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01 | Lynetta e Jim
1 Lynetta e Jim
De acordo com suas próprias lembranças, Lynetta Putnam Jones começou a vida em circunstâncias privilegiadas, casou apenas uma vez, com um inválido de guerra, sofreu nas mãos dele e de sua família cruel, teve um filho após uma visão mística à beira da morte, enfrentou banqueiros em plena Grande Depressão, desafiou o charlatanismo religioso do interior, reformou um sistema penitenciário estadual, sindicalizou operários explorados e educou o melhor homem do mundo, que na verdade era mais divino que humano quase que exclusivamente graças aos cuidados constantes da devotada mãe.
Nada disso era verdade, a começar pelo nome dela.
Lunett Putnam nasceu no dia 16 de abril de 1902 ou 1904, filha de Jesse e Mary Putnam. Não há registros localizáveis de seu nascimento; ao longo da vida, ela mencionaria ambos os anos (e às vezes 1908 também). Nem o local de nascimento é conhecido ao certo. O mais provável é que tenha sido Princeton, no sudoeste do estado de Indiana, mas alguns pesquisadores acreditam que ela tenha nascido em Mount Carmel, cidadezinha de Ohio na região metropolitana de Cincinnati. Sejam quais forem as informações corretas sobre o lugar e o ano em que veio ao mundo, o fato é que seu nome foi alterado algumas vezes: primeiro para Lunette, depois Lynette, nome que aparece em vários recenseamentos e documentos oficiais e, por fim, Lynetta.
No final da vida, recordando a infância, Lynetta se descreveria como uma criança “bela como a alvorada… e forte como uma tigresa”. Por sua pele morena, muitos pensavam que fosse uma indígena (depois de adulta, se dizia descendente de indígenas, embora não haja registros). Seus pais esperavam que fosse uma “bonequinha de porcelana”, mas, para desgosto deles, se embrenhava no mato para “estudar os animais”.1 Se isso é verdade, foi um exemplo precoce de algo que a marcaria pela vida: a rebeldia.
Nas memórias narradas em Jonestown, Lynetta descreveu Lewis Parker, seu suposto avô paterno de criação, como um poderoso madeireiro de Indiana. Dizia que Parker “controlava tudo que acontecia no sul de Indiana”. De acordo com Lynetta, o avô era famoso pela generosidade com os numerosos empregados. Pagava bons salários e tentava melhorar as condições de trabalho. Sempre tinha emprego para quem precisava. Mas o declínio da indústria madeireira e a forma com que zelava pelo bem-estar dos funcionários afetaram os negócios.
Lynetta era dada a exageros, o que tornava suspeita sua narrativa. Porém, é certo que passou dificuldades financeiras na adolescência. Inteligente e com uma ambição que beirava o fanatismo, nesse período se apoiou na crença em espíritos e na reencarnação — ela garantia que havia sido importante em vidas passadas, e que voltaria a ser naquela. Mas espiritualidade não pagava conta. A saída para uma jovem bonita naquela situação era bem óbvia: em 1920, Lynetta seguiu um caminho tradicional de sobrevivência feminina e casou-se com Cecil Dickson. Tinha 16 ou 18 anos de idade. O matrimônio durou cerca de dois anos. Lynetta matriculou-se na Escola Agrícola de Jonesboro, no estado de Arkansas, mas largou o curso após o divórcio. Persistente, casou-se com Elmer Stephens um ano depois. A nova união durou três dias (de 12 a 14 de março de 1923), mas a separação só saiu em agosto. Nada se sabe sobre Dickson ou Stephens. Lynetta chegou a procurar um curso de administração, mas, sem um marido para sustentá-la, viu-se obrigada a trabalhar. Embora se julgasse “boa em matemática, redação, essas coisas”, o melhor que conseguiu foi trabalhar em uma fábrica — que, no Meio-Oeste dos anos 1920, pagava cerca de 1 dólar por dia.2
O pai de Lynetta era falecido; ela nunca falou muito da causa ou a data da morte. A mãe, Mary, morou com ela durante o casamento com Dickson. Adoeceu, ao que tudo indica, de tuberculose, pouco depois do segundo divórcio de Lynetta, teve de se virar sozinha e morreu em dezembro de 1925.
Um ano depois, Lynetta casou-se de novo. Esse terceiro matrimônio foi encarado de forma pragmática. Ela ainda almejava ser uma dama da alta sociedade, mas trabalhava em uma empresa em Evansville, Indiana. Como de costume, gabou-se de que havia “começado como secretária e um ano depois já ocupava um alto cargo na empresa”.3 A verdade, porém, era que estava estagnada em outro emprego mal remunerado e sem futuro. Sua saúde também ia mal. Tempos depois, admitiria ter “uma doença pulmonar”. A historiadora Joyce Overman Bowman encontrou indícios de sua passagem por um sanatório de Illinois, provavelmente para se tratar de tuberculose.4 Lynetta queria segurança, uma vida tranquila o suficiente para que pudesse desenvolver todo o seu potencial e exercer seus dons espirituais e intelectuais. O caminho mais óbvio era o casamento com um bom partido, que viesse de família abastada e pudesse dar a ela não apenas o mínimo necessário para sobreviver, mas uma vida de conforto. Em 1926, Lynetta acreditou ter encontrado o homem que procurava.5
John Henry Jones era um homem importante no condado de Randolph, Indiana, tanto por suas vastas propriedades rurais como por sua ideologia política. Tinha orgulho em se declarar democrata em uma região onde quase todo mundo era republicano fervoroso. Quacre devoto, era chefe de uma grande família: teve treze filhos de dois casamentos. Esperava que os filhos se tornassem alguém na vida, e a maioria conseguiu. Quase todos, tanto as mulheres como os homens, concluíram o ensino superior — John Henry pagava os estudos vendendo terras ociosas.6 Vários deles acabaram se estabelecendo na mesma região em que cresceram. Randolph ficava quase na divisa com o estado de Ohio. Os filhos de Jones se tornaram gestores de ferrovias, produtores rurais, professores ou donos e administradores de empreendimentos da região (entre os quais um posto de gasolina e bar ao ar livre). Um deles foi diretor de um abrigo municipal para órfãos. Apenas dois filhos não prosperaram. Billy andou em más companhias e se viciou em jogo e bebida. Apesar do desgosto, o pai não o deserdou. E ainda havia Jim, nascido em outubro de 1887 e batizado James Thurman Jones, que foi para a guerra e voltou com graves sequelas físicas. Jim foi desde sempre uma grande decepção para o pai exigente. Até podia ser bonzinho, mas faltava-lhe ambição. Conseguiu concluir o ensino fundamental, mas não se interessou em continuar os estudos. Como o pai e os irmãos, levava jeito para trabalhar com ferramentas e todo tipo de equipamento, e acabou arrumando trabalho em obras rodoviárias.
Como os automóveis estavam começando a se popularizar, serviço não faltava em todo o estado. O emprego era estável, ainda que pouco estimulante, o que combinava com o jeito pacato de Jim.
O fato de Jim ainda estar solteiro também causava espanto. No condado, a maioria dos homens de sua geração se casava cedo, muitos ainda na escola, e constituíam família. Mas Jim não — talvez porque fosse acometido na vida afetiva da mesma falta de ambição que demonstrava nos demais aspectos da vida. Contava já trinta anos na primeira vez em que mostrou alguma iniciativa. Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, alistou-se no exército e foi mandado para a linha de frente na França. Lá, foi atingido por gases tóxicos durante um ataque alemão, e ao inalar os vapores nocivos sofreu graves queimaduras nos pulmões. Quando foi despachado de volta para casa, não era nem sombra do homem que costumava ser. Sofria de falta de fôlego, e seu aparelho respiratório continuaria a se deteriorar pelo resto da vida. Sua voz se tornou fraca e rouca. Não falava muito, e quando se manifestava, era difícil entendê-lo.
Como veterano incapacitado pela guerra, e um dos cerca de 70 mil norte-americanos vítimas de ataques a gás na Primeira Guerra Mundial, Jim tinha direito a uma pensão militar, que não passava de 30 dólares por mês.7 O dinheiro não era suficiente, o que levou Jim a retomar a vida civil e voltar a trabalhar nas estradas. Dava o melhor de si, mas já não podia fazer muito esforço. Sofria ainda de reumatismo e, de tempos em tempos, tinha de ficar de repouso. Solteiro, em constante desconforto e se aproximando rápido da meia-idade, levava uma vida solitária. Até que, durante o trabalho em uma estrada próxima a Evansville, conheceu uma mulher extrovertida chamada Lynette, que também se apresentava como Lynetta, quinze ou dezessete anos mais jovem. Para espanto da família do noivo, que já imaginava que Jim terminaria solteiro, os dois se casaram no dia 20 de dezembro de 1926, quase um ano depois da morte da mãe da noiva.
Embora presa a um marido incapacitado e com idade para ser seu pai, Lynetta estava feliz por casar com um homem de família abastada. Pretendia ter uma vida mais digna, talvez alguns luxos.
Ledo engano.
O casal precisava de um lugar para morar, no que foram ajudados pelo novo sogro de Lynetta: John Henry Jones deu entrada em um pequeno sítio em Crete, poucos quilômetros ao norte de Lynn, onde morava a maior parte da família Jones. Isso foi tudo o que lhes ofereceu, embora tivesse condições de quitar o imóvel. Por iniciativa sua, o filho e a nora tinham um pedaço de chão e uma chance de construir a vida. O resto era com eles.
A vida do casal foi atribulada desde o começo. Havia milho e soja para plantar e cuidar, além de porcos para criar, abater e vender. Lynetta, que se vangloriava de ter passado a infância no meio do mato capturando bichos, não entendia nada de animais de corte, muito menos de lavoura. Jim, seu marido, estava mais acostumado à lida diária na roça, mas se ausentava com frequência. Precisavam de dinheiro para comprar sementes, ferramentas e ração, por isso Jim volta e meia arranjava serviço em obras rodoviárias. Viajava por todo o estado e chegava a ficar fora durante dias ou até semanas, deixando Lynetta sozinha.8 Não que o trabalho não pudesse ser feito com ajuda de maquinários agrícolas mais modernos, mas ela e Jim não tinham dinheiro para tanto.
Quando Jim estava em casa e tentava ajudar com as intermináveis tarefas no campo, cansava-se rápido e logo precisava sentar ou ir para a cama. Lynetta não conseguia manter uma conversa com o marido por muito tempo. Os problemas respiratórios dele não permitiam. Fosse em outro lugar, poderia ter feito amizade com os vizinhos, mas ali não havia muitos. Crete se limitava a meia dúzia de propriedades rurais e um silo. A população era de 28 pessoas. O trem passava quatro vezes por dia; duas apitando e levando passageiros, sem parar por lá, e as outras duas parando para buscar cereais que os produtores da região mandavam todos os dias para o silo.9 O que se dizia na região era que Crete não era um vilarejo, e sim um “ponto de parada”.10 Os trens de carga também transportavam carvão e, assim que partiam, os moradores de Crete largavam o que estivessem fazendo e corriam para catar os pedaços que caíam dos vagões. Lynn ficava ali perto, e contava com mercearias e outros tipos de comércio, mas os moradores de Crete procuravam viver do que a terra dava, plantando o que comiam e complementando a alimentação com morangos e framboesas que colhiam dos pés perto da estrada de ferro. A isso chamavam “bem viver”.11 Jim não estava em condições de apanhar frutos, e Lynetta, sempre cansada, ficava indisposta. As refeições eram esparsas e sem apelo. Qualquer coisa que fosse além da comida simples do dia a dia exigiria uma energia e uma disponibilidade que ela não demonstrava. As outras poucas famílias de Crete se compadeciam deles — afinal, Jim era um veterano de guerra incapacitado em combate —, mas
o casal tinha tudo de que precisava para se virar sozinho. Todos mostravam desconfiança em relação a Lynetta, que não tinha o recato que se esperava das mulheres na sociedade da época: fumava em público e falava palavrão quando lhe dava na telha, sem se preocupar se a ouviam.12 Lynetta gostava de chocar. Se não era feliz, pelo menos podia ser diferente.
Quando a família Jones se reunia em Lynn nos fins de semana, em vez de aproveitar a oportunidade para se entrosar, Lynetta se mordia de inveja daquelas mulheres com belas casas e coisas finas. Odiava a vida que levava no sítio em Crete e sonhava com “formas mais proveitosas de concretizar minhas ambiciosas metas de vida”.13
Se as coisas já estavam difíceis no início, ficaram piores com o passar dos anos. Cada vez mais debilitado, Jim foi obrigado a largar as obras rodoviárias, desfalcando bastante a renda familiar. Já não havia muito o que pudesse fazer para ajudar Lynetta com as obrigações no sítio, e, quando tentava, em geral não era de grande valia. Lynetta perdeu o pouco respeito que ainda tinha pelo marido: “O homem [não entendia] nada de criação de animais nem de lavoura”. Não havia mais dinheiro para comprar sementes, muito menos para contratar ajudantes. As contas só se acumulavam. Pagar a hipoteca da propriedade era um sacrifício. Lynetta só pensava em sair daquela vida que, para ela, era “uma espécie de escravidão”.14 Mas não tinha para onde ir.
Pelo menos no sítio os dois tinham o que comer. Entretanto, a menos que acontecesse um milagre, a propriedade também não duraria muito. A fonte mais óbvia de socorro ainda era o sogro de Lynetta, John Henry, que também sofrera reveses financeiros com a crise de 1929 e passava uma parte do tempo com a família de um dos filhos em Lynn e outra nas terras que ainda lhe restavam em Crete. No entanto, ainda estava bem de vida, assim como o resto da família. Talvez acolhessem Jim caso perdesse o sítio, mas Lynetta tinha a certeza de que acabaria na rua da amargura se dependesse deles. Ela achava que a família de Jim não gostava dela, o que não era verdade. Sua excentricidade podia ser inconveniente, porém a maior parte dos parentes do marido admirava tanta ousadia.15 Deixar Lynetta e Jim ganharem a vida sozinhos era sinal de respeito. Lynetta não enxergava isso. Pensava em dar um jeito de amolecer o coração deles, a fim de torná-los mais inclinados a ajudar.
Lynetta não levava o menor jeito para ser mãe. Nunca lhe passou pela cabeça ter filhos. Mais tarde, inventaria uma história de que adoecera e tivera uma visão em que se aproximava do “rio egípcio da morte”. Quando estava prestes a fazer a travessia, apareceu o espírito de sua mãe, dizendo que ela não podia morrer, porque precisava cumprir seu destino: dar à luz um grande homem.16
Destino ou desespero, o fato é que, em meados de 1930, Lynetta anunciou que estava grávida. James Warren Jones nasceu no sítio de Crete em 13 de maio de 1931. Além do fato de ser mais uma responsabilidade para Lynetta, a chegada do bebê não mudou nada.
Jim, o pai do bebê, nunca expressava a frustração que decerto sentia pelo agravamento de seus problemas físicos, tolhido por uma esposa infeliz que vivia criticando a ele e sua família. No entanto, logo após o nascimento do filho, teve um esgotamento nervoso e precisou passar alguns meses internado em Oxford, Ohio. O médico que o atendeu descreveu o estado de Jim como “nervoso, emotivo, irascível; sistema nervoso e condições gerais de saúde piores que o normal”.17 Mesmo depois de receber alta, Jim precisava de acompanhamento médico periódico e tratamento. Não tinha mais cabeça para problemas que passaram a ser de responsabilidade da esposa, como conservar a propriedade. Lynetta não se comovia: que espécie de homem era aquele que se entregava a um ataque de nervos? Mais tarde, em Jonestown, ela chegou a escrever, com desprezo: “Meu marido chorou de desgosto, depois enfiou o rabo entre as pernas e deixou o banco tomar nosso sítio”.
Lynetta narrou como, em 1934, enfrentou um representante do banco que, segundo ela, recebera ordens de enxotar a família da casa e das terras. Segundo seu relato, ela se recusou a sair até ter garantia de uma casa em Lynn: “Meu filho vai ter um teto para morar, aconteça o que acontecer… [Diga ao seu patrão que] não tenho vocação para covarde, e não vai ser agora que vou mudar”.18 Na verdade, foi a família de Jones que interveio, arranjando uma casa em Lynn. Não era muito bonita, mas tinha tudo o que a pequena família precisava. Ficava na Grant Street, onde já moravam dois irmãos de Jim. A pensão militar de Jim ajudaria a pagar o aluguel, e ele completaria o restante com o dinheiro de serviços eventuais que faria, se sua saúde permitisse. O pai e os irmãos de Jim ajudariam com o que faltasse.19 Isso não era problema para Lynetta, mas a família também impôs condições. Enquanto o menino fosse pequeno, a mãe podia ficar em casa para cuidar dele. Mas, assim que o pequeno Jimmy Warren — como chamavam o caçula— entrasse para a escola, só manteriam a ajuda financeira se ela arrumasse um emprego e ganhasse o suficiente para pagar o grosso das despesas do lar.20
Ela não tinha escolha. Assim sendo, Jim, Lynetta e Jimmy Warren foram morar em Lynn.