Fresta 0

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nº zero set /2007

distribuição gratuita

periódico do curso de arquitetura e urbanismo da PUC-Rio EDITORIAL Em dezembro próximo forma-se a primeira turma do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / CAU PUC-Rio. Ao longo desses cinco anos de existência, e do período de gestação que o precedeu, o CAU, através do empenho de professores, alunos e funcionários, procurou firmar-se como centro de excelência no ensino da arquitetura e do urbanismo. Mas falar em excelência do ensino da arquitetura no Brasil de hoje implica aceitar desafios que, à primeira vista pelo menos, parecem exorbitar a própria esfera do ensino. De uma situação tradicionalmente prestigiosa e, em algumas ocasiões, de puro protagonismo, a arquitetura brasileira viu seu lugar social decair de forma assombrosa nas últimas décadas. Outrora onipresentes, os arquitetos brasileiros procuram, cada vez mais atônitos, um lugar, e sobretudo um saber, capazes de conferir justificação social a seu trabalho. Além, naturalmente, de um lugar ao sol num mercado hostil e enigmático. A resposta que o CAU tem procurado dar a esse estado de coisas parte da constatação de que, em grande medida, a prática da arquitetura será o que se fizer dela - o que nós fizermos dela. Será o que professores e sobretudo alunos quiserem que ela seja. Será o que, no interior da escola, nos ateliês de projeto, nas salas de aula, nos auditórios, nos centros acadêmicos, for ensinado, aprendido, discutido, debatido, criticado e acima de tudo imaginado. Nessas perspectivas, o lançamento da Fresta parece confirmar um compromisso fundamental do nosso CAU: fazer da escola um local de troca, de debate, de crítica. Um local de onde, por entre uma fresta, a escola vê e é vista; espia e é espiada. Um local onde o dentro e o fora, sem que se anulem, se encontram. Em sua primeira edição — preparada pelos Professores Ana Luiza Nobre e Andrés Passaro e com projeto gráfico desenvolvido pelo Escritório Modelo de Arquitetura e Design da PUC-Rio – Fresta reproduz trecho da aula inaugural do ano de 2006 do CAU, proferida pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé (pág. 5). A escolha de Lelé (que naturalmente dispensa justificações) não se deveu apenas à extraordinária qualidade de sua obra; deveu-se também à excepcionalidade de uma prática, possivelmente única no mundo, que pensa a arquitetura não apenas como construção, mas também e sobretudo como produção. Num momento em que tudo ou quase tudo se reduz à imagem efêmera e consumível, a aula de Lelé afirmou a força e a atualidade de uma arquitetura francamente moderna, porque comprometida com a construção dos espaços da vida moderna, sobretudo da cidade. Outro destaque desta edição é o texto de Josep Ouetglas (pág. 3) sobre o conceito de “moderno”. Provocativo como de costume, o professor da ETSA de Barcelona coloca-nos diante de pichações e latas de lixo para entender melhor o papel e o lugar dos arquitetos modernos no mundo... moderno? Fresta traz ainda o texto (inédito em português) do artista alemão Kurt Schwitters (pág. 4). Publicado em 1927, por ocasião da famosa exposição Weissenhoff ocorrida em Stuttgart, o texto ilustra como podiam ser divergentes os conceitos de forma imaginados pelos protagonistas de um movimento moderno caracterizado justamente por disputas e divergências internas. Por fim, Fresta publica artigo dos professores Andrés Passaro e Marcos Fávero (pág. 2) e o trabalho acadêmico orientado por ambos (pág. 7). A escolha desse trabalho, por parte dos editores, não foi certamente aleatória, mas tampouco pautou-se por algum critério de representatividade. Em todo caso, acredito, o trabalho tem um pouco a cara de nosso Curso, entrevista por esta Fresta.

Otavio Leonídio Coordenador Acadêmico do CAU PUC-Rio


HIBRIDIZAÇÕES ANDRÉS PASSARO E MARCOS FAVERO

Estamos inseridos em um processo de hibridização, no qual de forma implícita, não mais existe o valor do original e sim unicamente o valor da cópia analógica. No século da informação, da velocidade instantânea de transmissão de imagens torna-se tarefa árdua para o professor de projeto de arquitetura fazer com que os alunos apreendam os valores espaciais e formais de uma determinada obra arquitetônica. Este quadro torna complicado estabelecer uma ponte entre o professor e o aluno para o entendimento do projeto arquitetônico como algo mais complexo do que uma simples questão imagética. Principalmente se levamos em conta, no outro extremo, uma patética pesquisa de obras de arquitetura via Internet; cujos resultados oferecem uma profusão de imagens, possivelmente produto de montagens e tratamentos, de todos os tamanhos e gostos. Não chegamos ao extremismo quetgliano que entende como desnecessária a visita a uma obra e que, também, quase descarta o levantamento fotográfico: “Un arquitecto debe poder conocer con total precisión cada uno de los rincones de un edificio si dispone de plantas, alzados y secciones adecuadas. Del mismo modo que a un músico le basta con leer la partitura para ser capaz de oír la música... Concedo un apoyo en fotografías de época para saber como eran Oak Park, Viena o Sintras en aquel tiempo, pero nada más.”(Quetglas, Scalae #3, 2003) Entretanto, inserido neste dilema — de como tirar da contramão o excesso e a frivolidade da informação imagética? - encontra-se o trabalho de ateliê de projeto, provavelmente na maioria das escolas de arquitetura. Associado a este dilema, percebemos outro aspecto fundamental - como evitar nas escolas de arquitetura a utilização de “pranchas de referências” simplesmente como recursos banais, esvaziadas de significados perceptivos e intelectuais? Atualmente, este problema atinge também a profissão do arquiteto, conforme indica Quetglas no artigo intitulado “En Tiempos Irregulares”, no qual aponta que vivemos num tempo esvaziado de arquitetura: “El libro Casas del mundo, con más de 2.000 fotografías a todo color, es, de largo, el más vendido en la libraría del Colegio de Arquitectos de Barcelona en lo que va del año. [...] Las casas están ordenadas por tipos de emplazamiento; en el libro no se muestra ninguna planta o sección de los edificios, sino solo fotografías del exterior y del interior.” “EI responsable de la librería me justificó el éxito. Al parecer, los arquitectos lo compran como catálogo para enseñar a sus clientes. “¿Cómo quiere la casa? ¿Le gusta el tejado de esta? ¿Y la terraza? ¿Es ésta la que le gusta? La cocina, ¿Cómo cuál? ¿Ha visto algún baño que le atraiga? ¿Como éste pero con el suelo de aquél? Bien”. Hay quien compra el libro por paquetes. “Lléveselo a casa piénsenlo bien y marque las fotos que le gusten. Nos vemos este viernes.’ Todo eso por [...] 14,42 euros. Se lo quitan de las manos.”(Quetglas, Scalae #1, 2001) A banalização dos processos projetuais mal fundamentados na cultura italiana dos anos 1970 e comple-

mentados por uma fase hedonista de consumo da arte nos anos 1980-1990, que colocavam os sistemas de representação acima dos sistemas metodológicos no ensino de projeto de arquitetura, foram desastrosos para essa prática. Hoje, podemos assistir professores “modernos”, que ensinaram via método “inovativo” exigir de forma equivocada “pranchas de referências”, revelando muitas vezes a falta de compreensão mais profunda dos processos projetuais estabelecidos a partir dos trabalhos de Rossi e Venturi. Esta banalização associada ao fenômeno internet e a dificuldade de atualização das bibliotecas nas escolas de arquitetura, podem ser considerados grandes responsáveis por este excesso de informação não processada, não pensada, não discutida que “enchem os olhos” dos nossos estudantes e dos nossos clientes com uma desastrosa “imagética híbrida e analfabeta”. Para nosso desespero, a maioria dos nossos alunos do ateliê de projeto insiste em comprar livros da editora Taschen ou Koneman e em apenas comentar como são bonitas ou feias algumas imagens. Esta problemática deve ser focada no ensino de projeto de arquitetura no sentido de instrumentalizar o aluno para uma postura projetual crítica frente ao fazer arquitetônico. Fundamentalmente, deve-se estabelecer uma metodologia projetual que procura ajudar o aluno a não ceder ao impulso da pura ação criativa, a não se submeter ingenuamente aos dados pragmáticos da situação de projeto, a fugir dos processos de hibridização e a compreender uma melhor maneira de operar no vasto oceano de referências. Para finalizar, outra citação de Quetglas, não tão radical quanto as anteriores, comentando, mais uma vez, a não validade das viagens arquitetônicas realizadas com o intuito único de tirar fotografias: “Sólo cabe una excepción a la regla: la peregrinación. El viaje por deuda y reconocimiento, por agradecimiento. De preferencia en solitario y en silencio, con el último trecho del trayecto a pie, sin nada en las manos...Vamos hasta el edificio para estar a su lado, sin hacer nada y sin sacar provecho alguno. Bastaría la intención de ‘querer conocer’ mejor al edificio para invalidar nuestro gesto... Peregrinar es ir hasta el pabellón de Portugal en Lisboa, y colocarse bajo la sábana santa y mirar el río. Ir a Como. Ir a la avenida Junot, de Montmartre, sentarse ahí. Escuchar crujir la grava, andando hacia la capilla de los Pazzi. Ir a Ronchamp por la tarde, cuando la luz entra por los arcos del claustro, y dejarse teñir por ella. Recordar haberlo hecho. ‘No te mueras sin ir a Ronchamp: Oteiza lo sabía cuando se lo encomendó a Oiza, poco antes de morir — ambos.”(Quetglas, Scalae #3, 2003) Sem dúvida uma escala de valores de maior consistência que as 2.000 fotos daquele livro inominável. ■


FORA DO TEMPO JOSEP QUETGLAS

Agora a parede tem mais vizinhos. Um oportuno NÃO À GUERRA acampa sobre a chapa metálica. Porém sigo gostando mais dela assim, como quando tirei a foto. Sobretudo ao entardecer. Então o intemporal PUTOS MODERNOS PUTO LIXO, solitário e livre, era suficiente para encher a rua do General Torrijos com as suas letras fluorescentes e um garrancho de assinatura que não consigo decifrar. Não é preciso dizer mais, nem dizê-lo melhor. De onde vem essa irritação que me preenche cada vez que ouço ou leio a palavra “moderno”? Ou, mais precisamente, cada vez que cruzo com a palavra “moderno” aplicada a algo de hoje. Mas esse é, justamente, o campo de uso dessa palavra, seu sentido mais próprio. O “moderno” é, em sentido estrito, aquilo que é feito “ao modo hodierno”, ao modo de hoje. Seu primeiro e mais remoto uso foi aplicado à liturgia católica, e nesse mesmo campo fixou-se o seu sentido atual, no debate em torno da reforma religiosa do final do século XIX, necessária para dar uma viscosidade nova e efetiva à influência clerical sobre as consciências populares. O Dada, aquela maravilhosa “Sociedade Anônima para a exploração do vocabulário” dirigida por Tristan Tzara, estava vacinada contra essa infecção: DADA N´EST PAS MODERNE era uma das senhas que mais desconcertavam “os idiotas e professores espanhóis” (Hans Arp, 1921), acostumados a acreditar que hoje em dia é preciso ser moderno para alcançar algo na vida. Está por vossa conta, modernos. Porque ser moderno resulta numa tarefa esgotante. Pensemos por um momento: o moderno, esse que desliza com elegância californiana sobre a crista do instante, que sempre tira do bolso uma moeda recém-cunhada, é, sobretudo, um esforçado. O moderno não nos dá bom dia ao nos ver, não nos reconhece pela rua - nem a nós nem a ninguém, porque para reconhecer há que referir-se a um “antes”. Mesmo se o nosso rosto mudo lhe incitasse a um cumprimento espontâneo, ele não o faria: o tempo entre o decidir nos cumprimentar e o abrir a boca para fazê-lo já é suficiente para mandar para trás, para o passado, sua intenção de cumprimentar. O moderno permanece boquiaberto, sem conseguir recordar o que queria fazer. E se falasse de improviso? Sim, mas em que idioma? Não naquele que seus pais ou a academia de inglês lhe ensinaram, nem em nenhum outro que ele já saiba, porque estes ele já os aprendeu - são de antes, do passado. O único idioma que o moderno pode falar é um que inaugure e fixe seu sentido no ato mesmo de ser pronunciado. Nem ele mesmo o entenderia, nem lhe interessaria tomá-lo por coisa já dita, nem nós o entenderíamos, incapazes de compreender um arrazoado que, se chegássemos a decifrar, já teria sido substituído por um outro. O moderno não retém nada: nem os rostos da sua família, dos seus amigos, nem a linguagem, que escorre da sua boca como um fiozinho de baba sempre brilhante. Nem sequer os alimentos que ingere permanecem muito tempo em seu interior. O moderno, para ser integramente moderno, se faz acompanhar de um estado de decomposição permanente, capaz de lhe impor a pressa e a urgência do instante. Um autista com diarréia: esse é o moderno, que tanto engordura as publicações de arquitetura feitas ao modo hodierno.

São dois os produtos que moldam dia a dia a figura do moderno, que condensam e inspiram sua imaginação, que são tanto sua causa como seu efeito. Assim como a manufatura e a linha de montagem foram capazes de determinar o trabalhador que as produzia, moldando suas habilidades, sua capacidade de ideação, sua alma e sua conduta, outro tipo de produção fabrica agora o moderno, o sujeito capaz tanto de desfrutar desses produtos como de produzi-los. O primeiro deles é o lixo, que é o único produto efetivamente novo a cada dia. Todos os outros têm uma duração auspiciosamente indeterminada: até a imprensa diária encontra em hemerotecas e arquivos digitais seu espaço de memória e sobrevivência. O produto ideal do moderno é o lixo, e o lixo produz como seu resultado mais completo o moderno. O outro produto que vale como reflexo e matriz do moderno é a mercadoria. A mercadoria ensinou o moderno a aspirar a parecer distinto a cada dia. Para o mercado, é preciso que aquilo que é oferecido hoje à venda se apresente como diferente do que já temos, e como tal, desejável. Porém o moderno não é uma figura absurda. Não há absurdos na história. Se o moderno existe é porque cumpre um papel efetivo, porque possui uma habilidade insubstituível. Foi Fernando quem me revelou isso. O moderno, o arquiteto moderno, o metapolitano* por excelência, é aquele que foi capaz de convencer prefeitos, políticos e demais agentes publicitários ligados ao negócio imobiliário de que eles necessitam algo que somente ELE produz, uma quinta-essência desejável que somente ELE pode lhes vender: modernidade. ■ Tradução: Andrés Pássaro - Revisão Ana Luiza Nobre Publicado originalmente na revista Scalae #1, Maio 2003. *(referência ao grupo de arquitetos e comerciantes catalães “Metapolis”) n.t.


STUTTGART, A HABITAÇÃO - EXPOSIÇÃO DA WERKBUND KURT SCHWITTERS

O povo quer acreditar e o homem de espírito quer ver, quer viajar para ver (...) No caso, são os leigos, aqueles que não entendem muito de arquitetura, os que querem acreditar que a exposição de Stuttgart, a “sua” exposição, é boa; querem fazer grandes discursos, mesmo que cheios de reticências... Porque nenhum dos discursos oficiais está livre do subtexto: “pode-se falar ou pensar o que se quiser, mas…” As pessoas sentem que algo foi realizado aqui, mas não compreendem porque. Não foi somente o resultado da exposição e do conjunto como um todo que as convenceu, mas o fato de que o homem de espírito veio até aqui para ver... Penso, porém, que as autoridades de Stuttgart e Württemberg mais parecem galinhas que não chocaram os seus próprios ovos e agora estão na margem do lago, observando com orgulho os filhotes de patos - que acreditam ser seus próprios filhotes - afastar-se nadando, até onde já não podem mais ser alcançados (...). Durante um jantar oficial aqui em Stuttgart, porém, a oposição toma a liberdade de dizer - por meio do representante da Universidade de Tübingen, auto-intitulado guardião da pátria - que a cidade de Stuttgart não está situada na Holanda ou na Califórnia, motivo pelo qual o teto plano não faz sentido aqui (...) Ao Weissenhofsiedlung, pois. “Deve-se a Miesch van der Rohe o plano do conjunto.” “Ele entendeu magistralmente...” como inserir o conjunto no terreno, diz-se com espírito de orador. Mies van der Rohe definiu a localização e o tamanho das casas, e cada um dos arquitetos deu o melhor de si. Mesmo assim, continua a ser uma ideia de jerico permitir que tantos defensores da arquitetura e colaboradores da Werkbund construam casas tão próximas umas das outras. Sem dúvida isso deve dar unidade ao conjunto. Embora se tenha permitido uma certa abertura. Como se trata de uma exposição, tudo aqui tem um sentido pedagógico, e eu não sou obrigado a morar lá em cima. Grandes personalidades como Peter Behrens e Poelzig constroem aqui, por pura delicadeza para com os jovens, casas nas quais eles mesmos não acreditam. E eu tampouco. Poelzig fez uma linda villa italiana em estilo novo, enquanto Behrens não tem mais nenhum caráter - ele é moderno, de uma maneira genérica. É uma pena. Por que esta simulação? Behrens é multo importante para todo este desenvolvimento (...). Seria muito mais interessante poder ver o verdadeiro Behrens e o verdadeiro Poelzig ao lado de Mies, Oud, Gropius, Stam, Le Corbusier. No entanto não há como fazer uma comparação, pois os senhores arquitetos solucionaram seus problemas e mantiveram-se mais ou menos de acordo com as normas apresentadas. Gropius foi o único que experimentou um novo modo de construir. Já os outros construíram de modo convencional, com ou sem subvenções. A tentativa de familiarizar-se com materiais novos é interessante nas casas de Gropius. Nem todos se basearam no plano de massas, a exemplo de Le Corbusier, que construiu duas casas grandes demais e com isso perturbou o conjunto. Aliás, Le Corbusier está longe de ser inofensivo. Porque ele é um arquiteto genial e talentoso, e ao mesmo tempo – lamentavelmente – romântico (...). Provavelmente alguns consideram estas imponentes construções de Le Corbusier fantásticas. Mas eles se deixam enganar. Minha avó sempre me dizia: “Não se deixe enganar”. E isso eu não faço mesmo. Quando vejo uma viga metálica no meio do quarto, penso sine ira et studio – o que significa isso? isso para que se tenha, externamente, janelas sem divisões (...). Considero a casa de Victor Burgeois muito bem pensada. Não é um Teatro Popular, mas o interior e confortável, leva-se em conta a vista para o oeste, e além disso os quartos têm uma boa configuração e janelas bem localizadas. Observa-se que as casas de Oud foram construídas por um arquiteto confiante, que trabalha a partir da sua experiência. Poder-se-ia falar aqui de uma arquitetura funcional. É curioso que Rading tenha construído sua casa a partir das

instalações elétricas. Mas realmente ela ficou fantástica. A fiação foi instalada sobre pequenas ripas, salientes cerca de 5 cm do teto e da parede. O aspecto geral é irrepreensível. Esperamos que esta iniciativa tenha continuidade e que também tenhamos em nossas residências as belas instalações elétricas que tanto enfeitam o panorama das nossas cidades. A casa de Hilberseimer é muito correta. Ela é bem detalhada e nada fantástica - o contrário da casa de Le Corbusier. Aqui não há banheira nos quartos nem viga diante das janelas (...). Mies van der Rohe combina espírito do tempo (Geist der Zeit) e formato (Format). O que é formato? Um novo chavão para os arquitetos. Pintores podem ter qualidade, arquitetos têm formato. Formato significa qualidade de visão (Anschauung). Um objeto bem pequeno pode ter formato. E mesmo assim a construção de Mies van der Rohe é grande, a maior de todo o conjunto. Seu interior dá impressão de enormidade devido às portas altas, que vão até o teto. Não creio que se possa simplesmente passar pelas portas, mas marchar solenemente através delas. Formas refinadas hão de atravessar solenemente as portas, repletas de espírito novo. Assim espero, pelo menos. Pode ser que aconteça como nas moradias de Frankfurt, onde as pessoas chegam com seus sofás de veludo verde. Pode também acontecer que os moradores não sejam tão livres e sábios quanto suas próprias portas. Mas tenhamos esperança que a arquitetura os eleve e enobreça. A casa de Mart Stam é genial e tem movimento. Não quero compará-la ao movimento da cobertura da escada de uma outra casa, que talvez seja usada no inverno como uma pista de trenós - o que quero dizer é que se deve fazer uso dos materiais com segurança para chegar a um resultado convincente. Genialidade é trabalhar com segurança com coisas novas. Você conhece a cadeira de Mart Stam, que só tem 2 pernas? Por que usar 4 pernas, se 2 são suficientes? (...). Foi exposta uma casa de chapas de concreto de May (Ernst May). E por que não? Não é difícil chegar a Stuttgart por via fluvial, a partir de Frankfurt e com tal material Stuttgart poderia facilmente ser colonizada (...). Estive por 6 horas nessas casas. Assim como outros visitantes, manchei de tinta fresca meu casaco, agradeci pela comida e pela bebida – porque não havia nada de bom para comer e porque tinha que deixar espaço para o jantar oficial – e poderia escrever vários livros sobre essas casas. Não o farei porque não sou obrigado a isso, mas aconselho a todos que as visitem. Não haverá outra ocasião para ver tanta coisa interessante junta num só lugar. E também lhes aconselho: façam como eu e voltem para casa de carro, passando por Wildbad, Herrenalp, Badenbaden, Bruchsal, etc. Mesmo que esta não seja a parte mais bela da Floresta Negra, é um passeio agradável e um bom fecho para a exposição. Bruchsal foi pintada de acordo com os projetos de Taut, que também possui a casa mais colorida de Weissenhof. Mas Mies van der Rohe calculou bem: essa casa colorida ocupa um lugar preciso no conjunto. De resto, Bruchsal é mais rococó que Taut (...).

Publicado originalmente na revista holandesa i-10 (1927). Tradução Inge Schroot, revisão técnica Ana Luiza Nobre


ARQUITETURA EM PROCESSO JOÃO FIGUEIRAS LIMA, LELÉ

A rigor, nós entendemos a arquitetura como um processo. É um processo que se inicia quando estabelecemos o programa juntamente com as pessoas que nos convocam, seja o setor público, seja o setor privado, e que se desenrola em várias etapas. Esse processo não termina nunca. Para mim, ele existe até o fim da vida, porque até hoje eu sofro com projetos que foram mal realizados ou com obras que não foram mantidas corretamente. Durante esse processo temos várias etapas: a etapa da criação, a etapa de desenvolvimento com uma equipe multidisciplinar, da discussão das questões do programa, até a realização da obra e depois, a parte final, que é uma das mais importantes, quando as pessoas ocupam a obra e ela realmente atinge as intenções que nós estabelecemos nos primeiros momentos do projeto. Dentro desse processo todo a obra talvez tenha importância maior porque é ela que transforma um ideal num objeto concreto. Essa etapa envolve uma série de problemas do cotidiano, da interlocução com outros técnicos, e costuma ser muito penosa, mas não pode ser esquecida. Infelizmente, o problema da construção foi muito esquecido como uma coisa primordial no ato de projetar. Mas felizmente tenho visto que essa questão está sendo retomada, e mesmo aqui na PUC, cuja escola se encaixa exatamente nessa ideia de que a construção é importante na nossa formação profissional. A arquitetura não é um ato de criação, é um processo, e esse processo integra várias etapas e vários participantes. O ato de criação pode ser solitário. Mas ninguém pode pensar em chegar ao fim do processo sozinho. A racionalização é muito importante, mas não podemos esquecer da intuição. Tenho muito medo, às vezes, de certos instrumentais disponíveis, como o computador. O computador é importantíssimo como ferramenta, mas não pode de jeito nenhum estabelecer o nosso processo de criação. Vamos pensar numa colmeia, por exemplo. O material que a abelha usa é um material penoso, que ela tem que caçar em cada flor, e por isso ela precisa fazer a colmeia da forma mais econômica. A forma mais natural seria a circular, mas ela não faz assim porque o processo é muito mais difícil. Ela faz uma colmeia. Os hexágonos, evidentemente, consomem muito menos material. Está aí uma coisa que a natureza nos informa, que é o desperdício de material A arquitetura deve procurar a economia. Ela não pode procurar o desperdício de material. Os cupins, por exemplo, não fazem hexágono, mas eles usam terra e não tem uma dificuldade tão grande quanto a abelha de procurar o material nas flores para fazer suas casas. Isso simboliza muito bem a questão intuitiva. É primordial que guardemos esse instinto da abelha, que a dirige para a economia. As formas mais primitivas de construção, as cúpulas, também usavam uma forma geométrica. Porque a preocupação com a geometria também é uma preocupação econômica. A procura de um círculo, por exemplo, é uma forma econômica como o iglu. O iglu que hoje é feito de gelo pré-fabricado tem a ver com a disponibilidade dos esquimós. A única

matéria-prima que eles têm para fazer as suas casas é o gelo. Outro exemplo é o dos índios americanos. Eles também faziam uma construção geométrica. Mas com pele de búfalo. Ela precisava ser leve porque eles eram nômades e tinham que transportar e montar suas aldeias muito rapidamente, sempre acompanhando as manadas. Na África também há muitas respostas diferentes, como construções feitas de madeira torcida e amarradas em cima. Uma construção também geométrica e de forma circular, mas que procura usar a matéria-prima de uma maneira muito inteligente. À medida que a construção começa a ficar mais complexa é preciso um trabalho integrado; quer dizer, o indivíduo não pode mais resolver sua barraquinha, ele precisa trabalhar em grupo. Vamos ver isso no Brasil também, na cabana do Xingu, por exemplo. O Darcy Ribeiro, que tinha verdadeira paixão por essas cabanas, levou os índios muitas vezes à Universidade de Brasília, onde eu tive a oportunidade de aprender muito com eles. Às vezes a gente vê um ensaio de contraventamento numa construção tão primitiva. O que é contraventamento? É o combate ao vento. Numa construção dessas, com 8 metros de altura, o próprio shed que se forma para extrair o ar quente por cima também é uma contribuição incrível à arquitetura. Sob o ponto de vista do trabalho mecânico, os índios se apropriaram da mesma força que se produz no ato de recurvar a flecha. O que o índio faz nesse ato? Ele comprime as fibras de um lado e distende de outro. Evidentemente, nesse processo ele libera uma força, que é a força da flecha. Mas quando você faz isso e não libera essa força. Ela vai responder justamente à força oposta, que é o peso da gravidade e o próprio vento. Esse princípio existe também no concreto protendido. Como se sabe, numa viga bi apoiada em concreto armado a parte de cima se comprime, enquanto a parte de baixo se distende. Mas o diagrama de tensões se modifica quando se cria uma tensão embaixo, com um cabo. Tanto no caso da intuição indígena quanto no desenvolvimento tecnológico, a apropriação é a mesma. (...) Devo a Brasília tudo o que aprendi profissionalmente. E acho que Brasília foi uma grande oportunidade para a cultura brasileira. Não só para a arquitetura. Evidentemente, a oportunidade que o Lucio Costa teve de partir do nada é uma coisa fantástica que marcou a minha geração definitivamente, mas não é isso o cotidiano. Hoje nós lidamos com cidades completamente conturbadas em que às vezes qualquer intervenção é penosa, é difícil. Trabalhei muito tempo em Salvador me ocupando de uma cidade que evoluía e havia uma esperança enorme de pôr em prática ali certas ideias, mas foi muito difícil. Hoje eu não teria mais coragem de enfrentar o que enfrentei em Salvador. Basta pensar no caso da sede da Prefeitura, por exemplo. Assim como reconheço meus erros com a maior facilidade, até hoje tenho a convicção de que aquele prédio está certo. Se a sociedade rejeita aquele prédio, quer demolir, quer tirá-lo de lá, paciência. Mas acho que tudo o que eu


ARQUITETURA EM PROCESSO JOÃO FIGUEIRAS LIMA, LELÉ

aprendi na minha vida profissional está colocado ali com justeza. Uma relação de altura com a paisagem, o diálogo com os prédios existentes... Evidentemente ali não cabe fazer uma arquitetura pretensamente colonial. Uma ocasião eu recebi a incumbência de fazer uma casinha de um amigo em Trancoso. Era um lugar bonito, cheio de árvores, e eu propus uma estrutura metálica, toda montada, que chegasse lá pronta. O projeto não foi aceito porque não era ecológico. Então ecológico era fazer uma casa de madeira destruindo toda a paisagem. Nós temos que conviver com essas confusões. Todos os projetos que tenho feito são industrializados, mas cada um deles tem uma resposta diferente ao sítio onde ele foi implantado. Não é pegar um modelo e sair colocando em qualquer lugar. (...) É lógico que quando nós pensamos em modulação nós pensamos numa indústria organizada, que tem os produtos fornecidos em tais e tais medidas. E no Brasil isso é uma colcha de retalhos, nada combina com nada. Não existe uma indústria para a construção civil, e quando você tem que fazer essa colcha de retalhos funcionar você nota que o fator de economia da obra começa a se perder porque você não tem uma indústria padronizada. É impossível estabelecer um processo racional com uma indústria de base completamente desorganizada. Todas as coisas mudam, e de repente... surpresa! Isso aqui eu não fabrico mais. Aí você fica na mão. Nós tivemos um trabalho danado para chegar a uma modulação nos hospitais que correspondesse ao funcionamento hospitalar, aos equipamentos e materiais. Adotamos um piso de fórmica, por exemplo, de 62, 5 × 62. 5. Aí um belo dia a indústria te diz que não fabrica mais piso naquelas dimensões. Como é que você faz? É quase um quebra cabeça, não há processo de racionalização nisso. Eu já cheguei a pensar até em fazer piso. Palavra de honra. Vamos fabricar piso, porque assim não dá. O desperdício começa a ser uma monstruosidade numa obra, e se você faz tudo racionalizado para não perder nada e a indústria no meio da obra diz que não fornece mais piso com aquela medida, o que você faz? É difícil. Não existe um processo de racionalização possível. Só se nós arquitetos tivéssemos um pouco mais de força política para influenciar a fabricação e dizer “nós não queremos assim. Não vamos usar essa porcaria. Você tem que manter o mesmo piso...”. Mas não é assim. E realmente os exemplos que eu tenho tido são trágicos, às vezes até de corrupção dentro das próprias indústrias que fornecem material.


FRESTA | NÚMERO ZERO | PERIÓDICO DO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO / PUC-RIO

Prof. Pe. Jesus Hortal Sánches, Reitor Danilo Marcondes de Souza Filho, Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio, Vice Reitor para Assuntos Comunitários Luiz Carlos Scavarda do Carmo, Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Pe. Francisco lvern Simó, SJ, Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Maria Clara L Bingemer, Decana do CTH Reinaldo Calixto de Campos, Decano do CTC Glsele Guimarães Cittadino, Decana do CCS Francisco de Paula Amarante Neto, Decano do CCBM Rejane Spitz, Diretor do Departamento de Artes e Design Celso Romanel, Diretor do Departamento de Engenharia Civil Otavio Leonídio, Coordenador Acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo

Editores responsáveis Ana Luiza Nobre Andrès Passaro Otavio Leonídio Editores executivos Ana Luiza Nobre Andrès Passaro Conselho Editorial Ilmar Rohloff (Departamento de História) Celso Romanel (Departamento de Engenharia Civil) Rejane Spitz (Departamento de Artes e Design) Cristina Cabral (Área de História/CAU) Pedro da Luz (Área de Urbanismo/CAU) Silvio Dias (Área de Representação/CAU) Icléa Reys Ortiz (Área de Tecnologia/CAU)

AGRADECIMENTOS João Filgueiras (Lelé), Josep Quetglas e Hermano Freitas PROJETO GRÁFICO Projetos Integrados/ Escritório Modelo de Arquitetura e Design/ PUC-Rio Bebeth Grandmasson, Supervisora de Design EQUIPE: Ana Thereza De’Carli Porto, Stella Scaglioni, Juliana Ceschini, Bruna Moniz Berford. IMPRESSÃO: Gráfica Clip O formato do periódico foi fundamentado na revista Scalae - Depócito Legal e ISNN em tramitação FRESTA Rua Marquês de São Vicente, 225/L301. CEP 22453-900. Rio de Janeiro/RJ. Brasil. fresta@arq.puc-rio.br


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