, não de cortinas e receitas de bolo. Por isso, esnobava convites para visitar outras mulheres da cidade e nunca as convidava para sua casa. Mesmo na rua, quando ia às compras ou à sessão comunitária de cinema nas noites de quarta-feira, quase nunca conversava com as pessoas e, quando interagia com alguém, dizia o mínimo possível. Muitos a achavam muito metida a besta para uma mulher que sequer conseguia manter uma casa ajeitada. Mas a verdade era que ela não tinha assunto com ninguém, nem uma base sobre a qual pudesse construir amizades.
A convivência com a família do marido era inevitável. Sem eles, Lynetta e Jim estariam falidos. Mas Lynetta ficava magoada com tudo que diziam; vivia na defensiva, à espera de alguma ofensa. O que mais a tirava do sério era que sempre a chamavam de “Lynette”, e não de “Lynetta”. Na época em que a conheceram, muitas vezes ainda se apresentava como Lynette, e assim se acostumaram a chamá-la. Não faziam por mal, e ela com certeza seria atendida se pedisse que a chamassem de Lynetta. Mas não pedia: preferia se fazer de ofendida. Sempre frustrada, sem nenhuma esperança concreta de realizar sua ambição de ser uma mulher fina, Lynetta passava seus dias tristes alimentando rancores e tendo discussões imaginárias em que vencia os inimigos com astúcia e coragem. Mais tarde, viria a contar histórias mirabolantes sobre essas fantasias, pintando suas ilusões de grandeza como se fossem verdades.30 Nos primeiros anos que passou em Lynn, no entanto, tinha apenas o filho pequeno como plateia. E as duas lições mais precoces e mais duradouras que Jimmy aprendeu com a mãe foram: os outros sempre tentariam puxar seu tapete, e a realidade era aquilo que você acreditava ser.
Mesmo depois da mudança para Lynn, a saúde de Jim continuou precária. Os problemas físicos e emocionais eram recorrentes. Além das consultas periódicas na clínica de Oxford, em Ohio, às vezes um dos irmãos o levava a um hospital em Dayton, na Virgínia, para tratamentos de emergência.31 Jim tossia muito — o tabagismo compulsivo só agravava os problemas respiratórios. Estava sempre com um cigarro na boca. Com o passar do tempo, Jim foi ficando envergado, e acabou abandonando os trabalhos esporádicos na empresa ferroviária.32 De manhã, arrastava-se para a varanda e às vezes ficava lá o dia inteiro. Sentiam pena dele. As pessoas que passavam lhe dirigiam acenos e cumprimentos, e Jim fazia o possível para retribuir.
Alguns dias, conseguia falar melhor; outros, nem tanto. Mas era sempre amável. As crianças gostavam dele, porque, ao contrário de muitos adultos, Jim as chamava pelo nome.33 De perto, sua aparência era chocante. Embora ainda estivesse com quarenta e poucos anos, o rosto estava cheio de rugas e pelancas. Se antes era conhecido como “Grande Jim”, para diferenciá-lo do filho Jimmy, muitos já passavam a chamá-lo de “Velho Jim”.34
Lynetta continuava evitando contato com as pessoas. E, quando ia ao centro da cidade, chamava atenção porque fumava e usava calça comprida. As pessoas ficavam olhando, e ela encarava de volta. Quando falava com alguém (o dono da mercearia, o vendedor de uma loja ou uma pessoa com quem cruzasse na rua e não tivesse como não cumprimentar), entremeava a conversa com palavrões. Em Lynn, “droga” e “inferno” não eram coisa que uma moça dissesse. Lynetta praguejava o tempo todo, e vez ou outra soltava um “merda”.35 Não entendia por que as pessoas ficavam tão escandalizadas — eram palavras, nada mais. Achava graça quando alguém se incomodava.
Até certo ponto, todos aceitavam essa excentricidade. Mas Jim e Lynetta destoavam do resto de Lynn em um aspecto crítico: a cidade inteira ia à igreja aos domingos, menos os dois.36 Por conta disso, os mais devotos poderiam inclusive tê-los condenado ao ostracismo. Se não o fizeram, foi sobretudo por respeito aos outros Jones, que todo domingo iam ao culto quacre, e também em consideração aos serviços de guerra prestados pelo Velho Jim. Mas era um comportamento incômodo, sem dúvida.
No segundo semestre de 1936, enfim chegou o momento de Jimmy começar a frequentar a escola. Lynetta teria que arrumar um emprego. As fábricas da região estavam contratando. Ela poderia quase escolher onde trabalhar. Mais tarde, Lynetta se diria perseguida pela família do marido. Por ora, pensava apenas que a invejavam por despertar tanto interesse nas empresas. Alegava inclusive que não queriam que ela trabalhasse: “[A família do meu marido achava] que trabalhar fora maculava o caráter de uma dona de casa, sobretudo se ela fosse tão capacitada e requisitada como eu”.37
Lynetta arranjou emprego em uma fábrica de vidros em Winchester. Toda manhã, levantava e tomava o ônibus para o trabalho. Antes de sair, entregava um sanduíche a Jimmy e o despachava para a escola. Já o marido era deixado por conta própria. Para passar o tempo, o Velho Jim arrastava-se até o salão de bilhar da cidade. Era isso ou ficar sozinho naquela casa deprimente. No salão, jogava baralho e bebia café ou refrigerante — o dono do estabelecimento seguia os costumes de Lynn e não servia bebidas alcoólicas.38
À noite e nos finais de semana, quando estavam os três em casa, recebiam poucas visitas, quase sempre familiares que vinham trazer comida, já que Lynetta quase sempre estava cansada ou nervosa demais para cozinhar, ou crianças da vizinhança que vinham brincar com Jimmy, mas logo iam embora, afugentadas pelo clima hostil. Todos ali pareciam mudos, a não ser a sra. Jones, que sempre reclamava mais que conversava. Ela gritava com o sr. Jones e com Jimmy, ou metia o pau nos babacas do trabalho que arrancavam seu couro sem um pingo de pudor. Não se importava que a ouvissem. Nenhuma mulher em Lynn ralava tanto como ela, nenhum marido permitiria.
Mesmo assim, depois de dois anos e meio, os moradores de Lynn já estavam acostumados com Lynetta e o Velho Jim. Eram um casal excêntrico, não havia dúvida. Mas então, pela primeira vez, o pequeno Jimmy Jones passava a andar livremente pelas ruas da cidade, e logo ficou claro que, comparados com ele, seus pais eram quase normais.