Fresta 2

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nº 2 nov /2008

distribuição gratuita

periódico do curso de arquitetura e urbanismo da PUC-Rio EDITORIAL

“Nosso acesso a fontes quase ilimitadas de energia está ameaçado pelo risco de o planeta tornar-se inabitável; mas essa situação se equilibra ao alcançarmos as portas do espaço, com a crescente possibilidade de abandonarmos nosso insular planeta e fixarmos raízes noutro” Quando foi publicada pela primeira vez em finais de 1960, essa frase não tinha o impacto que pode ter nos dias atuais. Esse texto estava na introdução do livro de Rayner Banham, “Teoria e desenho na primeira era da máquina”. É muito difícil encontrá-la nas publicações mais recentes, pois apareceu somente nas primeiras edições de língua inglesa e espanhola e foi suprimida nas edições posteriores. Haveria algo de desprezo nesse “ insular planeta”... ? Outra pérola do autor seria a afirmação de que há duas possibilidades de destino para a madeira: a primeira, construir o abrigo; porém como é contra a indústria do abrigo (e aqui existe uma referência a Buckminster Fuller), o que sugere é a segunda: tacar-lhe fogo e aquecer-se... Banham era um rebelde. As imagens do seu texto “a home is not a house” mostram um desenho seu numa casa-bolha, de plástico, dando a entender que está completamente nu, ao lado de um grande aparelho que hoje diríamos se tratar de um micro-system, mas que na época devia parecer algo como os controles computadorizados de sua casa espacial. Nu e com o controle do conforto ambiental na mão. Ao mesmo tempo em que foi se esgotando, esse discurso foi se transformando na proporção em que se acentuava a crise energética de finais de 1960, início de 1970. Há uma gloriosa saída para Banham, quando ele identifica nos edifícios dessa época um gasto considerável no que chama hardcore (instalações, estruturas e serviços) e aponta o gasto enorme que é necessário para ocultá-lo “arquitetonicamente”. O artigo “New Brutalism” que derivou no livro Brutalism, e o livro Megaestruturas foram duas condições que de certo modo alavancaram esses projetos, mérito que podemos atribuir a Banham. É firmado, assim, um discurso consistente que gira em torno das questões construtivas, das técnicas adequadas e da pesquisa tecnológica (Banham era engenheiro aeronáutico), chegando até o produtivismo e a ética da montagem. FRESTA 02 convoca uma discussão em torno da questão construtiva. Aproveitamos, assim, a aula inaugural oferecida pelo arquiteto paulista Marcos Acayaba em maio de 2007 para abordar a questão da arquitetura como processo construtivo e tecnológico e como adaptação às condições materiais e construtivas do lugar. Uma discussão iniciada dentro do próprio movimento moderno e acentuada nesses discursos de Reyner Banham e que, de uma maneira ou de outra, participaram da arquitetura paulista de 1960. Para não falar só em Brutalismo, procuramos uma tradução mais antiga de Banham, Machine aesthetes, na qual ele identifica as primeiras manifestações de índole construtiva de 1950. Banham é um grande observador da arquitetura do seu tempo e conduz uma linha de crítica que aponta o início da abordagem da arquitetura como produto, como processo construtivo, e finalmente como processo tecnológico. Seguindo esse fio condutor, há o artigo do arquiteto e professor Diego Portas que destaca o processo projetual como ética construtiva, o que está diretamente ligado ao processo de ensino de projeto do ateliê do terceiro período do DAU/PUC- Rio, ministrado então por Portas e Marcos Favero. O artigo de Ruth Verde Zein faz uma introdução histórica ou ideológica sobre o meio arquitetônico de Marcos Acayaba, rejeitando, porém, a continuidade da chamada Escola Paulista na produção atual. Apresentamos também o Projeto Final de uma agora ex-aluna do Curso de Arquiteturte Urbanismo da PUC-Rio, Marcela Marques Abla, que, orientada pelo professor Fernando Betim, projetou um sistema construtivo com madeira de refugo para uma pequena habitação experimental voltada à pesquisa ambiental. O projeto recebeu em 2007 o “Prêmio Arquiteto do Amanhã” do IARJ e o Prêmio FIRJAN “Desafio Rio Criativo”.


NARRATIVAS TECTÔNICAS - DISCRETO ELOGIO À CONSTRUÇÃO DIEGO PORTAS

Rafael Moneo prefere definir e valorizar a atitude de um arquiteto diante de um novo projeto como a atitude apropriada.1 Essa atitude, segundo Moneo, inclui a possibilidade do “esquecimento” de partes do contexto (não somente físico), supondo que determinados dados podem não trazer enriquecimento algum para o projeto. Nesse sentido, o valor e a agudeza interpretativos do projetista diante de cada situação colocam-lhe, por meio da atitude apropriada ou “pertinente”, a possibilidade de escolher o principal aspecto de sua pesquisa projetual. Estudando as obras de Marcos Acayaba, é possível imaginá-lo durante o processo de projeto, questionando-se sobre a pertinência das decisões e consolidando a estratégia projetual mais adequada, pertinente, para cada situação. Pertinência que abarca, sem dúvida, a complexa realidade da prática, difícil de retratar aqui, quando, na vontade de descrever um processo, nos vemos obrigados a posicionar decisões projetuais em uma provisória e arbitrária sequência. É fácil imaginar Marcos Acayaba buscando no lugar2 e no programa de cada edifício os dados para certas decisões formais; no entanto, a síntese e a clareza formal, sempre presentes na diversidade de sua obra, parecem se concentrar na busca de outro tipo de pertinência: a “pertinência tecnológica.” Desse modo, a estratégia projetual (ou o método) parece insistir em definir não necessariamente a tecnologia pertinente para cada situação, mas sobretudo a implementação pertinente de qualquer tecnologia escolhida. Ou seja, uma vez definida a tecnologia, a estratégia se sofistica e se aprimora desenvolvendo para cada projeto uma precisa lógica interna que guia as decisões. Essa estratégia demonstra um respeito profundo pela matéria, assim como pelo “saber” que cada elemento, peça, vínculo, junta e encontro que um sistema tecnológico trazem intrinsecamente. Assim, Marcos Acayaba experimenta e se aprofunda em diversas pesquisas que nos parecem preocupadas em narrar didaticamente o pensamento, o processo tectônico, que permite erguer cada edifício. Esse pensamento, ou processo, valoriza especialmente o ofício do arquiteto, assim como o aporte ou contribuição dos diferentes conhecimentos que lhe são fundamentais: engenheiros, serralheiros, marceneiros, etc. É esse o tipo de pesquisa que parece definir a essência dos objetos que Marcos Acayaba “constrói”, determinada, por sua vez, pela estrutura resistente. A idealização de estruturas sempre claras e sintéticas contribui para definir, de maneira mais ou menos direta, a expressão final da forma e do espaço. Quando não são diretas, as idealizações estruturais estimulam delicadamente o descobrimento do seu funcionamento como particular expressão da tectônica. O “peso” expressivo dado às estruturas se relativiza, constituindo-se em mais um mecanismo da narração tectônica; este, por outro lado, se estende a cada momento construtivo, e consequentemente, expressivo. 1 - MONEO, Rafael. Reflexiones a propósito de dos salas de concierto. El Croquis, Madri: El Croquis Editorial, n. 64, p, 172, 1994. 2 - Lugar entendido aqui, fundamentalmente, como o marco físico de intervenção, seja este natural e/ou artificial.

Na obra de Marcos Acayaba, os sistemas construtivos, frequentemente gerados a partir de módulos repetidos outorgam à arquitetura uma particular noção de unidade formal - rítmica - que podemos entender como uma recíproca legitimação formal - construtiva. O interesse que cada projeto nos traz se concentra em descobrir sua particular lógica interna manifestada a partir dos discretos processos tectônicos que vão se carregando de sentido, outorgando uma “aura de necessidade” a cada parte, bem como ao todo. Nesse sentido, cada criação instaura uma outra “aura de necessidade” que teria a ver não somente com a utilidade que esta detém - as vantagens técnicas -, mas também com a legitimidade que o próprio mecanismo impõe. Seria compreensível, portanto, que nessas buscas tectônicas – expressivas - exista uma preferência ou interesse por utilizar, adaptar ou criar tecnologias que “estimulem” ou permitam “expor” os processos construtivos. Assim, o que Helio Piñon3 chamou da “aura de necessidade” na obra de Paulo Mendes da Rocha, na obra de Marcos Acayaba parece encontrar uma outra versão, na qual a diversa e pertinente escolha tecnológica é a própria escolha expressiva, e é na aguda interpretação do complexo problema da arquitetura que esse projetista a transforma em “pertinência projetual”. Marcos Acayaba nos convida a descobrir esses momentos que invertem a lógica do projeto como ensaio da obra, para nos apresentar a obra como ensaio do projeto. Isto é, a obra como aquele momento em que o observador seria capaz de descobrir as “obsessões” que orientaram a escolha da primeira pedra, de cada elemento, de cada encontro, de cada matéria, definidos durante um compromissado processo projetual.

3 - PIÑON, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Romano Guerra, 2002. p. X.


ESTETAS DA MÁQUINA1 REYNER BANHAM

Você não precisa ser muito inteligente para perceber uma ligação entre os Novos Brutalistas e o grupo literário Angry Young Men, mas não ganha muito com isso. Ao contrário dos Angries Unanimous, que são tão ingleses e datados quanto os bilhetes de apostas da semana passada, os Brutalistas não são paroquiais. Esse termo surgiu na Escandinávia, e, embora tenha sido cunhado para fazer menção a uma equipe inglesa específica, associada aos Redbricks - Alison e Peter Smithson -, as ideias empregadas pelos Brutalistas têm circulação internacional e se mostraram eficientes em destruir a primeira organização mundial das figuras paternas da arquitetura moderna, Les Congrès Internationaux d´Architecture Moderne, ou CIAM. Uma comparação mais instrutiva seria com aquele jovem e revolucionário movimento escultórico que não possui nome mas tem sido identificável na Inglaterra desde a exposição de Paolozzi-Turnbull na galeria Hanover em 1950, e em maior extensão no continente europeu. Alguns aspectos desse movimento foram chamados de l’art brut e houve fases de colaboração íntima, entre os Smithson e Paolozzi mas com uma diferença essencial. O objetivo dos jovens escultores é, ou era, “chutar os dentes de Henry Moore”, e eles rejeitaram resolutamente aquela estética da forma pura e do entalhe que perdurou como um grande peso sobre os ombros dos escultores ingleses desde que Wilenski a propôs pela primeira vez. Os jovens escultores rejeitaram tanto as formas quanto a teoria da década de 1930; os Brutalistas rejeitaram somente as formas defendendo serem elas infiéis à teoria que aceitam, com todo seu rigor moralista, funcional e racionalista, mais ou menos conforme foi aceita pelos arquitetos progressistas durante mais de um século. Eles acreditam na verdade dos materiais, da estrutura e da função, ao contrário, asseguram eles, do que James Stirling chamou de “arquitetura branca dos anos trinta” A arquitetura branca foi largamente sustentada por um tipo de defesa dos fundamentos da doutrina funcional-racionalista que girava em torno das ideias a) de viver em uma Era da Máquina e b) do concreto armado como um material simbólico dessa época. Em algum ponto ao longo desse percurso, alguns preconceitos estéticos cruciais foram adicionados à equação com resultados que seriam encadeados mais ou menos assim, caso fosse possível reproduzi-los textualmente: Esta é uma Era da Máquina. As superfícies das máquinas são regulares e lisas. As formas das máquinas têm a simplicidade das formas derivadas do uso da régua e do compasso. O concreto armado é o material da Era da Máquina. Portanto,

O concreto armado possui uma superfície lisa e deve ser usado em formas simples, derivadas do uso da régua e do compasso. A segunda e a terceira afirmação nunca foram necessariamente verdadeiras com relação à tecnologia das máquinas, e embora o mito possa ter surgido no início da década de 1920, ele foi mantido vivo na década de 1930, quando aquelas afirmações eram obviamente falsas, por ineptos divulgadores estéticos que se apressaram em publicar analogias

mal explicadas entre maquinismo e arte abstrata. No final das contas, uma estética falsa foi imposta ao concreto, ao passo que a ideia de verdade estrutural e material sugere seu uso bruto em formas complexas e abobadadas. Uma vez que a então denominada Estética da Máquina da década de 1930 demandou um comportamento diferente do concreto, a diferença teve de ser mascarada com retórica e reboco branco. A síntese desse nonsense estético foi a inauguração dos Isokon Flats, em Lawn Road, Hampstead, um dos monumentos-chave da década da arquitetura branca e da política esquerdista. Naquela ocasião, a analogia da máquina chegou a contar com uma “cerimônia de lançamento”, mas a garrafa não foi a única coisa que se rompeu, e a força do impacto desprendeu uma grande quantidade de reboco, que caiu sobre os fotógrafos logo abaixo. Obviamente, uma tal falsificação não poderia sobreviver, mas o efeito imediato do seu desaparecimento foi uma atitude de extremo exagero que se manifesta em grande parte da atividade projetual pós-guerra e ainda se vê entre nós, nos estilos Espresso e Shoe-shop. As conexões estabelecidas pelos Brutalistas e pelo Team Ten tomaram, no entanto, uma direção oposta, abandonando o revestimento, exceto onde indicado do ponto de vista funcional. Além disso, eles foram tão honestos acerca dos materiais quanto se espera que um engenheiro o seja, e suficientemente corajosos em suas convicções maquinistas para construir com tijolos aparentes. Mas o fato de rejeitarem a Estética da Máquina levou certos estúpidos modernos a supor que eles rejeitassem a cultura tecnológica, e o fato de manifestarem um interesse por certos movimentos, tais como o Futurismo e o Expressionismo, que já existiam antes que a Praga Branca paralisasse o pensamento arquitetônico, fez com que outros estúpidos chamassem esses jovens arquitetos de “antiquados”. É preciso reconhecer que sua posição é difícil de ser entendida por aqueles que, com base nas ideias de 1930 (que são tudo o que que se pode encontrar nos livros até agora), achavam que sabiam o que era a arquitetura moderna e qual sua feição. Encontrar a jovem vanguarda admirando com igual fervor as casas camponesas de Santorini e os “cromados” dos carros de Detroit, o Cutty Sark, a casa Chiswick, os maços de cigarros Camels e a capela de Le Corbusier em Ronchamp, Pollock, Paolozzi e Volkswagens - tudo isso soa como um abandono de qualquer critério. Na verdade, não é nada disso, senão o abandono do preconceito estilístico e sua substituição pelo conceito de “estilo para o trabalho”(style for the job). Esse abandono abre caminho para uma integração mais viável do projeto (design) com o aspecto prático da existência na era da máquina.

1 - Apareceu originalmente na revista New Statesman, n. 55 (16 de agosto de 1958), p. 192-193. Tradução: Paueica Coimbra Revisão: Ana Luiza Nobre


SOBRE A NÃO RECONHECIDA PRESENÇA DE LE CORBUSIER NO BRUTALISMO PAULISTA1 RUTH VERDE ZEIN

É praticamente impossível falar da arquitetura brasileira do século XX sem se referir de alguma maneira à obra de Le Corbusier, que, no caso da Escola Carioca, ocorre de maneira absolutamente explícita, direta e referenciada. A influência corbusiana na arquitetura paulista ocorre inicialmente via a indireta contribuição da releitura carioca, cujos paradigma são disseminados por todo o País a partir dos anos 1940. Mas essa influência se dará também de forma mais direta pela assimilação da doutrina e repertório corbusianos expostos em publicações, e está presente a partir dos anos 1950 de maneira evidente na vertente Brutalista da arquitetura paulista. Vários são os motivos para essa diferenciação de posturas quanto à admissão declarada, ou não, da contribuição da obra corbusiana nas arquiteturas carioca e paulista. De um lado configura-se uma aceitação erudita e disciplinar dos princípios estilísticos da obra corbusiana por Lucio Costa, Oscar Niemeyer e demais arquitetos da Escola Carioca; de outro, percebe-se a releitura sempre atenta dessa obra, da parte de Vilanova Artigas e vários outros arquitetos paulistas, mas apenas como matéria de ensino e cultura, sem chegar a ser explicitamente aceita como guia e diretriz. As razões dessa negação são mais de ordem político-partidária que arquitetônica, provavelmente tendo como fundamento os enfoques distintos que cada grupo dava à ideia de “identidade nacional”, até por se tratar de momentos sucessivos e âmbitos geográficos distintos. O Brasil de 1929, ano da primeira visita de Le Corbusier à América do Sul, e o Brasil de 1957, ano da criação de Brasília, são dois países muito distintos. O primeiro ainda é regido por uma aristocracia de origem rural que configura uma elite cosmopolita, bem pensante e bem informada, centrada no Rio de Janeiro mas cidadã do mundo, que convive com uma massa de população provinciana e camponesa sob a qual já se faz sentir a pressão das imigrações estrangeiras; nação que, no imaginário de sua intelectualidade, se mostra como um País cuja singular identidade repousa na sua tradição colonial, e, embora ainda marcado por uma “pobreza digna”, anuncia a certeza em um futuro pleno de recursos e potencialidades ainda inexploradas. Uma geração depois o Brasil já é um País em acelerado processo de industrialização dominado economicamente por uma burguesia industrial com foco em São Paulo, onde o imigrante estrangeiro transforma-se de operariado em classe média ascendente, enquanto o trabalhador rural torna-se migrante urbano lúmpen e mão-de-obra básica para a construção civil; um País que já estava perdendo sua inocência e se vê de maneira multifacetada mas imatura: lugar excelente de um capitalismo selvagem; locus de uma economia dependente de macrodecisões globais; território da miséria urbana e rural. A afirmação de uma “identidade nacional” vai se colocar de maneira distinta em ambos os casos; e, nesse sentido, Brasília será também um catalisador tanto de esperanças de futuro como de uma nova visão, “passada a limpo”, do que pode ser a identidade nacional. Como esclarece Carlos Eduardo Dias Comas, “a concretização material dessa arquitetura brasileira (carioca) é precedida e orientada por raciocínios muito específicos sobre a identidade da arquitetura”2, na qual convive a necessidade de afirmação da peculiaridade “brasileira” a par da necessidade de “atualização” e sincronização dessa realidade com a cultura arquitetônica moderna - ou seja, na interpretação de Lucio Costa, aquela de vertente corbusiana, reconciliando magistralmente “um espírito

ao mesmo tempo nacionalista e modernizador, universalista e respeitador de tradições, que coincidia com as aspirações de cultos funcionários da Revolução de 30 e da ditadura de Getúlio Vargas”.3 Os tempos e os mestres são outros, no caso da arquitetura paulista. Prossegue a obsessão ciosa e agora um tanto xenofóbica da identidade nacional, a qual é ainda mais forte no núcleo dos arquitetos ligados a forças “progressistas”, que vão configurar a liderança e os principais quadros de uma arquitetura e Escola Paulista Brutalista nos anos 1950 a 1970. Mas agora a ideia de modernização e aceitação clara das influências apresenta-se contraditoriamente impregnada pela aguda consciência de sua consequência negativa: a de estar igualmente laborando a favor das forças do “imperialismo” e da “dependência”. Lembremos, a guerra fria estava então no seu auge. Isso afetará a arquitetura, menos no seu fazer e mais no seu discurso: ambas as facetas - nacional e universal -, que na Escola Carioca eram um todo relativamente uníssono, agora se dissociam em opostos quase irreconciliáveis. Le Corbusier não deixava de ser o mesmo arquiteto cujas obras mestras seguem sendo estudadas e reconhecidas, servindo de ponto de partida para reinterpretações locais seguras e apropriadas. Mas Le Corbusier era igualmente visto como um agente das forças potencialmente “antinacionais”: no texto “Le Corbusier e o imperialismo”, de 1951, Vilanova Artigas alerta que, “para os arquitetos progressistas do Brasil, a linguagem de Le Corbusier neste livro (Modulor) é a linguagem do pior dos inimigos do nosso povo, o imperialismo americano. Cumpre-nos repudiá-lo”4. Essa pincelada no tema da “identidade nacional” talvez já seja suficiente para compreender por que, no caso dos arquitetos paulistas não era simples nem fácil uma admissão demasiado direta da evidente influência corbusiana em suas obras. Passados outros 50 anos, alteradas grandemente as regras do jogo político mundial e ocorridas muitas outras vicissitudes na esfera da arquitetura brasileira, o Brasil de hoje tampouco é o País dos anos 1930 e 1950. Mas esse vínculo paulista com o tema da identidade nacional, elaborado sobre a base do conflito e não da conciliação, prossegue relativamente ativo, e continua afetando indiretamente, e em parte por inércia, a ainda virtual inexistência de uma apreciação objetiva da contribuição corbusiana a essa arquitetura paulista.

1 -Texto extraído do capitulo 1. 3. “Precedentes notáveis: Le Corbusier mestre da forma” da dissertação de mestrado da autora, Arquitetura brasileira, escola paulista e as casas de Paulo Mendes da Rocha. Porto Alegre PROPAR-UFRGS,2000. 2 -COMAS, C. E. D. Uma certa arquitetura moderna, experiência a reconhecer. Rio de Janeiro Arquitetura Revista/UFRJ, n. 5, p. 22. 3 -Idem, p. 24. 4 -ARTIGAS, J. B. V. Le Corbusier e o imperialismo. In: Caminhos da arquitetura. São Paulo LECH, 1 98 1. p. 59.


CONVERSA MARCOS ACAYABA

Após apresentar seus projetos na aula inaugural proferida no Campus da PUC-Rio em 3 de maio de 2007, o arquiteto Marcos Acayaba respondeu as seguintes perguntas do público: Adriano Carneiro de Mendonça: Renzo Piano diz crer que o arquiteto deve desenhar seus próprios instrumentos de trabalho, seus próprios utensílios técnicos e disciplinares. Se não se intervém sobre os instrumentos e os processos, você corre o risco de trabalhar nas margens inconsistentes que só deixam espaços para operações irrealizáveis e nostálgicas. Essa seria a sua artesania: uma espécie de volta às origens, que hoje se faz necessária em face da convencionalidade e da massificação dos processos criativos. Então, eu queria que você falasse um pouco sobre esse tema, o que seria a técnica na arquitetura do ponto de vista da arte. Marcos Acayaba: Sempre gostei muito da obra de Renzo Piano. Numa entrevista que vi com ele, teve uma passagem muito interessante em que ele contou que era de uma família de construtores. O pai dele o levava sempre à obra. Quando ele era bem pequeno, teve um dia em que viu o pessoal fazer uma forma de madeira para um baldrame. Alguns dias depois viu o pessoal misturando o concreto e preenchendo aquela forma. Mais alguns dias depois, aquilo tinha sido desenformado e virado pedra. Ele, uma criança, achou aquilo uma coisa tão fantástica, tão mágica, que nesse momento pensou “É isso que eu quero fazer”. Então, a questão de criar os próprios instrumentos tem a ver com essa relação com a ação sobre matéria concreta, que é uma coisa que para ele que vem de muito tempo. Criar os instrumentos. No nosso, a maquete da estrutura de madeira da casa protótipo que fizemos para a Bienal de São Paulo foi muito importante como como modelo. O instrumento que nós usamos para aferir e corrigir o projeto é o modelo. É diferente de maquete. Artigas fazia questão de não falar maquete jamais, de falar sempre modelo. Maquete tem a ver com aparência externa, é alguma coisa que você vai apresentar para o cliente ver como vai se parecer o edifício. Modelo é um instrumento necessário para ajudar você na concepção e aferição do projeto. Tem, por exemplo, modelo de avião para ser colocado em túnel de vento. Você testa, afere certas coisas e corrige o projeto. Aquele modelo da Bienal teve um processo de produção industrial, até porque era muito difícil fazer aquelas peças hexagonais. Encomendamos para o Helio Olga (engenheiro e construtor de estruturas de madeira) os instrumentos de corte gabaritados para cortar os perfis hexagonais nos ângulos. O processo de produção do modelo teve a ver com o próprio sistema de produção da obra, foi uma primeira aferição. Então, quando nós fazemos modelo como instrumento de aferição de projeto, eles nem sempre vão ser os mesmos. Você vai adequá-los ao caso que você está enfrentando. Acho que é isso que o Renzo Piano está querendo dizer. Eu vejo imagens nos livros e publicações de grandes peças feitas no próprio escritório dele, de ensaios de peças pré-moldadas. Eles vão testar as questões para as quais elas são concebidas,

como aqueles brises para galerias de arte em museus que ele tem feito, onde a questão é da reflexão e do controle de luz. Você só faz isso com modelo. Isso é um instrumento que nós temos que ter para a criação. O escritório dele não se chama Building Workshop? É Oficina de Construção. Quer dizer, essa ideia já está aí até na forma como ele designa o escritório dele. Adriano: Agora uma questão mais específica sobre sua experiência com a FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação). Como é que a imposição de um sistema catalogado de pré-moldados afeta ou cria restrições para o processo criativo? Talvez isso crie novas aberturas, novas riquezas para o processo. Marcos: Esse órgão do Estado de São Paulo vem fazendo escolas há muito tempo e procurando toda uma sistematização de projetos, de componentes, e uma racionalização de construção. A ideia de fazer essa escola de pré-moldados de concreto teve a ver exatamente com a qualidade da obra. Nas obras convencionais eles não tinham controle do tipo de construtora que ia ganhar a concorrência e nem sempre tinham um resultado bom. Com o pré-moldado de concreto, só podiam participar das concorrências, construtoras que tinham experiência com o assunto, ou seja, construtoras melhores. Depois, a FDE controlou a própria qualidade da obra e também a de projeto. Essa sistematização foi positiva e não acho que foi restritiva à criação. Eles publicaram um grande livro com esses projetos e não tem nenhuma escola que se pareça com outra: são todas diferentes ainda que usem o mesmo sistema de estrutura. Eu sempre tive muito interesse nessa arquitetura do componente, de preferência industrializado. Na história da arquitetura tem muitos exemplos interessantes, como o Frank Lloyd Wright, que valorizou muito essa ideia da arquitetura do componente e a relação com a indústria de elementos produzidos em série. Otávio Leonídio: Apesar de seu trabalho estar associado à Escola Paulista, para mim é evidente como ele de algum modo exorbita esse ideário, e como nós reconhecemos nele a presença de arquiteturas que são um pouco marginais na tradição da produção moderna brasileira. É claro que tem muito forte aí o Le Corbusier, mas nós vemos o Mies van der Rohe e também o Louis Kahn (que é um arquiteto que eu sei que você conhece desde muito cedo), e isso resulta em uma obra que é plural em termos formais. Você acha que é a pesquisa do material – cada um deles no seu lugar, fazendo o papel que melhor sabe fazer – que define uma espécie de núcleo essencial do seu trabalho? Ou você acha que tem algo que vai muito além disso, que teria a ver com essa espécie de síntese dessas arquiteturas do movimento moderno, tão díspares quanto Le Corbusier ou Mies, ou mesmo Wright, que é um arquiteto pouco processado pela arquitetura moderna brasileira e que nós vemos muito presente no seu trabalho? Marcos: Aprendi uma coisa quando fui levar meus


CONVERSA MARCOS ACAYABA continuação

trabalhos para o Marc Emery, que era o editor da revista L´Architecture d´Aujourd´hui. Ele tinha trabalhado com Oscar Niemeyer em praticamente todos os projetos que ele fez na França. Organizei um portfólio – isso foi em 1982 – com as poucas coisas que eu tinha para mostrar e fui à redação em Paris. Marc Emery, muito gentil, passou uma hora e meia olhando aquilo tudo atentamente e no final eu perguntei para ele: “Eu queria aproveitar você com a sua experiência... Eu às vezes vejo tudo isso em conjunto, as coisas são tão diferentes. Eu fico me perguntando... Será que...” Ele me disse: “Você está preocupado com estilo? Estilo não passa de uma categoria que os historiadores tiveram que inventar para classificar a história. Qualquer artista, em qualquer momento, estava fazendo, vamos dizer, arte contemporânea. Os estilos vieram depois. Alguém achou essa palavra ‘barroco’ para denominar uma certa produção relativamente assemelhada de um período histórico”. “O Aleijadinho não sabia que estava fazendo o barroco, não é?” E por fim ele me disse: “Esquece isso. Você faz coisas muito diferentes. Tem a ver com o lugar onde você está fazendo a obra, mas a aparência necessariamente tem diferenças. Não tem nada igual a outra coisa, mas eu consigo ver em tudo la même écriture”. É difícil traduzir exatamente: é o mesmo traço ou a mesma mão. Mais do que isso, acho que é uma questão de método. É isso que aprendi com o Artigas e por onde acho que ele tem a ver com Frank Lloyd Wright. O próprio Wright fez de tudo com todo tipo de aparência. Mas sempre como consequência de um método de trabalho e com certo compromisso que ele sempre teve com a indústria (era um arquiteto de formação politécnica, fez escola de engenharia). Esse compromisso o levou a soluções formais bastante diferenciadas e todas tinham a ver com o material. Ele dizia que cada material tem a sua própria gramática. Tem algumas obras mais conhecidas que se caracterizam por um certo desenho de estrutura muito do Artigas, mas ele fez tudo quanto é coisa, inclusive com madeira, no final. Então, a questão é o método. Quando fiz o concurso para reingresso na FAUSP, em 1994, o presidente da banca era Joaquim Guedes e ele fez exatamente essa pergunta em relação a dois projetos especificamente. “Como é que você explica que nesse projeto fez uma coisa com uma geometria tão livre, tão solta e, ao mesmo tempo, naquela casa do Hélio Olga fez uma coisa tão bem composta, tão bem resolvida, tão sintética com aquela estrutura tão rigorosa? “Eu disse a ele: “Guedes, essa casa que você acha tão livre, tão solta, é uma coisa modulada: ela tem vãos estruturais que se repetem. Agora, ela está num certo lugar - numa certa implantação, numa certa geografia - que possibilita um resultado mais livre, mais solto. A outra casa é o que é porque tinha uma condicionante de terreno muito rigorosa, muito estrita.” Em cada caso, procuro analisar todas as condicionantes: a geografia, os programas, as técnicas disponíveis. Antes de iniciar o projeto, procuro identificar qual é a melhor estratégia para resolver a obra, qual a tecnologia ou técnica construtiva, que vem a ser uma espécie de bússola. Quando eu falei em estra-

tégia de obra, Guedes me interrompeu e falou: “Anote isso porque é muito importante o que você está dizendo.” Ou seja, essa estratégia de obra é o que faz com que cada caso desemboque numa certa solução formal. Esse vem sendo o meu método de trabalho e o resultado às vezes me surpreende, vou desembocar numa coisa que não imaginava. Às vezes é até nova, quando o caso obriga. Otavio: Qual a avaliação que você faz da arquitetura brasileira contemporânea? Acho que a sua obra é especialmente instigante porque ela é muito vasta, e deve incentivar muito quem está estudando arquitetura. Esses jovens estão se metendo nesse universo que é, por um lado, um pouco ameaçador em vista das dificuldades de se praticar arquitetura, mas, por outro, pode ser muito promissor, Você acha que a prática da arquitetura no Brasil de hoje é estimulante? Marcos: Acho que ainda tem muito por fazer, e por isso é estimulante. Nós temos uma tarefa enorme aí. Tem muita dificuldade e uma situação moral do País que complica muito. De crise, de decadência geral. São problemas que vão muito além dessas nossas questões de construção do ambiente edificado. Apesar de todas essas dificuldades, vejo uma produção muito rica e diversificada, mas é evidente que nós não temos tido grandes obras decisivas e marcantes. Não tem muita coisa nova, ainda é o Oscar que faz muita coisa e isso é complicado. Tem um certo gargalo aí que está difícil de passar. A íntegra da aula inaugural de Marcos Acayaba, incluindo as ilustrações de seus projetos será publicada no caderno “Transcrições” da PUC-Rio.


SISTEMA CONSTRUTIVO EM MADEIRA ALUNA: MARCELA MARQUES ABLA / ORIENTADOR: FERNANDO BETIM

O presente trabalho consiste no desenvolvimento e aplicação de sistema construtivo que visa a racionalizar o uso de madeira exótica como recurso natural renovável, com baixo impacto ambiental. O material escolhido é o eucalipto, árvore de rápido crescimento e múltipla aplicação. O principal objetivo do projeto é oferecer com base no aproveitamento de material atualmente descartado por madeireiras, um sistema construtivo modular que permita a articulação de módulos em combinações diversas e com variadas formas e usos. O aproveitamento do material resulta em réguas de pouca espessura - 1 e 2 cm -, que, em camadas, formam os elementos estruturais, como treliças e elementos de fechamento, como painéis. Módulos de 70 x 70 x 1 cm constituem a medida básica dos painéis compostos por três camadas de peças de 1 cm, podendo ainda receber tratamento isolante térmico-acústico. A estrutura utiliza peças padronizadas de 120 x 10 x 2 cm, também em camadas através de treliças espaciais. Os módulos concebidos se articulam, formando combinações variadas, e são acopláveis para facilitar o transporte das peças após o seu processamento. A montagem é feita no local da obra, evitando a produção de resíduos (obra limpa). O sistema preserva a permeabilidade do solo, pois se apoia pontualmente no terreno, adequando-se a declividades acentuadas sem necessidade de movimentação de terra. A utilização de energia solar, através de placas coletoras, o aproveitamento da água da chuva e o sistema de biodigestor do esgoto reforçam o caráter de sustentabilidade do projeto. O programa, aqui chamado de “Casa do Pesquisador”, foi uma proposta direcionada para o Rocio, distrito de Petrópolis, corredor ecológico que liga a Reserva Biológica do Tinguá à Reserva de Araras com a altitude de 1. 082 m. Implantada a casa com orientação norte da maior água do telhado, ao abrigo da insolação direta, dos ventos e da chuva, oferece a correta fixação das placas solares coletoras e aproveita a melhor vista da cadeia de montanhas no horizonte. A casa eleva-se do terreno através de oito apoios pontuais, que compõem as treliças. A sua disposição forma pórticos que suportam tanto a edificação quanto a cobertura, mantendo-as independentes e elevadas do solo. Dois pórticos paralelos recebem o telhado e outros dois sustentam também a carga da casa, que se encontra apoiada e engastada entre vigas. A cobertura faz a amarração dos pórticos, através de treliças secundárias que servem como apoio. As águas do telhado posicionadas de forma desencontrada permitem uma boa aeração. Sobre caibros e barrotes é apoiada a cobertura de telhas planas de fibra vegetal - material leve e retornável, como todo o restante empregado.


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