Janes Jorge - Tiete o rio que a cidade perdeu - São Paulo 1890-1940

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SVMA Secretaria do Verde e Meio Ambiente


2017 Janes Jorge Título Tietê - O rio que a cidade perdeu - 1890-1940 2. ed. Projeto Gráfico e Diagramação Isabella Maria Bérgamo Bertolli Karoline Marques Coordenação Débora Pontalti Marcondes Mirna Salazar Camacho Ruth Weg Esta edição contempla as alterações introduzidas em nosso idioma conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde janeiro de 2009. ****************************************************** Jorge, Janes Tietê - O rio que a cidade perdeu 1890-1940 São Paulo, 2017 Prefixo Editorial: 98140 ISBN: 978-85-98140-15-5 Índices para catálogo sistemático: 1. Degradação Ambiental 2. Tietê, Rio – História


prefeitura da cidade de são paulo

João Doria secretaria do verde e meio ambiente

Eduardo de Castro dea | umapaz

departamento de educação ambiental universidade aberta do meio ambiente e cultura de paz

Meire Aparecida Fonseca de Abreu


historiador sensível às questões do poder e das vicissitudes do ecossistema do rio Tietê, Janes Jorge revive neste livro, com abundancia de pormenores sugestivos, o papel que tiveram a destruição das matas ciliares e a valorização das várzeas sobre o desaparecimento gradativo dos pássaros, dos peixes, da caça, que era o sustento dos moradores pobres. Brinda-nos com a história social dos ribeirinhos, dos grileiros das várzeas do Tiete, dos pequenos canoeiros que pescavam e sobreviviam da lenha e da caça, que foi abundante nas margens do rio ate a década de vinte. Crítico e interpretativo, o historiador estabelece um forte elo entre o projeto especulador das elites na urbanização de São Paulo e o povoamento das várzeas por ex-escravos expulsos do centro e, a partir de 1885, por imigrantes italianos e portugueses que sobreviviam da extração e do transporte da areia e da argila. O rio foi sendo dominado pela força dos interesses ferroviários, da industrialização, do esgoto e do lixo, que acompanharam o crescimento demográfico da cidade. Nas décadas de quarenta e cinqüenta, na favela do Canindé, muitas das casas eram construídas sobre palafitas. O fornecimento da eletricidade acabou por inverter a correnteza do rio Tietê e as obras de retificação interromperam a navegação fluvial que foi importante para o abastecimento da cidade ate a década de quarenta. O rio foi transformado num canal estreito e sujo, cujas memórias Janes Jorge resgata com argúcia ecológica para nossa leitura prazerosa e inquietante. maria odila leite da silva dias Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo.


Sumário

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Prefácio: O livro que a história ambiental ganhou 12 – 17

Apresentação 18 – 70

135 – 185

III. O Tietê e os que sofriam com sua degradação

I. O Tietê na cidade

que crescia de modo assustador

186 – 189

71 – 81 Mapas e fotografias

190 – 196

82 – 134

197 – 208

II. O Tietê na vida dos

O fim

Fontes documentais

Bibliografia

moradores 208 – 210

Agradecimentos


O livro que a história ambiental ganhou paulo henrique martinez1

o estudo empreendido por janes jorge para conhecer a relação entre o processo de urbanização da capital paulista e o principal rio que atravessa a cidade, o emblemático Tietê, nos faz pensar naquilo que a sociedade industrial destruiu. No rio que a cidade de São Paulo perdeu. A questão é das mais atuais e importantes. A tensão entre crescimento econômico e meio ambiente. As variáveis ambientais são um obstáculo ao desenvolvimento econômico? Essa indagação assombrou debates políticos e científicos desde a década de 1960. No início do século XXI, novos valores e perspectivas repõem a interrogação: pode haver desenvolvimento humano sem atenção ao meio ambiente? Navegando pelos métodos de pesquisa e de interpretação da História do Cotidiano, da História Regional, da História Ambiental e da Geografia Histórica, o leitor é apresentado a um dos momentos mais dramáticos na formação de São Paulo. No primeiro meio século de regime republicano, os paulistanos de nascimento ou por adoção, assistiram a bruscas metamorfoses na paisagem urbana e social da capital paulista. Foram muitas as rupturas com o passado. O passado da vida, do trabalho e do cotidiano na sonolenta vila dos tempos coloniais e do Império. Uma delas, estudada aqui com argúcia e competência, foi a relação dos paulistanos com o rio Tietê, seus córregos e afluentes mais caudalosos. A ação predatória sobre os espaços e os recursos naturais, os impactos sociais e ambientais que originou e as formas de sua manifestação nos cursos d’água de São Paulo revelam um singular potencial para a nossa historiografia. Este livro permite visualizar, com clareza, como o estudo 1

Professor no Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Assis/SP.

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do meio ambiente pelos historiadores constitui um objeto extremamente fecundo para a percepção e a compreensão da sociedade brasileira. Aponta, também, o lugar que a História Ambiental pode ocupar no Brasil. Esta abordagem no estudo da História emerge, sobretudo, fora da mesa de trabalho dos historiadores. Ainda que, no Brasil, temáticas ambientais tenham recebido rápida acolhida como objeto de conhecimento do passado. A duradoura presença de questões sociais como a escravidão, a pobreza, o subdesenvolvimento, a violência e a dominação política que, com pertinência, foram e são tratadas pela historiografia e pelas ciências sociais, catalisou tempo, energia e esforços interpretativos, metodológicos, de organização de fontes e acervos, de ensino e de pesquisa. Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, a Rio-92, espanou os espíritos mais e menos críticos, alimentando debates, ideias e publicações sobre o meio ambiente. A agenda educacional do país, em busca de maior sintonia com as preocupações da sociedade global, introduziu o tema do meio ambiente na formação escolar. A capacidade decrescente de absorção dos impactos ambientais pelos vários ecossistemas e a diminuição da tolerância social frente aos danos causados pelo padrão de produção e de consumo vigentes no Brasil, também dinamizou interesses no estudo do meio ambiente pelos historiadores. Essa prática historiográfica vai ganhado, assim, legitimidade entre os profissionais do ensino e da pesquisa em História. Este é um dado positivo na nossa historiografia. A História Ambiental permite enxergar as mazelas sociais abertas pela degradação ambiental e pela pilhagem econômica do espaço e dos recursos naturais, tanto no âmbito local, a cidade de São Paulo, por exemplo, como em dimensões regionais mais amplas, como a Amazônia, e no conjunto do país. Aos poucos vai se descortinando, na História do Brasil, o fato de que a violência contra a natureza foi e é precedida pela violência contra seres humanos, individual e coletivamente. A condição em que vivem indígenas, ribeirinhos, quilombolas, posseiros, caiçaras, trabalhadores rurais sem-terra, comunidades atingidas pela construção de barragens, moradores de rua, em cortiços e favelas, expõem não apenas a chaga da segregação social, mas a da voraz apropriação mercantil dos espaços, da mão-de-obra e dos recursos naturais. Essa é a maior contribuição que a História Ambiental pode oferecer para a compreensão crítica da nossa realidade social, passada e presente, e para o alargamento da atuação e do papel das ciências humanas.

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A perda de um rio surge como integrante de outras descontinuidades vividas pela comunidade estudada, de ordem demográfica, social, econômica e ambiental. E adquire amplitude nacional e internacional. São comuns as aproximações entre o rio Tietê e o Tâmisa ou o Sena, mas há também rios com dimensões extranacionais, o da Prata e o Amazonas, na América do Sul, o Reno e o Danúbio, na Europa. A história social dos rios começou a ser escrita e o presente livro constitui, desde logo, uma referência metodológica e de pesquisa empírica nessa direção. A perda do rio Tietê pelos paulistanos não foi um fenômeno isolado. Espraiou-se e degradou também o interior do estado. A capital paulista, por um lado, sugou, incessantemente, recursos naturais como pedras, areia e madeiras. Atualmente, a água das bacias hidrográficas vizinhas à região metropolitana é cobiçada para o atendimento do consumo da grande São Paulo. Por outro lado, o modelo de urbanização da capital ditou o padrão de uso e de apropriação do solo, dos recursos naturais, hídricos em particular, que foi amplificado para outras regiões do estado. O que dizer, por exemplo, das cidades de Cubatão, Jaú, Jacareí, Piracicaba, Registro e Sorocaba? E de capitais estaduais como Belo Horizonte, Recife e Manaus, igualmente cortadas por rios? O estudo das continuidades e rupturas históricas, contidas no capítulo primeiro, sugere uma pergunta: quem, sobretudo entre a população pobre, trocaria água e eletricidade pelas várzeas e córregos então existentes na bacia do Tietê? Eis, de novo, a falsa dicotomia entre desenvolvimento e meio ambiente. Se, por um lado, o cotidiano bucólico e a vida rural desapareceram, por outro, riscos à saúde pública prosseguem com as enfermidades de veiculação hídrica, calibrada pelas enchentes e pelas péssimas condições sanitárias nas margens e proximidades dos rios e córregos paulistanos. Essa é uma realidade bastante atual, sistematicamente reiterada. A descrição da degradação social e ambiental, contida nos capítulos seguintes, revela a transformação do Tietê. O rio integrado ao dia-a-dia da cidade tornou-se um rio anti-social, que desperta ojeriza e que está apartado do cotidiano positivo da população. As novas sociabilidades surgidas na primeira metade do século XX, com as ferrovias, os bondes elétricos, os esportes náuticos, a atividade industrial, a presença e a diversidade de estrangeiros, músicas e notícias no rádio, e os impactos ambientais que desencadearam na capital paulista, afetaram também as sensibilidades individuais e coletivas. Aqui, o estudo da História ganha realce. E se o ga-

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nho intelectual, metodológico e historiográfico é relevante, o livro exibe ainda o ganho social da pesquisa e dos resultados obtidos. A gestão dos recursos hídricos, no Brasil, está confiada aos Comitês de Bacia Hidrográfica. Esses comitês contam com a participação de representantes dos poderes públicos das três esferas de governo e da sociedade civil. Compete a eles zelar pela disponibilidade e pela qualidade das águas na respectiva bacia hidrográfica. Uma política ambiental estreitamente vinculada às práticas de cidadania. Esta, por sua vez, encontra na educação escolar importante base de sustentação. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental e médio estão voltados para a formação do indivíduo e do cidadão. Essas iniciativas nas políticas públicas revelam a precedência do Estado sobre a sociedade no enfrentamento dos problemas ambientais. A preocupação governamental deriva antes de exigências de instituições internacionais e do mercado consumidor dos países mais industrializados. Em geral, estes são regidos por padrões e critérios ambientais na concessão de empréstimos e na ação dos investidores. É a atração de investimentos internacionais e o acesso aos mercados externos, mais do que a consciência das continuidades e rupturas nas relações entre a sociedade e o mundo natural, que move a realidade ambiental no Brasil. Essa mesma variável explica a baixa eficácia que a legislação ambiental alcança no país, em que pese suas indiscutíveis qualidades jurídicas e seu pioneirismo. Assistimos, então, à monótona repetição de situações históricas ancestrais na ocupação do espaço territorial brasileiro, no uso e na apropriação dos recursos naturais e na gestão do trabalho. Este livro aporta conhecimentos sobre as mudanças e as permanências na história ambiental brasileira. Uma oportuna contribuição para a capacitação de recursos humanos e qualificação da cidadania. Em nosso sistema de ensino há lacunas pedagógicas, deficiências na formação de professores e projetos educativos das Secretarias de Educação contrastam com o alcance daqueles gerados no âmbito das próprias escolas. Esse cenário faz com que a questão da formação do indivíduo e da cidadania avance para o centro do palco. A consciência crítica, porém, desponta como prioridade, diante da promoção da mudança de hábitos e de costumes. Para conhecer criticamente, é necessário gerar dados e informações, desenvolver análises, elaborar diagnósticos, estabelecer indicadores seguros e avaliações rigorosas sobre o presente e o passado de uma sociedade.

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São requisitos vitais para a busca de sustentabilidade ambiental e do desenvolvimento humano. Estes são fundamentais para aprimorar a participação política, os processos decisórios e para superar resistências institucionais na implementação da Agenda 21, por exemplo. Retorno, assim, ao início dessa derradeira discussão. A participação social no debate global e na gestão ambiental, local e regional, esparrama as políticas ambientais para todos os níveis da vida social, da administração pública, das empresas e dos sistemas de organização do poder político. Ao promover a identificação e o questionamento das alternativas adotadas e preteridas nas intervenções humanas ocorridas na bacia do alto Tietê, este livro nos leva a refletir sobre a formação e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. É certo que os méritos que apontei deveriam ser ponderados, não fosse Janes Jorge um historiador apaixonado pelo seu ofício. Profissional meticuloso, dedicado e perseverante, ele nos proporcionou um belo e importante livro, escancaradamente aberto para o futuro. assis, março de 2006

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Apresentação

os moradores de são paulo vivem afastados do rio tietê. Transformado em um canal de esgotos, receptáculo de todo tipo de sujeira, com suas águas totalmente poluídas, isolado por pistas expressas de automóveis que saturam suas margens de barulho e fuligem, o antigo rio cheio de vida e com trechos muito belos tornou-se um dos lugares mais feios e inóspitos da cidade. Tragicamente o mesmo ocorreu com a maioria dos rios e córregos paulistanos, o que expressa como o processo de urbanização de São Paulo, mercantil e elitista ao extremo, degradou o ambiente. E embora o Tietê continue a ser imprescindível ao funcionamento da cidade e à economia do país, drenando a metrópole e cedendo suas antigas várzeas para o transporte automotivo, o rio com o qual muitos dos moradores um dia tiveram uma relação direta e calorosa não existe mais. A arborização do beira-rio em 2006 alegrou um pouco essa triste paisagem, mas, por si só, não será capaz de transformar tal situação. Diante disso, a perspectiva histórica ganha importância pois o impacto social causado pela degradação do Tietê não pode ser dimensionado apenas a partir de uma observação restrita aos dias atuais. Ou seja, é impossível avaliar o quanto São Paulo perdeu ao degradar seu principal rio, sem antes saber o lugar ocupado outrora pelo Tietê na vida de seus moradores. Foi esse o ponto de partida da pesquisa que originou este livro, cuja abordagem e parâmetros teórico-metodológicos eram os da história social do cotidiano tal qual discutidos pela professora Maria Odila Leite da Silva Dias em seus trabalhos pioneiros.1 A pesquisa se balizava ainda em dois livros sobre a cidade de São Paulo, o de Maria Inez Machado Borges Dias, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Brasiliense. 1984; idem “Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea” In: Trabalhos da Memória, Projeto História n° 17, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Depto. de História da PUC/SP, nov. 1998.

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Pinto e o de Nicolau Sevcenko. O primeiro, ao reconstituir as condições de vida das classes populares entre 1890 e 1915, já indicava a caça, a pesca e a coleta como atividades fundamentais para a vida na cidade; o segundo, dedicado a entender a sociedade e a cultura na década de 1920, apresenta como um de seus eixos narrativos a urbanização paulistana, com destaque para os impactos da especulação e das intervenções urbanas no cotidiano da população.2 A memória familiar dava alento ao projeto. De fato, o rio Tietê sempre esteve presente nas lembranças de meus pais, tios e tias (e mesmo de outros conhecidos mais velhos) sobre seus tempos de infância e juventude. Todos eles, moradores do então bairro popular de Vila Maria dos anos 1940 e 1950, que se formou em plena várzea inundável do Tietê para depois avançar rumo aos morros adjacentes. O Tietê fazia a divisa entre a Vila Maria, na margem direita, e o bairro do Belenzinho, junto ao Brás, na margem esquerda. Nessas recordações há homens passando as madrugadas acampados à beira do rio, pescando, para no dia seguinte levarem para a casa-os peixes que seriam consumidos pelas famílias numerosas e carentes. Outros aparecem cuidando de chácaras ao lado da esposa e dos filhos ou mourejando ao lado de outros trabalhadores na extração de areia ou pedregulho nas várzeas, atividade que criava um labirinto de lagoas de todos os tamanhos. Nessas lagoas e no próprio rio, moleques e rapazes caçavam aves aquáticas e rãs para comer com os irmãos, primos e amigos, aprendiam a nadar e se divertiam nos dias quentes. Nadar tinha de ser pelado e só para os homens. Raras eram as mulheres do bairro, então, que julgavam apropriação ou possível fazer o mesmo. Elas faziam, sim, passeios à beira do rio e das lagoas, e não deixavam de ter suas brincadeiras. Em um bairro de trabalhadores pobres como a Vila Maria, na época sem água, esgoto ou ruas pavimentadas, o Tietê, embora agonizante, fazia uma grande diferença. Como os rios e córregos paulistanos e suas várzeas foram se degradando mais intensamente nos trechos próximos ou a jusante das regiões da cidade que tinham uma ocupação mais densa, o que não era o caso da Vila Maria nos anos 1940, os moradores desse bairro puderam usufruir o 2 PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: EdUSP, 1994; SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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Tietê por mais tempo. Isso não significa que o rio não sofresse agressões em vários pontos, pelo contrário, mas sim que o impacto dessas agressões variava e era percebido diferentemente dependendo da região da cidade considerada. Dessa forma, em algumas delas a degradação do Tietê foi constatada mais cedo, em outras mais tarde, o que condicionou a permanência ou o abandono de práticas sociais costumeiras. À medida que as atividades vinculadas ao rio eram investigadas, quando da elaboração do projeto de pesquisa em meados de 1999, num momento de crescente interesse pelo tema em virtude da escassez de água potável na cidade e no planeta; e pela expectativa criada em torno do projeto de despoluição do Tietê, iniciado em 1992, constatou-se a necessidade de investigar os processos que levaram à degradação do rio. Primeiro porque tal questionamento aparece como que de imediato em qualquer reflexão sobre o Tietê, ainda que esta seja breve. Mas, principalmente, pelo fato e essa degradação já ser uma realidade no período em estudo, condicionando as práticas no Tietê, que muitas vezes, também causavam impactos ambientais. Assim, ao lado da história social do cotidiano, foi preciso dialogar com a história ambiental ou ecológica, linha de pesquisa incipiente no Brasil, mas já conhecida na realidade universitária de São Paulo, especialmente pelos livros de Keith Thomas e Warren Dean e pelos artigos de José Augusto Drumond, e Donald Worster3; foi necessário investigar a cidade da perspectiva do desenvolvimento urbano, o que levou ao estudo de urbanistas e geógrafos. Aqui, leitura fundamental foi Raquel Rolnik que analisou as formas concretas de produção e apropriação do espaço urbano em São Paulo, indicando como o mercado e a legalidade urbana ajudaram a criar uma cidade marcada pela extrema desigualdade social.4 Os poucos trabalhos sobre o Tietê então disponíveis foram de inestimável ajuda. História do Rio Tietê, de Mello Nóbrega, publicado pela primeira vez em 1947, foi uma das primeiras leituras. A professora Odete Carvalho de Lima Seabra, em sua tese de doutorado, indicou os interesses 3 Dean, Warren. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo; Companhia das Letras, 1997; O Brasil e a luta pela borracha. São Paulo: Editora Nobel, 1990. THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo; Companhia das Letras, 1996; WORSTER, Donald “Para fazer história ambiental”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991; Drummond, José Augusto. “A História Ambiental: temas e fontes de pesquisa” In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991.

Rolnik, Raquel. A cidade e alei: Legislado, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, 1997.

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que nortearam a canalização e a retificação dos rios Tietê e Pinheiros e a apropriação de suas várzeas, transformadas em mercadoria. Além disso, apresenta passagens instigantes sobre a vida social nos rios paulistanos. Em Do Lendário Anhembi ao Poluído Tietê, o biólogo e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Aristides Almeida Rocha, discute os processos que causaram a destruição do rio em um texto permeado por passagens históricas e literárias.5 Por fim, obras clássicas de Caio Prado Jr., como A Formação do Brasil Contemporâneo e São Paulo: Geografia e História, e de Sérgio Buarque de Holanda, como Monções e Caminhos e Fronteiras, com análises e interpretações sobre o modo como sociedade e natureza interagiram em terras brasileiras ao longo do tempo, demonstraram como esse era um domínio aberto ao historiador e que poderia ser estudado a partir de diferentes enfoques.6 Desse modo, teve início uma pesquisa cujos objetivos eram recuperar o lugar do Tietê no cotidiano dos moradores de São Paulo, entender de que forma os processos relacionados à urbanização paulistana degradaram o principal rio da cidade e identificar os impactos socioambientais daí decorrentes entre os anos de 1890 e 1940. Os marcos temporais escolhidos delimitam um período em que a cidade, sacudida por inúmeras, simultâneas e intensas transformações, iniciou p processo que a levaria ao grupo das grandes metrópoles mundiais e, nesse contexto, a reconfigurar radicalmente toda a sua bacia hidrográfica o que explica muito dos graves problemas atuais. Assim, se por volta de 1890 cada vez mais moradores da cidade se aproximavam do Tietê, ao redor de 1940 os mesmos começavam a fazer o movimento inverso, mas esse intervalo marcou a história da cidade e de sua população. Em 1893, dando seqüência a estudos iniciados três anos antes, houve uma frustrada tentativa de intervenção geral no leito do Tietê, com o objetivo de retificar o seu traçado sinuoso, parte de um projeto mais am5 Nóbrega, Mello. História do Rio Tietê. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1981; Seabra, Odette Carvalho de Lima. “Meandros dos Rios nos Meandros do Poder. Tietê e Pinheiros; Valorização dos Rios e das Várzeas na Cidade de São Pauio.” São Paulo; Tese de Doutorado, Depto. de Geografia da FFLCH-USP, 1987; Rocha, Aristides Almeida. Do Lendário Anhembi ao Poluído Tietê. São Paulo: EdUSP, 1991.

Prado Júnior, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo; Editora Brasiüense, 1966; Holanda, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo; Editora Brasiliense, 1990; Caminhos e Fronteiras. São Paulo; Companhia das Letras, 1994.

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plo de sanear a cidade. Em 1940 avançavam as obras de um novo projeto de retificação, que legaria a São Paulo a atual conformação geográfica do rio e de suas margens. Embora o início da retificação por si só não tenha alterado de imediato o uso social do Tietê em toda a sua extensão, ela já indicava mudanças profundas para o futuro, pois junto a outros fatores montagem do sistema hidrelétrico e viário, a ausência de áreas de lazer e de uma rede de coleta e tratamento de esgoto - já anunciava quais seriam as prioridades estabelecidas para o uso do rio nos anos seguintes. A documentação utilizada na pesquisa, relatos de viajantes; crônicas e memórias sobre a cidade; documentos oficiais de âmbito municipal, estadual e federal; jornais; periódicos técnicos e científicos e iconografia, indicou que muito do que ocorria Tietê acontecia também no Tamanduateí, Pinheiros, Aricanduva e outros cursos d’água de São Paulo. Ficou claro, assim, que embora mantendo-se o Tietê como eixo do trabalho, não faria sentido excluir os demais rios e córregos da cidade, embora de forma pontual devido aos limites que um trabalho individual impõe. Ao se falar do Tietê e de outros rios em São Paulo é preciso lembrar que todos eles compõem a bacia hidrográfica conhecida atualmente como Alto Tietê, que se estende das nascentes em Salesópolis até a barragem de Rasgão, em Pirapora do Bom Jesus, drenando uma área de 5.985 km² e na qual vivem cerca de 18 milhões de pessoas. Do ponto de vista historiográfico, acredita-se que a pesquisa realizada ilumina aspectos pouco estudados e conhecidos da história social de São Paulo, como a vida de sua população ribeirinha e as diferentes formas de exploração dos recursos naturais oferecidos pelo Tietê e outros rios da cidade. Além disso, ao problematizar o relacionamento existente entre a cidade, os moradores e os rios, ajuda a compor uma história da urbanização paulistana, seus impasses tensões e particularidades, tarefa que tem atraído muitos historiadores. Por fim, pretende-se contribuir com um exemplo prático para a reflexão sobre o lugar da história no debate ambiental no Brasil. Entre 1890 e 1940 o relacionamento entre os moradores de São Paulo e o Tietê foi intenso e abrangente, pois o rio acolhia uma infi-nidade de práticas que compreendiam diferentes dimensões da vida social e fornecia recursos naturais imprescindíveis ao processo de urbanização paulistano. Em alguns casos tais práticas eram novas, o esporte é um bom exemplo disso, em outros, seculares, como a pesca. No final do período em estudo,

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embora o rio ainda não estivesse, em seu trecho paulistano, totalmente degradado, a sinergia que levaria a sua destruição, já havia se formado e projetaria seus efeitos destrutivos nas décadas seguintes, embora acrescida de novos elementos. O processo de degradação e a perda do Tietê por parte dos moradores, uma das mais significativas descontinuidades históricas em São Paulo, se prejudicou a maior parte da população da cidade, afetou sobretudo as classes populares, em cujas vidas o Tietê e seus afluentes ocupavam um lugar central.

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I.

O TietĂŞ na cidade que crescia de modo assustador

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em 25 de outubro de 1903, josé joaquim de freitas, o fiscal de rios da cidade, apresentou ao prefeito de São Paulo, Antonio Prado, um relatório. Não como aqueles que anualmente fazia, ao menos desde 1893, nos quais informava sobre as atividades que exercera durante o período findo. Não. Ao invés de relatar a invasão de terrenos municipais nas várzeas ou listar o número de licenças concedidas à canoas de pesca e outras ocorrências cotidianas, o relatório dedicava-se inteiramente a fazer um alerta e tinha um tom grave. Apesar disso, começava por demonstrar os benefícios do rio Tietê à cidade:

No exercício do honroso cargo que me incumbe de fiscalizar os rios do município da capital, repetidas vezes, quase diariamente, tenho de voltar minha atenção para o rio Tietê. Esta corrente é de importância vital para a cidade de São Paulo. Do seu leito extraem a areia e o pedregulho; das margens, o tijolo e a telha; das várzeas, muita da hortaliça que abastece o mercado; dá o transporte mais economico à todos esses produtos, e, agora, começa a propaganda no sentido de serem as águas aproveitadas para o líquido da alimentação7

No entanto, para José Joaquim de Freitas, isso tudo não era o mais importante, já que:

7 Relatório de 1904 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia Vanorden & Co., 1905, p. 26-28.


o grande destino, a maior servidão dessa riqueza inestimável, está na drenagem do solo e principalmente dos esgotos dessa aglomeração humana que cresce rapidamente e até de modo assustador. É nessa função que o rio pode causar o maior serviço, como também pode causar o maior dano. O Tietê, puro, capaz de transportar as imundícies que lhe são confiadas, é o saneamento, poluído, sobrecarregado de detritos que se vão sedimentando e putrefando será o aniquilamento, a população em fuga. De há muito acompanho, pari passu, as medidas providenciais que a administração vai esforçadamente tomando ou planejando para o saneamento da cidade e bem-estar de seus habitantes. De há muito me arreceio pela poluição do Tietê, e espero pelo remédio contra esse mal. Mas há dois anos que esse receio se tornou pavor, e hoje sinto necessidade de chamar a zelosa atenção do sr. dr. Prefeito, para que reclame dos poderes competentes a solução desse problema de vida ou morte para S. Paulo.

Cabe notar nas palavras de José Joaquim de Freitas como o mesmo Tietê poderia ser fonte de vida ou causa de morte, por conta da forma como a cidade se relacionaria com o rio. De fato, o contraste entre as duas realidades, o Tietê vivo, utilizado de maneira intensa e abrangente, e os crescentes indícios de sua degradação, devia acentuar o desgosto daquele que antevia um futuro calamitoso. Provavelmente o fiscal conhecia ao menos alguns casos de rios europeus ou norte-americanos destruídos pelo crescimento desmedido das cidades ou pela multiplicação das indústrias. Em Manchester, centro fabril inglês com o qual São Paulo seria comparada com orgulho à medida em que se industrializava, o rio Irwell era descrito em 1862 como um “rio infeliz” que “poucas milhas acima é um belo curso d’água, com árvores a pender sobre as suas margens e franjas de relva verde a delinear as suas barrancas” mas “que perde sua categoria ao passar por entre moinhos e usinas”, pois:

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Há miríades de coisas sujas que lhe são dadas a lavar, e enquanto vagões de venenos das fábricas de tintas e dos pátios de alvejamento caem nele, para que os leve para longe, as caldeiras de vapor nele descarregam o seu conteúdo efervescente, e ele arrasta e conduz as suas fétidas impurezas; até certa extensão, ele continua correndo - ora entre paredes imundas, ora sob precipícios de granito vermelho - consideravelmente menos um rio do que uma corrente de dejetos líquidos.8

Um século depois, as palavras aplicadas ao rio Irwell, com pequenas alterações, poderiam descrever a condição do Tietê em São Paulo. Mas, ainda assim, mesmo quando estivesse totalmente degradado, o Tietê continuaria a ser imprescindível à cidade: suas águas afastando o esgoto e acionando usinas hidrelétricas, suas margens cedendo espaço para prédios e vias de transporte. Para o fiscal de rios, no início do século XX, a condição sanitária do Tietê era realmente preocupante, pois segundo informava, no tempo de seca, em diversos pontos do rio, “grandes ilhas de lodo” ficavam “a descoberto, em ativa fermentação”, nas quais se viam bolhas “que se levantam e rebentam para escapamento dos gases”. Ilhas de lodo que cresciam e se multiplicavam, formadas pela “matéria dos esgotos que a corrente minguada na seca, e quase sem velocidade, não pode acarretar”. Na vazante das repontas do Tietê, “principalmente de dezembro a fevereiro”, notava-se, em trechos da várzea, depósitos de lodo pútrido, que “não são mais do que a matéria dos esgotos derramada sobre as várzeas e acumulando-se principalmente nas depressões dos antigos barreiros do Bom Retiro”. Exalando maus cheiros, ficavam cobertos por moscas e pernilongos que dali eram “atirados para o centro da cidade ou para os diversos arrabaldes, conforme a direção do vento”. Assim, tinha-se “no rio pouco abaixo da barra do Tamanduateí, e dentro mesmo da cidade, no bairro do Bom Retiro, poderosos e crescentes focos de infecção”. Isso porque “as bocas dos esgotos situadas, bem dizer, no centro da cidade, encontram uma correnteza sem velocidade e, parece-nos, agora já insuficiente, no tempo das secas, para diluir o líquido imundo dos esgotos”. Com as chuvas, “as águas 8 Palavras de Hugh Miller, citadas por Munford, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo; Martins Fontes, 2004, p. 497.

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se avolumam, o rio derrama pelas várzeas a matéria em suspensão, que vai se sedimentando, e, na vazante, fica exposta a fermentar”. Lembrava ainda o fiscal que para impedir ou minorar “o extravasamento fora do leito” o governo “planeou a retificação do rio” e começara mesmo obras dos canais em certos pontos do Tietê, mas apenas o canal de Inhaúma já havia sido terminado e obtivera algum êxito, pois conseguira “melhorar as condições do rio, na extensão de mais de um quilômetro”. Contudo, José de Freitas acreditava com base em cálculos da carga de esgoto e de vazão que mesmo “bem aumentada a velocidade do rio” ainda sim “a descarga do Tietê seria insuficiente para diluir até a inocuidade o esgoto de S. Paulo”. Em 1903, segundo o fiscal de rios havia em São Paulo “três jatos de esgotos”: o la na barra do Carriel (Ponte Pequena); o 2° na barra do Tamanduateí, o qual, “logo para baixo”, criava “as grandes ilhas que lá ficam à mostra!” e o 3° é no lugar conhecido como Minhocas, em frente ao Bom Retiro. Como depois da confluência com o rio Pinheiros, o volume de águas do Tietê quase dobrava, prolongar os encanamentos da rede de esgotos até aquela paragem, “seria talvez o remédio temporário, pois que a população cresce muito rapidamente. Seria mesmo indispensável levá-los abaixo do estancamento na represa do Parnaíba. Ora, semelhante obra na extensão de mais de 30 quilômetros, seria dispendiosíssima”. Por fim, conluia o seu relatório sobre a condição sanitária do Tietê sem hesitação:

Portanto, parece-nos que a única solução será o tratamento das matérias dos esgotos, para purificá-los antes de lançar no rio. O que, por certo, não pode continuar, sob a pena de irrupção de uma catástrofe epidêmica, é o sistema atual. Estou convencido de que é esse o problema mais momentoso de S. Paulo. E, vendo a todo instante as provas da iminência do grande perigo para esta capital, apresso-me em apresentar-vos essas ligeira informações.

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O prefeito Antonio Prado repassou o documento elaborado por José Joaquim de Freitas ao Secretário da Agricultura, Comércio e Obras, já que:

da sucinta, mas clara exposição das condições atuais do rio Tietê, segundo descreve com verdade o empregado municipal, decorre a imprescindível e urgente necessidade de providências, que devem ser tomadas pelo governo do Estado, no sentido de evitar as funestas conseqüências que forçosamente resultarão para a saúde pública da continuação desse estado de coisa.9

Como se vê, os temores do fiscal de rios eram compartilhados por muitos dos homens letrados do período. Em suas palavras ecoam as teorias científicas ocidentais que defendiam a origem “miasmática” das doenças, ou seja, a estagnação e putrefação da matéria e suas emanações, formariam “miasmas”, causadores de males e de pestes. Daí o “Iodo pútrido” do Tietê, em “ativa fermentação” ser um foco de infecção tão perigoso à cidade. Tal receio não era novo. Em 18 de novembro de 1866, o semanário O Cabrião, crítico mordaz e bem-humorado das mazelas paulistanas e do poder constituído afirmava que “a câmara atendeu ao clamor público, mandando entulhar o rio Tamanduateí, verdadeiro foco de miasmas, que circundava a cidade”. Em 27 de janeiro de 1890, o médico Caetano de Campos, em um debate público sobre o melhor projeto para a salubridade e “aformose- amento” da Várzea do Carmo, que ficava junto ao centro da cidade, à beira do rio Tamanduateí, apontava que:

Várzea do Carmo em seu estado atual é um vastíssimo foco de infecção para a cidade alta, e a menor ondulação da atmosfera atira sobre esta todas as emanações pestilenciais que ali se originam nos grandes monturos de lixo, nos corpos dos animais mortos e nas poças de água estagnada (...) Para prová-lo a minha consciência de médico tenho minha prática de Relatório de 1904 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia Vanorden & Co., 1905, p. 26.

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quase 20 anos, durante a qual tenho visto numerosos casos de febre grave oriunda daquela podridão.10

Foi na segunda metade do século XIX, que experimentos de Pasteur e de outros cientistas, comprovaram que muitas doenças eram causadas por microrganismos e não por miasmas.11 Contudo, no Brasil, e, é provável, em outras partes do globo onde a influência européia se fazia sentir, as duas concepções coexistiram ora em conflito aberto, ora em harmonioso ecletismo, defendidas por homens de erudição e reconhecimento público - talvez a referência do fiscal de rios aos mosquitos e moscas, vetores de agentes patogênicos significasse que ele também admitia a contaminação por microrganismos.12 Mas a extrema preocupação com a salubridade da cidade e dos seus rios não decorria apenas do debate científico, mas principalmente de uma realidade trágica; endemias e epidemias que flagelavam os habitantes das cidades brasileiras. E na década de 1890, doenças contagiosas desafiavam os tempos de progresso prometidos ela economia cafeeira, pois atingiam especialmente os férteis municípios do interior paulista, o porto de Santos, e a própria cidade do Rio de Janeiro, a capital da República. Ou seja, tudo aquilo que era fundamental para o funcionamento do complexo agroexportador cafeeiro, em franca expansão, sustentáculo da economia e da elite política paulista. As pestes dizimavam a mão-de-obra imigrante A Várzea do Carmo. Pareceres de Engenheiros, Jurisconsultos e de Médicos sobre a proposta dos Drs. A. C. Miranda e Samuel Malfatti escolhida pela Câmara Municipal. Opinião da Imprensa. São Paulo: Leroy King Bookwalter, Typografia King, 1890, p. 42; Cabrião: seminário humorístico. Editado por Ângelo Agostini, Américo Campos e Antônio Manoel dos Reis: 1866-1867/ introdução de Délio Freire dos Santos - 2ª ed. ver. e ampl. - São Paulo: Editora Unesp; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 58.

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11 O Brasil não ficou alheio a tais descobertas que deram notoriedade mundial ao cientista francês e seus pares. Em 1892 um dos seus mais afamados divulgadores no país, Oswaldo Cruz, aos 20 anos de idade, defendeu a tese “A veiculação microbiana pela água” na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; ele que foi o primeiro brasileiro a estudar no Instituto Pasteur na cidade de Paris, França. Marcolin, Neldson. “Um inicio promissor”, In: Pesquisa Fapesp, n. 87, maio de 2003, p. 10-11; Branco, Samuel Murgel. “Agua, Meio Ambiente e Saúde” In: Rebouças, Aldo da Cunha; Braga, Benedito; Tundusi, José Galizia (orgs.) Águas doces no Brasil - Capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras Editora, 1999, p. 229-230.

Ribeiro, Maria Alice Rosa. História sem fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo; Editora Unesp, 1993, p. 35

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e perturbavam o seu fluxo, inoculando ainda mais desconfiança em investidores internacionais, sócios da este nativa nos negócios que envolviam a produção e distribuição do café no mercado mundial.13 Em 1890, logo após os interesses da cafeicultura assumirem plenamente o poder em São Paulo, foi criada a “Comissão de Saneamento das Várzeas”, sob a chefia dos engenheiros Theodoro Sampaio e Paula Souza, que deu lugar, em 1892, à Comissão de Saneamento do Estado, liderada pelo engenheiro João Pereira Ferraz - oficializada em um ato nas proximidades da Ponte Grande no Tietê. Na capital paulista, a comissão realizou estudos minuciosos e propôs a retificação do Tietê, desde a Ponte Grande até a localidade de Osasco, começando, em 1893, a abertura do “canal de Osasco”, com 1.260 metros de extensão, mas que somente seria terminado em 1941. Tiveram início também novas obras de retificação do Tamanduateí, no trecho próximo à área central da cidade, trecho este que desde o último quartel do século 18 sofria intervenções. Ainda no Tietê, a comissão abriu o canal do Anastácio, com 620 metros, o de Inhaúma, com 1.200 metros e procurou desobstruir o leito do rio na altura dos quilômetros 16 e 18 da Estrada de Ferro Sorocabana.14 Acreditava-se que os canais dariam mais velocidade ao Tietê evitando a perigosa estagnação das águas poluídas. Contudo, segundo o fiscal José Joaquim de Freitas, o canal do Anastácio não fora concluído, de forma que, se na seca as águas do Tietê corriam por ele, durante as cheias retomavam seu antigo leito sinuoso. Já a “vala” aberta na altura da Sorocabana, somente recebia as águas do rio na época das cheias. Que era preciso intervir nos cursos d’água paulistanos não parecia haver dúvida no final do século XIX, ao menos para as autoridades, já que o tema era recorrente nos documentos oficiais, como indica, entre outros, o relatório de 1887, apresentado à Assembléia Legislativa pelo presidente da província, o Barão de Parnaíba:

Uma outra obra, não tanto de embelezamento, como medida de higiene pública, também foi mandado estudar. A re13 Sevcenko, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na República Velha. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 28-29.

Silva, Lysandro Pereira. Relatório - Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1950, p. 38-39; Tomás, Elaine. “O Tietê, o Higienismo e as Transformações na Cidade de São Paulo (1890-1930)” Florianópolis: Dissertação de Mestrado, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 112 e 55.

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tificação e coberta do leito do Anhangabaú - cujo orçamento elevou a quantia de 450 contos. No orçamento vigente autorizastes o governo a despender até a quantia de 50 contos com a desobstrução, canalização e regularização do leito do rio Tamanduateí e, com o arrasamento das cachoeiras do rio Tietê, nos lugares denominados Inhaúma e Casa Verde (...) Entendi, porém, que não devia tomar responsabilidade de iniciar qualquer obra, usando autorização contida no orçamento vigente, porque precisando a Província de outros melhoramentos de maior importância e utilidade, a Assembléia Legislativa Provincial, assim entendendo, poderia deixar de continuar a votar a verba para este fim.15

Com a República e o regime federativo, o governo do Estado de São Paulo tinha mais autonomia e recursos do que na época do império escravista, o que, somado ao auge da prosperidade cafeeira, incentivava a ação estatal. Afinal, era preciso debelar males terríveis, como a febre amarela, que, na década de 1890, flagelava inúmeras localidades paulistas, inclusive as mais prósperas, como Ribeirão Preto, Sorocaba e Campinas. Nesta última, em 1889, os moradores abandonaram a cidade com medo do “pavoroso espectro amarelo” que mataria mais 1.200 pessoas, e que retornou em 1892 ainda mais forte - como se vê, na época, quando se falava na “população em fuga”, não se tratava de mera retórica. Em 1893, alguns casos de febre amarela foram registrados na capital paulista e muitos acreditaram, então, que uma grande epidemia era iminente.16 Houve quem visse o “grande surto de obras de saneamento e as retificações do Tietê e do Tamanduateí” como resultado da luta contra a febre amarela, também conhecida, em fins do século XIX, como tifo icteróide. Na década de 1890, acreditava-se que ela fosse causada por ingestão de água poluída ou por contato direto.”17 Em 1903, depois de Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da província Barão deParnahyba no dia 17 de janeiro de 1887. São Paulo: Typographiaa Vapor de Jorge Seckler & Cia., 1887, p. 117-118.

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16 Love, Joseph. A Locomotiva São Paulo na federação brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.39-39; Ribeiro op. cit., p. 35; Branco, op. cit. 71-72, 132. 17

“O médico Eduardo Guimarães, no relatório da Comissão de Saneamento do Estado de

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anos de pesquisa, Emilio Ribas e Adolfo Lutz, respectivamente, diretores do Serviço Sanitário e do Instituto Bacteriológico confirmaria, através de experimentos e análises, que o mosquito era mesmo o vetor dá febre amarela - o próprio Lutz deixou-se picar pelo Aedes aegypti corroborando, de forma pioneira, a Comissão Militar Norte-Americana em Cuba, que lançara tal teoria. Assim, a profilaxia devia centrar-se na extinção dos criadouros de mosquitos. Os sucessos paulistas na saúde pública serviriam de modelo para os que pretendiam sanear a cidade do Rio de Janeiro, a capital da República.18 Nesse contexto de fortalecimento do governo estadual, epidemias e discussões científicas parecem explicar também porque, em 1893, o chefe do executivo paulista. Prudente de Moraes, encampou a Cia. Cantareira, um consórcio de capitalistas nacionais e de engenheiros ingleses, que detinha, desde 1877, a concessão dos serviços de água e esgoto na cidade de São Paulo, mas que deixara de cumprir suas obrigações contratuais de expansão da rede e da qualidade dos serviços.19 Em 1897, os trabalhos da Comissão de Saneamento das Várzeas foram praticamente paralisados. O relatório da Secretaria da Agricultura afirmava que se tratava apenas de “um adiamento”, as obras seriam retomadas “logo que o Tesouro se ache em condições de suportar o dispêndio delas resultante”. Isso não aconteceu, e no ano seguinte, a comissão foi dissolvida.20 Os preços do café no mercado mundial entraram em queda a partir de 1894, em virtude do aumento excessivo da oferta brasileira e de uma retração do consumo norte-americano, e desabaram nos anos seguintes. E na década de 1890 os impostos sobre-a exportação do café eram respon1894, não tinha dúvidas em afirmar sobre a febre amarela que “a transmissão do elemento morbifico se fez por intermédio do contágio, ou do ar atmosférico” e citando um caso em Campinas, afirmava que a água “se nos apresenta como (...) processo de veiculação mais lógico”. Em 1890, o Dr. Caetano de Campos era categórico: “se já não possuíssemos os esgotos que temos, a febre amarela ter-se-ia domiciliado em São Paulo”. Silva, Lysandro Pereira, op. cit., p. 37. A mortalidade causada por doenças contagiosas na capital paulista passou de 5 por mil, entre 1894-1900, para3 por mil, entre 1911 e 1920, desconsiderando 1918, ano em que a gripe espanhola dizimou a população. Love, op. cit., p. 39-41. Ribeiro, op. cit., p. 35; Branco, op. cit., p. 37-38.

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19 Whitaker, A. P. “Abastecimento de Agua da Cidade de São Paulo” In: Revista Engenharia, São Paulo, n. 50,1946, p. 66.0 governo estadual também incentivou a expansão da rede de água e esgoto nas cidades do interior paulista. Love, op. cit., p. 79.

Silva, Lysandro Pereira, op. cit., p. 39

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sáveis por volta de 2/3 da receita ordinária do tesouro de São Paulo.21 No decorrer do século XX a degradação do Tietê não só se confirmou, como também superou todas as expectativas, mas as grandes pestes antevistas peio fiscal de rios José Joaquim de Freitas não ocorreram, embora doenças de veiculação hídrica tenham causado muitas mortes e males aos moradores de São Paulo, especialmente àqueles pertencentes às classes populares. Assim, após a conjuntura crítica de fins do século XIX, paulatinamente, a saúde pública deixou de ser a preocupação primordial a orientar a intervenção estatal nos rios paulistanos, embora nunca tenha sido esquecida de todo. De fato, à medida que a urbanização de São Paulo acelerava, cada vez mais outras necessidades e interesses precisavam ser considerados quando se tratasse do Tietê e seus afluentes. A própria existência de um fiscal de rios instituído pelo poder público municipal, desde, pelo menos, os primeiros anos republicanos, era indicativo da enorme importância que rios e várzeas foram adquirindo na São Paulo de então. Importância que do ponto de vista da abrangência e intensidade somente cresceu até fins dos anos 1930. Isso, inclusive para os cofres municipais. Em 1904, o fiscal de rios arrecadou, em réis, 15.513$500 taxando atividades socioeconomicas exercidas no Tietê e seus afluentes; em 1914 a arrecadação foi de 18.346$000; e, em 1926, de 88.152$400. Um aumento significativo, mesmo descontando-se a inflação do período.22 Inicialmente havia apenas um posto fixo de fiscalização, a sede, na rua Voluntários da Pátria, em Santana, junto ao Tietê, ao qual foram acrescidos mais dois postos: um A saca de 60 quilos que em 1893 valia 4.09 libras, passou a valer 1.49 libras em 1899. Em 1898, o agravamento da crise econômica no país levou o governo federal a reestruturar sua dívida com os credores internacionais (“funding loan”), oferecendo como garantia as rendas da Alfândega do Rio de Janeiro. Ficava proibido de contrair novos empréstimos nos três anos seguintes e obrigado a incinerar parte do papel-moeda em circulação, para combater a inflação. Casalechi, José Enio. O Partido Republicano Paulista. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 88. Love, Joseph. A Locomotiva São Paulo na Federação Brasileira, 1889 -1937. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1982, p. 338.

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22 “Até 1942 a moeda nacional era o mil-réis. A maior unidade monetária era o conto, que equivalia a 1.000 mil réis e se escrevia 1.000$000.” Love, op. cit., p. 6. Em 1900, uma passagem de bonde elétrico recém-inaugurado custava, em São Paulo, 200 réis, valor considerado alto. Em 1920, os professores estaduais recebiam por mês, salários que variavam entre 200 e 300 mil-réis. Relatório de 1904 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia Vanorden & Co., 1905; Relatório de 1915 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Washington Luís Pereira de Souza. São Paulo: Casa Vanorden, 1916; Relatório de 1926 apresentado pelo Dr. J. Pires do Rio, prefeito do Município de São Paulo. São Paulo: Seção de Obras Raras d’0 Estado de São Paulo, 1927.

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no mesmo Tietê a montante de São Paulo, na altura de Guarulhos, e outro no rio Pinheiros. O aumento dos postos de fiscalização não se devia apenas a interesses fiscais, mas respondia a uma necessidade de ordenação de um espaço social cada vez mais utilizado e conflituoso. Tanto assim que, em 1907, um ato municipal instituiu uma nova regulamentação do trabalho do fiscal de rios, que passou a ser denominado fiscal de rios e várzeas. Ao listar funções do cargo, o decreto indicava grande parte dos usos sociais dos rios paulistanos no período e muitas das tensões daí decorrentes. Ao fiscal de rios e várzeas cabia zelar pelo “asseio e desobstrução dos rios e de suas margens, cais, pontes, várzeas, balsas e pontos destinados ao embarque e desembarque de materiais”; impedir a alteração do leito dos rios e ribeiros por represas e desvios das águas, bem como que fossem lançados nos rios resíduos líquidos ou sólidos sem licença ou consentimento da administração municipal; não permitir que “os moradores ou proprietários e os confinantes dos prédios, por onde passarem rios e ribeiros” se utilizassem deles para “despejo ou servidão de qualquer natureza”; vigiar os serviços de transporte fluvial e zelar por sua segurança; “orientar o movimento geral das embarcações por ocasiões dos exercícios de remo, regatas e outros divertimentos esportivos” e proibir banhos e exercícios de natação a pessoas que não estivessem “decentemente vestidas” ou estivessem “em lugares impróprios e perigosos” - tarefa que, ao contrário do que parece, não era nada fácil. Devia ainda o fiscal prestar serviços “de socorro e salvamento por ocasião das enchentes e inundações, com o fim de garantir a vida e os bens da população ribeirinha” e quaisquer outras “providências e medidas precisas” em casos de “submersão de embarcações, acidentes ou desastres pessoais etc.”; inspecionar o serviço de passagem de balsas mantido pelo município, garantindo que fossem observadas as instruções em vigor; fiscalizar o serviço de exploração de areia nos rios, que “não deve ser permitido em condições inconvenientes e sem licença própria”; apreender os veículos fluviais sem registro ou com os impostos atrasados; impedir a extração de “barro para cerâmica nas várzeas do Bom Retiro, Catumbi, na parte edificada do bairro do Pari e nos lugares onde essa extração for permitida, quando não haja licença prévia ou quando as escavações possam prejudicar a saúde pública”; designar onde cada oleiro ou proprietário de olaria poderá extrair barro e garan-

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tir que fizessem isso sem o “esburacamento” da várzea, mas em forma de valo, de forma “a dar o escoamento das águas para o rio; fiscalizar a construção de obras particulares nas várzeas e vizinhanças dos rios embargando as que fossem iniciadas sem licença; empregar “medidas coercitivas tendentes a garantir a municipalidade contra quaisquer atos de posse ou “usurpação de terrenos de seu patrimônio, situados nas várzeas ou vizinhanças dos rios”; zelar pela observância das leis que “regulam o exercício da pesca, impedindo que prejudiquem a piscicultura e a comodidade e segurança dos habitantes ribeirinhos”; apreender redes proibidas, covos, paris ou cercos; proibir os pescadores de abicar “suas embarcações, fazendo estrago ou danos nas margens dos rios públicos e entrarem nos terrenos particulares”23. Na São Paulo de então, “que crescia rapidamente e até de modo assustador”, rios e várzeas passaram a integrar cada vez mais os circuitos socioeconômicos citadinos, o que desencadearia transformações significativas no Tietê; na verdade, em toda sua bacia hidrográfica, e na forma como a cidade e seus moradores se relacionavam com o rio. De fato, partir de fins do século XIX, tudo começou a mudar de tal forma, que, em poucas décadas, nada mais ficaria como antes, nem mesmo as correntezas das águas dos rios Tietê e Pinheiros, que passariam a correr em sentido contrário. Antes disso, porém, rios, córregos e nascentes, em meio a colinas e várzeas, campos e florestas, conferiram às terras paulistanas um aspecto verdadeiramente encantador. Mais ainda, propiciaram a formação de um ambiente bastante favorável ao estabelecimento de agrupamentos humanos, na medida em que o relevo, a flora, a FAUna e a água em abundância ofereciam inúmeras possibilidades de subsistência e, a partir da chegada dos europeus em meados do século XVI, de alguma exploração econômica mercantil. Foi a partir de São Vicente, litoral paulista, que os jesuítas transpuseram a Serra do Mar, muito íngreme e recoberta com a densa Mata Atlântica, chegando ao planalto contíguo, mas cerca de 750 metros acima, para fundar a cidade de São Paulo. A região há muito era ocupada por aldeias tupis, os quais desciam ao litoral regularmente em busca de peixes e de sal. Era dos caminhos indígenas, os peabirus, que se valiam os europeus em seus deslocamentos. A numerosa população nativa do planalto e dos infindáveis territórios que podiam ser entrevistos e alcançados Acto n° 271 de 24 de julho de 1907.

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a partir dele, despertavam o ímpeto catequizador dos jesuítas e a cobiça escravista dos colonos.”24 Foi entre dois rios que São Paulo nasceu, mas diferentemente das aldeias indígenas que ficavam “na banda dos terraços, próximo da linha d’água” vivendo “na primeira terra firme, e tendo água para o banho, para cozinhar e para beber, peixe para pescar”25, os jesuítas, liderados por Anchieta e incentivados pela Coroa portuguesa, fundaram seu colégio no alto de uma colina, delimitada a oeste pelo vale do riacho Anhangabaú e a leste pelo rio Tamanduateí, afluente da margem esquerda do Tietê, que corria, não muito distante, ao norte do colégio. A colina era tida como mais propícia à defesa militar do ponto de vista europeu, impondo dificuldades de locomoção e defesa aos atacantes e garantindo visibilidade ampla aos defensores. Mantinha-se, entretanto, a possibilidade de se obter tudo aquilo que os rios ofereciam aos indígenas. Envolvido por um “colar de matas e serrinhas” densamente florestais,26 o núcleo jesuíta seria conhecido como São Paulo de Piratininga, homenagem ao apóstolo e referência aos ciclos naturais da região, pois, na língua nativa, pirá-tininga, significava “peixe seco”. Quando das chuvas, os rios transbordavam para depois refluir e durante essa oscilação muitos peixes não conseguiam retornar ao leito menor, ficando presos em trechos de várzea que em breve secariam, assim como os peixes.27 O que, por volta de 1900, ainda podia ser visto nas várzeas do Tamanduateí. Os “campos de Piratininga”28, faziam vivo contraste à Mata Atlântica e ofereciam terrenos relativamente limpos, que facilitavam a instalação inicial dos europeus, que podiam ainda usufruir recursos naturais provenientes da matas próximas e dos rios. No planalto, São Paulo era uma das regiões de campos mais bem localizadas em relação ao litoral e aos portos que levavam à Europa e a outros destinos dentro e fora da colônia. De fato, a Serra do Mar, na altura Petrone, Pasquale. Aldeamentos Paulistas. São Paulo: EdUSP, 1995, p. 32-35.

24

Ab,Saber, Aziz Nacib. “A Natureza primária de São Paulo de Piratininga” In: Scientific American Brasil, n. 25, junho de 2004. 25

Ab’Saber, Aziz. “O solo de Piratininga” In: Bueno, Eduardo (org.). Os nascimentos de São Paulo. São Paulo; Ediouro, 2004, p. 26-27.

26

A dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo 1554-1897. São Paulo: Anna Blume, 1996, p. 66.

27

Como explica Aziz Ab’Saber, a denominação “campo” empregada pelos colonizadores poderia denominar formações campestres diferentes. Ab’Saber, Aziz Nadb. “A Natureza primária de São Paulo de Piratininga” In: Scientific American Brasil, n. 25, junho de 2004. 28

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de Piratininga, embora fosse um obstáculo temível, quando comparada à outros trechos, oferecia o melhor ponto para sua transposição para quem fosse ao litoral ou dele viesse. Em direção ao nordeste, a muralha contínua ao longo da costa atingia altitudes maiores, acima de 900 metros, com caminhos ainda mais íngremes; em direção ao sudoeste, embora não tão alta, apresentava-se alargada em até 100 quilômetros ou mais. Assim, São Paulo estava em melhores condições de comunicar-se com o litoral e seus portos, em especial, o de Santos, que se afirmaria como o principal, e com o qual praticamente formaria um só sistema. Por outro lado, embora ao norte de São Paulo a Serra da Mantiqueira aparecesse como um imponente obstáculo aos viajantes, oferecia passagens formadas por terrenos planos e campos descobertos.29 Por fim, como explica Aziz Nacib Ab’Saber, a zona na qual se ergueria a cidade, um “admirável sistema regional de colinas, várzeas, terraços e patamares de colinas” ocupava uma posição favorável no que se refere à ocupação:

“uma vez no Planalto, no reverso da serra, as condições para a ocupação e urbanização eram relativamente negativas, pois desde Cunha até Guararema, no alto vale do rio Paraíba do Sul, existe um mar de morros cuja topografia é relativamente complexa para a instalação de núcleos de cidades. Após o vale do Paraíba, na Serra da Mantiqueira, repete-se a situação existente na Serra do Mar e, ultrapassados os altos da Mantiqueira, na direção do alto Rio Grande, em Minas Gerais, as condições para o desenvolvimento de centros urbanos igualmente não eram as melhores. Assim sendo, os sítios favoráveis para a ocupação limitavam-se às colinas do médio vale do Paraíba do Sul (bacia de Taubaté) e ao sistema colinoso do alto Tietê (bacia de Prado Júnior, Caio. “A cidade de São Paulo: geografia e história” In: Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo;” Editora Brasiliense, 1966, p. 102-103; Ab’Sâber, Aziz. “O solo de Piratininga” In: Bueno, Eduardo (org.). Os nascimentos de São Paulo. São Paulo: Ediouro, 2004, p. 26-27.

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São Paulo). Por isso, pode-se dizer que no entremeio das colinas paulistas os indígenas realizaram uma descoberta importante, depois continuada com mais ímpeto pelos colonizadores, dentro da complexa e sofrida história que aqui se desenrolou.’’30

Antes de São Paulo de Piratininga, já existia no planalto, junto à Serra do Mar, Santo André da Borda do Campo, um povoado de índios e mamelucos elevado a vila em 1553, por Tomé de Sousa, primeiro governador geral do Brasil, mas que foi abandonado em 1560, em benefício do núcleo jesuíta, por ordem de Mem de Sá, terceiro governador-geral. Ao que parece isso ocorreu principalmente por razões de segurança, pois eram frequentes as revoltas indígenas contra a invasão portuguesa31. Mas, além da fragilidade militar de uma vila assentada na “orla da mata e sem defesa natural alguma” e das disputas e rivalidades locais, a ausência de um rio nas proximidades de Santo André se fez sentir, ao menos para o jesuíta Nóbrega que, em carta enviada da Bahia ao provincial da Ordem, em Portugal, ponderava:

Também me parece que se devia dizer a Martim Afonso e à Sua Alteza que se quer que aquela Capitania se não despovoe de todo, que dêem liberdade aos homens para que os do Campo se juntem todos juntos do Rio de Piratininga, onde eles escolherem (...) porque a causa de despovoarem é fazerem-no viver na Vila de Santo André da Borda do Campo, onde não tem mais que farinha e não se podem ajudar do peixe do rio, porque está três léguas daí, nem vivem em parte conveniente para as suas criações e se os deixassem chegar ao rio tinham tudo e sossegariam.32 Prado Júnior, Caio, op. cit, p. 96-98; AbSaber, Aziz. “O solo de Piratininga” In: Bueno, Eduardo (org.). Os nascimentos de São Paulo. São Paulo: Ediouro, 2004, p. 21-26.

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31 Sevcenko, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 107; Prado Júnior, idem.; Monteiro, John Manuel. Negros da Terra. índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 37-38. 32

Prado Júnior, idem.

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Nas décadas que se seguiram à fundação de São Paulo a escravização, as guerras e as doenças disseminadas pelos europeus dizimaram a população indígena e desorganizaram suas sociedades, embora isso não tenha ocorrido sem resistência. Mas no planalto, ao longo dos rios, um novo mundo mestiço de brancos e índios deu origem a vários aldeamentos e povoados, mundo que tinha em São Paulo o seu centro, pois, nas palavras de Caio Prado Júnior, “o centro natural do sistema hidrográfico da região”:

O Tietê que o banha ou que pelo menos, no São Paulo primitivo, corria nas suas proximidades, e além disso, era ainda acessível pelo Tamandutaeí, cujas águas, antes de modernamente canalizadas, banhavam o sopé do outeiro onde se erguia a vila, e eram perfeitamente navegáveis por pequenas embarcações, o Tietê forma como que o tronco daquele sistema. No seu curso superior, por um curioso acidente geográfico, quase se confunde com o alto Paraíba, que decorrendo em direção oposta, constitui um verdadeiro prolongamento, para nordeste, do seu curso. Rio abaixo, depois de percorrer todo o território do Estado, cortando-o em direção noroeste, lança-se no Paraná que pelos seus afluentes da margem direita abre comunicações de Mato Grosso. E neste extenso tronco articulam-se, formando como que os ramais do sistema, seus vários afluentes: na margem esquerda, pouco abaixo de São Paulo, o Pinheiros, o Cotia e seus tributários, que haviam de representar notável papel na primeira fase do povoamento; na margem direita o Piracicaba, francamente navegável, sem obstáculo algum, até o salto do mesmo nome.

Como ressalta Caio Prado Júnior, embora não fossem rios “muitos favoráveis à navegação” eram- a melhor e mais utilizada via de comunicação, daí que:

o povoamento procura no início, de preferência e quase exclusivamente, a margem dos rios. Partindo de São Paulo, o povo-

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amento do planalto começa por seguir duas direções, ambas pelo Tietê: uma rio acima, outra rio abaixo. É seguindo estas linhas que os colonos se vão estabelecendo e formando as primeiras povoações e vilas. Rio abaixo encontramos já muito cedo: Nossa Senhora da Expectação do Ó (hoje Freguesia do Ó) e Parnaíba, que em 1625 é constituída em vila. E pelas variantes do Pinheiros, seu afluente Jeribatiba (Rio Grande), do Cotia e afluente Mbói-Mirim (Embu), inúmeras povoações e aldeias de índios fundadas ou dirigidas pelos jesuítas: Pinheiros, Itapecirica, Ibirapuera (hoje Santo Amaro). Tietê acima a marcha é mais rápida. Antes do fim do séc XVI encontramos no seus curso vários aldeamentos: Guarulhos, Itaquaquecetuba, São Miguel; a povoação, logo vila de Mogi das Cruzes e passando para o Vale do Paraíba, São José dos Campos. Este setor da capitania torna-se logo a sua região mais povoada. (...) até fins do século XVI não encontramos em todo o planalto paulista aglomerado algum afastado das margens dos citados rios. E mesmo um século depois, o número de vilas e povoações nestas condições é diminuto.33

Rios e várzeas eram presenças marcantes na paisagem paulistana e, até meados do século XX, vários daqueles que registraram a cidade em perspectiva ampla, fosse com palavras ou imagens, acabaram por incorporar tais elementos em suas obras. E se os rios e várzeas saturavam a cidade e as obras intelectuais e artísticas de água, não menos ricas em água eram os contrafortes da Serra do Mar, local de chuvas abundantes onde nascem o Tietê e inúmeros cursos d’água. O Tietê atravessa o município de São Paulo na direção leste para oeste. Nos anos 1920, antes de ser retificado, seu leito menor variava de 24 a 50 metros de largura, e possuía, em média, de 2 a 3 metros’ de profundidade. Devido à pequena declividade, suas águas percorriam lentamente 45 quilômetros entre a Penha e então bairro paulistano de Osasco, em uma várzea larga e inundável, formando inúmeros meandros divagantes, lagoas e brejos. Durante a época das chuvas suas águas subiam 5 metros acima

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Prado Júnior, idem.

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do nível de estiagem.34 Entre Osasco e Penha, as várzeas ao longo do Tietê formavam um faixa de aproximadamente 25 km com uma largura média de 1,5 a 2,5 km. Os outros dois rios na cidade também possuíam várzeas extensas, as do Pinheiros estendiam-se por mais 20 km até Santo Amaro, com um largura média de 1 a 1,5 km e as do Tamanduateí por 16 km, com planícies que tinham de 200 a 400 metros de largura. Nos afluentes do Tietê e Pinheiros podiam ser encontrados, nos quilômetros finais antes da foz, breves trechos de várzea.35 As várzeas constituíam o ponto mais baixo do sítio urbano paulistano, que se caracterizava por um relevo bastante movimentado e variado em seus elementos. Havia colinas que iam desde a mais alta, o Espigão Central, que separava as vertentes do rio Tietê e Pinheiros, e cujo topo seria ocupado no início do século XX pela Avenida Paulista, com altitude média de 805 a 830 metros, até as mais baixas, as colinas terraceadas, no patamar de 730 e 735 metros. Entre os dois conjuntos, “as colinas tabulares de nível intermediário”, dispostas de 15 a 25 metros acima do nível dos baixos terraços fluviais e planícies de inundação, com altitude média de 740-745 metros - o caso das que abrigaram o núcleo central paulistano. Das colinas, passava-se às terras baixas, os “terraços fluviais de baixadas relativamente enxutas” mantidos “por cascalheiros e aluviões arenosas e argilosas”, com altitudes médias entre 724 e 730 metros. Abaixo dessa altitude era o domínio das várzeas: entre 722 e 724 metros, as “largas e contínuas” planícies sujeitas a inundações periódicas, formadas “de aluviões argilo-arenosas recentes e solos turfosos”, e “as planícies de inundação” “sujeitas a enchentes anuais”, com “banhados marginais e meandros abandonados, de solos argilosos escuros, permanentemente encharcados, em altitude que variava entre 718 e 722 metros”.36 Por mais de três séculos São Paulo se desenvolveu mantendo praticamente inalterada a conformação da bacia hidrográfica à qual se amoldava. 34 Brito, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo. São Paulo: Seção de Obras d!0 Estado de S.Paulo, 1926, p. 124; Santos, Elina. O. “Tietê, o rio de São Paulo” In: Azevedo, Aroldo. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, vol. 1, p. 49.

Ab’Saber, Aziz Nacib. “O sítío urbano de São Paulo”, In: Azevedo, Aroldo. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p. 210-211.

35

Idem, p. 170-174.

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36


A cidade, cuja população em 1855 era de cerca de 15 mil habitantes, não tinha condições nem estímulos que levassem a uma grande intervenção em seus rios, embora a ação humana se fizesse sentir em obras localizadas que muitas vezes podiam causar danos evidentes. Entretanto, do ponto de vista ecológico, rios e várzeas já estavam bastante transformados. Além das modestas intervenções nos traçados dos rios, cujas águas já recebiam pequenas cargas de esgotos e resíduos; nas várzeas houve a introdução de animais de criação, plantas domesticadas ou exóticas, o corte das matas ciliares ou de cabeceiras; a pesca e a caça contínuas. Assim, a flora e a FAUna nativas diminuíram e muitas espécies foram duramente atingidas. José Bonifácio, em visita a cidade em março de 1820, afirmou que:

Na excursão que fizemos passando a ponte do Tietê até a colina em que está situada a fazenda de Santa Anna, antiga propriedade dos Jesuítas, e que presentemente é de domínio nacional, a primeira cousa que atraiu nossa atenção, foi o miserável estado em que se acham os rios Tamanduateí e Tietê, sem margens, sem leitos fixos, sangrados em toda a parte por sargetas, que formam lagos e pauis que inundam esta bela planície; e o que é mais de lastimar é que quase todos estes males não são obra da natureza, mas sim resultado da ignorância dos quiseram melhorar o curso destes rios.37

Esse “miserável estado” dos rios ajuda a explicar porque entre 1848 e 1851 houve uma retificação do Tamanduateí, nas proximidades do núcleo urbano central, que suprimiu “as sete voltas” que rio ali fazia. E também a retificação de um pequeno trecho do Tietê, na Coroa, próximo a Ponte Grande, caminho de Santana.38 Quanto ao prenúncio de intervenções humanas desastradas registrado por José Bonifácio, eram insignificantes perto do que estava por vir a partir de fins do século XIX. Nesse momento, a expansão dos cafezais no interior paulista impôs Viagem Mineralógica na Província de São Paulo por José Bonifácio de Andrada e Silva e Martim Francisco Ribeiro de Andrada” In: Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva. Coligidas e reproduzidas por Edgard de Cerqueira Falcão, vol. 1 , p.504.

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Silva, Lysandro Pereira, op, cit, p. 256

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a São Paulo novos destinos. A cidade, já então sede política e ponto de articulação do território paulista, integrou-se ao complexo agroexportador cafeeiro como centro financeiro, mercantil e ferroviário, o que desencadeou um processo acelerado de crescimento demográfico e expansão da sua área urbana. Para se ter uma idéia da intensidade do fenômeno, basta acompanhar alguns números: a cidade, que em 1872 possuía 31 mil habitantes, passou a contar 239 mil em 1900. No ano de 1920, quando São Paulo já se consolidara como pólo industrial, eram 579 mil os moradores da capital paulista, número que em 1940 atingiria a marca de 1.326.261 pessoas. População essa constituída em sua maioria por imigrantes, mas também por brasileiros que sonhavam uma vida melhor em meio a uma realidade plena de carência e exploração.39 A explosão demográfica, que exigia prédios e casas, conjugada a ações especulativas e a um explícito desejo de segregação social por parte das camadas privilegiadas locais, provocaram uma desmesurada expansão da mancha urbana que, ao mesmo tempo que engolia as chácaras, áreas rurais e matas paulistanas, mantinha em seu interior enormes vazios e terrenos ociosos a espera de valorização imobiliária. De fato, se no interior paulista, quando da grande expansão dos cafezais, entre 1885 e 1900, “um movimento universal de especulação sobre as terras ativou o movimento colonizador,” como assinalou o geógrafo francês, Pierre Denis, que visitou São Paulo no início do século XX, o mesmo ocorreu na capital, onde rapidamente a elite nativa e grandes capitalistas estrangeiros, como a Cia. City e a Light and Power Co. transformaram a especulação no grande ordenador da urbanização paulistana, no que tiveram não poucos seguidores.40 Se tal processo de urbanização elitista, especulativo e acelerado, por si só já acarretaria mudanças significativas na maneira como os moradores de São Paulo viam e utilizavam seus rios e várzeas, cabe lembrar que ele se inseria em um contexto de intensificação das relações capitalistas na sociedade brasileira e de forte penetração de capitais internacionais, ao qual somava-se a assimilação das inovações tecnológicas e científicas decorrentes da chamada Segunda Revolução Industrial, dentre outras, a eletricidade, que teria um papel crucial na transformação dos rios e várPinto, Maxia Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-191). São Paulo: EdUSP, 1994, p. 65 e ss.

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Prado Júnior, op. cit, p. 41,130. Arasawa, Cláudio Hiro, “A Arvore do Urbanismo de Anhaia Mello”. São Paulo: Dissertação de Mestrado, Depto. de História, FFLCH-USP, 1999, p. 67 e ss.

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zeas de São Paulo. O mesmo se daria com a chegada do grande símbolo da Primeira Revolução Industrial; a ferrovia.41 A combinação de tais fatores desencadeou sucessivas intervenções na bacia hidrográfica do Tietê, recurso natural imprescindível para viabilizar o crescimento da capital paulista. Tais intervenções orientavam-se tanto por critérios técnicos-científicos como mercantis e procuravam garantir o saneamento da cidade, o seu abastecimento de água e energia elétrica e incorporar as várzeas dos rios paulistanos à área urbana, transformando-as em logradouros públicos ou em espaço negociável no mercado de terras. A navegação e o combate às enchentes também foram objetivos perseguidos, mas nunca se tornaram prioridades de fato - e foram mesmo abandonados em meados do século XX, assim como o saneamento. Em uma “cidade descontínua”, em que se alternavam “num caos completo, aspectos de grande centro urbano, modesto povoado de roça, ou mesmo zona de sertão”,42 era possível identificar uma clara tentativa de conferir ao espaço um perfil de classe, por meio de investimentos e obras, legislação urbanística e coerção social. Em linhas gerais, a partir de fins do século XIX, buscou-se fazer do centro da cidade uma área especializada no comércio e serviços, da qual se procurava suprimir as moradias populares, especialmente os cortiços. Bairros residenciais exclusivos foram criados na zona oeste da cidade e no espigão central, sendo destinados às classes de alto poder aquisitivo. Aos trabalhadores pobres e suas famílias, fossem imigrantes recém-chegados ou nacionais, sobravam os cortiços, ou então se dirigir para as bordas da cidade, para as ladeiras e baixadas, nesse caso, em geral, as terras baixas enxutas contíguas aos rios e córregos, mas de qualquer modo sujeitas a terríveis problemas de drenagem, o que as aproximava das várzeas alagadiças, em direção as quais a ocupação avançava. Formavam-se assim, bairros “sem plano de conjunto; frutos da especulação imobiliária de terrenos em ‘lotes e a prestações’ - o maior veio de ouro que se descobriu nesta São Paulo de Piratininga do século XX”,43 cuja marca era a precariedade. Sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 41 e ss.

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Prado Júnior, Caio, op. cit., p. 132.

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Prado Júnior, Caio, op. cit., p. 130; Rolnik, Raquel. A cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1997, p. 101 e ss; Marins, Paulo César Garcez. “Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no Surgimento das 43

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Um desses territórios populares, com uma população marcadamente afro-brasileira, era a baixada do córrego do Saracura, por sinal nome de um pássaro que vive à beira de cursos d’água. Afluente do Anhangabaú, o Saracura tinha suas nascentes nas escarpas do espigão que abrigava a Avenida Paulista, onde viviam os novos-ricos da cidade. Em 9 de outubro de 1907, no jornal Correio Paulistano, uma reportagem que revela todo o preconceito da época, definia o lugar como “um pedaço da África” onde as “relíquias da pobre raça impelida pela civilização cosmopolita que invadiu a cidade, ao depois de 88, foi dar ali naquela furna”. E descrevia a ocupação:

uma linha de casebres borda as margens do riacho. O vale é fundo e estreito. Poças d’água esverdeada marcam os lugares donde saiu a argila transformada em palacetes e residências de luxo. Cabras soltas na estrada, pretinhos semi-nus fazendo gaiolas, chibarros de longa barba ao pé dos velhos de carapinha embranquecida e lábio grosso de que pende o cachimbo, dão àquele recanto uns ares do Congo (...) As casas são pequenas; as portas baixas. Há pinturas enfumaçadas pelas paredes esburacadas. A mobília, caixa velhas e tóros de pau, sobre ser pobre, é sórdida. E ali vão morrendo aos poucos - sacrificados pela própria liberdade que não souberam gozar (...) os que vieram nos navios negreiros, que plantaram o café, que cevaram este solo de suor e lágrimas, acumulados ali, como o rebotalho da cidade, no fundo lôbrego de um vale.44

O contraste entre a Paulista e o Saracura, o alto da colina rico e a baixada pobre, era emblemático de como a topografia da cidade acabava por expressar o abismo social que existia em São Paulo. No decorrer do século XX, entretanto, bairros para moradores abastados, instalados nas partes altas da cidade avançaram rumo às várzeas saneadas do Pinheiros depois de sua retificação. Já caso extremo do processo de segregação social e exMetrópoles Brasileiras”, In: História da Vida Privada. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 179. 43 Citado por Koguruma, Paulo. Conflitos do Imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na “Metrópole do Caje”1890-1920. São Paulo: AnnaBlume, 2001, p. 210.

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pulsão dos pobres para arrabaldes distantes e tidos por insalubres era o bairro de Vila Maria, região norte, margem direita do Tietê, com forte presença imigrante. Sua formação se deu em 1917, quando a Companhia Paulista de Terrenos começou a vender em lotes, as terras que outrora formaram o sítio Bela Vista. No ano seguinte, foi construída uma ponte sobre o Tietê que interligou o bairro nascente aos bairros do Belenzinho e do Brás, e assim à região central, o que preparou o caminho para sua ocupação mais intensa a partir dos anos 1940. Assim, a Vila Maria era a um só tempo localizada em um sítio distante e em uma baixada insalubre, já que os seus primeiros lotes e arruamentos se deram em plena várzea alagadiça do Tietê”45 - mais tarde avançaram rumo aos morros adjacentes. A especulação imobiliária e a segregação social eram favorecidas por um quadro político-institucional autoritário, que facilitava os acertos de gabinete e excluía dos cidadãos comuns qualquer possibilidade efetiva de interferir significativamente na organização do Estado e os rumos dos governos. Não tinham direito a voto os estrangeiros, os analfabetos e a mulheres, ou seja, a grande maioria da população de São Paulo, e, mesmo assim, as eleições eram marcadas por fraudes e violências. O poder político era exercido por um diminuto grupo, que se organizava em torno do Partido Republicano Paulista, o PRP, o qual se confundia com o próprio governo estadual. O poder legislativo e judiciário eram débeis em relação ao executivo e seus membros mantinham estreitos vínculos com o PRP. Essa poderosa estrutura de dominação oligárquica, deteve o controle da política estadual de 1891 a 1930, combinando vários mecanismos de coerção e controle que atingiam toda sociedade, aos quais somavam-se os de cooptação que dirigia aos segmentos da classe dominante que lhe pudessem fazer oposição. Um emaranhado de interesses econômicos comuns e relações familiares entrelaçavam ainda mais as classes dominantes paulistas, em constante disputa, mas imidas diante de qualquer ameaça ou contestação à ordem social que garantia seus privilégios.46 É claro que o predomínio oligárquico não se dava sem contestações. 45 Ab’Saber, p. 174-170; Ponciano, Levino. Bairros Paulistanos de A az. 2 ed. São Paulo: Editora Senac, 2002, p. 23

Leal, Victor Nunes. “Coronelismo, Enxada e Voto. O Município e o Regime Representativo no Brasil” In: Revista Forense, Rio de Janeiro, 1948, p. 30; Saliba, Elias Thomé. Ideologia liberal e oligarquia paulista. A atuação e as idéias de Cincinato Braga, 1891-1930”. São Paulo: Tese de Doutoramento, FFLCH-USP, 1981,p. 105,110;Love,op.dL,p. 160-162,195;Casalecchi,op. cit,p.55.

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Na capital paulista eram fortes os clamores reformistas daqueles que sonhavam “republicanizar a república”, idéia que animava os espíritos das camadas médias urbanas desde que, muito cedo, se constatou o caráter oligárquico do regime instaurado em 1889, que ao invés de sepultar a opressão e os vícios da antiga monarquia escravista, como sonharam entusiasmados republicanos, perpetuara no poder um nefasto consórcio de elites agrárias, financistas e “círculos plutocráticos urbanos”. O paulatino crescimento industrial paulistano, por sua vez, fortalecia o operariado e os sindicatos, e, portanto, levava a protestos, manifestações e greves contra a opressão social, reprimidas com brutalidade. A própria cidade, cada vez mais porosa, tensa e complexa estimulava uma cidadania alternativa, ao multiplicar os órgãos de imprensa e as associações profissionais, de imigrantes, de ajuda mútua ou de classe.47 O poder público débil, erodido pela ausência de democracia e por uma estrutura estatal incipiente, que, entretanto, tendia a se desenvolver e adquirir autonomia relativa diante dos interesses econômicos e políticos hegemônicos, enfrentava dificuldades até mesmo em impedir a usurpação de seu patrimônio. Afinal, em paralelo à especulação imobiliária impulsionada pela legalidade urbanística e dotação de infra-estrutura e equipamentos nas áreas que se queria valorizar - mesmo que isso, em bairros populares, fosse o mínimo necessário, como uma ponte, uma linha de bonde e energia elétrica - havia ainda a pura e simples apropriação de terrenos públicos. De fato, a grilagem tornou-se prática comum na cidade de São Paulo a partir de fins do século XIX e atingiu fortemente as propriedades municipais localizadas nas várzeas dos rios, uma vastidão com limites e posses incertas. Em 1893, José Joaquim de Freitas, o. fiscal de rios, em seu relatório a um dos intendentes da Câmara Municipal tratou do assunto.48 47 Sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões Sociais e Produção Cultural na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 51-52; Prado, Maria Ligia. A Democracia Ilustrada. São Paulo; Atiça, 1986, p. 9 e ss.; Sevcenko. Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos vinte. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 237-238. 48 A partir de janeiro de 1890, a cidade passou a ser governada por um Conselho de Intendentes, e, em 1892, os intendentes, nomeadas pelo governo estadual, passaram a ser escolhidos entre os vereadores. Nesse ano, uma lei municipal criou quatro intendências: Justiça e Polícia, Higiene e Saúde Pública, de Obras Municipais e a de Finanças. Em 1898 foi criado o cargo de prefeito, que assumiu o controle de toda a administração municipal, sendo ele indicado pelo governador do Estado. A partir de 1908, o prefeito passou a ser eleito

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Seguindo portaria do próprio intendente, que determinara que Freitas procedesse a fiscalização dessas áreas públicas, com a missão de “impedir que fossem lesados os interesses municipais”, o fiscal apurou que muitos dos terrenos marginais dos rios “pertencentes à Câmara”, eram ocupados irregularmente, sem que esses ocupantes possuíssem contratos de arrendamento. Mais grave, alguns invasores pretendiam se apossar realmente de tais áreas e não se tratava da arraia miúda:

Conforme já vos denunciei em tempo, acha-sé fechada a valo, pelo Conselheiro Barão de Ramalho e Companhia Predial, uma área de mais de 100 alqueires de terrenos municipais, compreendidos entre a Coroa, Guarahy-piranga, e Yárzea da Penha, à margem direita do Tietê. Nesses terrenos residem há muito, vários moradores ribeirinhos, muitos dos quais têm contrato com a Câmara, para olarias etc. Eles se desforçaram entupindo parte dos valos que lhes tolhia até o caminho do Sacramento. Parece urgente agitar essa questão de posse.49

Em 1896, o mesmo fiscal de rios afirmava que a mesma Companhia Predial queria agora se apoderar de 200 alqueires de terrenos municipais existentes nas várzeas do Piqueri-Guassu, Capintinduva, Baruel e Ingá, alegando possuir concessão do governo federal.50 A situação parecia se nas mesmas eleições que elegiam os vereadores para a Câmara. Quando a máquina administrativa do município ficou mais complexa, os relatórios e documentos elaborados pelos fiscais de rios não eram mais enviados diretamente ao prefeito. Prefeitura de São Paulo. O poder em São Paulo: história da administração pública na cidade, 1554-1992. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo/Cortez, 1992, p. 50-52; Janotti, Maria de Lourdes Monaco. O Coronelismo: uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 42. Relatório apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Intendente Municipal Cesário Ramalho da Silva 1893. São Paulo: Typographia a Vapor de Espindola, Siqueira & Com, 1894, p. 39.

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Relatório apresentado a Camara Municipal de São Paulo pelo Intendente de Policia e Hygiêne José

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agravar com o passar do tempo, pois em 1898 era o próprio Intendente de Polícia e Hygiêne Municipal, Dr. João Alvares de Siqueira Bueno, que reclamava em seu relatório ter de “providenciar sobre a invasão de terrenos municipais, tomando desforço imediato contra os atos de usurpação e posse que dia-a-dia se generalizam em diversos pontos da cidade, principalmente nas várzea do Pary, Bom Retiro e Catumby”. Para coibir esses “repetidos assaltos ao patrimônio municipal”, que faziam com que ele tivesse de recorrer, muitas vezes, “ao uso da força” para garantir os direitos da municipalidade, o intendente pedia à Câmara que providenciasse a discriminação dos terrenos de sua propriedade e que regularizasse o serviço de concessão de aforamentos, que, segundo ele, eram numerosos e protegeriam o patrimônio municipal dos invasores ao garantir a posse àqueles interessados em explorar a terra legalmente.51 Essa luta do poder municipal contra a usurpação de seus terrenos situados nas várzeas da cidade foi constante. As ações da prefeitura pedindo na justiça a reintegração de posse, ou mesmo que a justiça certificasse como sua a posse de determinadas áreas, não se opunham apenas a grandes empresas, mas também a famílias pobres ou embusteiros que ocupavam áreas relativamente pequenas.52 Na década de 1920, o prefeito J. Pires do Rio, para defender o patrimônio do município contra a invasão- dos terrenos municipais, criou uma sub-Procuradoria Municipal, que além de quatro advogados contava com um engenheiro, e auxiliares de escritório e de campo, “para que os papéis judiciários” fossem “esclarecidos por plantas rigorosas e bem apresentadas”. Das 96 ações judiciais movidas pela prefeitura no ano de 1927 pedindo a posse de terrenos invadidos, as mais importantes delas localizavam-se em várzeas da cidade. Era o caso da Várzea de Santo Amaro, no sopé da colina da Avenida Paulista, nos terrenos chamados do Ibirapuera, onde “pretendia um grupo de usurpadores apossar-se de mais 1.500.000 de terreno municipal”. O prefeito Pires do Rio planejava instalar um parque nessas terras, muito valorizadas, pois além de próximas da Avenida Paulista e da região de Vila Mariana, sendo já então servidas por linhas Roberto Leite Penteado 1896. São Paulo: Typographia a Vapor Pauperio & Com, 1897, p.58. Relatório apresentado a Camara Municipal de São Paulo pelo Intendente de Policia e Hygiêne Dr. João Alvares de Siqueira Bueno 1898. São Paulo: Imprensa da Casa Eclético, 1899, p. 124-125.

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52 Relatório de 1901 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden 8c Co., 1902, p. 66-67.

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de bondes, em breve seriam atravessadas por uma estrada de rodagem de concreto que ligaria a cidade de São Paulo ao então município de Santo Amaro e sua represa. A ocupação ilegal de terrenos na Várzea de Santo Amaro já vinha sendo denunciada havia décadas. Em 24 de setembro de 1900, em uma folha de papel timbrado do Tesouro Municipal de São Paulo, um funcionário informava seu superior que “Pessoa de conceito e que pede para ocultar o nome veio a esta seção denunciar que o falecido general Couto de Magalhães apoderou-se de uma grande área de terreno municipal calculada em 480 mil m², na várzea de Santo Amaro e que o filho deste trata hoje de arranjar um título que garanta a sua posse dos mesmos terrenos simulando compra (...) Levo o fato ao vosso conhecimento com a declaração do denunciante de que o fiscal da Câmara, Alexandre Lessa, conhece esses terrenos e sabe ser os mesmos do patrimônio municipal”. No verso do documento, a resposta do guarda fiscal citado, Alexandre Lessa, afirmava que o terreno “já se acha fechado desde o ano de 1896, data em que ele não era fiscal do município”. E pedia que a prefeitura confirmasse quem realmente era o proprietário da área.53 Para os lados do Tietê, em 1927, a prefeitura pedia na várzea do Canindé a reintegração de posse de 460 mil m²; na Penha, de 10 alqueires; na várzea do Alambary, de 29.740 m²; na várzea do Limão, de 193.270 m². No total, as ações judiciárias pretendiam retornar ao município a posse de 4 milhões de metros quadrados. Isso sem contar as áreas que haviam retornado ao poder público devido a ações que já haviam sido julgadas e aquelas pertencentes ao governo estadual. A prefeitura pretendia utilizar parte dos terrenos recuperados para passar o futuro canal do Tietê retificado, projeto que então voltava a ser tratado, ou então para permutá-los com terrenos apropriados para esse fim.54 A crescente valorização mercantil das várzeas e terras baixas foi impulsionada em grande parte pelas ferrovias que provocaram uma nova dinâmica em sua ocupação. Em 1867, a São Paulo Railway, a primeira ferrovia paulista, interligou a capital do estado ao Porto de Santos, provocando uma revolução nos transportes. Depois de vencer a Serra do Mar, a “inglesa” avançava por sobre as várzeas do rio Tamanduateí, correndo Papéis Avulsos, 1904, vol. 3, Departamento do Patrimônio Histórico.

53

Relatório de 1927 apresentado pelo Dr. J Pires do Rio prefeito do Município de São Paulo. São Paulo: Seção de Obras Raras d’0 Estado de São Paulo, 1927, p. 27-28. 54

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praticamente em um traçado paralelo ao leito do rio até o centro da cidade, para depois alcançar a estação da Luz e prosseguir até Jundiaí. Já em 1875 os trilhos de mais duas ferrovias, a Sorocabana e a Central do Brasil cruzavam a cidade.55 Como em todo o mundo, os caminhos de ferro de São Paulo procuraram evitar a topografia acidentada e as zonas edificadas para baratear os custos das obras. Assim, encontraram nas várzeas e nos “terraços fluviais de baixadas relativamente enxutas” adjacentes, planuras ideais para sua instalação. Os trilhos podiam avançar sem grandes rampas a vencer em um traçado com muitas retas e curvas suaves. E como essas terras possuíam uma ocupação rarefeita, as ferrovias encontravam um caminho para o centro da cidade sem que precisassem fazer desapropriações vultuosas. Além disso, as companhias ferroviárias possuíam capital e tecnologia para fazer as obras de engenharia - como aterros e pontes - necessárias à adaptação dos trilhos e estações a esse tipo de terreno. Cabe notar, entretanto, que ao contrário da São Paulo Railway e da Sorocabana, a Central do Brasil, de início, evitou as várzeas do Tietê ao adentrar na capital paulista.56 Aproveitando as facilidades de transporte de matéria prima e escoamento da produção que as ferrovias ofereciam, bem como o menor preço relativo dos terrenos, inúmeras fábricas buscaram ocupar as várzeas e os terraços contíguas em locais próximos aos caminhos ou estações ferroviárias, muitas vezes em lugarejos afastados do núcleo central, os futuros subúrbios paulistanos, ou mesmo na zona rural. Além disso, a proximidade de rios e córregos garantia o expurgo dos detritos industriais e o abastecimento de água. Em São Miguel, zona leste da cidade, instalou-se, em 1935, a Companhia Nitro-Química Brasileira, em um terreno extenso e plano junto ao Tietê e ao córrego Itaquera. A região era pouco habitada, mas desde 1932, fora alcançada por uma variante da Central do Brasil, que agora se aproximava do Tietê. Em meados do século XX, a Nitro-Química ocupava uma área de 200 mil m² e empregava 8 mil operários, produzindo, entre outros, ácido sulfúrico, clorídico, algodão-pólvora, colódios, tintas e sulfato de sódio.57 Matos, Odilon Nogueira de. Café e Ferrovias. São Paulo: Editora Alfe-Omega, 1974, p. 58-59.

55

Langenbuch, Juergen Richard. A Estruturação da Grande São Paulo. Estudo de Geografia Urbana. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Documentação e Divulgação Geográfica e Cartográfica, 1971, p. 99-100.

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57

Penteado, Antonio Rocha. “Os subúrbios paulistanos e sua funções.” In: Azevedo. Aroldo

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Mas as indústrias se adensavam especialmente jias proximidades da Santos-Jundiaí, no trecho entre os bairros da Mooca e Barra Funda, e na Sorocabana, entre a estação central e a da Barra Funda. Assim, “Brás, Bom Retiro, Moóca, Água Branca, Lapa, Ipiranga foram loteados e cresceram rapidamente, marcados por uma paisagem de fabriquetas, casebres, vilas e cortiços. Por volta de 1901, concentraram-se nesses núcleos as indústrias mais expressivas, coexistindo ao lado de um incalculável número de tendas de sapatarias, marcenarias, fábricas de macarrão, graxas, óleo, tintas, fundições, tinturarias, fábricas de calçados, roupas, chapéus, além de ateliês domésticos que produziam alimentos, bebidas e produtos químicos como sabão e velas.58 Eram por volta de 2 mil os habitantes das terras da freguesia do Brás, no ano de 1872, exercendo principalmente atividades agro- pastoris ou o pequeno comércio. Já, em 1893, os moradores desse nascente bairro industrial paulistano instalado nas terras lindeiras ao Tietê e Tamanduateí eram mais de 32 mil e não paravam de crescer.59 Sobre o modo como viviam, um estudioso da industrialização paulista, Antonio Francisco Bandeira Jr., afirmou, em 1901, que:

Nem um conforto tem o proletário nesta opulenta e formosa capital. Os bairros em que mais se concentram por serem os que contém maior número de fábricas, são os do Brás e Bom Retiro. As casas são infectas, as ruas, quase na totalidade, não são calçadas, há falta de água para os mais necessários misteres, escassez de luz e esgotos. O mesmo se dá em Água Branca, Lapa, Ipiranga, São Caetano e outros pontos um pouco afastados.60

(org.) A Cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. Os Subúrbios Paulistanos. São Paulo; Companhia Editora Nacional, 1954, p. 17-22; Langenbuch, op. cit, p. 87,109. Idem, Rolnik, op. cit, p. 78.

58

Tomás, op. cit, p. 73-75.

59

Bandeira Jr., Antonio Francisco. A indústria no Estado de São Paulo. São Paulo: Typ. do Diário Oficial, 1901.

60

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E para erguer fábricas, casas e outras edificações era preciso explorar rios e várzeas em busca de argila, areia e pedregulho, materiais indispensáveis à ativa construção civil paulistana. Até meados do século XX, os dois últimos eram extraídos principalmente nos rios Tietê e Pinheiros e descarregados em portos em suas margens. Nas várzeas, inúmeras olarias encontravam o barro utilizado na fabricação das telhas, tijolos e manilhas que abasteciam os infindáveis canteiros de obras paulistanos. Em 1913, as olarias foram proibidas de se instalar nos arredores urbanos e tenderam a se localizar nas “várzeas de rio acima” entre Penha e Guarulhos, anos depois chegando até as proximidades de Mogi das Cruzes.61 Instalar olarias nas margens do Tietê, do Tamanduateí e do Pinheiros à montante das regiões mais povoadas era uma forma de aproveitar não apenas os terrenos mais baratos, sua argila e a madeira das matas próximas, mas também o transporte fluvial, pois as barcaças carregadas de material vinham rio abaixo em direção às zonas consumidoras, um sistema de transporte que somente começaria a perder força nas década de 1940 e 1950, com o advento dos caminhões, da expansão da malha rodoviária e dos embaraços crescentes à navegação ocasionados pelas obras de retificação do Tietê. As mercadorias transportadas pelas barcaças do Tietê eram desembarcadas em diversos portos e depois distribuídas pela cidade, em geral, por carroças - havia também bondes de carga e uns poucos automóveis. Em sentido inverso, em fins do século XIX, era em carroças que a “Limpeza Pública” descarregava o material recolhido pela cidade na margem esquerda do rio, a aproximadamente duzentos metros da Avenida Tiradentes. Nesse local a empresa particular responsável pelo serviço mantinha ainda as cocheiras, oficinas, habitações de empregados, veículos diversos, vassouras e tudo o mais que utilizava.62 Antes disso, em 1870, a Câmara Municipal indicara que o “lixo de todas as ruas e pátios da cidade” deveria se removido para a várzea do Carmo.63 Assim, as várzeas do Tietê passa61 Nóbrega, Mello. História do Rio Tietê. São Paulo: EdUSP; Belo Horizonte; Itatiaia, 1981, p. 94-95. A indústria da produção de material de construção paulistana se expandiu e se modernizou, proporcionando a substituição dos caríssimos materiais importados. Com isso, barateou e viabilizou a produção imobiliária para um mercado crescente. Em 1913, Roberto Capri afirmava que “as oficinas da Companhia Mechanica e Importadora estão aparelhadas para produzir diariamente 30 milheiros de tijolos comuns”. Pereira, Paulo Cesar Xavier. Espaço, Técnica e Construção. São Paulo: Nobel, 1988, p. 135.

Ribeiro, op. cit., p. 136 e ss.

62

Andrade, Maria Margarida. “Bairros Além-Tamanduateí: o imigrante e a fábrica no Brás,

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ram a receber, durante décadas, imensas quantidade de lixo. Não só meandros abandonados do rio foram atulhados com os resíduos urbanos, mas também as enormes lagoas formadas pela exploração de areia e barro nas várzeas. Em 1927, um braço morto do Tietê junto à estrada do bairro do Limão recebeu a carga de 18.079 “veículos de lixo verde e refugos”, e uma cobertura de terra por cima depois, até ficar na altura dos terrenos marginais contíguos.64 Bastante comum, o aterramento de pequenos trechos de várzeas era uma forma de elevar o terreno e assim impedir que este fosse atingido pelas águas dos rios na época das cheias. Obra frequentemente realizada por particulares, como na região do Anastácio, lindeira ao Tietê, junto à Lapa, o que, obviamente, valorizava as terras. Contudo, apesar da cidade avançar cada vez mais para perto dos rios e várzeas deve-se notar que, no conjunto, a urbanização ocorreu de forma lenta e ao longo de décadas, embora nas várzeas do Tamanduateí esse processo tenha sido mais rápido. Em 1926, Saturnino de Brito escrevia que:

as várzeas do Tietê ainda podem ser consideradas como estranhas ao completo domínio do homem; ocupadas em escala relativamente pequena, são poucas as casas dos que se aventuram conscientemente a moradia em terrenos freqüentemente inundáveis e dos que foram iludidos na compra de lotes destes terrenos para habitações. Querer agora tomar definitivamente ao rio a várzea de expansão das suas águas, para nela edificar, é estabelecer o problema das inundações.65

O sítio de São Paulo, com suas colinas, rios e várzeas, se por um lado oferecia recursos imprescindíveis à urbanização, por outro, exigia uma constante intervenção humana para que uma grande cidade pudesse nele se erguer. Assim, os viadutos que cruzavam vales e córregos passariam a marcar a paisagem paulistana, como o do Chá, sobre o vale do córreMooca e Belenzinho”. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, Depto. de Geografia, 1991, p. 41. Relatório do Prefeito J. Pires do Rio, 1927, vol. 1, p. 233.

64

Brito, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo. São Paulo: Seção de Obras d’O Estado de S. Paulo, 1926, p. 126.

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go do Anhangabaú, inaugurado em 1892 com 240 metros de extensão e 14 de largura, obra que agregou ao núcleo urbano central todo um novo território a oeste. À medida que a mancha urbana da cidade de São Paulo avançava, cada vez mais o poder público, fosse estadual ou municipal, deparava-se com crescentes demandas pela construção pontes e portos fluviais, a operação de balsas que interligassem as margens dos rios, obras de aterro, contra as enchentes ou em prol da navegação e do saneamento. Era comum, entretanto, que os governos municipal e estadual discordassem quanto às obras a serem feitas ou sobre quem teria obrigação de realizá-las. Viadutos, pontes e aterrados garantiam continuidade aos caminhos terrestres que interligavam as diferentes partes da cidade. Mas, quando possível, procurava-se mesmo suprimir os elementos naturais tidos como obstáculos. Em 1906, o Anhangabaú, que já fora canalizado, foi tapado, o mesmo destino do córrego do Saracura, sobre o qual se instalou a avenida 9 de Julho no final dos anos 1930. Tais ações contínuas e numerosas prolongaram-se ao longo do século XX, e, assim, inúmeros córregos tiveram o mesmo destino do Anhangabaú e do Saracura, sendo sepultados por sob a cidade. Canalizar um córrego era bem mais simples do que retificar os grandes rios e sanear as várzeas. Por outro lado, o crescimento da cidade abria a perspectiva de grandes negócios com as terras varzeanas, que podiam ser repentinamente valorizadas por obras públicas. Em 1886, o vice-presidente da província imaginava conter metade das águas do Tamanduateí em dois grandes reservatórios em seu curso superior, de forma a evitar as cheias no Tietê, liberando, assim, 20 mil hectares de planícies, as quais “drenadas do excesso de água, embebidas no sol”, e mediante a “necessária preservação”, se “transformariam em terrenos da melhor qualidade para abundante produção de cereais e se prestariam a magníficas pastagens”.66 Mas, apesar das várzeas serem valiosas para a agricultura e o extrativismo, o mercado de terras em São Paulo era cada vez mais urbano. Os projetos de retificação do Tietê sucediam-se. Como foi visto, a Comissão de Saneamento do Estado elaborou um plano em 1893 e, no ano seguinte, o presidente da comissão apresentou outro. As obras, embora iniciadas, não foram adiante. Em 1911, o “projeto preliminar de Melhoramento do 66 Custódio, Vanderli. “A persistência das inundações na grande São Paulo”. São Paulo: Tese de Doutorado, Depto. de Geografia da FFLCH-USP, 2001, p. 101.

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Vale do Rio Tietê entre a Penha e Lapa”, prévia a retificação de pequenos trechos do rio, com a supressão de suas grandes curvas, a construção de uma hidrovia, a instalação de um cais no Tamanduateí e defendia a criação de “parques para a regalia da população dos diversos bairros banhados pelo Tietê - Penha, Belenzinho, Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca, e Lapa”.67 Em 1922, o professor da cadeira de Portos, Rios e Canais da Escola Politécnica, Fonseca Rodrigues, apresentou mais um projeto para o Tietê, encomendado pela Diretoria de Obras da Prefeitura, que atendia a solicitação do prefeito Firmiano Pinto. Contudo, o projeto foi recusado pelo chefe dessa diretoria, Victor da Silva Freire, que o considerou demasiadamente limitado do ponto de vista urbanístico, solicitando, então, ao amigo e engenheiro municipal João Florence de Ulhôa Cintra uma nova proposta, cujo esboço foi apresentado em 1923.68 Diante da polêmica criada nos meios técnicos, em agosto desse mesmo ano, o prefeito Firmiano Pinto instaurou a “Comissão de Melhoramentos do rio Tietê”, subordinada diretamente a ele e sob a chefia do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, renomado em todo o Brasil e, em terras paulistas, em especial pelos canais que projetou para o saneamento da cidade de Santos, em 1905, realmente alguém capaz de elaborar uma proposta viável e definitiva para o Tietê. Por melhor ou pior que fosse o projeto de retificação, sua execução envolvia interesses numerosos e era um grande desafio à administração municipal.69 Antes de tudo era preciso a regularização dos títulos de propriedade para que se procedesse às desapropriações e indenizações necessárias e se evitasse o embargo das obras na justiça. Quando das medidas preliminares para a retificação do Tietê, o poder público municipal inventariou todas as margens do rio, contando para isso, inclusive, com o “Serviço Geográfico do Estado Maior do Exército” para realizar o levantamento aéreo-fotográfico do Tietê e de suas várzeas, o que foi feito em julho de 1923. A partir dele, técnicos da Tomás, op. cit., p. 122,127.

67

Custódio, op. cit.,p. 120-121.

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Em 1928, em ofício dirigido à Câmara de São Paulo, o prefeito J. Pires do Rio afirmava que “a lembrança da canalização do Tietê aflige aos que analisam as forças do Tesouro” para logo em seguida pedir aos vereadores a aprovação de uma lei que autorizasse a prefeitura a cobrar as despesas decorrentes das obras de calçamento das ruas dos moradores beneficiados pelo serviço. Segundo ele, assim aliviada “a despesa de calçamento, o Tesouro poderia destinar maior verba para o juro e amortização de um empréstimo que cobrisse a dívida flutuante e sobrasse para a execução de muitas obras públicas reclamadas da cidade”. 69

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prefeitura elaboraram mapas que deveriam orientar o traçado da retificação do rio e indicar as desapropriações necessárias. Temia-se que as obras iniciadas fossem paralisadas por ações na justiça, o que causaria despesas extras e prejuízos à municipalidade.70 Saturnino propôs intervenções no Tietê desde suas cabeceiras até Santana de Parnaíba, mas o projeto era centrado no trecho entre os bairros da Penha e Osasco, que teria sua extensão reduzida de 46,3 km para 26 km. Na elaboração do projeto levara em consideração os seguintes objetivos:

a) defesa contra as inundações da várzea do rio Tietê em frente à cidade, a fim de ser edificada; b) navegação nesse trecho do rio; c) afastamento para jusante das descargas de esgotos que se fazem em frente à cidade, sem depuração.

As propostas de Saturnino de Brito implicavam que o poder público tomasse parte na administração do Tietê a montante de Parnaíba, de forma a coordenar os diversos interesses que existiam em torno do rio e o uso múltiplo de suas águas. Propugnava, além das obras de retificação, a ampliação da calha do rio, barragens, reservatórios de cabeceiras e aterros. Previa a construção de avenidas laterais e pontes e recomendava que a prefeitura elaborasse um plano geral de arruamentos e trabalhasse de forma cooperativa com o governo estadual. Propunha a preservação de trechos de várzea, reguladores naturais da vazão do rio e o replantio da mata ciliar a montante da cidade. Dois grandes lagos na altura da Ponte Grande ajudariam a regularizar as águas do Tietê e seriam utilizados recreativamente pela população, ao mesmo tempo que sua abertura forneceria material para os aterros. Haveria ainda áreas verdes ao longo do Tietê, como na confluência com o Pinheiros, o qual, utilizado pela população na estiagem, teria a função de acolher as águas dos rios na época das chuvas. Por fim, cabe notar que Saturnino ressaltava a necessidade de se discriminar o patrimônio público e particular, 70 Coleção das Leis dos Estados Unidos do Brasil, op. cit., p. 697-698.

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pois somente com a notícia dos melhoramentos projetados e a valorização imobiliária que provocariam, “já se deslocavam as cercas”, sendo “preciso agir antes que as cousas se compliquem mais e a Municipalidade tenha notavelmente diminuído o seu patrimônio.71 O projeto, na forma de relatório, foi concluído em outubro de 1925 e, no ano seguinte, publicado, o que demonstrava interesse em dar publicidade às propostas e aos estudos minuciosos. No mesmo ano de 1926 assumiria um novo prefeito, José Pires do Rio, que dissolveu a Comissão de Melhoramentos do Tietê, para recriá-la no ano seguinte, mas agora sem Saturnino de Brito. O novo chefe da comissão, João Cintra refonnulou o projeto de seu predecessor, que ficou reduzido à retificação, à construção das avenidas laterais e pontes e à liberação das várzeas para serem ocupadas. Desaparecia a proposta de intervenção holística defendida por Saturnino e a perspectiva do uso múltiplo do rio. Assim o próprio comine às enchentes ficava em segundo plano.72 Em seu relatório do ano de 1926, J. Pires do Rio, depois de afirmar que seu governo tinha duas grandes prioridades, uma o calçamento das ruas não pavimentadas de São Paulo, e a outra as obras do Tietê, ressaltava que “o problema do Tietê não se reduz a corrigir-se o mal das enchentes; há o problema da emissão dos esgotos da cidade, há o da navegação fluvial, há o das avenidas laterais:

Sabei que o plano geral das grandes artérias da cidade de São Paulo se acha traçado pelas linhas gerais dos seus cursos d’água; já uma grande avenida existe ao longo do Tamanduateí, entre o Monumento do Ipiranga e a Ponte Pequena. Cogitamos atentamente, da grande avenida do Tietê. Serão esses, de futuro, os eixos da cidade, no mapa de sua vias de comunicação. Paralelamente aos dois, já correm as linhas férreas: umas, subindo’ o Tietê, chegam à Luz; outras descendo o Tietê, chegam ao Norte; outras finalmente, subindo Brito, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo. São Paulo; Seção de Obras d’0 Estado de S. Paulo,1926, p. 9,83,222; Custódio, op. cit., p. 127-128.

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Custódio, idem.

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o Tamanduateí, seguem para o Ipiranga. Serão essas, cada vez mais acentuando-se o seu caráter, as grandes avenidas dos bairros industriais de São Paulo.73

Os bairros industriais teriam assim aquilo que era fundamental para o progresso econômico das empresas, vias de comunicação, mas sua população proletária seria afastada dos rios e várzeas sem nada ganhar em troca. A crise econômica mundial iniciada em 1929 e seus efeitos nas finanças públicas, bem como um prolongado período de instabilidade político-institucional que se seguiu à revolução que pois fim à República Velha em outubro de 1930, impediram que os trabalhos de retificação do Tietê fossem implementados. De 1930 até 1934, a cidade conheceu nada menos do que dez prefeitos diferentes, sendo que em 1932 ocorreu mesmo uma breve guerra civil em terras paulistas. Em 1934, Fabio Prado assumiu o executivo municipal e, em 1937, restabeleceu os trabalhos da Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê, novamente liderados por Ulhoa Cintra. Este, entretanto, barraria o começo imediato das obras, julgando demasiadamente altos os preços propostos para a execução do serviço, que seria realizado por uma firma do Rio de Janeiro. Em novembro desse mesmo ano foi instaurada no país a ditadura do Estado Novo, e, no ano seguinte, o engenheiro Prestes Maia é nomeado prefeito. A retificação do Tietê torna-se prioritária e ganha vulto a partir de 1940, integrada ao grande projeto viário que o prefeito pretendia implementar na cidade.74 A criação de grandes avenidas laterais ao Tietê, fosse margeando parques e áreas verdes, ou não, como na proposta de Ulhoa Cintra e Prestes Maiá, não precisaria obstruir os esforços em prol da navegação. Em 1922, Victor da Silva Freire, urbanista chefe da Diretoria de Obras da Prefeitura de São Paulo, ao discutir as intervenções no Tietê, afirmava:

A montante da Capital constitui a rio via de comunicação Relatório de 1926 apresentado pelo Dr. J. Pires do Rio prefeito do Município de São Paulo. São Paulo: Seção de Obras Raras d’O Estado de S. Paulo, 1927.

73

74 Silva, Lysandro Pereira, op. cit., p. X, 244; Os melhoramentos de Sao Paulo; palestra pelo engenheiro Francisco Prestes Maia, Prefeito Municipal. São Paulo: 1945.

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preciosa para o abastecimento de um centro populoso que contará, não muito longe, mais de um milhão de habitantes. Abastecimento em gêneros de alimentação e em materiais de construção de todas as categorias. Curso em que a navegação pode com facilidade estender-se sobre cem quilômetros. Para jusante da Ponte Grande, não é menos atraente a perspectiva que se nos depara (...).75

Em 1950, em relatório sobre as obras de retificação do Tietê, o chefe da Comissão de Melhoramentos do Tietê, Lysandro Pereira da Silva, ao discorrer sobre o perfil do novo leito, ressaltava a necessidade de se impedir “o aparecimento de bancos de lodo ou de depósitos sedimentados, que apresentariam detestável aspecto e dificultariam sobremaneira a navegação”. E indicava como a ponte do Limão estava sendo construída de tal forma que poderia comportar quatro comportas móveis que seriam fechadas na estiagem para garantir, a montante, até Guarulhos, uma profundidade de três metros, no mínimo. “Além disso, seriam instaladas duas eclusas de navegação que garantiriam a passagem das embarcações quando as eclusas principais estivessem fechadas. Mas o incremento da navegação em São Paulo e arredores pressupunha que o poder público participasse da administração das águas do Tietê, o que não acontecia. Além disso, cada vez mais a indústria automobilística e o transporte automotivo medraram as possibilidades da navegação e provocaram mesmo o paulatino abandono das ferrovias. Bem mais polêmica do que a viabilidade da navegação era a utilização das águas do Tietê para o abastecimento da cidade. Em 1905, Saturnino de Brito, em um estudo sobre o tema, afirmava que cumpria ao “governo previdente conservar as águas do Tietê, senão melhorar as; condições do seu curso desde as cabeceiras, como a fonte abundante e inesgotável que fatalmente atenderá ao futuro”. Ele acreditava que:

(...) o fato de se ter atualmente condenado doutrinariamente as águas do Tietê, conduzirá ao abandono das suas margens 75

Boletim do Instituto de Engenharia. São Paulo, n. 19,1923, p. 185.

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e do seu curso, ao desenvolvimento de povoações para montante, e ao lançamento de impurezas que contaminarão o que com a “lei de proteção” se pode desde já conservar e transmitir sem mácula ao porvir, de modo que as águas sejam cada vez mais potáveis em lugar de se tornar cada vez mais poluídas. (...) O único meio de manter a integridade higiênica do rio é a lei de proteção e a prática do abastecimento: - então velarão por ele os interessados pelas pureza de suas águas, o povo e os governos quaisquer, hoje e sempre. Mesmo que os estudos definitivos provem a vantagem de ainda se recorrer às águas de cursos menos expostos a contaminação (como sejam os dois Cabussú, o Cotia etc.) é preciso proteger as águas do Tietê, a grande reserva de São Paulo.76

De fato, na época, nos meios técnicos e científicos prevalecia a idéia de que a água para o abastecimento deveria vir de mananciais protegidos da ocupação humana, as chamadas “águas protegidas”, idéia a qual se opunham aqueles que acreditavam que as tecnologias de tratamento de água eram mais importantes do que o lugar de onde a água provinha, em caso extremo, desprezando até mesmo medidas legais de proteção dos mananciais como as propostas por Saturnino. Enquanto os partidários das águas protegidas repudiavam a utilização do Tietê, visto como um manancial impuro, para outros era perfeitamente viável a sua utilização no abastecimento.77 O primeiro manancial com águas protegidas na cidade surgiu em 1877, na Serra da Cantareira, quando um consórcio de capitalistas nacionais e engenheiros ingleses fundou uma companhia que levava o nome da serra, e obteve concessão para implantar os serviços de água e esgoto na cidade. O abastecimento no núcleo central, então, era precário, como bem indicam os versos satíricos do ex-escravo e livre pensador Luís Gama, Brito, Saturnino de. Abastecimento de Águas. Rio de Janeiro; Imprensa Nacional, p. 60-61.

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Bueno, Laura Machado de Mello. “O Saneamento na Urbanização de São Paulo”. São Paulo: Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 1994, p. 72; Marcondes, Maria José de Azevedo. Cidade e Natureza, Proteção dos Mananciais e Exclusão Social. São Paulo: Studio Nobel/EdUSP/PAPESP, 1999, p. 63. 77

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publicados em O Polichinelo no ano de 1876, em homenagem aos senhores do governo:

(...) Mandai guardar a chuva que Deus dá Em vastos caldeirões para pô-la depois nos chafarizes; Senão, em vindo a seca, a maior parte destas populações há de atirar aos olhos e narizes de vossas excelências as suas respeitosas maldições. Vós, cujo oficio é produzir artigos. Em prol das presidências; Vós, que as amais enquanto elas têm “figos”; Vós, chefes cabalistas Ponde em seguro a sede dos paulistas78

Para matar a sede dos paulistanos a Cia. Cantareira passou a captar águas na serra, as quais, através de 14,5 km de tubulações, chegavam a um reservatório construído na rua da Consolação. De lá, a água era distribuída aos chafarizes da cidade, inclusive àqueles que a empresa foi obrigada contratualmente a construir, bem como aos 133 edifícios que, em 1882, contrataram os serviços da Cia. e recebiam água diretamente por encanamentos, algo inusitado na cidade.79 Mas a maioria dos habitantes de São Paulo não recebia água em seus domicílios, tanto pela Cia. Cantareira 78 Foi recorrente em todo o século XIX queixas e protestos da população contra a falta d’água. Tais manifestações de descontentamento, além de pragas e maldições aos senhores do governo, traduziam-se em inflamados artigos nos periódicos paulistanos, ou em charges e sátiras dos semanários como O Diabo-Coxo e o Cabrião. Acontecia mesmo de explodirem verdadeiros motins populares contra a feita d agua, como em 1866-1867. Freitas, Afonso de. Tradições e Reminiscências Paulistanas. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1954, p. 30-31,101.

Richard Morse ressaltou o modo como a água encanada alteraria os hábitos e o funcionamento da cidade; “Quando na noite de 1° de junho de 1882 os sinos das igrejas começaram a tocar dando alarme, como antigamente, de incêndio no Hotel Espanha, os habitantes da cidade, como antigamente também, acorreram ao local para prestar auxílio. Mas os tempos modernos fizeram deles circunstantes passivos, meros espectadores ávidos de sensação. O incêndio foi extinto por um novo departamento de bombeiros, recentemente criado, e servido por hidrantes há pouco instalados”. Morse, Richard P. De Comunidade a Metrópole. A Biografia de São Paulo. São Paulo: 1954, p. 193.

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não atender a todas as regiões da cidade, como por não terem dinheiro para contratar o serviço da empresa. Assim, continuavam se abastecer nos chafarizes, nas fontes e bicas ou mesmo nos aguadeiros, a maioria portugueses, que efetuavam vendas de porta em porta carregando uma enorme pipa d’água ambulante. Com o passar dos anos as queixas dos munícipes contra os serviços prestados pela Cia. Cantareira avolumavam-se na Câmara Municipal. Em 1893, a empresa, para forçar os moradores a contratar os serviços de água domiciliar começou a demolir os chafarizes da cidade, não só os que entregara ao público onze anos antes, mas também os que haviam no Largo do Carmo e no Largo do Rosário. Quando este último estava sendo derrubado, populares tentaram impedir que a demolição se concretizasse, mas foram impedidos pela força policial, o que provocou enorme tumulto.80 Além de uma manifestação de repúdio e ressentimento aos procedimentos da Companhia Cantareira, a revolta popular provavelmente expressava a recusa dos segmentos empobrecidos da população do centro da cidade em aceitar a mercantilização da água, um bem que tradicionalmente obtinham gratuitamente. Por outro lado, compunha um contexto mais amplo, o das tensões decorrentes da tentativa de se fazer da região central um espaço aburguesado, que não admitia em seu interior os habituais frequentadores dos chafarizes, em particular a população de origem africana.81 Nesse mesmo ano de 1893 o governo do Estado encamparia a Cia. Cantareira, que deixara de cumprir suas obrigações contratuais, e criaria a Repartição de Água e Esgotos.82 A RAE expandiu rapidamente a rede de abastecimento e nos dois anos seguintes a sua criação, conseguiu aumentar em 50% o número total de prédios atendidos. Ao mesmo tempo procurou ampliar a captação de águas. Para isso foram feitas diversas obras que aumentaram a capacidade de abastecimento da Cantareira. Em 1897,

80 Bruno, Ernâni Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. São Paulo; Editora Hucitec, 1984, vol. III. p. 1124

Após o ano de 1904, depois de demolida a igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, e remodelado, o Largo do Rosário seria chamado de Praça Antonio Prado, tornando-se um dos lugares mais elegantes da cidade. Koguruma, op. cit., p. 136-138. 81

82 Whitaker, A. P. “Abastecimento de Água da Cidade de São Paulo” In: Revista Engenharia, São Paulo, n. 50,1946, p. 65.

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o novo reservatório na Consolação comportava 19 milhões de litros.83 A Repartição de Águas e Esgotos contava, inicialmente, com a captação de água nos mananciais da Serra da Cantareira e, a partir de 1893, das nascentes do córrego do Ipiranga represadas na Água Funda. Mas se os chafarizes saíram de cena rapidamente, assumindo apenas funções ornamentais na cidade, a expansão da água encanada não era capaz de atender a todos, o que fazia com que os moradores de muitos bairros continuassem a recorrer aos poços, às bicas, aos rios e córregos quando precisavam de água. Em 1898 tentou-se, sem sucesso, o aproveitamento em larga escala de águas subterrâneas, com a perfuração de três poços profundos na margem do Tamanduateí, ao lado da Ponte do Carmo. Diante do consumo crescente e da incapacidade em se conseguir água suficiente, a RAE iniciou as obras de captação do rio Tietê, na altura do Belenzinho, sendo as águas recalcadas para a zona baixa do Brás passando por galerias filtrantes, mas, na verdade, incapazes de garantir sua potabilidade. Antes disso, em 1891, o Brás e os bairros próximos haviam sido temporariamente excluídos do sistema Cantareira e abastecidos pelas águas do córrego do Ipiranga. Até meados dos anos 1920, a utilização das águas do Tietê para abastecer as partes baixas da cidade foi recorrente diante de qualquer dificuldade. Ao final do século XIX bairros considerados distantes da zona central da cidade, como Perdizes, Água Branca, Lapa, Vila Cerqueira Cesar e Vila Mariana, não eram abastecidos com água encanada, entre outras razões, porque a configuração da cidade em diversos núcleos esparsos e separados entre si por vales e espigões aumentava o custo da ampliação da rede.84 Grandes usuários podiam elaborar sistemas de abastecimento paralelos: em 1928, entre as “úteis reformas” por que estava passando o Mercado de Peixes, incluía-se a construção de um poço artesiano, a fim de que ficasse “dotado de um melhor serviço de água”.85 Em 1907 foi feita a adução dos ribeirões Cabuçu e Barrocada, para abastecer a parte baixa da cidade, e, em 1914, a área em tomo do Cotia foi desapropriada, o rio represado e incorporado ao sistema de abastecimento, Cerca de dez anos depois, a falta d’água era novamente um grande probleIdem, p. 66.

83

Whitaker,op. cit., p. 65.

84

Notas e Informações”, OESP, 4/3/1928, p. 4.

85

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ma para a rae, e, em 1925, uma estiagem prolongada provocou uma grave crise. A Comissão de Obras Novas de Abastecimento de Água da Capital foi encarregada então, de viabilizar a implantação do projeto Rio Claro, que captaria água a mais de 80 km de São Paulo, através de um conjunto de barragens, estações elevatórias e adutoras, obra cara e polêmica.86 Um estudo elaborado em 1926 pelo diretor da Comissão de Obras Novas, Henrique de Novaes, indicava que 15,86% dos moradores de São Paulo, mais de 122 mil pessoas, moravam em domicílios não atendidos pela rede oficial de abastecimento, sendo que os demais 650 mil habitantes da cidade eram abastecidos precariamente, pois, pelos cálculos de então, a água aduzida pela RAE era suficiente para atender apenas 480 mil pessoas, com a estimativa de consumo de 250 litros por habitante/dia.87 Em 1927, o governo estadual interrompeu os trabalhos em Rio Claro e decidiu utilizar para o abastecimento da capital as água da represa do Guarapiranga, uma pequena contrapartida aos privilégios concedidos à Light. Abandonou, portanto, definitivamente a política até então seguida de utilizar para abastecimento preferencialmente as “águas protegidas”, já que a bacia hidrográfica do Guarapiranga era ocupada. No período começava-se a adotar novas técnicas de desinfecção e tratamento de água, que passaram a ter a cloração obrigatória. No final da década de 1920, a represa do Guarapiranga fornecia 37% da adução total da capital, livrando a cidade de um iminente colapso no abastecimento de água. O abastecimento de água não foi capaz de interferir beneficamente no futuro do Tietê. Na verdade este foi definido cada vez mais pela hidroeletricidade, mais precisamente pela São Paulo Tramway Light and Power Company Limited, que deteve o monopólio do setor por quase oitenta anos. A empresa, um conglomerado canadense-anglo-americano, foi criada em Ontário, Canadá, e autorizada a funcionar no Brasil por um decreto do presidente Campos Sales em 17 de junho de 1899. Era comandada do Canadá por William Mackenzie, que tinha como sócio maior o engenheiro elétrico norte-americano Fred Pearson. Na verdade, o grupo de capitalistas que dominavam a Light, seus fundadores e principais acionistas, lideravam empreendimentos em diferentes partes do mundo. No Brasil, além de São Paulo, o grupo atuava no Rio de Janeiro Savelli, Mário. “Histórico-do Aproveitamento das Aguas da Região Paulistana” In: Revista do DAE, n. 53,1964, p. 85, ver nota 57; Bueno, op. ciL, p. 68,72.

86

Bueno, op. cit, p. 74.

87

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e em Salvador. Em 1912, a Light se transfigurou em uma nova empresa, a Brazilian Traction, Light and Power Co. Ltd., que reunia a The São Paulo Tramway, Light and Power Co., The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Co., e São Paulo Eletric Co. - criada em 1911, depois da aquisição pelo grupo da Empresa Elétrica de Sorocaba, o que significou a controle da Light sobre o rio Sorocaba.88 A partir da Europa e da América do Norte grandes empresas capazes de mobilizar recursos técnicos e financeiros transformavam novas fontes de energia descobertas no final do século XIX em mercadorias lucrativas, capazes de serem produzidas e distribuídas em larga escala. A atuação da. Light, no Brasil, assim, fazia parte de um contexto maior. Por outro lado, os países centrais da Europa e os Estados Unidos viviam uma fase de imperialismo agressivo, o que facilitava a expansão de suas corporações pelo mundo afora, ainda mais porque tais economias tinham capitais excedentes que precisavam ser reinvestidos para garantir o funcionamento de seus mercados, que sofriam com a baixa dos juros e a queda da lucratividade de seus investimentos internos. Regiões frágeis do ponto de vista militar e incorporadas ao mercado mundial como exportadoras de produtos primários tornaram-se rapidamente os principais destinos dessas aventuras empresariais, pois ofereciam altas taxas de lucros e moeda forte, resultado das exportações. Afinal, as elites nativas eram suscetíveis às pressões dos países centrais e dos grandes grupos financeiros, quando não seus aliados e sócios, e a economia exportadora demandava investimentos em ferrovias, portos e telégrafos. As cidades que cresciam, por sua vez, precisavam ser dotadas de infra-estrutura urbana.89 É pouco provável que os moradores da paulicéia imaginassem que a simples autorização concedida à Light para construir uma hidroelétrica na Cachoeira do Inferno, no rio Tietê, altura de Parnaíba, como constaWilliam Mackenzie tinha negócios em transporte público em Winnipeg, Toronto, Cuba, Jamaica e Birmingham, e era partícipe do projeto de construção da Canadian Northern Railway, que uniria o país de costa a costa. A criação da “holding Companies”, usual no mundo dos negócios de então, multiplicou duas vezes e meia o capital nominal da The São Paulo Light, proporcionando enormes lucros aos seus dirigentes, em especial a E S. Person e Sir William Mackenzie. Carvalho, Rogério Lopes Pinheiro de. “Ritmos e Impressões: Modernidade e Cosmopolitismo em São Paulo: 1899-1920”. São Paulo: Dissertação de mestrado, Depto. De História, FFLCH-USP, São Paulo, 2003, p. 17; Saes, Flávio. “Café, Indústria e eletricidade em São Paulo” In: História e Energia, n. 1, maio de 1986, p. 2.

88

Szmrecsányi, Tamás. “A era dos trustes e cartéis” In: História e Energia, n. 1, maio de 1986, p. 7-9. 89

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va no contrato de iluminação pública da capital, em 1899, fosse se tornar a ponta de lança para que a empresa se apropriasse completamente dos recursos hídricos de São Paulo algumas décadas depois. Pelo contrário, a perspectiva da construção de uma grande usina, substituindo a pequena usina elétrica movida a vapor da Companhia Água e Luz de São Paulo foi motivo de satisfação para grande parte dos habitantes da capital paulista, que acreditavam ver sua cidade na era da eletricidade abundante, com tudo de maravilhoso que ela prometia, bem como a luz e os bondes elétricos que substituiriam a iluminação a gás e os bondes puxados por burros, estes mantidos pela Companhia Viação Paulista. E havia ainda o cinema. O monopólio foi a pedra angular da atuação da Light em São Paulo; a empresa, através de manobras jurídicas, políticas e financeiras, rapidamente afastou seus concorrentes brasileiros, a Companhia de Água e Luz e a Viação Paulista. A britânica San Paulo Gás Co. resistiu durante algum tempo, e disputou o mercado da iluminação pública, mas acabou sendo incorporada ao grupo Light. Do ponto de vista técnico e organizacional a empresa era eficaz e uma verdadeira máquina de fazer lucros e dividendos. Assim, rapidamente percebeu que poderia operar no mercado de terras, aproveitando seu enorme poder de intervenção no espaço urbano para especular ou valorizar propriedades de aliados locais.90 De fato, para que pudesse operar sem restrições, a empresa mantinha relações próximas com a elite política e social, que procurava incorporar aos seus negócios, com o que se precavia também de sentimentos nacionalistas. Em 1907, um relatório da Light enviado à sede em Toronto informava com satisfação que Albuquerque Lins, recém-eleito presidente do Estado, “é um homem bem conhecido da companhia e acredita-se que a atitude do novo governo será de manter as justas e agradáveis relações existentes durante a administração passada” - a “de Jorge Tibiriçá. Quando de uma nova escolha de Antonio Prado para mais um mandato de prefeito e de um grupo de vereadores, um outro relatório asseverava que:

nas mãos desses cavalheiros os negócios da companhia sempre receberam a mais cordial e honrada consideração (...) Como nossa companhia é ao mesmo tempo estrangeira e concessionária de serviço público (...) é natural que estejamos Saes, Flávio, op. cit., p. 21.

90

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interessados nessas questões políticas e podemos muito bem congratularmo-nos, tal qual a população desta comunidade, acerca dos resultados destas eleições.91

A empresa mantinha um jornal de circulação diária para se contrapor aos seus numerosos críticos, e chegava mesmo a atuar eleitoralmente. Ao menos é o que denunciava o jornal O Commércio de São Paulo em 26 de outubro de 1908, para quem “acostumada a impor sua vontade, a Light, todo São Paulo o sabe, alistou seus eleitores todos os seus operários, obrigando-os como se fossem lacaios a votarem na chapa que lhes indicar e que lhes convier.92

A usina de Parnaíba, localizada cerca de 33 quilômetros a jusante da capital, ou seja, Tietê corrente abaixo, ficou pronta em 23 meses e, em 1901, já começava a operar suas duas primeiras unidades geradoras de mil kw cada, alcançando, décadas depois, a carga máxima de 16 mil kw. A empresa garantia assim uma fonte de abastecimento para cumprir seus contratos de iluminação pública e circulação de bondes elétricos, sobrando ainda eletricidade para ser vendida a residências, fábricas e a quem mais se interessasse. Cabe notar que a montagem de usinas elétricas a vapor e hidroelétricas no Brasil ocorreu simultaneamente à Europa e à América do Norte. A primeira hidroelétrica estadunidense foi construída em Wisconsin, em 1882, e, no Brasil, a primeira hidroelétrica concebida como serviço de utilidade pública, para abastecer a cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, foi montada no rio Paraibuna, em 1889. Nos últimos anos do século XIX, avanços técnicos permitiram que a potência das usinas aumentasse e viabilizaram a transmissão elétrica em larga escala, sem grandes perdas, a distâncias cada vez mais longas.93 Carvalho, op. cit, p. 18.

91

Beiguelman, Gisele; Faria, Nívea. “A Empresa Política” In: História e Energia, n. 1, maio de 1986, p. 32-33.

92

Branco, Catulo. Energia Elétrica e Capital Estrangeiro no Brasil. São Paulo: Editora

93

63


Na São Paulo cuja população não parava de aumentar e que adotava padrões de produção e consumo cada vez mais parecidos com aqueles desenvolvidos nas grandes cidade norte-americanas e européias, a demanda por eletricidade era crescente. A industrialização paulatinamente se consolidava e, embora os motores a vapor fossem importante força motriz das fábricas, os motores elétricos eram cada vez mais requisitados. Assim, anos depois da construção da Usina de Parnaíba, a Light resolveu construir uma represa, a do rio Guarapiranga, um dos formadores do Pinheiros. Na época das chuvas a água era acumulada na grande represa e nos meses de seca despejada no Pinheiros, chegando por meio deste ao Tietê, ajudando, assim, a aumentar a produção hidrelétrica em Parnaíba. Embora inicialmente o faturamento com o transporte público fosse a principal fonte de ganhos da Light, a partir do anos 1920, estava claro que a venda de eletricidade iria ocupar o primeiro plano.94 Tanto a usina de Parnaíba como a represa de Guarapiranga tornaram-se rapidamente motivo de orgulho de muitos paulistas, pois eram obras grandiosas e inéditas, e no caso de Guarapiranga, criara-se mesmo um dos locais mais aprazíveis e belos de São Paulo. Não era de se espantar que, rapidamente, tais obras figurassem nos cartões postais vendidos na cidade. Contudo, a construção da represa e sua posterior operação nada tiveram de pitoresco e deixaram bem claro os métodos de ação da Light. O primeiro caso rumoroso se deu quando da desapropriação da área que ia ser inundada pelo represamento do rio Guarapiranga, no então município de Santo Amaro - anexado à capital paulista somente em 1935, Santo Amaro, desde tempos coloniais, fornecia a São Paulo produtos de origem agropastoril, carvão, lenha e alguns outros materiais extraídos da rica natureza da região, existindo ali numerosos sitiantes e chacareiros. Boa parte deles tinhas suas mo-destas propriedades às margens do rio Guarapiranga e, quando se anunciou o seu represamento, ficaram atônitos. Sitiante e chacareiros se diziam severamente prejudicados pela construção da represa, que iria obrigá-los a encontrar caminhos novos e mais longos para as regiões circunvizinhas, já que os tradicionais seriam inundados. Mas o que causava mais revolta era o fato de muitos terem suas propriedades adquiridas pela Light, para a formação da represa por um Alfa-ômega, 1975, p. 46,134. Saes, Flávio, op. cit.., p. 29.

94

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preço irrisório, que não chegava nem mesmo a pagar as benfeitorias das propriedades, sendo que os empregados da empresa eram acusados de cometerem abusos quando das negociações com os proprietários. Entre esses funcionários figurava, inclusive, o 1º delegado de polícia da vila, o tenente Amaro Vieira. Protestos dos atingidos ocorreram por toda parte e o caso ganhou espaço nas páginas dos jornais. Pediu-se mesmo que o presidente do estado, Jorge Tibiriçá acudisse, dando uma basta aos desmandos da potência estrangeira, mas foi a Light que conseguiu que o governo do Estado fizesse algumas desapropriações oferecendo indenizações abaixo do valor de mercado.95 Em junho de 1908, quando a represa com capacidade para armazenar 195 milhões de metros cúbicos começou a encher, uma infiltração na barragem, um aterro, hidráulico na extensão de 1.640 metros por 15 metros de altura, foi notícia nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo e deixou a cidade em pânico. Para o paulistano A Platea, se ocorresse “um grande desmoronamento, aliás, muito provável, esse extraordinário volume de água, caindo com violência, poderá dentro de 20 minutos elevar no bairro da Lapa o nível do rio Tietê a mais de 10 metros de altura”. O risco existia, tanto que a represa foi esvaziada e a falha na barragem corrigida.96 A usina de Parnaíba e a represa do Guarapiranga marcam o início da intervenção da Light em toda a bacia do Alto Tietê de forma a viabilizar a produção em larga escala de energia elétrica com altas taxas de lucros. De fato a lógica da maximização dos lucros condicionava as próprias decisões técnicas e suprimia qualquer consideração sobre os impactos sociais causados pela operação do sistema hidroelétrico. Assim, as cheias periódicas dos grandes rios paulistanos, fenômeno natural na época das chuvas tornavam-se mais destrutivas pela forma como a Light administrava seus reservatórios, mantendo-os o mais cheio possível. Obras de combate às enchentes, planejadas ou promovidas pelo poder público, ficavam inviabilizadas diante disso. Já na década de 1920 o sistema hidroelétrico montado pela Light não era capaz de garantir o fornecimento pleno de eletricidade em São Paulo, 95 Segatto, José Antônio “Guarapiranga” In: História e Energia, 5: Rios/ Reservatórios/Enchentes. São Paulo: Eletropaulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 1995, p. 18-19; Beiguelman, Gisele. “A Lapa vai virar Mar, Santo Amaro vai virar Sertão!” In: Memória Energia, n. 26, jan/ ago 1999, p. 22. 96

Beiguelman, op. cit., p. 22.

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o que ameaçava a expansão industrial paulista. Apesar disso, a empresa tomava todas as medidas para impedir a quebra de seu monopólio, valendo-se de seus recursos financeiros e de influências, conseguindo leis e contratos privilegiados. Assim, a Light, sistematicamente, procurou se apoderar dos acidentes capazes de abrigar grandes projetos hidroelétricos públicos ou privados em uma vasta zona ao redor de São Paulo. Mesmo grandes capitalistas nacionais como a Companhia Brasileira de Energia Elétrica, de propriedade de Eduardo Guinle e Candido Gaffré, nada menos que os proprietários da Companhia Docas de Santos, e que tentavam penetrar no mercado paulistano, foram incapazes de vencer o monopólio da empresa. E com o monopólio, a Light podia desdenhar até mesmo clientes como a Companhia Nacional de Juta, de Jorge Street, um dos mais prestigiados industriais de São Paulo, que, em 1912, protestara pelo fato de não ter obtido resposta a um pedido de fornecimento de energia elétrica para a sua fábrica.97 O monopólio privado ajudava a criar situações com as de 1924 e 1925. Nesses anos, uma forte estiagem atingiu São Paulo e o abastecimento entrou em crise: os bondes elétricos não conseguiam subir as ladeiras, anúncios luminosos foram proibidos nas lojas, moradores temeram ficar no escuro e industriais de irem à falência devido às máquinas paradas. Na verdade, a demanda crescente por eletricidade, fato em São Paulo, e a ausência de investimentos que aumentassem a produção faziam da crise algo previsível, embora fosse antecipada pela estiagem. Para impedir o colapso total do abastecimento a Light construiu rapidamente a usina do Rasgão, no Tietê, na altura de Pirapora do Bom Jesus, e ampliou as usinas de Itupararanga, no rio Sorocaba, e Paula Souza, na capital paulista e movida a vapor.98 Obras emergenciais, elas não eliminavam a escassez de eletricidade. A Light aproveitou a situação de crise e diante dos reclamos generalizados da população de São Paulo, impôs ao poder público o controle de toda a bacia do Alto Tietê. Cabe notar que o presidente do Estado entre 1924 e 1927 era Carlos de Campos, um ex-advogado da empresa e genro de um dos nativos que deu suporte à entrada do grupo no mercado brasileiro. Para a Light isso era imprescindível, a partir do momento que a Milão Love, op. cit. p. 96; Saes, Flávio, op. cit., p. 29.

97

Helou, Gisela Nascimento. “Políticas de Aproveitamento de Recursos Hídricos, In: História e Energia, 5: Rios/ Reservatórios/Enchentes. São Paulo: Eletropaulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 1995, p. 137.

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Società Ítalo-Americana, que possuía industrias em Salto, interior paulista, e era ligada ao poderoso grupo italiano Pirelli, associou-se à empresa brasileira Belli & Cia. para criar a Brasital, que comprou a Cia. Ituana de Força e Luz. A Brasital iniciou um grande projeto hidroelétrico em Salto, no coração da cidade e na confluência dos rios Tietê e Jundiaí, a usina de Porto Góes. Usina que ficava fora da área de concessão da Light, mas suficientemente perto da capital para abastecer o mercado paulistano e acabar com o monopólio da eletricidade.99 Assim, em 1925, a Light apresentou uma proposta grandiosa ao governo estadual, o projeto Serra, que consistiu na formação de um reservatório ainda maior do que o de Guarapiranga, através do represamento do rio Grande, o outro grande formador do Pinheiros. As águas acumuladas no topo da Serra do Mar seriam enviadas para o leito do rio das Pedras, localizado próximo à represa, mas com vertente oceânica, e daí, em tubulações enormes, precipitadas em uma queda de ma.is de 700 metros, acionariam as turbinas de uma usina construída no sopé da serra, junto do córrego Cubatão. A idéia de utilizar o desnível entre o planalto e o litoral para fins hidroelétricos não era nova, na verdade era corrente entre os engenheiros, mas a execução do empreendimento era impressionante do ponto de vista técnico, mobilizaria milhares de trabalhadores. A usina produziria a extraordinária marca de 1 milhão de kw. Contudo, o projeto Serra como ficou conhecido, era ainda mais ambicioso, pois a Light tinha o direito de utilizar as águas do Tietê e seus afluentes para acionar a usina de Cubatão. Para isso seriam construídas catorze reservatórios em São Paulo, os quais, através de túneis e canais, seriam interligados à represa do rio Grande. Tal concepção era bastante promissora para a cidade, pois retomava as propostas de Saturnino de Brito, que propusera o conjunto de represas a montante de São Paulo, como forma de combater as enchentes, formar mananciais para o abastecimento e incrementar a navegação, já que elas poderiam regularizar o regime do Tietê, que oscilava tremendamente no período de chuvas e de estiagem. Como a montante da Paulicéia as águas do Tietê eram menos afetadas pela poluição, o mesmo ocorrendo com a represa do rio Grande, haveria riquíssimos mananciais de água a poucos quilômetros da metróVictorino, Valério Igor Príncipe. “Luz e Poder na dramática conquista do meio natural. A privatização dos rios paulistanos e a reflexividade sócio-ambiental”. São Paulo: Tese de Doutorado, Depto. de Sociologia, FFLCH-USP, 2002, p. 113-114. 99

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pole nascente.100 Contudo, ardilosamente, a Light alterou o seu projeto inicial, o que trouxe consequências desastrosas para São Paulo e cidades próximas. Primeiro, conseguiu uma concessão do governo estadual para retificar o rio Pinheiros em troca do direito de propriedade sobre as várzeas inundáveis saneadas, que foram posteriormente vendidas. As várzeas do Pinheiros foram definidas, por esse contrato de concessão, como as áreas atingidas pelas águas do rio com base na maior cheia registrada. Por isso mesmo, em 1929, a Light provocou a maior enchente da história da cidade, ao abrir as comportas de Guarapiranga quando os rios paulistanos já estavam altíssimos em virtude de vários dias de chuva intensa.101 As águas do Pinheiros e do Tietê avançaram sobre terrenos onde ninguém jamais imaginaria que isso pudesse ocorrer. Outra modificação fundamental no projeto Serra foi que as águas do Tietê foram incorporadas ao complexo hidroelétrico de Cubatão com a reversão do curso do Pinheiros retificado, através das usinas elevatórias da Traição, construída na altura do Butantã, e a da Pedreira, na represa do rio Grande. O Tietê, represado em Parnaíba, passaria a ser afluente do Pinheiros e as águas de ambos, assim como as da represa de Guarapiranga, iriam para a represa do rio Grande. Correndo ao contrário, os maiores rios da cidade, Tietê e Pinheiros, tornaram-se tributários do pequenino rio das Pedras e passaram a acionar as turbinas em Cubatão. Desse modo, a Light, em um só lance se apropriou das várzeas do Pinheiros, conseguiu aumentar a produção de eletricidade com menos investimentos em obras e impediu que as águas do Tietê seguissem em direção a hidroelétrica de seus competidores - que, diante disso, abandonaram seu projeto, vendendo suas instalações para a própria Light.102 Mas esse sistema engenhoso fazia com que as águas do Tietê e do Tamanduateí fossem enviadas à represa do rio Grande depois de receberem todo ó esgoto da cidade de São Paulo e das cidades vizinhas a montante, de tal forma que passariam a degradar a represa e sua região lindeira. Igualmente terrível, era o fato de que toda a região a montanIdem.

100

Seabra, Odette Carvalho de Lima. “Meandros dos Rios nos Meandros do Poder. Tietê e Pinheiros: Valorização dos Rios e das Várzeas na Cidade de São Paulo”. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, Depto. de Geografia, 1987, p. 173 e ss.

101

Victorino, op. ciL, p. 115-116.

102

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te de Parnaíba, ou seja a própria cidade de São Paulo funcionaria como uma grande represa da usina de Cubatão. O que ficou bastante claro nos anos 1950 quando o sistema passou funcionar plenamente, como denunciou o engenheiro Catulo Branco. Em 1955, uma publicação da empresa, afirmava que com ó alteamento da barragem de Parnaíba “o remanso das águas se estenderá a todo o trecho do Rio Tietê fronteiro à cidade de São Paulo, para além da barra do Rio Pinheiros, alcançando quase o nível de Guarulhos”.103 O resultado de tal medida para a cidade pode ser auferido pelo depoimento do professor e engenheiro Luís Américo Pastorino à “Comissão Especial para Estudo das Enchentes do Tietê e seus Afluentes”, instituída pela Câmara Municipal de São Paulo em 1963. Diante da pergunta se a Light abria ou não as comportas de Parnaíba quando das enchentes em São Paulo, ele afirmou que num dia em que a cidade estava totalmente tomada pelas águas, ele foi até Parnaíba e constatou que as comportas da barragem estavam todas fechadas, quando deveriam estar totalmente abertas para desafogar a cidade. Embora não tivesse nem sequer “o apoio moral” do Departamento de Águas e Energia Elétrica, órgão estadual onde trabalhava, ainda assim sua denúncia fez com que o secretário de governo pedisse esclarecimentos à Light. Cinco engenheiros da empresa compareceram a reunião marcada, sendo que o governo do Estado mandou apenas o professor Pastorino. Enquanto os representantes da Light trouxeram inúmeros gráficos, plantas, documentos, fluviogramas, cálculos, o governo estadual não apresentou nenhum dado ou estudo sobre o Tietê, pois eles eram inexistentes. Sobre os resultados do encontro, afirmou Luís Américo Pastorino que fora “completamente derrotado pelos engenheiros da Light, pela simples razão de que às alegações dos mesmos de que estavam com razão, eu não podia responder, porque eles mostravam gráficos, cálculos e trabalhos que eu, evidentemente, não poderia estudar, interpretar e rebater!104 Mas os esforços da Light para afastar o poder público da efetiva administração dos rios de São Paulo eram antigos. Como não havia referência à exploração de recursos hídricos na Constituição de 1891, vigente até 1934, Citado por Branco, Catulo, op. cit, p. 84.

103

Relatório da Comissão Especial para Estudo das Enchentes do Tietê e seus Afluentes. Câmara Municipal de São Paulo, 1963, apud “A questão das enchentes em São Paulo” In: História e Energia, n. 5,1995, p. 100.

104

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em 1909 foi elaborado por Alfredo Valadão, a pedido do presidente Nilo Peçanha, o projeto de um Código de Águas. Mas ele ficou paralisado no Congresso Nacional até a década de 1920, em grande parte devido à influência política da Light, que temia que a regulamentação restringisse e impusesse limites a sua atuação. Foi preciso uma revolução nacionalista em 1930 para que o governo federal promulgasse em 10 de junho de 1934, o decreto n° 24.643 que instituiu o Código de Águas, elaborado a partir das propostas de Valadão.105 De fato, visto na longa duração, a estratégia operacional da Light em São Paulo foi sempre impedir preventivamente a emergência de qualquer interesse organizado em torno dos recursos hídricos do Alto Tietê. Monopolizando grande parte dos serviços públicos em São Paulo, atuando em diferentes negócios, com influência na imprensa e próxima ao poder, entende-se porque a Light era conhecida popularmente como o “polvo canadense”, já que seus tentáculos penetravam por toda a cidade e arredores. E quando o polvo estende seus tentáculos por sobre outra cria-

tura viva, geralmente, é porque ela é sua presa.

105 Coleção das Leis dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, vol. IV, Parte, 1936, p. 679-716.

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mapas e

fotografias


mapa 1 - apud: Guia e Planta da Cidade de SĂŁo Paulo de 1933

72


mapa 2 - Mapa de São Paulo e áreas vizinhas apud: Azevedo, Aroldo. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, vol 1

73


mapa 3 - Detalhe da “Planta do Alto Tietê entre Osasco e Penha” e do “Projeto de melhoramentos entre Osasco e Penha”, em 1924-1925. Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê.

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Carolina Maria de Jesus na favela do Canindé, em 1958. Em seu diário, descoberto pelo jornalista Audálio Dantas, o sofrimento dos muito pobres que viviam ao lado do Tietê Foto de Audálio Dantas. Apud: Robert M. Levine and Jose Carlos Sebe Bom Meihy (Editors), The Unedited Diaries of Carolina Maria de Jesus. Rutgers University Press, 1999

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Retificação do rio Tietê apud: Azevedo, Aroldo. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, vol 1.

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TietĂŞ na altura de Guarulhos, por volta de 1938.

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Draga, por volta de 1958

TietĂŞ, por volta de 1945

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Elvira Ginesi, dona de uma chácara à beira do Tietê, no Canindé, em 1954. Italiana da cidade de Luca, chegou ao Brasil com cerca de 11 anos, falecendo em 1956, aos 77 anos. No final dos anos 1920 a prefeitura listou sua propriedade entre aquelas que seriam desapropriadas devido à retificação do rio o que provocou um longo processo judicial que somente terminou em 1967, quando a família Ginesi teve mesmo de deixar o local.

Família Ginesi

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FamĂ­lia Ginesi

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TietĂŞ na altura da Vila Guilherme por volta de 1954.

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II.

O TietĂŞ na vida dos moradores

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o tietê e seus afluentes se faziam sentir na vida dos moradores de São Paulo de diferentes maneiras. Fundamentais na urbanização da cidade, mesmo aqueles que não se relacionavam diretamente com os rios, usufruíam seus benefícios, como ao consumir energia elétrica. Mas para muitos habitantes de Piratininga, em especial àqueles pertencentes às classes populares, o convívio com os rios era cotidiano. Afinal, o Tietê se tornara lugar de trabalho para muitos, de lazer para outros, e, em sua vizinhança, crescia o número de moradias, fábricas e estabelecimentos diversos, o mesmo ocorrendo no Tamanduateí e, em menor escala, no Pinheiros. Expressão física dessa relação próxima entre a cidade, seus habitantes e seus rios eram as edificações construídas nas várzeas, saneadas ou não, com tijolos e telhas fabricados em olarias igualmente localizadas nas várzeas, que processavam o barro dali retirado. E se areia e pedregulho fossem utilizados em tais construções, possivelmente viriam dos leitos dos rios Tietê e Pinheiros ou das valas de extração em suas margens. De que matas vinha o madeiramento de tais casas é difícil precisar, mas não seria de todo impossível que viesse daquelas localizadas nas cabeceiras desses rios. A convivência dos moradores com o Tietê era um aprendizado. Desaguavam no rio uma mistura interminável de práticas e saberes oriundos dos diferentes povos que ao longo dos séculos ocuparam o território paulistano, mas também as novidades do mundo urbano e industrial da Europa e América do Norte. Conhecimentos herdados das gerações passadas sobre como aproveitar o que o rio oferecia, precisavam ser ajustados às necessidades e condições do presente, que se transformava cada vez mais rápido. Assim, os novos costumes e valores que se aclimatavam à cidade faziam com que mesmo os paulistanos acostumados ao Tietê precisassem aprender á utilizar o rio familiar de novas maneiras. Já aqueles que vinham de fora, por vezes, tentavam aplicar no Tietê o que viram ou fizeram em rios de outras terras. O Tietê era, portanto, um rio de trocas e invenções culturais.

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Para a multidão de imigrantes que se instalou em São Paulo a partir de fins do século XIX, e sobretudo no caso dos pobres, para a imensa maioria dos que chegavam à cidade, conhecer o Tietê e seus afluentes, os recursos naturais que ofereciam podia significar escapar da fome ou do desemprego. Uma passagem divertida ocorrida nas várzeas do Tietê no início do século XX, e registrada por Jacob Penteado, em seu livro de memórias publicado em 1962, flagra um desses momentos cotidianos de aprendizado. O antigo morador do bairro operário do Belenzinho conta que:

Desprezando a pesca com vara, preferimos esgotar lagoas (que se formavam depois das enchentes nas várzeas), o que era efetuado mediante um processo bem rudimentar. Escolhida a lagoa, forjávamos uma espécie de dique em sua volta, e todos, armados de latas e latões, íamos atirando a água para fora, até secarmos a lagoa. Aí então, era só vasculhar, com um peneira ou com uma pá, o leito escuro e lamacento e o peixe vinha aos montes. Muitos deles se ocultavam tão fundo que era necessário cavar forte para encontrá-los. Certa vez, o mesmo italiano, o Clemente, rejubilou-se todo, ao apanhar uma cobra d’água, bicho inofensivo, muito encontradiço nas lagos e brejos. De verde escuro, esse réptil alcança até um metro de comprimento. Morde muito, mas sem perigo, pois seus dentes são curtos e fracos, sem força para atravessar a pele. — Ho trovato un anguilla! — gritou orgulhoso, julgando haver encontrado uma enguia. Quando lhe disseram que era uma cobra d’água, atirou-a para longe. Não ganhou para o susto, nem falou mais, naquele dia.1

Como certas cobra d’água, embora inofensivas, excretam fezes e outras substâncias quando em perigo, talvez o susto do italiano não se devesse apenas ao desapontamento por não se tratar de uma enguia, mas 1

Penteado, Jacob. Belenzinho 1910 (Retrato de uma época). São Paulo: Martins Fontes, 1962. p. 164.

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isso é impossível descobrir pelo relato de Jacob. Quem sabe se tratasse de um mussun, peixe com um corpo alongado e liso, que prefere viver em águas paradas como alagados e brejos e que desova em buracos na lama.1 Assim, Clemente aprendia não só a pescar em grupo como também a conhecer a ictioFAUna do Tietê, as espécies mais saborosas, as que deviam ser evitadas, e tudo mais que era compartilhado e aprendido coletivamente. Jacob Penteado não informa o número de participantes da pescaria comunitária, tampouco o tamanho dessas lagoas, que podiam ser naturais ou abertas pelo extrativismo mineral, mas não é provável que fossem das maiores. Uma outra modalidade de pesca em grupo, ocorrida em meados da década de 1910 nas várzeas de São Paulo, foi presenciada por Rodolpho von Ihering:

Após vários dias de chuvas prolongadas, as várzeas do rio Tamanduateí, entre as estações de Ipiranga e São Caetano, estavam alagadas; certa noite, alguns moradores da região, que anualmente aproveitavam a piracema, cercaram os peixes, que haviam saído do rio para os campos alagados. Esbarrando contra as redes e tapumes, não podiam as tabaranas voltar ao leito do rio e assim a pescaria rendeu algumas centenas de quilos de peixe. Seja dito de passagem que, ainda meses depois, pudemos comer dessas tabaranas, que, passadas na gordura e bem acondicionadas, se conservaram otimamente e com excelente sabor. Nos dias subseqüentes à piracema, ao sol quente, vadeamos pela água morna da várzea, em procura de ovos; mas já fomos achar minúsculos peixinhos no capim alagado (...) Certamente são os peixes desta categoria, isto é, os que desovam na várzea, que têm alevino de crescimento mais rápido, nesta quadra inicial. É evidente que a natureza Smith, Welber Senteio. Os peixes do rio Sorocaba. Sorocaba: TCM-Comunicação, 2003, p. 140.

1


apressa de tal forma o desenvolvimento do alevino, para lhe permitir que em poucos dias adquira o desembaraço e a resistência necessários para acompanhar as águas quando estas voltam ao leito do rio.2

Aparentemente, a pesca da tabarana nas várzeas, depois que elas desovavam, garantia que uma nova geração de peixes repovoasse o rio, substituindo a que fora capturada. Mas como saber se não se apanhavam peixes antes da desova? Um dos fundadores de São Paulo, José de Anchieta, em uma carta escrita cerca 350 anos antes do registro de Ihering, descreve igualmente uma pescaria durante a piracema e a semelhança entre os dois relatos é flagrante:

Na primavera, que começa em Setembro, e no verão, que principia a aumentar em Dezembro, caem chuvas, abundante e continuadamente, acompanhadas de raios e trovões. Então crescem os rios e se inundam os campos; por essa ocasião sai do leito do rio uma grande multidão de peixes, e se deixa apanhar com muita facilidade, coisa que de certo modo conjura a fome, originada pela inundação dos rios, e compensa os prejuízos. Essa época é ansiosamente esperada, como um lenitivo da passada miséria, e os índios a denominam - Piracema, isto é, saída do peixe, pois que duas vezes por ano, quase sempre em Setembro e Dezembro, e as mais das vezes abandonando os rios, se metem pelas ervas cobertas d’água pouco profunda, para fazer a desova; porém, no verão, quando a inundação é maior nos campos, também saem cardumes mais numerosos, que são apanhados em redes, e também com as próprias mãos, sem nenhum outro instrumento.3 2 Rodolpho von Ihering. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo: Comp. Melhoramentos de São Paulo, p. 76-77.

Centenário da Descoberta do Brasil. Carta Fazendo a descripção das inúmeras coisas naturaes,

3


Além da pesca secular, condicionada pelos ritmos naturais, e que se repetia aparentemente imutável, em uma cidade em transformação acelerada, os dois relatos acima indicam uma outra permanência, pois assim como no século 16, os peixes abrandavam a fome no século XX. E ela não era pouca por essa época. O crescimento espantoso da população da cidade de São Paulo era inicialmente o resultado colateral da política imigrantista da burguesia rural paulista, que visava criar uma oferta abundante e barata de mão-de-obra para a lavoura cafeeira, em expansão desde fins do século XIX. Entre os anos de 1887 e 1900 chegaram ao estado de São Paulo 909 mil imigrantes, número que passou para 823 mil de 1901 a 1920. Uma grande parcela desses imigrantes regressou ao país de origem ou partiu em busca de outras terras, desiludidos com as duras condições de vida que encontraram, outros escolheram viver não no interior e em suas fazendas, mas na capital paulista.4 Alguns imigrantes vinham mesmo diretamente para São Paulo, assim como brasileiros de outras regiões, o que, somado ao crescimento vegetativo fazia com que os habitantes aumentassem extraordinariamente. Eram estrangeiros 8% dos moradores de São Paulo, cerca de 2 mil pessoas, em 1872, mas, em 1895, o seu número chegou a 71 mil em uma população estimada em 130 mil pessoas, ou seja, pouco mais da metade dos habitantes.5 Contudo, na última década do século XIX e no início do século XX, havia um descompasso entre o ritmo acelerado do crescimento demográfico de São Paulo e o desenvolvimento da economia citadina, o que contribuiu “para o aumento extraordinário do mercado de trabalho casual da cidade. A presença abundante dessas massas de trabalhadores pobres, imigrantes e nacionais excedia largamente as necessidades do mercado, aviltando os salários e contribuindo para uma elevada taxa de desemprego permaque se encontram na provinda de São Vicente hoje São Paulo seguida de outras cartas inéditas escritas da Bahia pelo venerável Padre José de Anchieta. Copiadas do Arquivo da Companhia de Jesus. Traduzidas do latim pelo professor João Vieria de Almeida com prefácio doo Dr. Augusto Cesar de Miranda Azevedo. São Paulo: Casa Ecléctica, 1900, p. 10. Pinto, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: EdUSP, 1994, p. 35, 38, 50; Jorge, Janes. “O Crime de Cravinhos: Oligarquia e Sociedade em São Paulo 1920-1924”. São Paulo: Dissertação de Mestrado, Depto. de História, FFLCH-USP, 1998, p. 32-33.

4

5 Santos, Carlos J. Ferreira. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo: AnnaBlumme, FAPESP, 1998, p. 35.

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nente”. Assim “multiplicava-se a pobreza, numa escala sem precedentes” e aumentava o contingente daqueles que viviam recorrendo “a pequenos expedientes eventuais e incertos, exercendo tarefas ocasionais”.6 Os trabalhadores com emprego fixo eram minoritários na cidade e o nível salarial, na média, era baixo. Havia a sazonalidade de muitas atividades econômicas e o desemprego estava sempre à espreita, pois a demissão podia se dar a qualquer momento, e ocorrer mesmo em massa diante de certas conjunturas, como se deu em 1901, 1902 e 1904 na indústria têxtil.7 Os operários das fábricas, entre eles, numerosas mulheres e crianças, recebiam, em geral, vencimentos baixos, que mal davam para alimentar uma família, em jornadas de trabalho de dez horas, seis dias por semana. O que explica porque nas fotografias que registravam o revezamento de turmas nas fábricas “via-se hordas de espectros descarnados e andrajosos, apinhados à saída, precedidos de crianças descalças e raquíticas, com os rostos inexpressivos voltados para a câmera ou para o chão” nas palavras de um estudioso da industrialização paulista.8 A repressão sistemática imposta por patrões e governo aos trabalhadores e as suas associações de ajuda mútua e sindicatos dificultava a luta por aumentos salariais e melhores condições de trabalho, o que dificultava uma melhor distribuição de renda. A economia do país, sujeitada aos credores internacionais e ao mercado mundial do café e seus agentes brasileiros era sacudida por crises que assombravam os moradores, assim como a alta do custo de vida e a falta de moradias, que elevavam o preço do aluguel fortemente. Essa combinação de uma grande população carente e crescendo, vivendo próxima a rios e córregos numerosos, onde os peixes eram “abundantíssimos” na expressão de um intendente municipal,9 ajuda a explicar porque se pescava tanto em São Paulo. Na verdade, como as áreas urbanizadas mesclavam-se com rios, lagoas, várzeas, campos, matas, zonas agrícolas e pastoris ou gigantescos terrenos baldios e barrancos, não só a pesca era comum, como igualmente a caça, a coleta de finitos e de plantas alimentares ou medicinais, o corte e a cata de lenha. Tais atividades eram

Pinto, op. cit; Rolnilc, Raquel. A cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, fapesp, 1997, p. 79.

6

Pinto, op. cit., p. 30-31.

7

Dean, Warren. A Industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Difel, p. 163-164.

8

Relatório apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Intendente Municipal Cesário Ramalho da Silva 1893. São Paulo: Typographia a Vapor de Espindola, Siqueira & Com., 1894, p. 40.

9

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fundamentais para garantir a sobrevivência dos pobres.10 Jacob Penteado conta que próximo ao local onde o Tietê encontrava o córrego do Tatuapé, havia peixes e mexilhões, muitos, e cascudos nas pedreiras que ali juncavam o rio. Geralmente eram apanhados com as mãos depois de encurralados nas cavidades das rochas. Na verdade, raspando as pedras e troncos submersos o cascudo conseguia obter um alimento chamado perifiton,11 que ali se acumula. O leito do Tietê entre o Tatuapé e a Vila Maria era raso, com águas serenas, sendo muito procurado não só pelos pescadores, mas também por banhistas. Para os lados da Penha, onde o Tietê recebia as águas do córrego Aricanduva, o quarto maior curso d’água da cidade, mulheres negras de saias sungadas, com uma bolsa de pano a tiracolo e peneira na mão, mariscavam pela vegetação ribeirinha, apanhando vários tipos peixes. Utilizando a peneira, pescava-se camarões no Tietê, na vazante: empurrava-se a peneira relva acima, no leito do rio, para depois levantá-la rapidamente, capturando assim os crustáceos, como ocorria na altura do Instituto Disciplinar no Belenzinho. Debaixo de pedras, sapatos velhos, pedaços de paus e de outros tipos de objetos abandonados às margens do Tietê, capturavam-se caranguejos. As traíras e trairões eram pegos nas lagoas que se formavam depois das enchentes. Podiam ser apanhadas com uma espécie de arpão, na alvorada, na vegetação ribeirinha.12 Na época da piracema, muitas pessoas se dirigiam ao Tamanduateí, em busca dos peixes que, aos saltos, procuravam subir as águas do rio. Na Várzea do Carmo, um dos principais pontos de pescaria da cidade na passagem do século XIX para o 20, se pescava diversas espécies de lambaris, bem como guarus, traguiras, piabas, tabaranas, trairões, bagres, mandis e cascudos, além de camarões, caranguejos e mexilhões.13 Muitos pescadores improvisavam suas varas com galhos arrancados à beira do rio e fazendo de alfinetes retorcidos os anzóis. Usavam como isca minhocas ou miolo de pão. Podiam simplesmente utilizar linhadas, que dispensavam o uso de vara, ainda mais se fossem jogadas de cima de um bote ou barco. Até a década de 1940 não era raro homens vararem a noite às margens do Tietê pescando. Pinto, op. cit., p. 240-241; Prado Júnior, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo; Brasiliense, p. 130.

10

Smith, op. cit., p. 132.

11

Penteado, op. cit., p. 162-164.

12

Idem, p. 163.

13

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Uma outra modalidade de pesca que remontava a uiri período anterior à colonização era a técnica indígena que empregava plantas como o timbó, que, ao serem imersas na água, atordoavam os peixes de tal forma, que eles eram apanhados facilmente. Esse tipo de pesca perdurou em São Paulo, praticada não mais pelos nativos, mas pelos adventícios e seus descendentes mestiços, ocorrendo até o início do século XX.14 O bairro do Pari, beirando o Tietê, devia seu nome a uma modalidade de pesca, o pari, que aprisionava os peixes em uma barreira feita de taquara ou cipó construída de uma margem à outra do rio. Havia ainda a pesca com tarrafas, redes e covos de espera e o emprego de explosivos, a devastadora dinamite, praticada nos primeiros anos do século XX “principalmente em pontos afastados, entre São Miguel e Conceição dos Guarulhos e-desde a Lapa até Barueri e Pinheiros”.15 É claro que havia aqueles que pescavam principalmente por recreação. Em 7 de novembro de 1884, Isabel, princesa do Brasil, então em visita a São Paulo, hospedou-se na casa do Barão de Três Rios, “grande prédio de dois pavimentos, em terreno distribuído em parque, jardim, pomar, etc, cujos limites iam até as margens do Tietê, situado no Comércio da Luz”. Ela conta que saiu “de manhã, a pé, com os meninos, para uma pequena pescaria, num remanso não muito longe da casa. Morte de três peixes, mas antes de duas pequenas jararacas, que formavam já o bote para o Pedro”.16 Drauzio Varela lembra que na década de 1940, no Brás, ele e seus amigos de infância caminhavam até o leito do Tietê onde, pendurados nos barrancos, apanhavam com peneiras os peixinhos que nadavam próximos à superfície, que depois eram levados vivos para casa. Outras crianças faziam o mesmo no Pinheiros e seus afluentes. Neles também havia fartura de peixe: carás, mandis, tabaranas, entre outras espécies. Ali, nos anos 1920, jovens com enxada a tiracolo procuravam se abastecer de iscas em cupinzeiros e capturar siriris, as fêmeas aladas do cupim, consideradas as melhores iscas para lambaris. O córrego do Pirajuçara era excelente para quem gostava dos bagres. Algumas pessoas chegavam à Holanda, Sergio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 71.

14

Relatório de 1904 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo, Typographia. Vanorden & Co. 1905, p. 25.

15

16 Moura, Carlos Eugênio Marcondes de. (org.) Vida Cotidiana em São Paulo no Século XIX: memórias, depoimentos, evocações. São Paulo: Ateliê Editorial, Fundação Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado, Secretaria do Estado da Cultura, 1998, p. 237.

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tarde e permaneciam pescando até ao anoitecer, utilizando uma vara de bambu, linha, chumbo e anzol, em cuja ponta era posta uma minhoca.17 No rio Grande, a construção da barragem não alterou os costumes pesqueiros da população ribeirinha, já que algumas espécies se adaptaram à represa. Ali, dentre outras técnicas, utilizava-se a pesca com facão ou fisga, isso nas partes onde a água era rasa.18 Um antigo morador da região conta que, em meados dos anos de 1930, se pegava principalmente traíras e carás Mussolini - assim chamados popularmente devido a uma suposta semelhança entre a fisionomia do peixe e a do ditador italiano, então uma figura conhecida em São Paulo, não só pela repercussão de seus atos na imprensa mundial, como pela presença da enorme população de origem italiana na cidade. Quem tivesse sorte em sua pescaria nos rios, córregos, lagoas ou represas podia vender o pequeno excedente conseguido no movimentado comércio de São Paulo. Alguns pescavam mesmo com esse objetivo e chegavam até a registrar seus barcos de pesca na prefeitura, mas outros recorriam a ele eventualmente. Na região central era possível encontrar caipiras vendendo bagres pescados no Tietê, enfiados pela guelra num cipó.19 A venda de peixes nas ruas, cotidiana, chegou mesmo a fornecer mote para o humorismo. Em uma peça de Arlindo Leal que conta as peripécias de uma família interiorana na capital paulista por volta de 1896, há o seguinte diálogo:

Primeiro vendedor: Banana frisca! Due per tostone! Compra friguêis! Anastácio: Arrede daí, moço... Vá pró diabo! Segundo vendedor: Lamparina frisca! Lamparina frisca! Anastácio: Vem cá marvado. Que é isso que leva nesse samburá? Quero vê... 17

“Eles juram que pescaram no Pinheiros”, Jornal da Tarde (Web), 20/2/2000.

18

Macedo, Toninho. Billings Viva. São Bernardo: sece, 1992, p. 36-37.

19

Americano, op. cit., p. 114.

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Dr. Vital (examinando): Lambaris do Tietê! Anastácio: Então peixe é lamparina?... Ora até o que se vê na Capitã! Vou me embora daqui, seu Doutô... Não posso vê essas coisa!20

Para um estudioso do início do século XX, o trecho superior do Tietê era habitado “por peixes de valor mínimo no mercado” já que os maiores que se encontravam ali eram “a traíra, cuja cotação no mercado é ínfima, o bagre, que igualmente não merece preço compensador e a tabarana, que assim vem a ser a única espécie apreciável desse trecho do rio”.21 A tabarana pode alcançar 45 cm de comprimento e o peso de 400 gramas, já a traíra chega, em média, a 28 cm e 500 gramas. Mas peixes de valor mínimo era o que uma população pobre podia comprar. Depois do Salto de Itu, a pouco quilômetros a jusante da barragem de Parnaíba, o Tietê e seus afluentes eram habitados por peixes de grande porte da bacia do Prata, como o pintado, o jaú e o dourado, cujo peso podia se contar em quilos.22 Em meados do século XIX a ictioFAUna dos rios paulistanos chegava aos consumidores transformada em quitutes como empanadas de farinha de milho com piquiras ou cuscuz de bagre e camarão de água doce, vendidos por mulheres nas ruas ou em pequenos estabelecimentos comerciais.23 Piquira, em tupi, pele tenra, pequeno, pode indicar tanto qualquer peixe minúsculo, como uma espécie específica, a pequira, que não ultrapassa 5 cm de comprimento. Os peixes minúsculos eram engenhosamente utilizados para rechear empanadas.24 Citado por Saliba, Elias Thomé. “A Dimensão Cômica da Vida Privada na República” In: Sevcenko, Nicolau (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 328. 20

21 Ihering, Rodolpho von. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo: Comp. Melhoramentos de São Paulo, p. 24-26. 22 Depoimento do especialista em peixes Flávio Lima, do Museu de Zoologia da USP em entrevista ao Jornal da Tarde em 20/2/2000; “Muitas espécies antigas, nunca mais” <www. jt.com.br>.

Marins, Paulo César Garcez. “Através da Rótula Sociedade e Arquitetura Urbana no Brasil Secs. XVII-XX”. São Paulo: Tese de Doutorado, Depto. de História, FFLCH-USP, 1999, p. 211-212.

23

Smith, op. cit., p. 132; Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário

24

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Os piquiras viviam nas margens, entre a vegetação, e, assim como o camarão, eram apanhados com peneiras, não por acaso, exatamente como faziam as mulheres negras no Aricanduva. E negras ou mulatas eram muitas das quituteiras do século XIX, que provavelmente conseguiam os seus peixes do mesmo modo, mas em rios e córregos próximos ao centro da cidade, ou com a ajuda de seus filhos e netos – uma comunidade da terra que permaneceu na cidade cada vez mais intolerante em relação aos afro-brasileiros, suas crenças e costumes.25

Quem fosse pescar no Tietê não deixaria de recolher os frutos que encontrasse no caminho, fossem eles nativos ou vindos de outras terras, cujos pés se espalhavam espontaneamente ou por iniciativa de algum morador. De fato, muitas pessoas iam mesmo para perto dos rios especialmente para procurar gabirobas, amoras, pitangas, bananas do brejo e morangos do mato, a fruta de Cambuí, joás, sapotis e ingás, que tem forma de vagem e é adocicado.26 De crescimento rápido, os ingazeiros podem chegar a três metros de altura. Suas flores melíferas atraem abelhas e seus frutos, pássaros e outros animais, frutificando na época das chuvas, o que favorece a dispersão de suas sementes pelas águas dos rios, (que, volumosas, podiam levá-las ainda mais longe. Já a banana-do-brejo ou do mato deixaria a várzea e chegaria ao jardim das casas, onde tornou-se uma planta ornamental, com o nome de costela-de-adão. Além dos peixes e frutas, muito mais podia ser encontrado no Tietê e suas várzeas. Pássaros dos mais variados tipos e tamanhos faziam do beira-rio um local repleto de pios e cantos, especialmente pelas manhãs. Animais, ervas e outros elementos da natureza eram procurados devido as suas propriedades mágicas e medicinais, pois os moradores da cidade continuavam a recorrer “às boticas do sertão” dos mamelucos, que se Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 25 Dias. Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 241.

O Rio Pinheiros. São Paulo; Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 2002, p. 59,61. Penteado, op., cit p. 162.

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renovavam através dos tempos. Em meados do século XIX, “mulheres pobres que praticavam a medicina caseira, do Tietê e afluentes costumavam retirar ‘amuletos, e mesinhas contra ramos de ar, estupor, mau-olhado, envenenamentos, mordeduras de animais’, que curavam com anhumas, esterco de vaca, de gambás, misturados com fumo, camina, pimenta da terra, suco de limão azedo”. Para “sangrias, em lugar de lanceias, bicos de aves, ou dentes de quati ou de cotia. Em fins do século quitandas e boticas vendiam folhas secas, raízes, casca de paus, e fintas com que se tratava ares pestilentos, sezões e febres”.27 Um inventário dos produtos vendidos pelos ervanários de São Paulo no Mercado Velho e na feira do Largo do Arouche, no ano de 1920, no qual se evidencia a presença de costumes e crenças religiosas afro-brasileiras, mesmo quando os ervanários não fossem negros, listava enorme quantidade de “ervas e cascas medicinais, amuletos e fetiches, bem como outros produtos vegetais, animais e mesmo minerais” que serviriam para “curar ou prevenir contra os males físicos e morais”. Uma parte desses materiais vinha de fora, mas outra era encontrada na cidade e seus arredores, em seus rios e várzeas. As folhas, cascas e raízes muitas vezes eram obtidas de espécies vegetais relativamente fáceis de encontrar, como era o caso da goiabeira, cujas folhas combatiam a diarréia. Nesse caso, até o incrédulo botânico do Serviço Sanitário que realizara o inventário testemunhara a eficácia do remédio. Os produtos de origem animal não eram tão abundantes, mas além de casca de lagarto e tatu, dentes de jacaré, unhas de tamanduá e onça, chifre de veado, podia-se comprar, em pequenos vidros ou garrafas, a banha de quati, de capivara, de gambá, galinha, tamanduá, tatu, anta e das cobras jibóia, sucuri, jararacuçu, cascavel, coral e urutu. As banhas serviam para tratar o reumatismo, mas a do quati era prescrita igualmente no combate à calvície.28 Nem todos caçavam para uso mágico ou medicinal. Ao lado da pesca, “a caça de pequenos animais em matas próximas” era um divertimento apreciado por muitos moradores do bairro de Vila Leopoldina, contíguo à Lapa e ao rio Tietê e de muitas outras localidades também.29 Alguns bandos de caçadores eram formados por homens experimenta27

Dias, op. cit, p. 241-242.

Hoehne, F. C. O que vendem os hervanários da Cidade de São Paulo. São Paulo, 1920, p. 9,118,214-218 28

Lobo Ir., Manoel Rodrigues. Vila Leopoldina: como te viram como te vêem. São Paulo, 1986

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dos na atividade. Sempre que podiam registravam em fotos os resultados de suas incursões, posando lado a lado, exibindo as espingardas, os cães de caça e as presas mortas. Por outro lado, havia grupos formados apenas por moleques, que saíam para pegar rãs alta noite nos barrancos de córregos, ou, dia claro, frangos d’água e outras aves nas lagoas existentes nas margens do Tietê para os lados do Canindé e Vila Maria, que depois eram consumidos avidamente. Em alguns casos não. Zélia Gattai conta que seus irmãos, certa vez, sem o consentimento dos pais,

sumiram para os lados das Águas Férreas, lugar deserto, perigoso - transformado mais tarde (...) no elegante bairro do Pacaembu. As atrações desses ermos eram a caça e uma fonte de água cristalina que dava o nome ao lugar. Formava-se em torno dela um pequeno lago onde os bandos de moleques costumavam banhar-se nús.

Ao retornarem para casa, as crianças trouxeram uma coruja morta, com a cabeça esmagada, mas foram censurados pelos pais pela crueldade contra a ave indefesa.30 As capivaras, que podem alcançar até 50 kg, eram muito visadas pelos caçadores. Ficavam em pequenos grupos, pastando nas beiradas dos rios ou mesmo dentro d’água, pois se alimentam igualmente de plantas aquáticas flutuantes. Exímias nadadoras, quando perseguidas-submergiam nos rios, mas sua localização era denunciada pelas pequeninas bolhas de ar que expeliam do fundo d’água, ocultas muitas vezes por tranqueiras flutuantes, mas indeléveis ao caçador ladino. Para os lados do Aricanduva, afluente da margem esquerda do Tietê na altura da Penha, em meados do século XX, ainda eram caçados capivaras e veados. No rio Pinheiros, próximo à Fazenda Morumbi, depois de matar uma grande capivara e colocá-la em seu barco um caçador teve de aportar rapidamente e “sapecar o fundo e os bordos da canoa com capim seco” tantos foram os carrapatos que se desprenderam do corpo do animal morto. Nos ermos às margens do Pinheiros, além das capivaras, encontravam-se jaguatiricas e no seu Gattai, Zélia. Anarquistas Graças a Deus. São Paulo: Círculo do livro, 1979, p. 112-113.

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leito sinuoso, bandos de marrecas, ratões-do-banhado e aves pernaltas.31 Concorria para a popularidade das caçadas, além do aspecto utilitário, ou seja, o consumo da carne, motivação decisiva para as famílias carentes e numerosas e mesmo para caçadores que apreciavam o sabor da caça quando comparadas às demais carnes obtidas de animais de criação, a nostalgia e o costume, já que inúmeros moradores da cidade provinham de áreas rurais do Brasil e da Europa, de pequenas localidades onde a caça era praticada ordinariamente. Por outro lado, em boa parte das moradias paulistanas, mesmo as humildes as pessoas criavam porcos, carneiros e mais usualmente patos e galinhas. Assim, homens e mulheres nascidos na capital paulista acostumavam-se, desde cedo, à matança de animais e ao seu preparo para o consumo. A morte dos porcos, impressionante pelos gritos do animal, era um acontecimento e ajuntava dezenas de pessoas, muitas das quais esperando conseguir alguma carne ou banha. Com o sangue e miúdos do porco se preparava o sarrabulho. A degola das galinhas e patos podia ser feita por crianças. As aves podiam ser mortas quebrando-se o pescoço ou abrindo um talho nele à faca, ou então na cabeça, de forma a provocar uma sangria. Nesses dois últimos casos, o sangue do animal podia ser recolhido em uma vasilha, onde rapidamente coagulava, sendo depois fervido e então devorado em pequenos pedaços. Mesmo o abate de gado bovino, wino e caprino não seria estranho aos moradores dos bairros mais afastados do centro da cidade, como a Vila Guilherme ou Itaquera, já que sítios, chácaras e vacarias, se mesclavam com os loteamentos residenciais. Às vezes, um boi bravo podia atacar crianças ou mesmo adultos, provocando ferimentos graves, que podiam levar até mesmo à morte. Por outro lado, acontecia dos animais de criação que viviam parcialmente soltos, tornarem-se eles próprios alvo de “caçadores”. Os barqueiros lembrados por Jacob Penteado, para obter alguma “caça”, dependiam da habilidade do cachorro mestiço que levavam consigo, que, saindo do barco, atacava galinhas que encontrasse nas margens ciscando - o que causava encrenca se o proprietário das aves estivesse por perto. Jacob Penteado sabia disso tudo porque, ainda criança, viajava pelo 31 Magalhães, Agenor Couto de. Ensaio Sobre a FAUna Brasileira. São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo/Diretoria de Publicidade Agrícola, 1937, p. 244; “Um conselho”, O Estado de S. Paulo, 24/2/1929, p. 24. Schmidt, Afonso. São Paulo de meus amores. São Paulo: Clube do Livro, 1954, p. 125. “Eles juram que pescaram no Pinheiros”, op. cit.

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Tietê com os barqueiros italianos Nanetto, Alfredo e Bépi, este sublocatário de um cômodo na casa de Jacob, onde morava com a esposa, e amigo de sua família, que, assim, conseguia diminuir os custos com moradia. O ponto de partida era o Tietê, no Belenzinho, onde terminava a rua Catumbi. A jornada começava cedo, ao alvorecer, as cinco ou seis horas da manhã, mas o trabalho não, pois a barcaça fora carregada na véspera. Avançando lentamente rio abaixo chegavam à Ponte Grande pelo leito sinuoso do Tietê, por volta das onze horas. Ali descarregavam e vendiam a mercadoria transportada a um representante de uma firma compradora.32 No barco, além do almoço, preparado em um fogareiro rústico que mantinham a bordo, levavam café e cachaça. No caminho de volta para casa, felizes pelo trabalho cumprido, “os barqueiros entoavam umas lindas canções de sua terra natal, a Toscana, e iam dirigindo piadas às pessoas conhecidas que, nas barrancas, aguardavam a passagem da barca”. Quantos barqueiros não começaram a aprender seu ofício e a conhecer os perigos e as possibilidades do Tietê nessas aventuras de crianças? Eles foram presença marcante no Tietê até os anos 1940, quando as obras de retificação do rio e o início do transporte de mercadorias por caminhões começaram a criar Obstáculos cada vez maiores a sua atividade. Apesar das dificuldades que os rios paulistanos ofereciam à navegação, ela sempre foi expressiva e importante para o intercâmbio da capital paulista com as localidades próximas ao longo do Tietê, Tamanduateí e Pinheiros. Na cidade de São Paulo o transporte fluvial era imprescindível no caso dos materiais de construção: areia e pedregulho, tijolos, telhas e cerâmicas, mercadorias extraídas ou processadas nos rios e várzeas. No Tatuapé uma olaria abriu um canal até o Tietê, para facilitar o transporte de sua produção por barcaças, e não foi o único caso.33 No Pinheiros e seus afluentes, todos próximos à Serra do Mar e sua mata densa, o transporte de lenha e do carvão vegetal ganhava vulto, sendo que na altura de Santo Amaro havia um porto que recebia especialmente essas mercadorias.34 A madeira servia para a construção civil e fabricação de móveis, barcos, caixotes e tudo o mais que fosse possível. Ambas alimentavam ainda motores a vapor de muitas fábricas, os fornos de restaurantes e padaria, os fogões Penteado, op. cit., p. 77.

32

Memória Urbana de São Paulo. A Grande São Paulo até 1940. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2001, vol. 1, p. 87.

33

Macedo, Toninho, op. cit, p. 38.

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das residências e os ferros de passar possuíssem um pequeno recipiente, acima da chapa, no qual se colocava a brasa que deveria mantê-lo aquecido. O transporte de materiais de construção pelos rios paulistanos não era novidade, embora a maior parte da cidade fosse construída até fins do século XIX em taipa de pilão, ou seja, com barro socado. No século 18, telhas, tijolos e louças, mas também frutas e cereais, eram transportados em canoas Tamanduateí abaixo até o Porto Geral de São Bento. Porto que desapareceria com as sucessivas retificações desse rio a partir de meados do século XIX. Nessa época, próximo ao núcleo central da cidade, o Tamanduateí era marcado por brejos, atoleiros e pelas “sete voltas”, sete curvas que seu leito fazia, alternadamente, para a esquerda e direita.35 Em muitos trechos do Tietê o calado era baixo demais para as embarcações. Em alguns pontos, em determinadas épocas do ano, o rio tinha apenas trinta centímetros de profundidade, o que impedia a navegação mecânica e impunha a redução da carga útil dos barcos ou mesmo o meio descarreto. Rio de meandros e coroas, possuía curvas fechadas, sendo que as mais acentuadas dificultavam a passagem de embarcações longas. Por tudo isso, abalroamentos e encalhes eram comuns. Alguns pontos do Tietê eram tidos por perigosos e exigiam mais atenção dos navegantes. Em 1943, a “Cruzeta”, a montante da Ponte Grande, era considerado um deles e sua passagem requeria esforços e cuidados redobrados. Ali a água passava veloz, “apertada entre paredões de cimento” no dizer dos barqueiros, já que a margem direita era “revestida com uma pedra lisa, branca, como laje de cimento”. Para quem subia o rio, nesse ponto, era preciso dar o máximo de si e, ainda assim, o barco parecia não se mover.36 Uma barcaça de areia e pedregulho geralmente era carregada até o máximo de peso que suportasse. Depois disso, os barqueiros iam de popa à proa, impulsionando um varejão que movia o barco, e, se preciso, revezando-se no leme. Quando atravessavam partes rasas do Tietê, mormente durante a estiagem, um deles descia a terra e com o auxílio de uma corda grossa, com uma ponta atada à proa e a outra ao seu peito, puxava a Holanda, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo; Editora Brasiliense, 1990, p. 228; Moura, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora (evocações da metrópole). São Paulo: 1941, Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1941, p. 181-182; Martins, José de Souza. “Abismos da História.” In: Memória, n. 19, julho/dezembro de 1993, p. 21-22.

35

36 Nóbrega, Mello. História do Rio Tietê. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EdUSP, 1981, p. 94-95; “Os barqueiros do Tietê”. Folha da Noite, 21/12/1943, p. 7.

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barcaça, auxiliando o companheiro ou companheiros que permaneciam a bordo empregando toda sua força nos varejões.37 Além do transporte de mercadorias, os rios serviam também ao deslocamento de pessoas. Quem morava junto ao rio, não raro tinha seu barco, que era usado para se deslocar dentro da cidade e imediações ou mesmo levar passageiros. Algumas embarcações do Tietê realizavam viagens pequenas, mas importantes para muitos paulistanos: a travessia da rio. Assim, eram indispensáveis em um período em que a cidade começava a se expandir cada vez mais para áreas além Tietê, mas não possuía um conjunto de pontes capaz de interligar satisfatoriamente os bairro os localizados em margens opostas. A ausência de pontes causava grandes transtornos ao cotidiano dos moradores mesmo no caso de córregos:

Queixas e Reclamações. Com a Prefeitura. Escrevem-nos. “Há na estrada pública municipal conhecida pelo nome de estrada da Conceição que liga o bairro de Santana com o da Penha uma ponte sobre o ribeirão Cabuçú que se acha caída há muitos anos, ficando por isso interrompida essa necessária comunicação entre os dois importantes e populosos bairros da capital, o que ocasiona prejuízos fáceis de avaliar. Há cerca de dez anos já, a Câmara Municipal mandou orçar as despesas com os reparos e reconstrução da ponte em questão. É uma obra indispensável e de pequeno custo. Existe no local base de pedra natural, o que facilita a execução do serviço.38

No caso do Tietê, sem o auxílio dos barcos e das balsas, os passantes eram obrigados a fazer longas caminhadas para chegar ao seu destino. Uma operária espanhola que trabalhava em uma fábrica de cordas na Barra Funda, em 1912, quando perdia a balsa que transpunha o rio na altura da Seabra, Odette Carvalho de Lima. “Meandros dos Rios nos Meandros do Poder. Tietê e Pinheiros; Valorização dos Rios e das Várzeas na Cidade de São Paulo”. Tese de Doutorado, FFLCH-USP, Depto. de Geografia, 1987, p. 80; “Os barqueiros do Tietê”, Folha da Noite 21/12/1943, p. 7.

37

O Estado de S. Paulo, 12/02/1935, p. 6.

38

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atual Ponte do Limão, era obrigada a ir a pé por uma trilha até a ponte mais próxima, a da Freguesia do Ó, atravessar o rio e depois fazer o mesmo caminho em sentido contrário na outra margem para chegar em casa.39 Por isso mesmo, em muitos trechos dos rios paulistanos a prefeitura mantinha um serviço de balsas. Em 1908, por se achar em mau estado, “oferecendo perigo aos transeuntes”, a balsa “do porto João Florêncio, sobre o rio Tietê, junto ao km 18 da linha Sorocabana” foi substituída pela prefeitura, que despendeu para isso 2:500$000.40 Em 31 de dezembro de 1903, João Vicente Moares, “encarregado interino de fazer os serviços de passagens sobre barca na estrada que da Barra Funda vai ao Bairro do Limão” solicitava ao fiscal de rios e várzeas que “vos digneis mandar fazer o pagamento que o suplicante tem direito por serviços prestados durante o mês de dezembro que hoje se finda”. O fiscal de rios José Joaquim de Freitas, liberou o pagamento do serviço do balseiro, 150$000 autorizado pela lei municipal n. 611 que destinava 2.000$000 para tais despesas, das quais 1.850$000 já haviam sido gastos.41 Alguns desses pontos de passagem de balsas, os mais movimentados, apareciam nos mapas e nas plantas do município. Na década de 1910, o governo estadual realizava obras de desobstrução do leito do Tietê, retificação e balizamento de canais, executados em toda extensão entre a Ponte Grande e Mogi das Cruzes, procurando facilitar o transporte fluvial. Em 1919, o secretário da agricultura, em relatório ao presidente do Estado, informava que “logo que baixem as águas”, recomeçaria “o serviço de dragagem e remoção de pedras, a fim de que dele melhor se aproveite a navegação, já importante, entre a Ponte Grande e diversos pontos marginais ao rio até Poá, o qual se pode estender até Mogi das Cruzes”.42 Indicava ainda que o número de barcaças registradas passara de 75, em 1914, para 350, “das quais 100 de cerca de 10 toneladas de carga e as restantes 250 de várias dimensões entre 10 e 30 toneladas. O peso dos produtos transportados excede de 77 mil toneladas avultando entre eles os tijolos, telhas e areia - materiais de grande consumo e mais Seabra, op. cit., p. 50, nota de rodapé.

39

Relatório de 1907 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden 8c Co., 1908, p. 26. 40

Documentos Avulsos da Prefeitura do Município de São Paulo. p. av, 1953, p. 132.

41

Relatório da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas 1919, p. 140. De agora em diante, abreviado para RSACOP.

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lenha, carvão vegetal e gêneros de pequena cultura”.43 Para as autoridades estaduais, “a remoção de obstruções do leito fluvial e de árvores que caem sobre a corrente, em virtude do solapamento das margens”, a “escavação de canais por meio de dragagem, onde a profundidade se mostra insuficiente”, e o “balizamento dos canais”, era de grande utilidade social, ainda mais em períodos de seca, pois “as dificuldades que sofria a navegação e o desafogo que sentiam os barcos ao chegarem ao trecho já melhorado pela construção dos canais davam lugar a manifestações dos barqueiros quanto à utilidade do serviço e insistentes pedidos para que se prosseguisse a dragagem com maior celeridade”. O secretário justificava o empenho do governo em tais obras no Tietê lembrando que:

devido à proibição de estabelecimento de olarias nas proximidades da cidade, estas se acham situadas nas proximidades da Penha até Guarulhos. De tal modo o melhoramento em execução interessa grandemente ao transporte e barateamento dos materiais de construção que elas produzem. De fato, removidos pela dragagem os obstáculos hoje existentes, os barcos poderão, em cada viagem, fazer carga completa, e, portanto, reduzir o custo do transporte.44

Nos períodos de cheia os trabalhos de desobstrução do leito do Tietê eram interrompidos e o pessoal empregado na tarefa passava a cortar o mato que margeava o leito ao “longo dos canais a escavar, abrindo uma estrada necessária aos trabalhos nos terrenos de servidão pública e colhendo lenha que é utilizada na caldeira da draga.45 Segundo o relatório, as margens do Tietê supririam quase todas as construções da cidade com tijolos.46 No trecho entre S. Miguel e Itaquaquecetuba, existiam “14 olarias, 3 fábricas de telhas francesas e ladrilhos comprimidos, uma fábrica de paIdem.

43

RSACOP 1921, p. 121-122.

44

Idem, p. 322.

45

RSACOP 1922, p. 246.

46

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pelão etc.”. Além disso “os industriais Matarazzo e Paiglise adquiriram vastos terrenos para construções abaixo de S. Miguel”.47 O balizamento do leito do Tietê existia em vários trechos e consistia em “dois postes de ferro cravados nas margens, de um lado e outro do rio” que sUSPendiam “em grande altura um fio de ferro ao qual estava agarrada uma bandeirola de chapa de ferro galvanizado e pintado, em posição correspondente à vertical do centro do canal”. A sinalização também podia ser constituída por balizas de madeira cravadas no rio, indicando os canais dragados no leito. Com o balizamento tornava-se mais difícil o encalhe de barcos, algo especialmente útil para os novos barqueiros. Abria-se ainda a possibilidade da navegação mecânica. Contudo tal serviço foi abandonado, pois “os barqueiros na ignorância da utilidade que lhes poderá prestar esses sinais, os destruíram pouco e pouco, com o intuito de tornar difícil a navegação aos novos barqueiros Na impossibilidade de impedir tais danos, perpetrados sem testemunho, inútil se tornava prosseguir no balizamento dos canais o que certamente é uma falta sensível dos nossos trabalho”.48 Como se vê, os barqueiros estabelecidos insurgiam-se contra o interesse das autoridades em franquear o uso do rio para diminuir o custo do frete. A prefeitura também procurava estimular o transporte fluvial no Tietê, que chegou a constar de alguns planos de retificação do rio. A desobstrução das pontes pelos fiscais de rios era atividade imprescindível depois das cheias. Em 1925, José Moya afirmava que:

as repontas havidas em novembro e dezembro produziram grandes deslocamentos de vegetação chamada “aguapé” obrigando esta fiscalização a intervir ativamente, para evitar o entupimento das diversas pontes do município, cuja construção, sob este ponto de vista, muito deixa a desejar, principalmente as pontes do Limão, Lapa e Anastácio que, nas ocasiões de enchentes chegam a trancar completamente a navegação.49 RSACOP 1925, p. 252-253.

47

RSACOP 1923, p. 321.

48

Relatório de 1925 apresentado pelo Dr. J Pires do Rio prefeito do Município de São Paulo. São Paulo: Seção de Obras Raras d’o Estado de São Paulo, 1926, p. 60.

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Cabia também à municipalidade fiscalizar as embarcações. Em 1893, o intendente municipal, Cesário Ramalho da Silva, informava que no “semestre de Junho a Dezembro de 1892 foram emplacadas 101 barcas para extração de areia, condução de tijolos, etc.” Durante este ano, foram emplacadas mais 94, sendo 52 botes e canoas de pesca, e 42 barcas para extração de areia. Em 1922, na fiscalização de rios e várzeas estavam “matriculados, além dos veículos fluviais isentos de imposto” 309 barcos destinados ao transporte de materiais para construções, lenha e diversos artigos de comércio, duas balsas particulares para meio de comunicação, sete botes de aluguel, 178 botes de recreio e 10 lanchas a gasolina e vapor de particulares”. Em 1926, os registros municipais indicavam 442 barcas, uma barca com “vagão ou máquina para a extração de areia”, cinco “balsas de mais de um barco presa a um fio”, 17 botes de pesca, 233 botes particulares de recreio sem motor e quatro com motor, “nove lanchas ou botes a vapor particulares” e uma “lancha ou bote a vapor de aluguel”.50 Em 1940; mesmo com as obras de retificação impedindo a navegação no Tietê entre a Penha e a Ponte Grande, os dados oficiais registravam cerca de 2.500 embarcações. Muitas outras, é provável, circulavam sem registro e escapavam das estatísticas oficiais. É difícil precisar se o transporte fluvial em São Paulo era demasiadamente perigoso. Havia barcos de diversos tamanhos, novos e antigos, conservados ou em manutenção precária, utilizados de diferentes modos, e, tudo indica, não parecia haver um controle efetivo do poder público sobre as suas condições de segurança. Os jornais paulistanos noticiavam casos de acidentes envolvendo barcos. Alguns, realmente tristes, como a tragédia ocorrida na represa de Santo Amaro:

Nicanor Pereira, de 33 anos de idade, casado, morador no bairro de By-guassu, em Sto. Amaro, saiu de casa, cerca de 18:30 horas, em companhia de sua mulher, Brasília Anna de Jesus, de 25 anos, e de seus filhos menores, Jeremias, de 11 anos, e Noémia, de 4, e mais seus primos Luiz Venâncio de Miranda, um filho deste, Pedro, e Angelo Magester Anexo ao Relatório de 1922 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Dr. Firminiano de Moraes Pinto. São Paulo: Casa Vanordem, 1923, p. 88; idem, 1926, p. 131.

50

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Baptistermi. Dirigindo-se à represa, tomaram um barco, com destino a M’Boy Mirim, residência do sogro de Nicanor. A viagem decorreu sem incidentes até as proximidades de M’Boy Mirim, quando o barco começou a fazer água; pouco depois, virava. Longe da margem, a situação era muito difícil. Nicanor, bom nadador, conseguiu, no entanto, segurar a mulher. Arrastou-a até a praia, mas não foi possível salvá-la. Quando ali chegou, estava morta. Os outros pereceram durante o desastre. Nicanor, exausto de forças, dirigiu-se a Sto. Amaro, onde chegou cerca de 22 horas, relatando o acontecido. Esta madrugada, os bombeiros seguiram para o local do acidente para retirar os cadáveres. O barco com o qual se deu o desastre pertence a Lauro Pedroso, morador a rua Senador Feijó, 10, de quem Nicanor é empregado.51

De acordo com Jacob Penteado era grande a rivalidade entre barqueiros lusos e italianos no Tietê e algumas vezes suas desavenças terminavam em tiros e inquéritos policiais. Barqueiros antigos e novos disputavam o uso do rio, o que estimulava diversos conflitos. Em 1916, Eugênio de Freitas, fiscal de rios e várzeas, destacava em seu relatório ao prefeito, além de “carência de calado para a lancha da Prefeitura, a qual, em certos pontos do Tietê e outros do Município, não pode navegar”, que muitos “contribuintes”, barqueiros que deviam pagar a licença, “não vacilam em agredir à mão armada”.52 Em 1925, outro fiscal de rios e várzeas, José Moya, ressaltava os esforços da fiscalização para “evitar depredares nas margens e várzeas Trágica Ocorrência em Sto. Amaro”, O Estado de S. Paulo, 30/6/1935, p. 9; “Cadáver encontrado”, O Estado de S. Paulo, 8/2/1939, p. 9. “Afogados”, O Estado de S. Paulo, 19/2/1919, p. 7.

51

52 Relatório de 1915 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Washington Luis Pereira de Sousa. São Paulo: Casa Vanordem, 1916, p. 124.

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municipais e outros atentados às leis municipais por parte dos barqueiros”. Diante da dificuldade de identificar os infratores, ele sugeriria a “conveniência de estabecer-se a carta de matrícula de barqueiro, ou condutor de veículo fluvial, análoga à de condutor de veículo terrestre, expedidas pela Inspetoria Geral de Fiscalização”. Nesse mesmo ano de 1925 foram apreendidas por falta de licença, 32 embarcações, das quais 26 “foram retiradas por seus proprietários, mediante pagamento dos respectivos impostos e acréscimos”. As outras seis embarcações, quatro botes e dois “barcos de transporte” foram “levadas a praça” e produziram um “renda líquida de 259$000”.53 Em 1915, “foram apreendidos vinte e oito (28) barcos, tendo sido retirados alguns pelos seus proprietários, depois de pagos os respectivos impostos, e os outros levados a praça”.54 Contudo, a fiscalização de rios e várzeas, algumas vezes, era prejudicada ou interrompida por acontecimentos extraordinários, como a Revolução de 1924, já que, conforme relatava Eugênio de Freitas os postos do Tietê em Santana e o de Pinheiros, foram “tomados pelos sediciosos”. Depois que a cidade deixou de ser campo de batalha, ainda assim a fiscalização dos rios continuou precária, já que desde outubro os serviços estavam sendo “feitos apenas com os pequenos botes movidos a remo, visto a lancha ter sido cedida ao Snr. Cel. Arthur Diederichsen, para o restabelecimento do transporte de gado entre Mato Grosso e São Paulo, lancha essa hoje em poder das forças legais em operação no rio Paraná”.55 Além do transporte de mercadorias, muitos barqueiros realizavam a própria extração de areia e pedregulho do fundo dos leitos dos rios Tietê e Pinheiros ou em grandes valas abertas em suas margens, as “descobertas”. Para retirar areia, a qual vinha misturada ao pedregulho, mercadoria mais lucrativa, os barqueiros valiam-se de uma vara comprida, que tinha em uma das extremidades uma lata perfurada no fundo, que escoava a água e retinha o material coletado no fundo do rio. Na ponta oposta àquela presa no “estirão”, a lata tinha uma corda amarrada. Os barqueiros geralmente trabalhavam em duplas: um empurrava com as mãos e um ombro a concha Relatório de 1925 apresentado pelo Dr. J Pires do Rio prefeito do Município de São Paulo. São Paulo: Seção de Obras Raras d’0 Estado de São Paulo, 1926, p. 61.

53

54 Relatório de 1915 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Washington Luís Pereira de Souza. São Paulo: Casa Vanorden, 1916, p. 124.

Anexos ao relatório de 1924 apresentado à Câmara Municipal de S. Paulo Pelo Prefeito Dr. Firminiano de Moraes Pinto. São Paulo: Casa Vanorden, 1925, p. 101.

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para o fundo do leito, enquanto o segundo puxava a lata pela corda. Tanto essa atividade como os manuseio do varejão faziam com que eles desenvolvessem calos nas mãos e nos ombro utilizado como ponto de apoio. Os barqueiros que formavam essas duplas podiam ser sócios, entretanto, o mais frequente era um deles ser o dono do barco e contratar um outro como ajudante.56 Por todo o Tietê havia portos que davam saída à tiragem de areia, pedregulhos, aos tijolos e telhas transportados. Nas proximidades da Ponte Grande; em bairros como Pari e Canindé, existiam vários deles que recebiam as barcaças que vinham a montante. Um porto junto à Ponte Grande foi suprimido quando a prefeitura passou a embelezar o local em virtude do uso daquele ponto como local de recreação. Em geral, dos atracadouros os materiais eram transferidos pára carroças e distribuídos pela cidade, embora houvesse também bondes de carga. As vias de acesso a esses lugares eram malcuidadas, repletas de buracos, e, na época das chuvas, praticamente intransitáveis. Com isso se sobrecarregavam os animais de carga, coagidos a caminhar a golpes de chicote e relho. Nessas condições, alguns acabavam caindo, quebrando as pernas e morrendo.57 Descarregar um barco de areia podia levar três horas com dois homens trabalhando com pás; No final da década de 1930 e no início dos anos 1940, as mulheres dos barqueiros do Pinheiros ajudavam a transferir o material dos barcos para os caminhões que pouco a pouco substituíam as carroças. Já os donos dos portos de areia podiam ser ajudados por suas filhas. Ali, havia ainda bondes de carga que eram enchidos de areia com a ajuda de guindastes. Os barcos ficavam amarrados com corda ou então eram fixados em estacas com argolas de ferro. Quando as chuvas aumentavam muito, a corredeira do rio podia fazer de alguns deles se soltar, o que obrigava seus donos a ir procurá-los.58 Como indica a análise de Odete Seabra, ao longo da primeira metade do século XX houve um processo contínuo de proletarização e empobrecimento dos barqueiros do Tietê que se dedicavam à extração de areia e peSeabra, op. cit., p.80.

56

Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 23/3/1918, p. 6; “Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 21/2/1929, p. 3. 57

São Paulo (Estado). O Rio Pinheiros. São Paulo; Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 2002, p. 56, 58.

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dregulho. Isso foi decorrência do ingresso de grandes empresários nesse ramo extrativista, que ficava cada vez mais lucrativo. Na década de 1920, quando a procura por areia e pedregulho era intensa na cidade, a atividade de extração atraiu investimentos maiores, iniciando-se a extração por dragas, uma técnica que aumentava a produtividade do trabalho. Para fazer frente aos barqueiros com dragas, os barqueiros avulsos tiveram de se submeter a um ritmo de trabalho mais intenso.59 A exploração de areia e pedregulho em cavas na várzea, chamadas também de descobertas, envolvia relações jurídicas e trabalhistas: título de propriedade, arrendamentos, direitos de exploração e diversas formas de contratação da mão-de-obra. Carroceiros removiam a camada superficial do solo por empreitada, que era vendida para oleiros quando se tratasse de argila ou para aterros quando fosse outro tipo de material. Havia tiradores de areia que exerciam o trabalho manualmente, utilizando seus próprios instrumentos, as pás e os barcos, recebendo remuneração em dinheiro proporcional ao volume bruto escavado e transportado até o porto de areia - local onde ocorria a lavagem e separação do material. Essa última atividade era realizada pelo dono das cavas, que para isso contratava diaristas.60 Em grandes explorações, o processo todo podia ser mecanizado. A extração de areia e pedregulho tornou-se uma atividade cada vez maior. Atraía desde pequenos e médios empresários, muitas vezes antigos barqueiros avulsos que conseguiam acumular algum capital, até grandes empresas como a Companhia City, a Votorantim e a Simaco, que atuavam no rio Pinheiros, e que, desde 1927, ali permaneciam contra a vontade Light and Power, que conseguira nessa data a concessão para canalizar o rio e drenar suas várzeas, assumindo o monopólio de sua exploração econômica. Na década de 1930, a maior descoberta do Tietê, era mantida pela Veloso, Filho & Cia., em terras que ficavam entre Santana e Vila Maria. Funcionavam ali três dragas de sucção a vapor de 8,12 e 16 hp, três rebocadores a gasolina e 55 barcos de 14 a 16 metros. Eram extraídos 12.700 metros cúbicos de material ao mês.” Além disso, a empresa vendia lotes de exploração para pequenos empreendedores. Contudo, a maior parte do volume de areia e pedregulho extraído do Tietê não provinha das grandes e mecanizadas explorações, mas de pequenas descobertas que utilizavam Seabra, op. cit., p. 87 e ss.

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Idem.

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trabalho braçal intenso.61 Em 1922, a fiscalização de rios e várzeas concedeu 132 licenças para extração de areia no “tietê, Tamanduateí e Pinheiros. Em 1926 foram “200 licenças para a extração de areia e pedregulho nos rios Tietê e Pinheiros, e 1.784 metros lineares de localização nas margens desses rios para portos de descarga de materiais, lenha, carvão, etc., sendo arrecadada a renda de $23.966.750”. O quanto o mercado de areia e pedregulho era promissor fica patente pelo empenho com que a Light buscou garantir seu monopólio de exploração do Pinheiros. Para isso, entre outras medidas, valeu-se até mesmo da abertura e fechamento das comportas da represa de Guarapiranga, o que fazia com que as águas do Pinheiros oscilassem bruscamente, paralisado a navegação, quando não causando o naufrágio de embarcações e dragas. Em 1937 uma correspondência interna da empresa instruía os seus encarregados de serviço a oporem-se “até pela violência física” à retirada do material. Assim, os barqueiros avulsos, e mesmo pequenos e médios empresários de dragas foram obrigados a se retirar para o Tietê. Permaneceram no Pinheiros apenas grandes empresas que atuavam em “descobertas” e que possuíam cacife para enfrentar o “polvo canadense”. Por tudo isso a extração de areia e pedregulho no Pinheiros decaiu depois que a Light assumiu o seu controle e o Tietê tornou-se a principal zona fornecedora desse material à cidade.62 A pedra britada passou a substituir o pedregulho dos rios nos anos 1930, o que diminuiu o ganho dos tiradores de areia e pedregulho, pois este último era a mercadoria mais lucrativa da exploração casada. Do mesmo modo, o ingresso do grande capital na extração de areia e pedregulho atingiu a vida dos barqueiros do Tietê em geral. Ao dificultar ou mesmo afastar dessa atividade extrativista muitos tiradores, incapazes de concorrer com a produção empresarial mecanizada, cresceu o número de barqueiros dedicados unicamente ao transporte de mercadorias, o que aumentou a oferta no mercado de fretes. Assim, nos anos 1940, os barqueiros do Tietê eram numerosos, mas pareciam empobrecidos em relação ao início do século, como indica uma matéria do jornal Folha da Noite feita por Jerônimo Monteiro, era dezembro de 1943. O jornalista assinalava em reportagem especial que os frequentadores Idem.

61

Idem.

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dos “clubes náuticos à margem do Tietê”, viam passar “grandes batelões carregados de areia, tijolos ou pedregulhos. Carregados, muitas vezes, de tal maneira que o casco do barco desaparece inteirinho sob a linha d’água. E eles vão serenamente, rio abaixo, com seus musculosos e maltrapilhos tripulantes manejando os pesados varejões ferrados”.63 Procurando descobrir um pouco mais sobre esses homens “de camisetas esburacadas, calças rasgadas, pele requentada do sol” e que passavam “o dia rio abaixo, rio acima, impelindo pesadas embarcações carregadas de material de construção”, Monteiro acompanhou o labor de um deles:

Manhã cinzenta com uma dessas chuvinhas finas e tristes. O porto de Vila Moreira, à margem do Tietê, um pouco abaixo do largo do Maranhão, tem aspecto desolado de ruína. Ali esperamos um barqueiro que no quisesse levar com ele e contar-nos sua história. Vários barcos sobem o rio. Outros descem carregados. Um afinal encosta ao porto pela sete horas. Vem neles dois homens, um idoso e um moço. O moço salta para a margem. Falamos com o outro e pulamos para o barco. O velho de quase sessenta anos, mas forte, é português, chama-se Manuel Domingues Caetano e mora na Vila Guilherme. O batelão pertence-lhe. Tem quatro filhos. Foi comprar pão e mais adiante na próxima curva do rio, embarcará de novo.

Em uma fala de Manuel Domingues aparecem as transformações pelas quais passou a atividade dos barqueiros e como eles se organizavam desde então: - Pois é meu homem, há 23 anos que trabalho nisto. Foi sempre assim...e há de ser sempre assim. Mas meus filhos... para eles quero outra coisa. Para sofrer, basta eu. Este que aqui está comigo vai arranjar outro emprego... Quando lhe perguntamos se ele tira areia, sorriu. “Os Barqueiros do Tietê”, Folha da Noite, 21/12/1943, p. 7.

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- Qual... isso era em outros tempos. Hoje para tirar areia é preciso capital... Só os que podem comprar uma draga é que tiram areia... Nós ou trabalhamos para os outros ou temos barcos para o transporte. Mas eu só trabalho no tijolo... O barco é meu... (...) Quisemos saber como o serviço é organizado. - Temos uma Sociedade. A Sociedade de Transporte Fluviais que é quem distribui o serviço. Os que têm areia, tijolos ou pedregulhos para transportar, pedem a Sociedade que mande tantos barcos a tal porto. Nós vamos à Sociedade e ela faz o sorteio... Estranhamos, mas compreendemos logo. Para evitar proteções, disputas, e escolha de serviço os membros da Sociedade instituíram um sistema de sorteio. Cada pedido é inscrito numa papeleta e os candidatos ao transporte vão tirando cada um a sua. O serviço que lhe couber é aceito sem discussões. Ao nosso amigo coubera uma das piores viagens: carregar o barco de tijolos num porto além Guarulhos, para trazê-lo à Ponte Grande.

Em uma cidade onde o trabalho infantil era corriqueiro, não era de se estranhar que em certo momento da viagem, o jornalista encontrasse crianças nas barcaças do Tietê, mas em situação bem diversa daquela vivida pelo menino Jacob Penteado:

O lendário Tietê, o rio das Bandeiras, cujas águas levaram nossos avós à penetração do continente imenso, está cheio de barcos onde trabalham outros homens tão rudes talvez como os nossos bandeirantes de outrora Mais de 500 barcos vão e vêm no árduo trabalho. Uns levam dois homens, outros três,

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poucos levam um. Manuel e António conhecem todos eles e têm sempre um dito chistoso para trocar. Piadas atravessam o rio de margem a margem. Risadas estrugem. Chama a atenção um batelão que vem subindo carregado. Temos a impressão de que é tripulado por crianças. E é mesmo. Três garotos de 8,10 e 14 anos manejam os varejões e o pesado leme e lá vão rio acima com o grande barco atulhado de areia. Suas fisionomias não parecem de crianças. São pequenos homens atentos aos trabalhos para não abalroar outros barcos nas inúmeras curvas. Para mantê-lo sempre pelo leito da corrente e evitar os baixios numerosos. Depois, rio acima, vimos outros. Outras crianças - pigmeus isolados dentro de enormes barcos, a braços. com uma tarefa que é pesada até para os adultos mais fortes.

Além da extração de areia e pedregulho, as várzeas tinham a argila, fundamental para a construção civil, depois de transformada em tijolos, telhas e cerâmicas pelo trabalho na olarias. Estas consumiam igualmente lenha, já que os tijolos de barro precisavam ser assados, depois de secos. Em 1836 existiam 40 “oleiros” na cidade, época em que tijolos eram empregados para ladrilhar os pisos das construções, e, em 1857 nove pequenas fábricas de telhas e tijolos.64 Algumas olarias abriam buracos onde quer que houvesse depósitos de argila, pouco se importando com a fiscalização. Em! 6 de março de 1886, o fiscal “do sul da Sé”, Olegário Brasiliense, registrou que “percorrendo o bairro do Pari encontrei o proprietário de uma olaria começando a tirar terra em terrenos pertencentes à Câmara. Como o suplicante mostrou-se ignorante do Ato 30 das posturas intimei-o para que não continue mais a tirar terra em terrenos públicos sob a pena de ser multado em 30$000 rs”. Voltando ao local em 7 de abril do mesmo ano, o fiscal constatou que o dono da olaria continuava a fazer escavações Núcleo de Referência Arqueológica da Cidade de São Paulo. Exposição “Cerâmica Paulista” Casa n° 1,2003. Inicialmente os tijolos eram utilizados para ladrilhar os pisos das construções. Em fins do século XIX, as telhas coloniais cederam lugar às telhas planas francesas, as “Marseille”.

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sendo por isso mesmo multado, tendo a carroça que transportava o material apreendida. O que causou dificuldade ao funcionário da intendência, posto que teve de ser transportada por “um lugar deserto como é o Pari”.65 Em 1896, “em execução da lei n. 130 de 23 de janeiro de 1895”, foram expedidas instruções “regulando a extração de barro para cerâmica em terrenos municipais, modo da concessão das respectivas licenças e proibição de escavações nas várzeas do Catumby e Bom Retiro, bem como no bairro do Pary no lugares altos que possam ser aproveitados para edificações”.66 Em 1913, foram proibidas de se instalar próximo aos centros urbanos, transferindo-se para as “várzeas de rio acima” entre Penha e Guarulhos, anos depois chegando até as proximidades de Mogi das Cruzes.67 Um outro grupo matinha um contato imediato e cotidiano com os rios e córregos paulistanos: as lavadeiras. Pareciam estar em toda parte, em grupos no córrego do Lavapés, a cantarolar em meio ao trabalho ou sozinhas no córrego do Ipiranga antes da construção do jardim e do monumento à independência, em 1922. Mas era no Tamanduateí, curso d’água próximo às áreas mais populosas da cidade que se encontrava o maior número delas na passagem do século. Conta-se mesmo que em meados do século XIX muitos senhores, alguns abastados ou com prestígio como lentes da Faculdade de Direito, se reuniam na ponte do Mercado para ficar apreciando a beleza das lavadeiras do Tamanduateí. O que causava constrangimentos em algumas que se apressavam em terminar o trabalho antes das quatro horas para evitar tal assistência.68 O que tais homens viam era provavelmente algo muito semelhante ao que Jorge Americano deixou registrado em suas lembranças de fins do 19 é início do século XX:

A várzea do Carmo (hoje Parque D. Pedro 11) era alagadiça no tempo das chuvas. Na seca, entre o Gasómetro e o Carmo, dois braços do Tamanduateí formavam uma ilha. Um desIntendências Municipais. Ocorrências registradas pelos fiscais. Volume 774, Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura do Município de São Paulo.”

65

Intendência, 1897, p. 57.

66

Nóbrega, Mello, op. cit., 94-95.

67

Duarte, Raul. São Paulo de Ontem e Hoje. São Paulo; Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais, 1941, p. 82-83.

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ses é o leito atual e outro corria paralelo à 25 de Março, até ajuntar-se ao primeiro, ali pela altura do atual mercado. Da Rua Glicério e de toda a encosta da colina central da cidade, desciam lavadeiras de tamancos, trazendo trouxas e tábuas de bater roupa. A beira d’água, juntavam a parte traseira à dianteira da saia, por um nó no apanhado da saia, a qual tomava aspecto de bombacha. Sungavam-na pela parte superior, amarravam-na â cintura com barbante, de modo a encurtá-la até os joelhos ou pouco acima, tomando agora o aspecto de calção estofado. Deixavam os tamancos, entravam n’água e debruçavam-se sobre o rio, sem perigo de serem mal vistas pelas costas. Terminada a lavagem recompunham o vestuário, calçavam os tamancos e subiam a encosta. Isso durou até que o poder público resolveu aterrar e ajardinar a Várzea do Carmo.69

As lavadeiras que se dirigiam aos rios e córregos da cidade iam em busca da água abundante, limpa e gratuita que ali encontravam, embora algumas lavassem mesmo a roupa em tanques dentro de suas casas ou cortiços. Nesse caso, em fins do século XIX, a atividade não escapou de ser colocada no rol das possíveis causadoras de doenças e epidemia. Daí, que alguns pedissem “lavanderias públicas” dispostas “de modo a darem fácil escoamento às águas servidas”, impedindo a “estagnação dessas águas, cujas conseqüências são de todos conhecidas”. Afinal “das causas que grandemente contribuem para o desenvolvimento de febres palustres e todas as mais variantes nos cortiços, é sem questão o encharcamento dos respectivos solos pelas águas de lavagens de toda espécie”.70 Contudo, conseguir água para lavar roupas não era nada fácil, ainda 69 Americano, Jorge. São Paulo Naquele Tempo 1895 – 1915. São Paulo, Edição Saraiva, 1954, p. 146. 70

“Lavanderias Públicas”, Correio Paulistano, 25/03/1893.

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mais nas casas das mulheres pobres que exerciam essa atividade. Quando havia encanamento, era preciso pagar pela água. A dos poços, embora gratuita, exigia um grande esforço para ser obtida, baldes e baldes cheios e pesados que precisavam ser puxados. Beira-rio, além da água abundante, havia espaço para estender e quarar as roupas lavadas e a oportunidade de encontrar outras lavadeiras, o que tornava o trabalho menos penoso. Assim, continuamente, ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as mulheres de São Paulo, naturais da cidade ou vindas de fora, procuravam os rios e córregos para lavar as roupas da família e daqueles que encomendassem o serviço. A figura das lavadeiras, desse modo, perpetuava-se na cidade, persistindo às intensas transformações que alteraram radicalmente o perfil da cidade e de sua população, mas que não lograram mudar todas as dimensões da vida cotidiana. Além das lavadeiras era difícil se aproximar de rios e córregos, sem notar os chacareiros. As atividades agropastoris ao longo do Tietê também viraram os séculos em São Paulo, embora seu perfil variasse radicalmente em diferentes épocas. É claro que não só o Tietê acolhia agricultores e criadores de rebanhos, como é sabido, o próprio viaduto do Chá, sobre o Anhangabaú, tinha esse nome devido às plantações que ali existiam. Os indígenas já utilizavam as terras junto aos rios para a agricultura, que depois da chegada dos europeus tornaram-se igualmente pastagens para rebanhos diversos. A partir de fins do século J 6, os colonos, que já criavam gado nas cercanias da vila, avançaram sobre as terras além Anhangabaú e Tamanduateí, mesmo que isso significasse ficar mais expostos aos ataques de indígenas hostis à dominação portuguesa. A partir de 1583, a Câmara Municipal distribuiu lotes de terra aos colonos, com dimensões variando entre 3 mil e 48 mil metros quadrados, no Ipiranga, ao lado do caminho do mar; no Guaré ou Piratininga, entre o núcleo original e o rio Tietê e ao longo do rio Pinheiros.71 Durante o século XIX, os arredores de São Paulo com chácaras, sítios e “núcleos de povoamento disperso tinham um papel considerável na dinâmica econômica da cidade, no suprimento das necessidades de sua população”. Era de lá que vinha parte do alimento consumido pelos moradores, os produtos obtidos com o extrativismo e onde o couro era preparado para ser trabalhado. Nos campos de Santana e do Bexiga, escravos urbanos iam Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.l03,244.

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buscar lenha ou capim para vender nas ruas centrais e podiam aproveitar tudo o mais que encontrassem de útil nos brejos, rios e matagais.72 Os cursos d’água funcionavam também como marcos na divisão das propriedades, pois eram referências espaciais importantes. Nos registros de terras da Freguesia da Sé, em meados do século XIX, eram citados os córregos do Angiqueiro, do Boqueirão, do Campanário, das Canas do Reino, Cambuci, do Itinga, do Moinho Velho, do Moringuinho, do Piracangagu, dos Poços, do Quebra-Bunda; além dos ribeirões do Ipiranga e Lavapés e do rio Tamanduateí. Em 1856, um “pequeno sítio de terras de campo ou várzea”, de Antonio Joaquim de Oliveira foi demarcado do seguinte modo:73

(...) principia no portão, donde segue um muro, e deste um Caraguatá até o ribeirão Cambuci e por ele abaixo até o rio Tamanduateí, e por este, também abaixo até um valo, que segue até o muro, que entesta no supradito portão. Os limites das terras são, na frente a estrada, que tem 50 braças, no fundo o rio Tamanduateí, de um lado o ribeirão Cambuci, e de outros terras de D. Ana Luísa da Conceição.74

A população crescente e heterogênea de São Paulo, suas fábricas e estabelecimentos comerciais ou de serviços, que precisavam ser supridos com alimentos e matéria-prima variados, ou seja, representavam um atraente mercado consumidor que estimulou o desenvolvimento de atividades agropastoris e extrativistas em Cotia, Mogi das Cruzes, Santo Amaro, Guarulhos e na Serra da Cantareira, o mesmo ocorrendo no próprio interior da cidade, o que impulsionou o estabelecimento de chácaras ao longo do Tietê. As várzeas eram locais de pastagens para o gado leiteiro e de corte, cabras e ovelhas, cavalos Wissenbach, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: Escravos e Forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998, p. 134. 72

Tessitore, Viviane. Registros de Terras de São Paulo. Volume I Sé. São Paulo: Secretaria de Estado Cultura. Departamento de Museus e Arquivos. Arquivo do Estado de São Paulo, 1986, p. 17, 186-187.

73

Uma braça equivale a 2,2 metros. Idem, p. 72.

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e burros. Compunham, assim, a zona rural do município, mas como cavalos e burros eram empregados largamente no transporte citadino, levando passageiros e produtos de todo tipo, as pastagens e currais eram parte indispensável da paisagem urbana nesse período. A figura do chacareiro fazia parte do dia-a-dia de todos. No mapa demonstrativo das locações do mercado da rua 25 de março, em 1906, havia uma seção denominada “Mercado de Chacareiros”, com 60 inscritos e o mesmo tipo de mapa do mercado da rua São João possuía 22 mesas que vendiam verdura. Em janeiro de 1923, o administrador do Mercado da 25 de março informava que a seção de chacareiros vendera no ano anterior 38.994 carroças de verduras - na área externa-, e 1.443 carroças de frutas.75 Em pequenos afluentes do Tietê ria região da Penha hortaliças e flores eram cultivadas. Sitiantes e chacareiros que foram obrigados a abandonar suas terras à beira do rio Guarapiranga em decorrência da construção da represa, continuariam numerosos na região. Em 1898, o intendente defendia a concessão de aforamentos de pequenos lotes nas várzeas de forma a impedir a usurpação dos terrenos da prefeitura, afirmando que havia muitos pedidos de enfiteuses parados na Câmara, o que era um incentivo à ocupação ilegal. É provável que entre os munícipes que faziam tais requerimentos muitos estivessem interessados na exploração de areia e pedregulho, em olarias, mas havia agricultores e criadores de rebanhos. Embora o mercado consumidor representado pela população urbana estimulasse as atividades agrícolas, também criava concorrentes pelo uso do solo, como as olarias e os tiradores de areia e pedregulhos, atividades que inutilizavam as margens dos rios ao deixar em seu rastro enormes crateras. Além do extrativismo mineral, o próprio avanço do mercado de terras urbanas e dos logradouros públicos empurrava os chacareiros das regiões que se valorizavam. Mas não apenas o trabalho marcava a convivência dos moradores da cidade com o Tietê. No início do século XX, cada vez mais os paulistanos procuravam locais à beira dos cursos d’água para passeios, encontros, brincadeiras e para praticar esportes. Pelo menos desde meados do século XIX a Ponte Grande sobre o Tietê era um local de recreação e 75 Relatório de Í906 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São Paulo: Typographia. Vanorden & Co., 1906, p. 11; Anexo ao Relatório de 1922 apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Prefeito Dr Firminiano de Moraes Pinto. São Paulo: Casa Vanordem, 1923, p. 89.

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passeios, como recorda Maria Paes de Barros, mulher de uma família da elite paulistana:

As manas mais velhas, (assim eram chamadas pela criançada) gostavam de fazer longos passeios de carros pelos subúrbios. Iam ao Brás, à Glória, e principalmente à Ponte Grande, passeio predileto. Levavam sempre alguma das pequenas - as que tinham tido boa conduta, é claro! Conduzia a sege o cocheiro Joaquim, tendo ao lado o lacaio, ambos fardados de libré azul- ferrete guarnecidos de vivos vermelhos. Chegadas à Ponte, desciam todas para um longo passeio a pé, acompanhadas pelo lacaio. Seguiam por estradas poeirentas, por campos desertos e incultos, divisando aqui e ali uma pobre choça, vendo passar um caipira com seu burrico carregado de minguados produtos da roça que o homem ia tentar vender na cidade. De volta à Ponte, ficavam a contemplar as águas turvas do Tietê, observando um ou outro pescador com um enfiada de lambaris às costas. De tardezinha retomavam o carro, regressando ao lar.

A Ponte Grande, construída no século 18, impressionava pelo tamanho e esmero quando comparada com as demais pontes paulistanas, além de ser uma importante via de comunicação, levando à Santana, Mandaqui, Juqueri, Atibaia e Bragança. Em novembro de 1883, Carl von Koseritz, alemão que morava no Rio Grande do Sul, em viagem pela cidade observava que:

sobre o Tietê, a alguma distância da cidade, há uma bonita e grande ponte e agora existe também um pequeno vapor que conduz os paulistanos pelo rio, onde cedo se erguerão locais aprazíveis. Durante a minha estada o pequeno vapor

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fez suas viagens de ensaio, das quais não pude, infelizmente, participar.76

Muitos procuravam o rio apenas para esquecer a vida e seus problemas ou tristezas, como bem expressa o poema “O Tietê’.77 de Manoel Baptista Cepellos, de 1906:

De tarde, quando o sol poucos brilhos expande, Sozinho, a meditar em tanto não sei que, Tomo o rumo da Luz, vou até a Ponte Grande, A fim de conversar com o meu velho Tietê... A cabeça recosto e, por cima da grade, Vejo as águas em todo o seu largo trajeto; Então, ele me conta a história da Cidade, Como um velho guerreiro a distrair o neto...78

Observar calmamente o rio e as várzeas era algo que ocorria não só na Ponte Grande, mas em todas as pontes da cidade. Mas, em um período no qual o esporte alterava as sensibilidades, adequando-as aos ritmos e valores da vida urbana que nascia em São Paulo, o Tietê era cada vez mais, não local de contemplação, mas sim de ação, pois se transformava em gigantesca praça esportiva, inteiramente em sintonia com os novos modos de viver e de sentir que atingiam a Paulicéia. Já no final do século XIX alguns clubes passaram a se instalar naquela região. Na década de 1920, na Ponte Grande e arredores, podia-se acompanhar nos finais de semana “multidões de jovens, desde as primeiras horas da manhã” se exercitando “na natação, nos saltos ornamentais e nos barcos a remo, com os quais, cortando a cerração densa, cruzavam a zona popuMoura, op. cit., p. 99.

76

Koseritz, Carl von. Imagens do Brasil. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo; EdUSP, 1980, p. 262. 77

78 Rocha, Aristides Almeida. Tietê, Rio Poético. São Paulo: Depto. de Saúde Ambiental, FSP-USP, 1997.

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losa dos bairros do leste onde exibiam-se, em plena Ponte Grande, mergulhando e nadando. Apesar de não muito frequentes, alguns clubes da cidade promoviam festivais campestres, como era o caso do Corinthians, da Portuguesa e do Germânia nos anos 1930”.79 Antes deles, nos primeiros anos do século XX, era comum os trabalhadores, através de algumas de suas associações de classe; organizarem piqueniques e festas, em seus poucos momentos de folga, em especial no 1° de maio, quando então procuravam a beira-rio. Os clubes do Tietê difundiam os esportes náuticos da cidade, e dois deles eram muito famosos: a Società Italiana di Canottieri - Club Espéria, fundado em 1º de novembro de 1899 e o Clube de Regatas Tietê, criado em 6 de junho de 1907, grandes rivais nas competições de remo, uma grande paixão na cidade. Nas décadas de 1920 e 1930, as colunas do jornal O Estado de S. Paulo dedicadas aos esportes náuticos quase diariamente faziam referência aos dois clubes e aos eventos que promoviam.80 Em 1908, para a glória dos paulistas, uma equipe de remo do Tietê venceu uma prova no Rio de Janeiro, o que nunca antes tinha acontecido com uma agremiação de São Paulo. No Tietê, era difícil formar raias de dois mil metros já que era um rio de meandros, embora antes da retificação até seis barcos pudessem dar juntos a largada.81 Em 1903, foi criada a União Paulista dos Clubes de Remo e, em 1907, surgiu a Federação Paulista das Sociedades de Remo. Nessas entidades, era marcante a presença de clubes de Santos, onde o remo chegara primeiro. Os dirigentes dessa federação, inspirados na regulamentação inglesa e sintonizados com os valores da república oligárquica, criaram um estatuto altamente elitista, que procurava afastar dos esportes náuticos os trabalhadores. Em 1912, quando a Federação Paulista de Remo excluiu os operários da lista de remadores registrados para a temporada oficial, o presidente do Clube Espéria, Marcelino Marcello protestou com veemência, mas, a regulamentação elitista perdurou ainda por muito tempo.82 Na Sevcenko, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20. São Paulo; Companhia das Letras, 1992, p. 110-112.

79

“Várias”, O Estado de S. Paulo, 2/9/1933, p. 9.

80 81

Nicolini, Henrique. Tietê: o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001, p. 208-209.

A Federação Brasileira de Esportes Aquáticos, com sede no Rio de Janeiro, afirmava em seu estatuto, em 1933, que não reconhecia como amadores, condição indispensável para participar das competições oficiais, entre outros, os “analfabetos”, os que exerciam profis82

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verdade, assim como o futebol, que não ficava alheio à discriminação social e racial, incomodava o fato de que as equipes que possuíam atletas pertencentes às classes populares ou negros superassem aquelas exclusivamente formadas por elementos das classes privilegiadas, o que era constrangedor para os ricos e um perigoso exemplo de igualitarismo social. As entidades que se dedicavam a promover o remo organizavam igualmente competições de natação, modalidade praticada nos clubes ao lado do pólo aquático. Ao longo do Tietê havia inúmeras associações esportivas como o Clube de Regatas São Paulo, fundado em 1903, ou o Clube Esportivo da Penha, de 1929. Em 1924, J. E. Macedo, dono do periódico São Paulo Esportivo organizou a “Primeira Travessia de São Paulo a Nado”, seguida por outras edições até 1928, quando Macedo foi à falência. A competição voltou a ser realizada novamente a partir de 1932, promovida agora pelo jornal A Gazeta Esportiva. Atraía nadadores de todo o país e era popularíssima na cidade, levando inúmeros moradores para a beira do rio a fim de acompanhar a prova, como ainda lembram alguns paulistanos mais velhos. Os competidores saíam da Ponte da Vila Maria e pouco mais de cinco quilômetros depois chegavam ao ponto final na altura do Espéria e do Tietê. Causou sensação na “Primeira Travessia de São Paulo a Nado” a participação de mulheres, algo até ali inédito em competições oficiais paulistas, elas que lentamente começavam a se atrever a nadar em público. 83 Os clubes dedicados aos esportes náuticos não existiam somente às margens do Tietê. No rio Pinheiros, um dos maiores era o Sport Club Germânia fundado em 7 de setembro de 1899 por um alemão, Hans Nobiling, e seus amigos de futebol. Em 1919, depois de ocupar dependências alugadas, o Germânia comprou uma área de 100 mil m². Em 1921 inaugurou o primeiro cocho flutuante de madeira nas margens do rio, onde crianças, homens e mulheres podiam nadar em segurança. Além da natação, praticava-se no clube, entre outros esportes, o são “ou emprego que lhes empreste o caráter de serviçais, tais como: criados de servir, de hotéis, cafés, bares, e botequins, armazéns de secos e molhados, ‘tendas’, confeitarias, bilhares e casas de sorvete, barbeiros, cabeleireiros,’chauffeeurs’, empregados de agências de loterias, contínuos, e serventes em geral, vendedores de bilhetes de loterias e exploradores de jogos proibidos, condutores ou recebedores de veículos e, bem assim, os que receberem gorjetas no exercício da profissão”. Nicolini, Henrique, op. cit. A vencedora da prova feminina foi Jandira Barroso. Nicolini, op. cit.; Adorno, Vicente. Tietê: uma promessa de futuro para as águas do passado. São Paulo: 1999, p. 80-82,86; “Remo e Natação”, O Estado de S. Paulo, 17/9/1923, p. 5; “Clube de Regatas Tietê. Seu festival de natação hoje”, O Estado de S. Paulo, 4/3/1928, p. 8.

83

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futebol, tênis e atletismo, remo e excursões de barco pelo rio.84 O Pinheiros não podia competir com o Tietê como principal local de recreação e prática de esportes da cidade, mas o mesmo não parecia ocorrer com o imenso lago que se formara no então município de Santo Amaro na primeira década do século XX. Cercado de matas e praias tornou-se imediatamente uma grande atração para os paulistanos, ponto turístico a figurar nos cartões postais, local apropriado para contemplar a natureza, descansar, fazer piquenique e praticar esportes náuticos. Clubes e casas de veraneio começaram a aparecer nas margens da represa de Guarapiranga, aproveitando inicialmente a linha de bondes implantada pela Light quando da construção do reservatório. Em 1929 a empresa S/A Auto-estradas, que ambicionava implementar lucrativos negócios imobiliários na região, construiu uma estrada de rodagem que interligava São Paulo a Santo Amaro.85 Para muitos, tão importante quanto a água farta e limpa, era o fato de Guarapiranga, distante das áreas mais populosas da cidade, ser menos freqüentada pelos moradores pobres e proletários, o oposto do que ocorria no Tietê. Sintomaticamente, a região acolheria clubes de iatismo, mas não de remo. A tentativa de transformar a represa de Guarapiranga em arena esportiva fez com que, nos anos 1930 e 1940, ela recebesse algumas competições importantes, como as eliminatórias para a seleção da “turma” que representaria São Paulo no “Campeonato Nacional de Remo”, a ser realizado no Rio de Janeiro.86 Contudo, era difícil promover competições de remo e de outras modalidades esportivas que dependessem de muitos atletas, uma vez que os principais clubes da cidade estavam no Tietê. Acompanhandose os preparativos das Regatas Universitárias em Santo Amaro, organizadas pelo Grêmio da Escola Politécnica em 1933, isso fica claro:

Ontem às 9 horas, partiram da Ponte Grande, em três bondes gentilmente cedidos pela Superintendência da Light and Álbum do Centenário do Esporte Clube Pinheiros 1899 - 1999. São Paulo; Alameda Projetos e Pesquisas em Patrimônio Histórico, 1999, p. 9-11; Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: TA. Queiroz. Editor/EdUSP, 1987, p. 271. 84

Mendes, Denise; Carvalho, Maria Cristina Wolíf de. “A Ocupação da Bacia do Guarapiranga: Perspectiva Histórico-Urbanística” In: França, Elisabeth (coord.) Guarapiranga: recuperação urbana e ambiental no Município de São Paulo. São Paulo; M. Carrilhos Arquitetos, 2000,42-49.

85

“Remo”, O Estado de S. Paulo, 7/2/1939, p. 8.

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Power, todos os barcos inscritos. As 15 horas já estavam eles dispostos em cavaletes, às margens da represa. Essa operação é a mais delicada e importante para o êxito das regatas, operou-se sem o menor incidente graças aos empregados de clubes, bastante práticos nesse serviço de transporte de barcos, e a dedicada e inteligente direção do Sr. Humberto Poppi, diretor de remo do Clube Espéria. Da Capela do Socorro ao paredão da represa os barcos foram transportados em caminhão gentilmente cedido pela diretoria da e.f. Sorocabana.87

Esporte e negócios andavam juntos. Um anúncio veiculado nos jornais paulistanos pedia aos leitores que aproveitassem bem o domingo, assistindo as regatas universitárias, mas que fossem à Represa de Santo Amaro, lhão de bonde e sim “pela auto-estrada o que lhe tornará mais agradável o passeio, proporcionando-lhe ao mesmo tempo a oportunidade de admirar os belíssimos terrenos que estão à venda na margem da estrada, por preços módicos”.88 Mas fora dos clubes e associações bem estruturados, multiplicavam-se as práticas recreativas e esportivas informais e improvisadas da população. Quem não podia praticar a natação nos clubes ou nos espaços destinados ao lazer na represas, nem por isso ficava sem nadar. A natação, além de prazerosa era uma atividade muito útil na medida em que rios, córregos, lagoas faziam parte do cotidiano de todos. Na passagem do sé87 “Remo. Regatas Universitárias em Santo Amaro”, O Estado de S. Paulo, 2/9/1933, p. 8; “Remo. As Regatas Universitárias”, O Estado de S. Paulo, 3/9/1933, p. 10. 88 “Regatas Universitárias na Represa de Santo Amaro”, O Estado de S. Paulo, 3/9/1933, p. 3. Cabe lembrar que não apenas a Auto-Estrada realizava negócios imobiliários na região: “Represa Sto. Amaro. Vende-se 7 alqueires mais ou menos 400 metros de frente à represa lugar de grande futuro em frente à praia Azul, com barco. 50 contos. Mais informações largo de S. Efigênia, 15 - tel. 4 - 2472.”; O Estado de S. Paulo, 16/6/1935. p. 21; “Futurosa aplicação de capital. Vende-se em Santo Amaro, entre a moderníssima Inter-Lagos e o Clube de Campo, uma magnífica propriedade com 240.000 m.q. Lugar aprazível, com belíssima vista para a represa, possuindo duas ótimas residências e outras benfeitorias. Uma aplicação de capital das mais vantajosas pela segurança da sua valorização a cada dia que passa. Preço e outros detalhes com Assis, rua São Bento, 45,50, sala 501. O Estado de S. Paulo, 4/2/1939, p. 19. “Lanchas vendem-se. (...) Dodge 201,1934 de 16 pés, motor econômico de 45 hp, para 5 passageiros” (ou a 208 para 10 passageiros e lanchas de corrida). “Preços excepcionalmente baixos. Ver e tratar com o sr. Aboim, Regina Hotel, de 5 a 10 de julho.”; O Estado de S. Paulo, 2/6/1935, p. 9.

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culo, contudo, nem sempre era com compreensão que alguns moradores da cidade assistiam a prática informal dessa atividade que ganhava a cidade, como se pode notar pelo teor da reclamação estampada no jornal Folha do Braz no ano de 1899:

Vergonhoso! Pela terceira vez já que vamos tocar na esfinge que tanto amedronta a polícia. Já duas cartas recebemos de pessoas que prestam culto ao pudor, sobre o diário atentado ao decoro público, de marmanjos e de crianças cuja vida corre perigo, que à plena luz do dia, aos olhos impassíveis dos guardas “cívicos” banham-se nus descaradamente no Tamanduateí, em frente ao mercado municipal. (...) A infeliz ilha dos amores passou ser agora a uma dos devassos e vagabundos, o jardim dos Trymalcions e Messalinas. O coliseu do vício é aí onde foi a cocheira.de burros da Viação: é aí o bordel às claras onde os devassos, os sicários do pudor, atiram a lama do vício à face da moral. (...) A polícia, que dispõe de mil auxiliares, poderá escalar um para a várzea do Carmo e mais pontos de que falamos, a fim de convencer-se do que narramos. Ou irradie a Moral suas luzes pelas trevas desses antros de misérias, ou queimem-se incensos ao vício, abram-se os templos da orgia...89

Os “marmanjos e crianças”, “D. Juans” e “Magdalenas”, por muito tempo ainda irritariam aqueles empenhados na difícil tarefa de defender a moral e o pudor públicos. Em 1935, na seção “Queixas e Reclamações” 89

“Vergonhoso”, Folha do Braz, 08/01/1899, p. 2.

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d’o Estado um morador protestava e solicitava a atenção do Delegado de Costumes para a falta de policiamento que se verificava nas “imediações da chamada ponte dos Amores, situada sobre o rio Tietê, na avenida Cruzeiro do Sul, fim da rua Porto Seguro” onde, à noite, se registravam “cenas inconvenientes”.90 Às vezes não eram tanto as cenas, mas os seus resultados que causavam inconveniências. Na mesma seção “Queixas e Reclamações um leitor d’o Estado protestava “contra o uso e abuso que fazem os moleques e vagabundos servindo-se, para as necessidades fisiológicas, dos baixos das pontes sobre o rio Tamanduateí, que, além do aspecto nojento, exala emanações fétidas insuportáveis, a ponto de, em dias quentes como os atuais, ser preciso levar o lenço ao nariz, quando por infelicidade se é obrigado a passar por cima das mesmas. Vejamos assim se a prática dessa imoralidade terá um coercitivo (...)”.91 A prática informal da natação, ao menos entre as classes populares, era majoritariamente masculina. Como havia lagoas, rios e córregos em praticamente todas as partes da cidade, principalmente quando o calor era forte, aproveitava-se qualquer tempo vago para nadar ou ao menos entrar na água. Podia acontecer de algum soldado do 6º batalhão da Força Pública, destacado no posto da Vila Leopoldina, aproveitar um momento de folga para um banho numa lagoa próxima. Crianças e adolescentes nadando podiam ser vistas em um canal do Tietê na várzea da Freguesia do Ó, da Barra Funda ou na várzea do parque D. Pedro II, ou mesmo em uma lago próxima à rua Eugênio de Freitas. Nadava-se também no Tamanduateí.92 Todos os que nadavam nas lagoas, rios e córregos colocavam a vida em risco. Os jornais registravam uma infinidade de casos de afogamentos nos locais onde se praticava a natação. Eram remotas as possibilidades de socorro de banhistas, mesmo em locais não isolados e com outras pessoas por perto. Por outro lado, muitas vezes as mortes por afogamento não eram causadas por acidente, mas, talvez, pelo desespero e solidão: “Queixas e Reclamações” O Estado de S. Paulo, 30/2/1935, p. 3.

90

“Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 20/2/1919, p. 5.

91

Pereceu afogado”, O Estado de S. Paulo, 23/3/1928, p. 7; Afogados”, O Estado de S.Paulo, 19/2/1919, p. 7; “Afogado no Rio”, O Estado de S. Paulo, 3/2/1919, p. 5; O Estado de S. Paulo, 20/3/1918, p. 6; “Afogado”, O Estado de S. Paulo, 5/3/1939, p. 1 l; “Afogado”, O Estado de S. Paulo, 26/9/1923, p. 5. 92

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Foi encontrado, ontem, às 15 horas, nas águas do rio Tietê, nas proximidades do bairro do Carandiru, o cadáver de Anna Moreno, de 20 anos de idade, solteira, operária, moradora à rua dos Espanhóis, 2, que se suicidara dias atrás, atirando-se ao rio.93

Igualmente trágico era a ocorrência de abandono de bebês, mortos ou vivos, em córregos e várzeas da cidade. Alberto Eduardo Holland “engenheiro ajudante da Cia. de Gáz”, ao realizar um serviço de demarcação num terreno situado na avenida Rangel Pestana, esquina da rua Santa Cruz da Figueira, viu em um “córrego que ali passava, um feto já em adiantado estado de putrefação”. Segundo o delegado, que compareceu ao local em companhia do médico legista Marcondes Machado, possivelmente “o feto fora arremessado em lugar distante e para ali carregado pela correnteza das águas”.94 Já o “soldado n° 42, da 1ª Cia. da Guarda Cívica” em ronda noturna na rua 25 de março, “encontrou abandonada na Várzea do Carmo, próxima à fábrica de calçados”, iria “criança recém-nascida, branca, do sexo masculino” que foi levada para a Polícia Central e depois encaminhada para a Santa Casa de Misericórdia.95 Um outro soldado da Força Pública que transitava pela “Várzea do Mercado encontrou oculta no mato, próximo ao rio Tamanduateí, criança morta, de um mês de idade presumível, de cor branca e do sexo masculino”. O “pequenino cadáver, (...) achava-se em adiantada putrefação. O médico que examinou o corpo, acreditava “que morte devia-se ter-se dado há quatro ou cinco dias... a princípio há sus-

“Cadáver Encontrado”, O Estado de S. Paulo, 15/2/1935, p. 7; “Afogado”. Perto da fábrica Klabim, o padeiro Antônio Fonseca, 36 anos, atirou-se ao rio Tietê, perecendo afogado. O Estado de S. Paulo, 7/3/1939, p. 5. Algumas vezes havia quem conseguisse evitar mortes.”0 inspetor de quarteirão da na São Paulo, Luiz Mazzotti, salvou ontem o português Antônio Pinheiro, que, com intenção de se suicidar, se havia atirado ao rio Tamanduateí, próximo à rua Glicério. Antônio Pinheiro reside à rua Tamandaré 11, e está sofrendo de mania de perseguição.” “Notícias Diversas”, O Estado de S. Paulo, 13/10/1897, p. 2; “Desesperada atirouse ao Tietê. Laudelina de Campos, 24 anos, casada, residente à rua Conselheiro Saraiva no 110.(...) tentara-se suicidar-se (às 18 h), atirando-se às águas do Tietê na Ponte Grande. Foi socorrida pela assistência e internada na Santa Casa”, O Estado de S. Paulo, 16/12/1929, p. 3. 93

Correio Paulistano, 23/02/1908.

94

“Abandonada numa vargem”, Correio Paulistano, 05/09/1909.

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peita de morte violenta por asfixia”.96 As crianças gostavam de frequentar os rios paulistanos. Terminada sua jornada de trabalho em fábricas próximas ao Tietê procuravam as margens do rio para brincadeiras e distrações. Nos domingos e feriados, passavam horas ali, nadando, jogando futebol, pescando, recuperando sua infância roubada. As lagoas podiam ser tanto naturais, meandros abandonados do rio, como decorrentes da atividade humana, como a descrita por Jacob Penteado, denominada o “Buracão, uma grande escavação existente na confluência da Rua Conselheiro Cotegipe com a Avenida Álvaro Ramos. Na época das chuvas, o Buracão transformava-se em lagoa e durante a seca era um campo de futebol.97 Os campos de várzea eram incontáveis. Existiam na Penha, Vila Maria, Canindé, na baixada do Glicério, na Lapa, Barra Funda, Ipiranga, Vila Prudente. Cada bairro organizava seu campeonato de futebol e, de tempos em tempos, torneios e desafios entre diferentes localidades. Algumas partidas reuniam centenas e centenas de torcedores.98 Mas podia ocorrer de as partidas de futebol serem interrompidas por uma chuva muito forte, de granizo, que pegava os jogadores e a assistência desprevenida. Afinal não era sem razão que os paulistanos viam São Paulo como uma cidade de clima desvairado, deixando a todos desconcertados em roupas ou situações inadequadas devido a mudanças de tempo repentinas e imprevisíveis. Em 1941, o locutor da Rádio Record, Raul Duarte afirmava que:

Positivamente, São Paulo tem um clima dos diabos! Travesso mesmo. Parece que tem um prazer doentio em transgredir o que estatui a Meteorologia. Desacata as previsões e decepciona a expectativa! Quando a folhinha acusa o rigor do inverno, insinuando a população o cuidado de se encapotar dentro das lãs e cobertores, São Paulo parece querer derreter os próprios paralelepípedos com o mormaço. E quando o Verão é anunciado com grande alarde, esta cidade de clima amalucado faz o povo tremer o queixo... “Cadáver de uma criança” Correio Paulistano, 14/02/1909.

96

Penteado, op. cit., p. 256.

97

Bosi, op. cit., p. 88-89; Penteado, op. cit., p. 60-61.

98

126


E apesar de gozar a fama de ser a cidade úmida e gelada, com a sua garoa penetrante, de vez em quando dá-se o luxo de amedrontar o povo, com uma seca que chega a consolar o próprio nordeste brasileiro.99

As palavras do radialista faziam referência a um elemento natural que, com o passar do tempo, tornar-se-ia cada vez mais ausente do dia-a-dia da cidade à medida que ela foi consumindo suas matas: a garoa. Os moradores da São Paulo do início do século XX não pareciam muito incomodados com ela. Sem dúvida era um motivo a mais para o uso dos chapéus ou bonés, então presenças obrigatórias na cabeça de quase todos os homens. Nas memórias de Dona Alice, a garoa ficou associada a um de seus passeios prediletos:

(...) quando conheci a cidade, ela era uma maravilha (...) Eu tomava o ônibus, descia no Largo da Sé„.veja o quanto eu andava! Do Largo da Sé, tomava a Rua Direita, atravessava o Patriarca, do Patriarca entrava na Barão de Itapetininga, da Barão de Itapetininga saía na Praça da República...que era lá onde eu tomava o ônibus, aos domingos, para visitar minha prima Mina, que se tinha casado. Gostava da volta, a garoa caindo no meu rosto, eu andando bem devagarinho, todo o viaduto fazia um passo bem curtinho... tomando aquela garoa, achava uma delícia.100

Pelo relato pode-se inferir que a garoa parecia agradar os passantes, ou ao menos a jovem Alice. Para ela, dificuldade mesmo era quando ao invés de garoa fina chovia. Moça pobre, que morava com a mãe em um quarto de cortiço no Bom Retiro, tinha de faltar ao serviço, numa oficina de costura na rua General Osório, pois suas vestimentas ficavam encharDuarte, op. cit., p. 295.

99

Bosi, op. cit., p. 60-61.

100

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cadas, e ela não possuía nenhuma outra para substituí-la. 101Além disso, em uma época em que a ciência médica ainda era incipiente e distante da maioria das pessoas comuns, era bastante temeroso adoecer. Até meados do século XIX, a umidade paulistana ameaçava a estrutura física da maioria das edificações da cidade, pois a técnica construtiva costumeiramente adotada, a taipa de pilão, embora sólida nas suas melhores execuções era vulnerável diante da persistente garoa paulistana “que completava o desserviço das torrenciais chuvas subtropicais, minando o que essa não lograva dissolver”.102 Já em 1850, uma grave inundação na cidade, evidenciou a fragilidade da taipa diante das águas paulistanas, o que parece ter estimulado o uso dos tijolos nas construções.103 Na metrópole nascente as novas técnicas e materiais construtivos afastaram esse risco da maioria dos edifícios. Mesmo assim, exigiam manutenção e vigilância e não parece que isso fosse costumeiro na capital paulista. Em 1929, na época das fortes chuvas, houve o desabamento de uma platibanda na avenida São João, em um prédio no qual funcionava a farmácia Avenida e o bar Paissandú. Na rua Tamandaré caso semelhante causou a morte de um rapaz que dormia sob o “platibado que desabou”.104 Perigo ainda maior do que as chuvas, ao menos para Saturnino de Brito, eram:

as secas, com as prolongadas estiagens do Tietê, são calamidades mais sensíveis atualmente, do que as inundações; porque pondo de lado os interesses da navegação e da lavoura, a população urbana sente os rigores da falta de água de alimentação e da falta de energia elétrica. (...) o mal tornou-se mais sensível por ser maior o consumo, com o extraordinário acréscimo da população e das novas necessidades que aparecem com os hábitos de conforto e luxo nas grandes cidades tanto para o uso da água distribuída como para o da energia elétrica.105 Idem, p. 59-60.

101

Marins, op. cit., p. 159.

102

Idem.

103

Tudo indica tratar-se da atual platibanda. “Desabamento”, O Estado de S. Paulo, 20/2/1929, p. 3.

104

Brito, op. cit., p. 127.

105

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E por aqueles paradoxos da vida urbana, na qual ficava cada vez mais difícil manter uma relação imediata e harmônica com a natureza, alguns moradores ficavam sem água no período das chuvas:

Queixas e Reclamações. Com a repartição de águas. Sr. redator. Sou morador na parte baixa da rua São Vicente de Paulo e há quatro dias estou sem água. A pouca que pinga de manhã não sobe aos altos da minha casa. Cansado de telefonar à Repartição de Águas e de receber as promessas de inspeções que nunca foram cumpridas, dirigi-me hoje, pessoalmente, à rua da Conceição, onde fui muito bem recebido e de onde trouxe novas promessas de providências que não foram dadas. Ofereci-me para levar no meu automóvel o empregado que fosse escalado para o serviço com a obrigação de trazê-lo de volta. Não arranjei nada. Deramme apenas, a segurança de que hoje, à tarde, o meu caso teria solução. Não teve. Terá algum dia? Não devo atribuir esse desleixo absurdo à falta de direção ou à falta de água? N. S. será capaz de ensinar-me o modo de não morrer de sede no meio de tanta enchente.106

De fato, as reclamações contra a falta d’água eram frequentes na imprensa:

Reaparecem as queixas de falta de água. Das ruas Sete de “Queixas e reclamações”, O Estado de S. Paulo, 22/2/1929, p. 3, foi nesse ano que as águas de Guarapiranga começaram a ser distribuídas na cidade; “Queixas e Reclamações. Há tempo que metodicamente vem faltando água em alguns pontos do populoso bairro da Penha. Essa falta d’água que atinge, principalmente a rua Padre João, uma das artérias mais importantes do bairro, se acentua em particular aos sábados, quando as torneiras não fornecem nem uma gota! Ora, tal estado de coisas que se prolonga há muito tempo não pode continuar, pois não são poucos os transtornos que causa”. O Estado de S. Paulo, 1939, p. 3.

106

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Abril e Onze de Junho, de diversas casas, recebemos reclamações neste sentido, nas quais se dizia que havia dias que a água que ali corre é pouquíssima, absolutamente insuficiente para as mais indispensáveis necessidades domésticas. Dentre as queixas uma registra a falta de água há seis dias. Da rua Rego de Freitas e outras da Vila Buarque dizem-nos a mesma coisa. A estação quente está a chegar e ou não temos água necessária para o consumo da população, ou a repartição de águas faz a distribuição de modo que a alguns bairros não chegue o precioso líquido. Quer nos parecer que há falta de manobras, mais do que falta de água. No ano passado as reclamações feitas foram prontamente atendidas e a água, que não era em maior quantidade do que atualmente, chegou para toda a população. Pedimos ao sr. Secretário da Agricultura que dê neste grave assunto as providências que a repartição d’águas não tem sabido dar e que são indispensáveis.107

Diante desse quadro, a população buscava soluções alternativas. No início do século XX, no bairro da Moóca, a Fábrica de Cerveja Bavária, “à margem da inglesa”, possuía “dois poços artesianos que fornecem água para o fabrico do gelo e da cerveja”, com profundidade de 130 metros e vazão de “32 mil litros, por hora, de excelente água”. Ali, “muitas vezes a população vai abastecer-se quando falta o líquido fornecido pela Repartição de Obras Públicas”.108 Durante décadas parcelas significativas dos moradores de São Paulo estiveram fora rede oficial de abastecimento. Essa população numerosa continuava a recorrer a fontes de abastecimento costumeiras. Jacob Penteado, morador do bairro do Belenzinho recorda como a atual Praça Notícias Diversas”, O Estado de S. Paulo, 17/10/1897, p. 3.

107

Bandeira Jr., Antonio Francisco. A indústria no Estado de São Paulo. São Paulo: Typ. do Diário Oficial, 1901, p. 39 108

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Guilherme Rudge era “um matagal, de cujos barrancos manavam nascentes de água cristalina e fresca, aonde os moradores iam encher suas vasilhas para o consumo diário”.109 Contudo, os poços eram o recurso mais empregado por aqueles que não eram atendidos pela Repartição de Águas e Esgotos ou atendidos precariamente. A perfuração de um poço no bairro de Cerqueira César devia atingir 65 palmos de profundidade ou 14,30 m.110 Era um trabalho duro, mas muito comum na cidade, indispensável mesmo nos bairros afastados e somente ganhava as páginas dos jornais quando envolvia algum tipo de acidente:

Na tarde de Domingo, Pedro Kovac, de 24 anos, casado, morador à rua das Palmeiras 13 no bairro do Limão, achava-se dentro de um poço, trabalhando no seu atijolamento, quando inesperadamente desmoronou a terra em derredor, em conseqüência de uma depressão do terreno. Apanhado pelos escombros, o poceiro foi soterrado, mas ainda pode gritar por socorro. Foi então que, Antonio Alexandre, proprietário da cisterna, correu em seus auxílio, conseguindo descer ao fundo do poço por meio de uma corda e suster a cabeça de Pedro Kovac, a fim de não morrer asfixiado. Enquanto isso se passava, alguém mais avisado comunicou o fato ao Corpo de Bombeiros, seguindo para o local uma turma de salvamento, a qual em poucos minutos retirava o poceiro são e salvo.111

Algumas vezes o poço não dava uma boa água. Quanto à eventual contaminação dos poços pela infiltração vinda das fossas e de outros detritos urbanos, era um risco que se corria, muitas vezes sem consciência. A água conseguida com esforço nos poços era usada com parcimônia para lavar a louça, tomar banho em bacias, regar hortas e plantas, fazer a comida, dar de beber às pessoas e aos animais. Casas e estabelecimentos de proprietários abastados podiam instalar bombas de sucção e asPenteado, op. cit, p. 77.

109 110

O Estado de S. Paulo, 17/3/1908, p. 2 Desmoronamento de Poço” O Estado de S. Paulo, 25/6/1935, p. 7.

111 “

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sim evitar a exaustiva tarefa de puxar água em baldes, aos mais pobres era reservada essa triste rotina, muitas vezes delegada às crianças das numerosas famílias proletárias dos arrabaldes paulistanos. D. AHce, ao rememorar da vida, deixou registrado como conseguia água na cidade de São Bernardo, onde morava com a mãe e familiares em uma das casa da Fábrica de Tecidos Pereira Inácio, onde sua tia trabalhava:

Lá não havia água de torneira; entre a fábrica e a cerca de arame, na frente, havia um poço, no meio do capim. Naquele tempo, uma noite... a corrente do poço era muito velha, toda emendada com arames. As famílias estendiam suas roupas na cerca, as roupas ficavam duras de geada, precisam um fantasma. Até hoje me lembro, a água de nossa tina estava uma pedra de gelo. Como podia lavar a roupa no gelo? Tirar água naquele frio era difícil também. Fiquei indecisa, mas acabei quebrando o gelo da tina e puxando a água do poço.112

O perambular das crianças ao redor dos poços muitas vezes acabava provocando acidentes fatais:

Ontem, às 18 horas, o médico legista de serviço na Polícia Central verificou o óbito do menino Antonio, de 5 anos de idade, filho de Antonio Ferreira Moraes, residente numa chácara à rua Tuyuty. O menor perecera afogado num poço de cinco metros de profundidade, existente naquela chácara e no qual acidentalmente caíra. Seu corpo foi dali retirado e removido para o necrotério do Gabinete Médico Legal, no Araçá. Há inquérito sobre o ocorrido.113

112

Bosi, Ecléa, op. cit. p. 56.

“Menor Afogado”, O Estado de S. Paulo, 2/6/1935, p. 9.

113

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Acreditava-se que a Capela da Santa Cruz do Pocinho, na rua Viera de Carvalho, próxima à Praça da República, fora edificada sobre um poço entulhado, no qual morrera o poceiro que procedia a sua limpeza. Ali, todos os anos, no dia 3 de maio, realizava-se uma festa concorrida. Em 1909, o arcebispo católico Dom Duarte Leopoldo e Silva proibiu tal manifestação religiosa. Mas tal devoção, ao que parece, relacionava-se à morte trágica e não à água.114 Em São Paulo, em fins do século XIX, existiu uma festa em louvor a São João Batista, que incluía procissão e um banho do santo na meia-noite do dia 24 de junho na bica do Acú, tida por venenosa.115 São João Batista, segundo a tradição cristã, fora batizado nas águas do rio Jordão e ali batizou o próprio Jesus Cristo. No início do século XX, em certas regiões da Europa, havia a crença de que “a água adquiria propriedades maravilhosas e benfazejas na noite de São João. Por isso, muitas pessoas banhavam-se no mar ou nos rios naquela data, sobretudo ao alvorecer”. Em Portugal a tradição de levar São João para Batista para se banhar existia desde o século 14.116 É provável que os praticantes de religiões afro-brasileiras utilizassem as cachoeiras e cascatas paulistanas para realizar certos cultos e oferendas, mas, como então tais práticas eram severamente reprimidas pela polícia e por amplos setores sociais, tudo devia ficar clandestino e por isso raramente documentado. Em fins do século XIX acredita-se nas propriedades curativas de certas águas na cidade, como a da bica de Santa Luzia, que curaria os males dos olhos. Por outro lado, as águas podiam atemorizar já que as mortes e suicídios que tinham os rios e córregos como cenário, estimulavam o surgimento de histórias de mistérios e assombrações entre alguns moradores.117 Contudo, os rios paulistanos não acolheram manifestações religiosas de vulto e regulares Em meados do século XX, em São Bernardo do Bruno, Ernâni Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Prefeitura do Município de São Paulo, 1984, p. 1225-1226. 114

115

Duarte, op. cit., p. 50-51.

Queiroz, Renato da Silva. “Caminhos que Andam: os Rios e a Cultura Brasileira” In: Rebouças, Aldo da Cunha; Braga, Benedito; Tundusi, José Galizia (orgs.) Águas doces no Brasil - Capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras, 1999, p. 673. Sant’Anna, Denise Bernuzzi de. “São Paulo das Aguas: Histórias e usos dos rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901)”. São Paulo: Tese de Livre-Docência, FCS-PUC/SP, Departamento de História. 2004, p. 46.

116

Sant’Anna, op. cit., p. 51,55.

117

133


Campo, cidade limítrofe de São Paulo, quando a represa do rio Grande formara um gigantesco lago e era intenso movimento de embarcações em suas águas, surgiram alguns cultos. Era muito popular a procissão em homenagem a Nossa Senhora da Boa Viagem, que ocorria no dia 7 de setembro, mas ela perdeu força em fins dos anos 1960, ao que parece, devido a poluição e a diminuição do número de embarcações.118 Aparição milagrosa no Tietê ocorrera mesmo em Pirapora do Bom Jesus, cidade ribeirinha ao Tietê, há aproximadamente 54 quilômetros a jusante de São Paulo, onde em 1724, foi encontrada uma imagem em madeira de Jesus em um pesqueiro na beira do rio. Desde então as peregrinações de romeiros ficaram cada vez mais populares e se tornaram, inclusive, uma das principais atividades econômicas da modesta povoação.119 Mas, São Paulo e seus arredores também tinham suas aparições inesperadas e magníficas como as presenciadas por Rodolpho von Ihering:

Voltando de uma viagem à Europa, e enquanto o último trem da “inglesa” nos transportava de Santos à São Paulo, contávamos a um amigo quais as cenas e as belezas que mais nos impressionaram no velho mundo. Já era noite fechada quando atravessamos a extensa várzea entre Pilar e São Bernardo. Vimos então aquela planície rebrilhar à luz de miríades de vaga-lumes e tal era a magnificência do espetáculo, que a comparação com um céu estrelado ainda lhe deprimia a beleza. Certamente não havia um palmo quadrado em toda aquela várzea imensa, em que não fulgisse pelo menos uma dessas vivas estrelas errantes. Correndo célere o trem vencia quilômetros e o espetáculo maravilhoso não diminuía em sua beleza e intensidade.120

Macedo, op. cit., p. 39.

118

França, Maria Cecília. “Pirapora do Bom Jesus: Centro Religioso do Alto Tietê” In: Boletim Paulista de Geografia (41), 1964, p. 27,51.

119

Ihering, Rodolpho von. Da vida dos nossos animais. São Leopoldo: Rotermund & Co., 1946.

120

134


III.

O Tietê e os que sofriam com sua degradação

135


Tietê, em tupi, significa “rio verdadeiro”, “fundo”, “considerável”, “volumoso”, denominação empregada inicialmente para indicar o trecho compreendido entre as nascentes e o salto de Itu, para só depois se estender a todo o curso do rio. É provável que o topónimo, embora construído na língua indígena, tivesse origem entre os colonos, pois era o primeiro grande rio que encontravam aqueles que transpunham a Serra do Mar em direção à vila de São Paulo, sendo às vezes chamado de rio Grande, em fins do século 16. Entretanto, o nome mais empregado, então, era aquele dado pelos indígenas, Anhembi, “rio das anhumas”, referência a uma ave que vive em campos alagadiços e que era encontrada ao longo do Tietê.1 Significativamente, o nome mameluco suplantou tanto o indígena como o europeu. Quanto ao “rio de Piratininga”, a que fazem menção documentos do século 16, é difícil saber se indicavam o Tietê ou o Tamanduateí, ambos ou nenhum deles.’ Teodoro Sampaio defendeu, no início do século XX, que o fato do vocabulário tupi ser riquíssimo nas denominações hidrográficas, porém, sem um “vocábulo primitivo” para designar o “mar” indicaria que tal povo procedia das terras interiores. Segundo ele, os tupis “chamavam ao rio de certo volume”, “cuja outra margem não descobriam”, de “pará”, e, “como consideravam o mar como um imenso rio, cuja outra margem não descobriam, deram-lhe o nome de Paranã, que é o mesmo que para-anã, rio enorme”. Hoje acredita-se que os tupis iniciaram sua expansão territorial, há 4 ou 5 mil anos atrás, que os levou a ocupar boa parte do atual território brasileiro, “a partir de um ponto situado entre o baixo e o médio Amazonas”, onde estaria o seu grupo original. “Essa expansão foi paulatina e se deu através de uma migração ao longo dos grandes rios, pois se tratava de um povo que, mantendo-se fiel às suas origens Nóbrega, Mello. História do Rio Tietê. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo; EdUSP, 1981, p. 62; Dick, Maria Vicentina P. A. A Dinâmica dos Nomes na Cidade de São Paulo, 1554-1897. São Paulo: Anna Blumme, 1997, p. 47.

1

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amazônicas, tinha um estilo de vida ribeirinho, viajando e pescando em canoas, fazendo suas roças nas várzeas férteis, baixas e quentes, tal como faziam na Amazônia”.2 Outros rios paulistas ainda mantêm seus nomes tupis, como o Paranapanema e o Sorocaba. Na cidade de São Paulo, não raro, fazem referência à FAUna e à flora: Tamanduateí, “rio do tamanduá verdadeiro” ou “grande”, ou talvez “multidão de tamanduás”; Tatuapé, “caminho do tatu”, Guarapiranga, “guará vermelho”. O Jerivativa, e sua variante Jurubatuba significavam palmeiral, sendo jerivá um tipo de palmeira; rio posteriormente rebatizado Pinheiros devido à presença das araucárias em terras paulistanas.3 O Anhembi, o rio das anhumas, não era, assim, uma exceção. Sobre a anhuma, “de grande tamanho”, cerca de 61 cm de altura, José de Anchieta afirmou em meados do século 16 que “quando solta a voz, a gente pensa que é um burro que está zurrando; tem nas duas asas três espécies de chifres, igualmente um na cabeça, como esporas de galo, porém muito mais duras: ao ser atacada pelos cães não foge, ainda que o tamanho do seu corpo lhe não embarace o vôo, mas abrindo as asas, e lhes dando violentas pancadas, os afasta de si”.4 Um compilador que fez publicar em 1900 algumas cartas de Anchieta, afirmou que o padre se enganara, pois a anhuma tinha apenas dois esporões nas asas. E contava em nota de rodapé que:

apenas uma vi e matei, nas margens do rio Tietê, com grande alegria dos meus companheiros camponeses, que consideravam entre o número dos famosos anidotos (sic), não só os Sampaio, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. Memória lida no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo; Typ. da Casa Eclético, 1901, p. 51. Museu de Arqueologia e Etnologia. Brasil 50 mil anos. Uma viagem ao passado pré-colonial. São Paulo, p. 16.

2

3 Dick, op. cit.,”jp. 46.; Mendes, Denise; Carvalho, Maria Cristina Wolf de. “A Ocupação da Bacia do Guarapiranga: Perspectiva Histórico-Urbanística” In: França, Elisabeth (coord.) Guarapiranga: recuperação urbana e ambiental no Município de São Paulo. São Paulo: M. Carrilhos Arquitetos, 2000, p. 41; Prado Júnior, Caio. “A cidade de São Paulo: geografia e história” In: Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Brasiliense, 1966, p. 137.

Centenário da Descoberta do Brasil. Carta Fazendo a descripção das inúmeras coisas naturaes, que se encontram na provinda de São Vicente hoje São Paulo seguida de outras caretas inéditas escritas da Bahia pelo venerável Padre José de Anchieta. Copiadas do Arquivo da Companhia de Jesus. Traduzidas do latim pelo professor João Vieira de Almeida com um prefácio do Dr. Augusto Cesar de Miranda Azevedo. São Paulo: Typ. da Casa Ecléctica, 1900, p. 41-42.

4

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quatro espigões mas também os ossos, todos os quais, e principalmente o bico, tirados com muito cuidado, foram todos guardados.5

Em São Paulo, o relacionamento entre os humanos e a FAUna era muitas vezes tão tenso quanto àquele que os humanos mantinham entre si. Anchieta relatava aos jesuítas da Europa que:

(...) encontram-se entre nós panteras, das quais há duas espécies: umas cor de veado, estas menores e mais cruéis, outras são malhadas, e pintadas de’ cores diversas, estas se encontram facilmente em qualquer parte. No tamanho e no corpo excedem a um carneiro bem grande, pelo menos os machos; por quanto as fêmeas são menores, e em tudo similares a gatos; são boas para comer, o que experimentamos algumas vezes.

Pela descrição, nota-se que Anchieta referia-se à suçuarana e à onça-pintada. Para o padre eram feras de “excessiva crueldade”, e ele não estava sozinho nesse juízo. No século 17, o transporte ordinário de mercadorias entre São Paulo e Santos pelo caminho do mar foi interrompido apenas duas vezes, uma das quais devido ao grande medo que uma onça provocou em comerciantes e carregadores índios.6 Ninguém duvidava que a fera era capaz de matar os homens mais audaciosos. Por volta de 1630, em uma de suas incursões de apresamento de indígenas nas missões jesuítas do Guairá, nas bandas dos rios Paraná e Paranapanema, Manoel Preto, poderoso e temido em São Paulo, encontrou a morte não em batalha, mas nas garras e mandíbulas de uma onça. O grande felino atacou Preto em sua própria bandeira, mordendo-o fortemente na cabeça e no braço, deixando 5 Não fica claro no relato de Anchieta ou de seu compilador se eles viram anhumas em terras paulistanas.

Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 123.

6

138


seus companheiros em total desespero, do que se valeram os indígenas capturados para fugir.7 É o que conta Sérgio Buarque de Holanda, para quem o jaguar causava um profundo terror nos colonos e índios, pois seus ataques não ocorriam apenas nas florestas e sertões, mas igualmente em arraiais |e povoados, onde matava animais domésticos. Acreditava-se que as fogueiras poderiam espantá-lo, mas nem sempre isso ocorria. Quem ingerisse a carne da onça adquiriria sua força e coragem segundo a crença de muitos e suas unhas e dentes eram tidos por amuletos que protegeriam o seu possuidor de todos os perigos. Para o historiador, somente a vulgarização das armas de fogo é que tornou os confrontos entre humanos e o maior predador da América do Sul favoráveis aos primeiros. O que não significa dizer livre de perigos, como indicam os manuais de caçador de fins do século XIX e início do século XX, onde as caçadas de onça são descritas como verdadeiras batalhas, com homens em grupos, estratégias e material de combate, como cães, armas de fogo e azagaias. Matar animais selvagens para se defender ou por medo, Nçm busca de propriedades mágicas e medicinais ou simplesmente para comer ou comerciar foi prática constante dos moradores de São Paulo ao longo dos séculos. Mas, à medida que o povoamento crescia, tal matança multiplicou-se e contribui para a diminuição do número de algumas espécies, ou mesmo o seu desaparecimento. Tal processo se intensificou a partir de fins do século XIX com a explosão demográfica, o avanço da urbanização e das atividades correlatas que ela provocava no território paulistano e seus arredores.8 Quando não eram mortos, os animais tinham que competir cada vez mais por espaço e recursos com a nova sociedade que surgia. A própria anhuma, como foi visto, já no final do século XIX era pouco comum no estado de São Paulo. Havia a crença de que o chifre frontal, os esporões e ossos da ave, quando raspados, misturados com água e ingeridos poderiam curar diversos males - até picadas de cobras venenosas. Ao que parece, esse uso mágico-medicinal fez com que a ave fosse caçada implacavelmente para ser utilizada em amuletos e mezinhas.9 Fernão Cardim, jesuíta que chegou em terras brasileiras em 1583, afirmou ser o Holanda, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 91-92. 7

Dick, op. cit, p. 47.

8

Idem.

9

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pássaro de “rapina, grande e dá brados que se ouvem meia légua, ou mais, é todo preto, os olhos tem formosos, e o bico maior que de galo, sobre este bico tem um cornito de comprimento de um palmo”. E notou que diziam os “naturais que este corno é grande medicina para os que se lhe tolhem a fala como já aconteceu que pondo o pescoço de um menino que não falava, falou logo”.10 Em 1892, poucos anos depois de proclamada a República, entrou em vigor uma legislação municipal que tratava da caça, pesca e navegação. Proibia a entrada em terrenos alheios, abertos ou fechados, para o exercício da caça sem consentimento dos donos; cães soltos na rua, a caça de perdizes e codornas e a destruição de seus ninhos entre 1º de setembro e 1º de março. Estipulava ainda que a caça nos “lugares públicos” ou servidões municipais só poderia ocorrer a 500 metros de distância dos povoados, sendo que para isso tornava-se preciso tirar licença de caçador.11 Quanto à pesca, era permitida livremente no rio “Tietê e outros do município”, mas as redes deveriam ter o tamanho mínimo de 41 milímetros em suas malhas. Aos pescadores não era permitido ainda “abicar suas canoas ou embarcações nas margens, e entrar nos terrenos particulares, fazendo nele estragos ou danos”. O capítulo referente à navegação, por sua vez, proibia “o emprego da dinamite, raiz de timbó e outras drogas venenosas para a pescaria e matança de peixes”.12 Contudo, não parece que tal legislação tenha sido capaz de impor limites à caça e à pesca na cidade e redondezas. Dez anos após sua promulgação, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, na época, Cardim, Fernão. Tratados da Terra e da Gente do Brasil Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1980, p. 35.

10

11 Leis e Resoluções da Câmara Municipal da Capital do Estado de São Paulo 1892 -1893. São Paulo: Casa Vanordem.

Em 1886, foi instituída pela Assembleia Provincial a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, que em 1893 passou a responder provisoriamente pela organização e ampliação do acervo do Museu do Estado, formado a partir das coleções do Museu Sertório - um pequeno acervo de história natural que existia na cidade - e por uma coleção de objetos existentes em uma das salas do Palácio do Governo. Em 29 de agosto de 1893, o Museu do Estado, denominado Museu Paulista, desvinculou-se da Comissão e, no ano seguinte, passou a ser dirigido pelo zoólogo alemão Hermann von Ihering. Em 1895, instalado no recém-construído monumento do Ipiranga, o Museu Paulista adotou um perfil de museu de História Natural europeu-Guillaumonl,]. Régis {coord.).Pesquisando São Paulo: 110 anos de criação da Comissão Geográfica e Geológica. São Paulo: Instituto Geológico/SMA; Museu Paulista/USP; Instituto Florestal/sMA, 1996, p. 11; Leme, José L. Moreira. “Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo”, In: Anais da 1 Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, p. 29.

12

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principalmente um museu de História Natural,” afirmava que:

Existe na Capital de São Paulo uma lei municipal, que regulariza a caça, pesca e navegação (...) Apesar desta lei muitas pessoas se dão à caça por todo o ano no município da Capital. Esta caça se dá também dentro do perímetro da cidade e os caçadores muitas vezes não respeitam os terrenos cercados, entrando sem licença, resistindo até, às vezes, às intimações dos respectivos donos. A maior parte destes caçadores, munidos de espingardas baratas chamadas “pica-paus” não andam acompanhados de cães de caça, o que aliás seria inútil, visto que nas proximidades e arrabaldes da cidade já não existe mais caça alguma. O melhor resultado de tais caçadas ilícitas, é, às vezes, uma galinha ou; outra ave doméstica, que por ventura se afastara um pouco da casa do dono. No mais, são apenas os pássaros de todas as qualidades, que formam o objeto da caça, e cuja extinção é para lastimar-se tanto mais que há muitos outros fatores, que concorrem no mesmo sentido para dificultar aos pássaros a sua existência nos arredores da Capital.1

Observava o zoólogo que era “necessário matar-se 100 tico-ticos para obter-se em carne o peso de uma galinha” e que mesmo as matas nos “arredores de São Bernardo, Rio Grande, Alto da Serra etc., já se acham quanto a sua caça muito estragadas pelos caçadores da Capital”. E por convicção pessoal ou para tornar sua prédica mais convincente às classes privilegiadas locais e à afamada oligarquia de São Paulo, ou pelas duas razões juntas, Dr. Ihering ressaltava que: 1

Idem.


(...) a caça nos arredores de S. Paulo é exercida essencialmente por gente ociosa das classes inferiores e por malandros, prejudicando gravemente o interesse da população, que as disposições da respectiva lei Municipal são insuficientes e nem assim observadas, que em falta da verdadeira caça são mortos os pássaros sem distinção e que as conseqüências da insensata destruição deste elemento útil na natureza e indispensável para a lavoura e saúde pública se fazem sentir de modo grave e lastimável (...) Não havendo mais a verdadeira caça nos arrabaldes da Capital, a única medida eficaz a favor das aves é proibir completamente a caça no município da Capital.2

A matança de pássaros era realmente grande e prosseguiria nas décadas seguintes. No início dos anos 1950, quando foi implantado o campus da Universidade de São Paulo em terras da antiga Fazenda Butantã, localizada entre o rio Pinheiros e os córregos do Pirajussara, Pirajussara-mirim e Jaguaré, vigilantes apreenderam mais de duzentos estilingues, caniços de pesca e tarrafas de pessoas que buscavam o local para pescar e caçar.3 Por outro lado, havia exagero retórico na afirmação de Ihering sobre a ausência de “verdadeira caça nos arrabaldes da Capital”, se com isso ele quisesse indicar animais como capivaras, tatus, macacos, veados e mesmo onças. Contudo, é provável que esses animais fossem mais raros quando comparados ao período em que o estudioso alemão chegara a São Paulo. Não há dúvida de que eram os elementos pertencentes às “classes inferiores”, que mais caçavam na cidade, mas é significativo notar como Ihering não procurava formular qualquer explicação para o fato. O que ajuda a entender porque, em 1911, o mesmo Hermann von Ihering, defenderia em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, o extermínio dos índios caingangue no extremo do oeste paulista, que resistiam com violência à invasão de seu território que ganhara novo impulso com a construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil. Os indígenas, Idem.

2

Hofling, Elisabeth. Aves no Campus da Cidade Universitária Armando Salles Oliveira. 3 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto de Biociêncías de São Paulo, 2002, p. 17-19 3


segundo ele, impediam o “desenrolar do progresso e da civilização” no interior paulista.4 Um cientista capaz de estabelecer uma grande empatia com os animais, não demonstrava nenhuma com as criaturas humanas diferentes de si próprio. Por outro lado, é preciso reconhecer que a argumentação que o zoólogo utilizava em prol dos animais era perfeita para sensibilizar a oligarquia paulista: praticada pelos pobres a caça poderia ser proibida, um raciocínio bastante claro, simples e persuasivo para uma elite indiferente ao destino das classes sociais subalternas. Além disso, cabe lembrar que os caçadores abastados, quando desejavam caçar e pescar podiam se dirigir ao interior paulista e mesmo aos estados vizinhos, em busca de regiões onde a presença humana era menor e a FAUna mais numerosa. O que, sem dúvida, facilitava a aprovação de medidas legislativas na Câmara Municipal relativas ao assunto. Para Ihering, o fato dos “mercados da capital” venderem macucos “a 9$000, pagando-se 3$000 pelo inambú-guassu”, preços considerados exorbitantes, indicava escassez das aves, o que ficava ainda mais evidente pelo “aumento excessivo de insetos molestos”. Exemplificava citando o caso das saúvas, que, ao propagarem novas colônias por meio das fêmeas áladas, nos meses de outubro e novembro, eram apanhadas durante o vôo e devoradas pelos pássaros insetívoros. Mas isso não estaria mais ocorrendo, pois tais pássaros desapareceram, ao menos no bairro do Ipiranga. Com isso, surgiam muito mais formigueiros do que antes. Além da formigas, as moscas, “nos arrabaldes de São Paulo” se desenvolviam “extraordinariamente” segundo Ihering.5 Os moradores da cidade compartilhavam com o estudioso a mesma percepção em relação ao “insetos molestos”:

Queixas e Reclamações. Com a prefeitura. Escreve-nos um morador de rua Frei Caneca: A grande quantidade de formigas que está invadindo vários bairros da nossa capital assume já caracter de verdadeira praga. Tais insetos, em grande quantidade, penetram pelos domicílios causando enorme séKoguruma, Paulo. Conflitos do Imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na “Metrópole do Café”, 1890-1920. São Paulo: Anna Blume, 2001.

4

5

Ihering, H. von, op. cit, p. 257.

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rie de danos e toda sorte de aborrecimentos. As casas da rua Frei Caneca, que dão fundo para o vale do Anhangabaú, por onde deverá passar a avenida do mesmo nome são armais atingidas por essa praga. Os formigueiros acham-se localizados em terrenos de propriedade da Companhia City, que é obrigada por lei a mandá-los exterminar, por conta própria ou pagar à Prefeitura a despesa feita pela extinção. Este mal dia a dia toma maiores proporções, ameaçando se propagar pela cidade inteira. Urge, pois, que sejam tomadas sérias e imediatas providências.6

Cabe notar que as formigas proliferavam em um terreno da Cia. City, grande empresa imobiliária, responsável pelos mais elegantes e caros loteamentos residenciais da cidade. Ê provável que, a exemplo da Light, a empresa mantivesse um estoque de terras urbanas desocupadas à espera de valorização, o que, como visto, criava um ambiente propício às formigas. Um efeito inesperado da especulação imobiliária. Ironicamente, a cidade, para muitos símbolo maior da afirmação humana diante do mundo natural, favorecia a proliferação de espécies incômodas aos seus habitantes, e, em alguns casos, tão perigosas quanto as onças, embora não tão belas. E se as armas de fogo deram conta do felino alguns esperavam que os venenos, que passavam a ser vendidos no varejo, fizessem o mesmo com os insetos.7 Em relação às moscas e formigas, tudo indica, o problema da superpopulação não se devia apenas ao desaparecimento de seus inimigos naturais, dentre eles, no caso da formigas, além dos pássaros, os tatus e os tamanduás - e os moradores de São Paulo, de todas as classes que saboreaOESP, 23/3/1928, p. 6; “Queixas e Reclamações. Diversos prejudicados reclamam à prefeitura de um terreno vago, que possui extenso formigueiro, na rua Monte Alegre 35 e que se transformou em depósito de lixo e onde se soltam animais a pastar, durante a noite, o que muito incomoda toda a vizinhança, pois que tais animais destroem os cercados existentes penetrando nas hortas vizinhas, onde tudo destroem, deixando ainda caminho aberto aos vagabundos que lhes completam a obra, indo ali furtar tudo quanto encontram”, O Estado de S. Paulo, 9/211919, p. 5; “(...) alameda Rebouças em terreno da prefeitura se desenvolve à vontade um grande formigueiro”, O Estado de S. Paulo, 3/3/1918, p. 6.

6

7 ”Formigas Saúvas. As legítimas pastilhas Morte às Saúvas”, O Estado de S. Paulo, 9/3/1908; “Formigas”. O Estado de S. Paulo, 24/2/1929, p. 25.

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vam pratos de saúvas aladas tostadas, costume que tornou-se raro à partir de fins do século XIX, assim como o de consumir bichos de taquara.8 Há de se considerar ainda o aumento da oferta alimentar. A concentração de víveres para abastecer as pessoas também nutria os insetos, ainda mais devido ao modo como eram destinados os resíduos orgânicos. A cidade tinha um serviço de limpeza pública precário e que não atingia os seus arrabaldes. Tal fato, somado à desídia de muitos moradores fazia com que muito lixo fosse jogado em valas nas ruas ou em terrenos baldios. Com as chuvas fortes, eram levados pelas enxurradas para as baixadas, atingindo as várzeas e os cursos d’água. Ao lado dos resíduos orgânicos, o lixo continha ainda latas, garrafas e outras tranqueiras que serviam de abrigo e local de procriação para muitos insetos.9 De fato, com freqüência, a associação entre ã proliferação dos insetos e o lixo era apontada, como em artigo publicado na Revista Médica de São Paulo pelo Dr. Cavalcanti, em 1900:

(...) apenas uma parte insignificante do lixo de S. Paulo é incinerada; na sua quase totalidade é conduzida em saveiros pelo Tietê abaixo e lançado à margem oposta do rio, em ponto distante, quando muito, um quilômetro da Ponte Grande. O terreno ali é baixo e lagadiço quando chove, ficando totalmente coberto pelas águas por ocasião das grandes enchentes. Atualmente, com o desenvolvimento que está tendo o bairro da Ponte Grande, não pode ser tranquilizadora para a sua salubridade esse acúmulo enorme de imundícies a tão 8 Dias. Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São Paulo: Brasiliense. 1995. p. 241.

Queixas e Reclamações. Moradores da rua José Maria Lisboa reclamam contra o fato de nela existir, entre os prédios 172 e 174, um terreno aberto, com o mato a crescer por todos os cantos e onde se faz despejo de lixo. E não é só. A água das chuvas, apodrecendo em latas que ali são atiradas enche o bairro de pernilongos.” O Estado de S. Paulo, 5/2/1929, p. 4; “Queixas e Reclamações. Matagal e mosquitos na rua Pires da Mota e Dr. Felix”, O Estado de S. Paulo, 10/2/1929, p. 4;”(...) alameda Rebouças, terreno da prefeitura se desenvolve à vontade um grande formigueiro (reclamam ao fiscal do distrito) mas em pura perda, porque, até agora nada se fez em benefício dos arvoredos e jardins ali existentes”, O Estado de S. Paulo, 3/3/1918, p. 6.

9

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pequena distância. Só este fato bastaria a explicar a quantidade prodigiosa de moscas e mosquitos, que infestam as habitações nessa parte da cidade e que encontram em tão vasto campo de matéria orgânica em decomposição as melhores condições de desenvolvimento. A função de agentes transmissores de certas moléstias atribuída a esses insetos, depois das experiências de Laveran, Kock, Grassi e outros observadores, deixa bem claro o perigo de tal vizinhança. Esse depósito colossal de lixo já ocupa uma área de 25 mil metros com elevação média de 3 metros. (...) Não podia, portanto, ter pior destino a grande e sempre crescente massa de lixo produzida diariamente por esta próspera capital: nem queimado, nem utilizado com adubo; mas estéril e perigosamente amontoado às portas da cidade, decompondo-se ao ar livre, espalhado pelas enchentes e desagregado pelos ventos.10

Em 1913, em uma colina contígua a um depósito de lixo, na margem direita do Anhembi, foi aberto o loteamento Vila Tietê, rebatizado pelo povo como Casa Verde. Não é impossível que esse lixão fosse o mesmo aludido pelo dr. Cavalcanti, caso ele tivesse se enganado na distância que separava a Ponte Grande da Casa Verde, maior do que um quilômetro. Mais provável é que se tratasse de um desdobramento daquele, os barcos descarregando o lixo um ou dois quilômetros a jusante do que faziam costumeiramente, talvez porque a ocupação dos arredores da Ponte Grande aumentava a pressão para que o depósito de lixo fosse transferido ou simplesmente pelo fato de ele estar já totalmente ocupado. Note-se que as várzeas recebiam, além do lixo depositado pela prefeitura, por particulares ou levado pelas chuvas, igualmente cargas de esgoto, quando próximas a locais mais densamente ocupados. O que, somado às valas, buracos e aterros e à crescente poluição das águas dos rios, ajuda explicar o fato de a palavra várzea adquirir em São Paulo, com o avançar do século XX, uma conotação pejorativa na linguagem Contribuição para a Hygiene de S. Paulo (Limpeza Pública) pelo Dr. Cavalcanti”. Revista Médica de São Paulo, 15/4/1900, p. 211-222.

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cotidiana, indicando problema, abandono, uma situação ruim, desagradável, estragada, algo semelhante ao uso que se fazia da palavra “draga”. A travessia pela várzea “mal cheirosa”, onde o lixo era disputado “por milhares de urubus esvoaçantes” afastava compradores de lotes na Vila Tietê, o que contribuiu para que q local ficasse praticamente desabitado, a não sei: por uns “pobres chacareiros recém-vindos do velho Portugal”. Mas o principal problema, contudo, era a travessia do rio, que se fazia por uma balsa antiga, sendo que para se vencer a várzea, recorria-se aos aterros. Por isso mesmo, os loteadores da área, os irmãos Rudge, construíram uma ponte de madeira, o que facilitou a interligação da Casa Verde com área central da cidade, viabilizando o seu empreendimento. Depois disso, conseguiram do prefeito Firmiano Pinto, a transferência do lixão para outro lugar - quem sabe, mais uma vez, rio abaixo.11 Os depósitos colossais de lixo e a degradação das várzeas eram mais evidências de como a urbanização paulistana era destrutiva. Na verdade, a cidade de São Paulo provocou uma sucessão contínua e intensa de perturbações no mundo natural em que se desenvolveu e isso desde os primeiros tempos da colonização. Voluntária ou involuntariamente os europeus trouxeram inúmeros animais e plantas exóticos, domesticados ou selvagens e a caça, a pesca e o corte das matas sé tornaram demasiados. Esses sucessivos reordenamentos ecológicos da região beneficiavam algumas espécies e prejudicavam outras, o que, entretanto, nem sempre causava incômodo aos moradores da cidade. Os sapos pareciam estar no grupo das espécies beneficiadas, pois havia um número enorme deles na São Paulo do século XIX. O que se devia, provavelmente, não só à abundância de comida, bem como de rios, córregos, lagoas e charcos onde tais animais faziam seu habitat, como à diminuição-de seus predadores naturais. O “beco do Sapo” era chamado assim “porque sapo, ali, era cousa comum. De todos os tamanhos, qualidades e... sons, na orquestração noturna e diuturna, a que se habituaram os antigos moradores, à míngua de outros afazeres, encarapitados na Ponte do Acu”. Conta-se que desse hábito dos paulistas, de escutar o coaxar dos sapos na Várzea do Anhangabaú (onde hoje está a Praça do Correio e o monumento a Verdi) e de apostar, com olho comprido e ouvido afiado, sobre as várias tonalidades dos maviosos cantos, surgiu a expressão popular, ainda em voga - sapo, saparia - para designar a Leite, Aureliano. Pequena História da Casa Verde. São Paulo; 1940, p. 113-116.

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torcida muda, incomodativa, de espectadores de jogo.12 Daí também a expressão nativa “sapo de fora não chia”.13 É difícil inventariar, historicamente, a FAUna que habitava rios e várzeas paulistanos. Paulo Cursino de Moura, na década de 1940, afirmava que outrora, em “toda a planície que se estendia à margem esquerda do rio Anhembi” compreendendo “os bairros da Luz, Campos Elísios e Bom Retiro” existiam veados, pacas, ariranhas, codornas, perdizes, pombas e abundância de peixes. Ao que parece, parte dos animais registrados em estudos sobre a FAUna brasileira, nas três primeiras décadas do século XX, eram encontrados na cidade, como o irerê, que, em bandos enormes, de “Dezembro a Março (...) sobem e descem pelos vales do Tietê, Paraíba e Moji-Guassu”. As saracuras, que “vivem nas beiradas dos açudes e bordas do ribeirões e rios onde haja mata rala entremeada de gramíneas”. Os preás, encontrados por todo o Brasil “em qualquer capinzal umedecido por um córrego ou em qualquer banhado onde haja moitas de gramíneas e gravatás”. As “cobras d’água, nome dado indistintamente a várias espécies de cobras (...) que vivem de preferência na água.14 Em 4 de julho de 1912, passou a vigorar uma nova lei de caça no município. Exigia licença e as caçadas somente poderiam ocorrer “dentro de épocas determinadas”, com milita de 50.$000.para os infratores, que teriam ainda a arma aprendida em caso de reincidência. Era “proibido matar animais insetívoros e os pássaros canoros; destruir-lhes os ninhos e os ovos; transportá-los, expô-los ou vendê-los, embora mortos em outros municípios”, mas os animais tidos por daninhos deveriam ser “destruídos em qualquer tempo pelos proprietários e pelos encarregados das terras onde sejam encontrados”. Caçar ou “fazer batidas em terreno alheio, aberto ou fechado, sem prévia licença de seu dono ou de quem o represente” não era igualmente permitido, mas o “proprietário ou possuidor de terras” podia, “sem licença, caçar dentro delas, sujeitando-se, porém, às disposições e penas desta lei Moura, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora (evocações da metrópole). São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1941, p. 186.

12

13 Sevcenko, Nicolau. “Grande Angular”, In: Cadernos de Fotografia Brasileira. São Paulo 450 anos. São Paulo: ims, 2004, p. 320.

Magalhães, Agenor Couto de. Ensaio Sobre a FAUna Brasileira. São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo/Diretoria de Publicidade Agrícola, 1937, p. 62, 98, 254; von Ihering, Rodolpho. Da vida dos nossos animais. 2 ed. São Leopoldo: Rotermund 8c Co., 1946, p. 129.

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(...)”. Já “a caça nos lugares públicos”, ou naqueles em que houvesse “servidões municipais, só era permitida “à distância de quinhentos metros dos povoados”. A lei facultava a prefeitura ainda a “recusar licença para caçar aos que tenham sido condenados por vagabundagem, mendicidade, furto e roubo, abuso de confiança, etc.”. Não podiam obter licença “os menores de 16 anos e os loucos de qualquer espécie”. A legislação criava a figura dos inspetores de caça, que, não sendo funcionários do município, receberiam como “única recompensa, 50% da importância das multas por eles impostas, depois de recolhidas ao Tesouro Municipal”. Cabia ao prefeito determinar: “os aparelhos e meios proibidos para caçar, ordenando a confiscação e destruição dos que forem encontrados”; a “época de caçar as aves de arribação, a nomenclatura delas e os modos e processo para a apreensão de cada uma das espécies dessas aves”; a “época de caçar os animais que vivem na água, nos pântanos, nos rios etc”.; as “espécies de animais malfazejos, que devem ser destruídos em qualquer época e os meios de promover essa destruição, criando prêmios para os que a ela se dedicarem” medidas “para prevenir a destruição dos pássaros, para aumentar a multiplicação deles e para interdizer a caça fora da época em que deve ser permitida”.15 Contudo, mais uma vez, dois anos depois dela ser promulgada, a lei alcançara poucos resultados conforme alertava novamente Hermann von Ihering:

A Câmara Municipal de São Paulo, já por várias vezes mostrou seu interesse pela proteção das aves e conseguiu por termo à venda de sabiás, gaturamos, pintasilgos etc., nos mercados. Mas no que diz respeito à caça propriamente dita, ninguém se importa da respectiva lei. Durante o ano inteiro rapazes e pessoas desocupadas percorrem os arredores da capital, de espingarda ao ombro, matando não raras vezes galinhas e cabras ou atirando sobre os proprietários que lhes proíbem a entrada em terreno particular e cercado. (...) (...) a caça de aves por meio de armadilhas de qualquer feitio. Nos arrabaldes de São Paulo, é grande o número de Leis e Resoluções da Câmara Municipal da Capital do Estado de São Paulo. São Paulo: Casa Vanordem.

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moleques, que deste modo perseguem os últimos pássaros, que por ventura escaparam ao “picà-pau” de caçadores desclassificados. Esta perseguição dos passarinhos chegou a tal ponto, que no Ipiranga, por exemplo, quase nem corruíras existem mais.16

A ineficácia da legislação em coibir a pesca e a caça predatória era resultado de fatores diversos Além dúvida, a debilidade da fiscalização era um deles. O poder público era incapaz de agir devido à incipiente organização do aparelho estatal, que, além disso, sofria forte constrangimento dos interesses oligárquicos. Reclamações dos fiscais de rios aparecem em alguns relatórios, quando assinalavam as dificuldades encontradas para cumprir suas tarefas, como os trezentos quilômetros de rio, “mais ou menos, a fiscalizar” com poucos homens e recursos.17 O intendente municipal Cesário Ramalho da Silva, nos primeiros anos republicanos, lamentava não ter “podido coibir o abuso inqualificável de lançarem os pescadores italianos, bombas de dinamite nos rios”, que, assim, “vão se despovoando de peixes, de que, aliás, são abundantíssimos”. Acreditava que somente a intervenção da força armada, e “aplicação da lei provincial, que deve ser municipalizada, dando a todo cidadão o direito de prender o infrator, a ordem de autoridade competente, impor-lhe pesadíssima multa, percebendo ele a metade dela”.18 Contudo, faltava legitimidade às leis e aos agentes estatais em uma cidade plena de conflitos, onde a maioria de seus habitantes era vista com desconfiança e medo por parte de uma elite que se mantinha no poder fundamentalmente pelo uso da violência. Por outro lado, embora a repressão fosse, de fato, imprescindível, mesmo um batalhão de agentes fiscalizadores teria dificuldades em conseguir alterar práticas predatórias que se vinculavam à própria estrutura da sociedade paulistana. Afinal, a caça e a pesca eram meios de sobrevivência para os moradores pobres ao suprir suas Ihering, H. von. “Proteção às Aves” In: Revista do Museu Paulista, vol. 9,1914, p. 323-324.

16

Anexos ao relatório de 1924 apresentado à Câmara Municipal de S. Paulo Pelo Prefeito Dr. Firminiano de Moraes Pinto. São Paulo; Casa Vanorden, 1925, p. 101.

17

Relatório apresentado à Câmara Municipal de São Paulo pelo Intendente Municipal Cesário Ramalho da Silva 1893. São Paulo: Typographia a Vapor de Espindola, Siqueira & Com. 1894, p. 40.

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carências alimentares ou por fornecer mercadorias para serem vendidas quase sempre nas ruas da cidade. Além disso, eram atividades empolgantes e legítimas para a maioria, tanto que a própria legislação não as proibia inteiramente, estimulando mesmo a morte de animais malfazejos. Assim, qualquer intervenção que procurasse restringir à caça e a pesca predatória através de uma ação localizada, circunscrita a uma dessas dimensões não tinha muita chance de sucesso. Medidas em defesa dos peixes dos rios paulistanos eram seculares na cidade. Já em 1591, a Câmara proibira em todo o curso do Tamanduateí pescarias com tingui, uma das plantas ictiotóxicas então usadas. Tal proibição, em 1598, estendeu-se a todos os “ribeiros e rios caudais existentes dentro da vila”, para evitar a destruição inútil de peixes e por se acreditar que o acúmulo de peixes arruinados corrompia a atmosfera e causava epidemias. Sobre o timbó, Fernão Cardim afirmou ser “ervas maravilhosas”, cuja casca era “fina peçonha, e serve de barbasco para os peixes, e é tão forte que nos rios aonde se deita não fica peixe vivo até onde chega sua virtude, e destes há muitas castas, e proveitosas assim para atilhos como para matar os peixes”. O barbasco era uma das substâncias empregadas em Portugal para se praticar a mesma técnica de pescaria encontrada pelo jesuíta no Brasil.19 Realmente, era tal a fartura das pescarias com timbó ou tingui que era comum uma parte dos peixes apanhados ser abandonada nas margens dos rios, o que não ocorria quando essa forma de pesca era praticada pelos indígenas. Sérgio Buarque explica que tal abandono ocorria porque os portugueses e mamelucos não conseguiam consumir todo o peixe pescado no local e comumente desprezavam os processos de conservação tradicionalmente empregado pelos nativos, como o moquém e a farinha de peixe ou piracuí. Por outro lado, não podiam adotar os métodos de conservação utilizados em Portugal, baseados no uso do sal, em razão de sua escassez na colônia. Assim, sem condições de conservação e com as dificuldades no transporte a longas distâncias,-consumiam bem menos peixe do que conseguiam apanhar. Proibições semelhantes às de 1591 e 1596 foram recorrentes ao longo dos séculos posteriores. Em 1892, como foi visto, a legislação municipal proibia o emprego de dinamite, raiz de timbó e outras drogas venenosas para a pescaria e matança de peixes e imputava ao infrator “a multa de Holanda, op. cit., p. Cardim, op. cit., p. 44.

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50$000, 5 dias de prisão, além de outras penas de dano que resultem a terceiros, da aplicação dessas matérias nos rios”. Contudo, em 1904, o próprio prefeito da cidade, Antonio Prado, em relatório enviado à Câmara Municipal, ressaltava a dificuldade em fazer cumprir a lei. A matança excessiva, contudo, não era a única responsável pelo extermínio da FAUna, pois a destruição de seu habitat era igualmente devastadora. No caso dos pássaros, Ihering observava que o “aumento da população e de suas indústrias e vias de comunicação, constantes queimas dos campos e outras circunstâncias diminuem as condições de existência para os pássaros, e as derrubadas das matas e capoeiras privam-nos das localidades apropriadas à sua procriação”. O mesmo era válido para outras espécies. Mesmo assim, o território paulistano continuava a abrigar muitos animais, pois algumas espécies adaptavam-se ao novo ambiente que surgia e outras encontravam refúgios, ainda que temporários, nas várzeas, nos ermos, nas matas, nos poucos parques e reservas florestais protegidas. Mesmo nessas últimas, contudo, não estavam seguras. Em um único ano, 1937, nas “proximidades do centro desta Capital, na serra da Cantareira, onde o governo mantém uma riquíssima reserva florestal calculada em 2.600 alqueires paulistas” foram abatidos “três esplêndidos exemplares” de suçuarana, um dos maiores felinos do continente americano, um deles morto por uma guarda-mata do Horto Florestal e dois, por um agente da Seção de Caça e Pesca, órgão vinculado ao governo estadual.20 O impacto da urbanização nas várzeas paulistanas era mortal para espécies como a batuíra que tinha nos brejos seu habitat. Em 23 de abril de 1936, Américo Tessarolo, caçador licenciado levou ao Serviço de Caça e Pesca de São Paulo uma batuíra que matara em novembro de 1935 na várzea do Bom Retiro. Neste bairro populoso, na margem esquerda do Tietê, muitas ruas terminavam em uma extensa várzea, atravessada à oeste pela avenida Rudge, pela qual se chegava à ponte que levava à Casa Verde, e à leste pelo Tamanduateí.21 A batuíra morta trazia em uma de suas pernas um anel marcado pela Biological Survey, entidade norte-americana que havia tempos fichava milhares de exemplares dessa ave migratória nos EUA.22 20 Magalhães, Agenor Couto de. Ensaio Sobre a FAUna Brasileira. São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo/Diretoria de Publicidade Agrícola, 1937, p. 276.

Guia e Planta da Cidade de São Paulo. São Paulo, 1933.

21

Magalhães, op. cit., p. 103-104.

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Assim, ao longo do século XX, a ocupação das várzeas do Tietê e de seus afluentes, ajudaria a compor um contexto mundial de progressiva destruição de terras úmidas, em toda parte, riquíssimas em diversidade biológica. Estima-se que metade delas tenha desaparecido do planeta no século passado para dar lugar a cidades e unidades produtivas agropastoris. Os pássaros migratórios e as aves aquáticas foram dizimados.23 Em 1998, a anhuma, que constrói seu ninho com plantas aquáticas e gravetos, constava da lista dos animais ameaçados de extinção no Brasil. A ictioFAUna do Tietê e seus afluentes sofria tanto quanto as espécies terrestres. Mais uma vez, além da predação excessiva havia a contínua destruição de seu habitat ou sua alteração radical. Rios e várzeas compunham “um sistema complexo e dinâmico, e o equilíbrio ecológico de um habitat” dependia da manutenção do outro. Assim, o fim ou o empobrecimento da mata ciliar podia privar os peixes e outros animais de fontes de alimento ou abrigo e alterações na qualidade da água afetavam desde espécies microscópicas até os peixes, extremamente sensíveis.24 Um estudo sobre o Tietê, feito pela Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo, durante a estiagem de 1933, indicava que na capital paulista o rio recebia grandes descargas de esgoto doméstico e industrial, diretamente ou através dos seus dois maiores tributários, o Tamanduateí e o Pinheiros, o equivalente a cerca de 2,6 metros cúbicos por segundo.25 O relatório prosseguia avaliando o impacto da carga de detritos na oxigenação das águas. Na altura de Guarulhos, o Tietê tinha uma boa oxigenação, pouco menos de 8 p.p.m e, a jusante, no Belenzinho, esse Clarke, Tony Barlow Maude. Ouro Azul: Como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do nosso planeta. São Paulo: M. Books, 2003, p. 46.

23

Barrella, Walter. “Alterações das comunidades de peixes nas bacias dos rios Tietê e Paranapanema (SP), devido à poluição e ao represamento”. Rio Claro: Tese de doutoramento, Instituto de Biociências-Unesp, 1997.

24

Jesus Netto, J.P. “Contribuição para o estudo da poluição dos cursos d’água”. In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 4, janeiro de 1938, p. 39-41. O boletim da RAE foi editado pela primeira vez em novembro de 1936, com o objetivo de expor “casos verificados na execução de um projeto, exigindo modificações interessantes; artigos; noticiários; estudos críticos de obras ou trabalhos aparecidos; comunicações; estatísticas; gráficos; tabelas de preços; editais de concorrência; descrições de processos de construção, etc.; enfim, tudo que de algum modo possa interessar na especialidade de que nos ocupamos”, Silva, Hippolyto da. “Apresentação do Boletim da RAE” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 1, novembro de 1936, p. 3-4.

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valor não se alterava muito. Contudo, a partir daí os índices de oxigênio dissolvido decresciam abruptamente até chegar a zero na altura de Osasco, situação que começava a se alterar lentamente somente depois da represa de Parnaíba. “Digno de nota” era o fato de não se ter encontrado, durante o período das observações, peixes em todo esse trecho do rio, aproximadamente 47 quilômetros, “confirmando-se deste modo a influência nociva que as fortes depressões de oxigênio causam à vida aquática superior”.26 O estudo constatava ainda que “a decomposição ativa dos elementos poluidores, com absorção total do oxigênio, tem lugar fora da zona propriamente das descargas de esgotos da cidade e só se inicia cerca de 15 quilômetros abaixo do último lançamento (Lapa), confirmando-se assim as teorias correntes sobre o assunto”. O aniquilamento dos peixes do Tietê pela poluição já era perceptível em meados dos anos 1920, como se nota nos escritos de Rodolpho von Ihering, estudioso do Museu Paulista e filho de seu primeiro diretor, que registrou uma grande mortandade junto à represa de Parnaíba:

A quantidade de peixe atacado do mal é verdadeiramente fantástica; ninguém acreditaria que a represa fosse tão abundantemente povoada de peixes miúdos. Junto à barragem, por toda a parte, a água está coalhada de cardumes; percorremos a represa, em lancha, e em ambas as margens, junto ao aguapé, numa faixa de talvez 20 metros, constatamos a mesma abundância de cardumes. É impossível avaliar em algarismo sequer aproximadamente, a quantidade de peixes que estão atacados do mal. Devem ser centenas de milhares. Também num curto trecho do rio Tietê, represa acima, constatamos que a panzootia se estende. Não sabemos aonde termina. No afluente do Tietê, o rio Pinheiros, em Butantan, já não havia notícia de peixes atacados. (...)

Segundo esse estudo da RAE, o limite mínimo de oxigênio dissolvido para garantir a vida dos peixes era de 2,5 p.p.m, ou, usando a terminologia atual, 2,5 mg/L. Na altura do bairro da Casa Verde, as águas do Tietê já apresentavam índice inferior a esse.

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Devido à estiagem, as águas do Tietê tomaram-se insuficientes para diluir convenientemente os despejos da cidade; a fermentação roubou oxigênio em dissolução na água e assim os peixes, padecendo de contínua quase asfixia, facilmente foram vitimados pelos germens aos quais normalmente resistem bem. A quantidade extraordinária de peixes, notada junto à represa, proveio da concentração dos mesmos nesse ponto, quando procuravam águas melhores, rio abaixo; retidos pelas barreiras da represa, tiveram de parar aí, aglomerados.27

Como se vê, a represa de Parnaíba tornava-se uma armadilha para os peixes que fugiam das águas. O Pinheiros, cuja bacia tinha uma ocupação mais rarefeita e praticamente livre de indústrias, é provável que recebesse parte dos peixes que fugiam em busca de oxigênio e o mesmo devia ocorrer com outros córregos da cidade. O do Tatuapé, nos anos 1950, próximo à ponte da Celso Garcia, ainda possuía peixes, ao menos lambaris e arbustos nas margens.28 Do mesmo modo, lagoas que na estiagem ficavam isoladas do Tietê, quando as águas do rio estavam em nível mais baixo e mais poluídas, permitiam igualmente a sobrevivência de certo número de peixes. Na época das chuvas, o volume maior de água no rio aumentava a oxigenação e os peixes voltavam a povoar o Tietê, o que talvez ajude a explicar porque nos anos 1940, na altura do Canindé, onde se apanhava lambaris, acarás, traíras e bagres, a pescaria era mais farta durante as cheias, segundo os moradores. Mas, pouco a pouco, os peixes desapareciam do Tietê e de seus afluentes. E como muitos peixes incluíam em sua alimentação larvas de insetos, à medida que o rio ficava sem eles, os mosquitos proliferavam incrivelmente. Em 1950, uma espécie, o cúlex tornou-se uma grande praga na cidade, infestando principalmente os bairros elegantes às margens do rio Pinheiros, o que fez com que o poder municipal fosse chamado a intervir no problema. Além da falta de predadores, os mosquitos encontravam no Pinheiros um atrativo a mais. A reversão do curso do rio em direção 27 Rodolpho von Ihering. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo; Cia. Melhoramentos de São Paulo, p. 24-26.

Nunes, Antonio Carlos Felbc. PC Linha Leste. São Paulo: Editorial Livramento. 1980, p. 7.

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à represa do rio Grande promovida pela Light, fazia com que as águas do Pinheiros, repletas de aguapés e em estado de “suma poluição”, corressem muito lentamente, já que além dos detritos de sua bacia, recebiam as águas do Tietê. Ou seja, eram um criadouro perfeito de cúlex.29 Tragicamente, até mesmo um estudioso preocupado com a vida dos animais e com sua exploração racional, como era Rodolfo von Ihering, chegou a propor medidas que podiam debilitar ainda mais os peixes nativos do Tietê; a introdução de espécies exóticas. Ihering propunha a implantação de “indústrias da pesca” nos rios brasileiros, como já ocorria em outros países, “notadamente Alemanha, França, Itália e Estados Unidos”, locais onde eram empregados processos de criação artificial em larga escala. No continente sul-americano, a Argentina já dava “largos passos neste sentido”.30 Para tanto, o biólogo fazia um diagnóstico das potencialidades do “rio máximo do Estado de São Paulo”, detectando no Tietê, “quatro seções bem delimitadas”; das cabeceiras até os subúrbios a montante da capital; daí até a represa de Parnaíba; de Parnaíba até o Salto de Itu e de Salto em diante. O biólogo acreditava que no trecho que ia “das cabeceiras até os subúrbios a montante da capital” talvez pudessem ser “aclimatados peixes de porte mediano e boa carne”, pois embora o rio não tivesse aí nem “profundidade nem poços agasalhadores, que durante frio rigoroso dessa zona constituam bom abrigo”, possuía águas boas, que permitiriam “várias tentativas”, “não só no próprio leito do rio, como em canteiros postados acima do nível máximo das enchentes”. Tal procedimento estaria obtendo “bons resultados” na Argentina. Na verdade, desde a chegada dos europeus, a introdução de animais exóticos foi constante naquele país onde os bovinos formaram grandes manadas selvagens que vagavam pelos pampas, embora tenham chegado como animais domesticados. O mesmo ocorria por outros países do continente. A ausência de inimigos naturais, o clima favorável, a abundância de alimentação e a interação disso tudo, fazia com que certas espécies invasoras de animais e também vegetais ti“Havia ainda outras espécies de mosquitos na cidade, como o anófele responsável pela transmissão da malária, encontrado em “pequenas zonas nas várzeas do Pinheiros”. Silva, Lysandro Pereira. Relatório - Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1950, p. 15,29.

29

Ihering, Rodoipho von. Da vida dos Peixes. Ensaios e Scenas da Pescaria. São Paulo: Cia. Melhoramentos de São Paulo, p. 11.

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vessem um crescimento populacional desmesurado, o que podia desencadear desequilíbrios em cadeia e mesmo a extinção de espécies.31 Tudo indica que a introdução de peixes exóticos na bacia do Alto Tietê foi iniciativa de vários agentes, a própria Light fez experiências desse tipo em suas represas. No Brasil a criação de espécies exóticas manteve prestígio até a década de 1980 e apesar de condenada por biólogos e ecólogos, ainda é praticada.”32 O veto à introdução das espécies exóticas tem implícito a noção de ecossistema, uma comunidade biótica e abiótica interdependente, onde alterando-se um elemento do sistema, interfere-se em todo o resto. Contudo, cabe lembrar que a idéia era comum entre estudiosos que propugnavam a exploração racional da natureza no Brasil. A degradação do Tietê e de seus afluentes; contudo, não prejudicava imensamente apenas a flora e a FAUnal. Na verdade, todo o ambiente urbano era atingido e, portanto, a maior parte dos moradores da cidade. No caso das enchentes tal situação fica bastante clara. De fato, as cheias periódicas dos grandes rios paulistanos eram e ocupavam as várzeas inundáveis. Em 1926, Saturnino de Brito lembrava que elas nem sempre era prejudicais aos seres humanos, pelo contrário, sendo bastante conhecidos “seus efeitos benéficos para a lavoura, devido à fertilização natural que em certas condições pode ocorrer, como ilustra o famoso caso do Nilo, mas também o da Normandia e outras localidades, inclusive no Brasil, com destaque para o Amazonas e Mato Grosso”.33 Para que as inundações fossem tidas como nocivas era preciso “que o homem insista em querer ocupar as várzeas inundáveis, ou que as enchentes diluvianas invadam localidades habitadas e nunca dantes inundadas”.34 Infelizmente, na cidade de São Paulo ocorriam as duas situações apontadas por Saturnino de Brito. Por um lado, o mercado de terras urbano levava à ocupação progressiva, ainda que lenta, das várzeas alaCrosby, Alfred W. Imperialismo Ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 160; McNeill, J.R. Something New Under The Sun. An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York/London: W. W. Norton, 2001, p. 252-262. 31

Pereira, Raul. Peixes de Nossa Terra. São Paulo; Nobel, 1988, p. 121-127. Na represa de Guarapiranga, atualmente, encontram-se tanto espécies exóticas, como a tilápia ou o cará, ambas de origem africana, como peixes nativos, como a tabarana

32

Brito, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo. São Paulo: Seção de Obras d’0 Estado de S. Paulo, 1926, p. 39,41.

33

Idem, p. 126.

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gadiças e dos terrenos baixos contíguos. Por outro, as transformações que ocorriam na bacia hidrográfica do Tietê a montante de Parnaíba, em especial a montagem e a operação do sistema hidroelétrico da Light, acabavam por provocar “enchentes diluvianas” que invadiam “localidades habitadas e nunca dantes inundadas”, cujo exemplo maior, mas não o único, foi a de 1929.35 O Correio Paulistano, em março de 1902, noticiava que “as fortes chuvaradas que estes últimos dias tem desabado sobre esta capital”, fizeram com que na “Várzea do Carmo, nos arredores do Cambuci e em outros lugares” as águas subissem “extraordinariamente”, “estando estes lugares transformados em enormes lagoas que ameaçam destruir edificações que lhe forem próximas”.36 No dia seguinte, uma nova reportagem anunciava ainda que nos bairros do Cambuci e na Várzea do Carmo as águas começavam a descer, o que não ocorria, entretanto, na “Várzea do Bom Retiro e da Barra Funda”, onde “as águas continuam no mesmo plano e as ruas inundadas”.37 No dia 25 de março há-se no Correio que:

as águas do rio Tamanduateí continuam a decrescer enquanto a várzea do Tietê, da Ponte Grande até a Lapa, ainda está coberta pelas enchentes. No Bom Retiro muitas ruas acham-se transformadas em canais que apresentam um aspecto pitoresco, lembrando as ruas dos bairros populosos de Veneza, com as suas canoas que as percorrem em todos os sentidos como único meio de comunicação. (...) Na rua Luiz “Sérgio Thomaz todos os prédios estão inundados e dois deles ameaçam ruir. Numa dessas casas encontraram uma família, composta de Miguel Onarteri, de sua esposa Maria e de cinco filhos, Peppino de 15 anos, Giovanna de 12, Francisco de 7, Giacomo de 6 e Felippe de 3, que se acham quase sem recurSaturnino de Brito alinhava suas idéias às do geólogo francês G. F. Dolfus para quem a única maneira de lidar com as enchentes era não permitir que as áreas inundáveis fossem ocupadas, já que as soluções técnicas propostas nunca davam conta do problema, conseguindo, no máximo, deslocá-lo para outro lugar.

35

“Inundação no Brás”, Correio Paulistano, 23/11/1902.

36

“A inundação”. Correio Paulistano, 25/11/1902.

37

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sos, e como a casa não é muito firme, o dr. Barros (subdelegado do Bom Retiro) deu providência para que sejam recolhidos provisoriamente ao posto policial.38

Note-se que populares são os locais atingidos pela enchente e os moradores desamparados apontados na reportagem do Correio Paulistano. Por esse aspecto, as enchentes acentuavam a pauperização e a desigualdade na cidade, pois liquidavam a mobília, os utensílios domésticos e as vestimentas dos moradores pobres e, como parece ser o caso da família Onarteri, as próprias casas, quando não suas vidas. Ou seja, os mais carentes eram os mais atingidos, perdendo o pouco que conseguiam acumular em realidade socioeconómica adversa ou mesmo opressiva. Acompanhando-se o noticiário sobre a enchente de 1919, uma das maiores da história da capital paulista, tal situação fica evidente mais uma vez, embora seja possível notar igualmente o modo como perturbavam o funcionamento da cidade como um todo:

De há muitos anos para cá que a população desta capital não assistia a um espetáculo tão surpreendente e emocionante como o que se registrou ontem nesta cidade: a formidável enchente que, apanhando de sopetão os moradores convizinhos do Tietê e Tamanduateí, pôs em sério perigo a vida de centenas de pessoas, causando-lhes ao mesmo tempo prejuízos incalculáveis. Foi tão rápido a inundação, tão violento o transbordamento, principalmente nas ruas situadas nas imediações do Palácio das Indústrias, a rua Santa Rosa, por exemplo, e as que marginam o Tietê até a Ponte Grande - avenida Cantareira, ruas Pedro Vicente, Tibiriçá, Tapajoz, Iguassu, Luiz Pacheco e travessas - que, em numerosíssimas casas foram os moradores despertados já com água até as bordas do leito.

“Inundação”, Correio Paulistano, 26/11/1902.

38

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Mais uma vez, os moradores pobres foram os mais prejudicados, mesmo que locais de freqüência social mais ampla como o Parque D. Pedro II, áreas de comércio e clubes náuticos fossem igualmente inundados. Porém, o impacto das enchentes ao atingir moradias tendia a ser socialmente mais destrutivo do que no caso do alagamento de locais destinados a outras atividades. Em 1919, a destruição foi ainda maior pela forma repentina como as águas invadiram as casas:

(...) os habitantes dos locais invadidos pela violência das águas, na maior parte famílias de parcos recursos que dormiam sossegadamente. As 6 horas e meia a água, com extrema fúria, invadindo as habitações, levou de roldão o que encontrou à sua frente. Nada resistiu à sua violência; - portas foram arrombadas, móveis de todos os tamanhos e fei, dos mais leves aos mais pesados, foram arrastados. De todos os pontos partiam gritos de aflição, pedidos de socorro: um córo lamentoso se levantava de todos os lados. As águas, a essa hora, elevavam-se a 1 metro e 98 centímetros, subindo incessantemente. Registraram-se, então cenas das mais lancinantes, e, ao mesmo tempo, atos, os mais extraordinários, de altruísmo e coragem: os moradores da rua Santa Rosa, pilhados de surpresa pela enchente, salvaram-se por meio de uma corda e já com água até o pescoço, em meio de uma gritaria ensurdecedora: na confusão do momento cada um tratou de se salvar, o mais rapidamente possível, de maneira que, passado o primeiro instante de susto, começaram a surgir as lamentações das mães, cujos filhos se perderam no atropelo: mulheres que se arrepilavam, pessoas que lastimavam as perdas do pouco que guardavam em casa etc.

Cabia ao fiscal de rios coordenar as primeiras medidas de socorro aos flagelados, o que não era muito diante das dimensões da catástrofe e dos poucos recursos com que contava a fiscalização. Assim, era decisivo, nes-

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ses trabalhos a ajuda dos clubes náuticos e dos moradores ribeirinhos que possuíam barcos:

Logo que foi conhecido o lastimável acontecido principiaram os atos de abnegação: a Fiscalização dos Rios, tendo a frente o sr. Eugênio de Freitas, um dos que mais se sobressaíam, tomou medidas que o caso reclamava, lançando n’água, para o trabalho de salvamento das vítimas da inundação, todas as’ embarcações de que dispunha no momento, os clubes de regatas, tais como o Tietê, a Associação Atlética S. Paulo e o club Espéria, bem como diversos particulares, entre os quais o sr. Carlos Remedi, proprietário de uma oficina de construções náuticas, que prestou relevantíssimos serviços, puseram-se em ação já removendo as pessoas em perigo, já pondo a salvo os móveis e utensílios pertencentes aos mesmos. Tais foram os serviços prestados por esta abnegada gente que, ao chegarem os bombeiros, já encontraram salva a maior parte dos inundados.

E como sempre ocorria nesses momentos, reuniam-se pessoas e mais pessoas para presenciar todo aquele triste, porém, impressionante espetáculo:

Às 18 horas as águas atingiam a 2 metros e 25 centímetros dando àquele vastíssimo lençol espelhante um aspecto inédito, singrado todo ele por inúmeras embarcações de todos os feitios, umas de particulares, outras pertencentes aos clubes náuticos, cujo auxílio o fiscal de rios muito providencialmente solicitou, logo que se inteirou da gravidade do fato. Foram destarte evitados os desastres pessoais, que, até o momento em que escrevemos estas linhas, eram desconhecidos. Jía Ponte Grande, durante todo o dia, afluiu compac-

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ta massa de curiosos, ávidos de presenciar o anormal, acontecimento, inclusive os srs. drs. Altino Arantes, presidente do Estado, Cardoso de Almeida, secretário da Fazenda e outros membros do governo. À noite, quando percorremos os pontos mais prejudicados pelo transbordamento, notava-se um leve abaixamento das águas, que continuavam, entretanto, a correr com desusado rumor.39

Rapidamente, contudo, os “desastres pessoais” começaram a aparecer: por volta das 15 horas no Cambuci, um dos bairros duramente castigados, duas crianças foram arrastadas pela correnteza que se formou nas ruas Barão de Jaguará e dos Pescadores. Atirando-se às águas para socorrer as crianças, o jovem sírio Carmo Allabi, de 17 anos de idade salvaria apenas uma delas, morrendo juntamente com a outra que tentava resgatar. Em Guarulhos, também registrava-se a morte de uma criança “durante a maior força da inundação”.40 Já Pedro Locoselli, operário da fábrica de tecidos Mariângela, localizada às margens do Tietê, e mais dois amigos que com ele pretendiam ver as enchentes do Tamanduateí em um pequeno bote, ficaram a deriva nas águas excepcionalmente agitadas daquele rio, pois a vara que utilizavam para controlar a embarcação, em determinado ponto não pode mais tocar o fundo do leito. Quando tentava ser resgatado por um popular, Locoselli caiu nas águas e morreu afogado.41 Ao lado dos grandes flagelos como a destruição das moradias, a propagação de doenças de veiculação hídrica e as mortes, as enchentes provocavam outros transtornos à cidade. Os portos onde se faziam as descargas de materiais de construção, lenha e outras mercadorias ficavam inutilizados, obrigando os barqueiros a fazer “as descargas em pontos onde se torne fácil a atracação das embarcações e onde haja também fácil acesso às ruas carrocáveis”. Já os clubes esportivos localizados à beira do Tietê ou Pinheiros viam as águas dos rios invadirem suas dependências, obriganNotícias Diversas”, “As enchentes”, O Estado de S. Paulo, 7/2/1919, p. 5.

39

Idem.

40

Afogados”, O Estado de S. Paulo, 19/2/1919, p. 7.

41

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do-os a interromper suas atividades e a adiar as competições náuticas.42 Em 1919, da estação do Alto da Serra, que depois seria rebatizada como Paranapiacaba, o superintendente da Estrada de Ferro Inglesa informava à imprensa, por telégrafo, que “devido as contínuas chuvas e enchentes” era impossível restabelecer o tráfego de trens entre São Paulo e Santos, pois, pela manhã, no Ipiranga, as águas haviam subido, e interditado dois quilômetros de trilhos. O tráfego ferroviário para o Rio de Janeiro também estava sUSPenso devido aos estragos causados pela subida das águas, e não havia previsão de quando voltaria ao funcionamento normal.43 As Companhias Ferroviárias, não podendo dar expedição às mercadorias recebidas nas suas estações devido à interrupção do tráfego, cobravam a armazenagem das mercadorias, o que provocou protestos dos comerciantes, que teriam de arcar com essa despesa inesperada.44 Mas as enchentes não ocorriam apenas nas áreas próximas ao Tietê, Tamanduateí e Pinheiros. Aconteciam mesmo no coração da cidade, no largo do Riachuelo e em toda a baixada do Piques, Durante as chuvas mais fortes, ao menos na década 1930 e no início dos anos 1940, o local era invadido pelas águas que em corrente vinham das ladeiras ao redor, interrompendo o trânsito de bondes, danificando automóveis e carroças apanhados de surpresa, com os passantes fugindo apressados para lugares seguros, juntando-se à pequena multidão que então se reunia para observar a fúria das águas.45 Na verdade o largo do Riachuelo e a baixada do Piques eram o prenúncio de um tipo de enchente que somente aumentaria na cidade de São Paulo, aquela causada por uma drenagem urbana deficiente e pela impermeabilização do solo. Como explicava o engenheiro da Repartição de Águas e Esgotos Haroldo Paranhos, encarregado de encontrar uma solução “urgente e definitiva” ao problema nos anos 193Q, no “largo do Riachuelo, reúnem-se três galerias pluviais, que conduzem as águas das Pólo Aquático. A enchente do Rio Tietê. Novo adiamento dos jogos do campeonato de pólo aquático”. O Estado de S. Paulo, 17/2/1929, p. 12; “Remo e Natação (...) C.R.Tietê mantém a sede fechada enquanto o nível das águas não permitia a prática do esporte”, O Estado de S. Paulo, 17/2/1929, p. 12.

42

Notícias Diversas”, O Estado de S. Paulo, 3/2/1919, p. 5.

43

Queixas e Reclamações” O Estado de S. Paulo, 7/2/1919, p. 5.

44

Duarte, Raul. São Paulo de Ontem e Hoje. São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1941, p. 77-78. 45

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bacias do Anhangabaú, Moringuinho e Jaceguay. Estas bacias compreendem toda a área limitada pelos divisores que correm pela Avenida Paulista, Consolação e ruas Vergueiro e Liberdade, com superfície de 415,50 hectares”, Do “largo Riachuelo, ponto de convergência das três galerias, já nomeadas, partem duas coletoras que se desenvolvem pelo Parque e rua Anhangabaú, desaguando no canal do Tamanduateí, nas proximidades do novo Mercado Municipal”. Como “não se esperava no momento em que foram construídas o aumento de áreas pavimentadas, como depois se verificou ao longo dos três vales”, havia “um excesso de vazão nas galerias existentes a jusante do largo do Riachuelo” com o refluxo das águas. Para solucionar o problema, segundo o engenheiro, seria preciso retirar das galerias da rua Anhangabaú as contribuições do Moringuinho e Jaceguay, que seriam desviadas e enviadas diretamente para o Tamanduateí O que traria a solução definitiva às enchentes do Piques, “que não só afrontam a grandeza da cidade que é um justo motivo de nosso orgulho, como é uma fonte perene de críticas acerbas que ferem profundamente a capacidade técnica dos departamentos públicos que têm por dever evitar e corrigir os desmandos da natureza”.46 Curiosamente, apesar de sua própria explanação provar o contrário, Haroldo Paranhos concluía o seu estudo colocando a culpa das enchentes na natureza. Deficiências na drenagem urbana de São Paulo eram comuns por toda a cidade. Em 1929, na rua Brasílio Machado, vários prédios foram danificados, em maior ou menor grau, devido a problemas hidráulicos. Os moradores, que vinham reclamando havia muitos dias contra o péssimo estado dos bueiros de seus quintais, sem que a Repartição de Águas e Esgotos lhes desse atenção, viram seus quintais se transformando em “verdadeiras lagoas” em decorrência das chuvas que caíam sobre a cidade:

Entupidos os escoadores ou galerias, vieram as águas acumulando-se pelos quintais, procurando uma vazão qualquer, minando cercas, paredes e muros. Anteontem, finalmente, vários moradores daquela rua passaram momentos de verdadeira angústia, perfeitamente evitáveis numa cidade que se preza, como S. Paulo, de ser uma das principais da Paranhos, Haroldo “O problema das enchentes no largo do Riachuelo e a suas solução” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 1, novembro de 1936, p. 71-72.

46

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América do Sul.47

Já os “proprietários e inquilinos das casas do lado ímpar, parte baixa, da rua Conde de Sárzedas” solicitavam atenção do superintendente da Light & Power, para um aterro que estava sendo feito em terrenos de propriedade daquela empresa e que impediam o curso natural das águas pluviais. Com isso elas ficavam represadas nos quintais da parte mais baixa, “inundando-os e pondo em sério risco a estabilidade dos muros, que estão ameaçados pela impetuosa enxurrada”.48 Muitas ruas de São Paulo ficavam intransitáveis na época das chuvas.49 Certas pontes, muitas tão frágeis quanto indispensáveis, resistiam com dificuldades à força das águas:

De “Uma leitora” recebemos uma carta em que pede reclamar da Prefeitura providências que minorem as agruras em que se encontram os moradores das proximidades do ribeirão dos Pinheiros, cujas águas transbordaram em consequências das últimas chuvas. Acrescenta a missivista que a ponte existente sobre o mesmo ribeirão ameaça ruir, podendo o desastre acarretar muitos acidentes funestos pelo que é urgente que as auto“Notícias Diversas. Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 9/2/1929, p. 7; “Queixas e Reclamações. (...) a prefeitura canalizou as águas pluviais que descem a alameda Santos, pela referida rua Saint-Hilaire, transformando-a num verdadeiro escoadouro, que minando os alicerces dos prédios, nem todos de recente construção, acarreta não só prejuízos de vulto aos proprietários, como também põe num verdadeiro perigo os transeuntes”, O Estado de S. Paulo, 12/3/1939, p. 3. 47

“Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 21/3/1918, p. 7.

48

“Queixas e Reclamações. Com a prefeitura. Na rua Conselheiro Carrão, segundo o que nos escreve um leitor, existe uma baixada que constitui um verdadeiro precipício e um martírio incalculável para os animais nos dias de chuva”, O Estado de S. Paulo, 17/2/1929, p. 2 ;”Notícias Diversas. Queixas e Reclamações. Escrevem-nos pedindo que chamemos a atenção do sr. prefeito municipal para o estado em que se encontra a rua Anna Nery. Com as últimas chuvas, essa via pública acha-se intransitável, precisando de ser melhorada o quanto antes (...). O Estado de S. Paulo, 17/3/1918, p. 5 (Domingo). “A rua Lopes Chaves está intransitável depois das chuvas”, O Estado de S. Paulo, 16/3/1918, p. 5. “Rua Herculano de Freitas/grande buraco e matagal”, O Estado de S. Paulo, 23/3/1918, p. 6.”Queixas e Reclamações. Com a prefeitura. Moradores da rua Estados Unidos, no Jardim América, reclamam contra o péssimo estado em que esta se encontra, de lamaçal intransitável”, O Estado de S. Paulo, 17/2/1929, p. 2.

49

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ridades municipais para ali voltem suas vistas.50

Após as enchentes de 1929, alastravam-se temores de que um surto epidêmico de febre amarela atingiria a cidade, obrigando o Serviço Sanitário Estadual ir a público para acalmar “a população sobressaltada”.51 As epidemias continuavam a assombrar as cidades populosas e não apenas no Brasil. O tifo flagelava os moradores de Buenos Aires, capital da Argentina, como alertava um artigo da Revista Médica de São Paulo em fevereiro de 1913. Na maior cidade da América do Sul, a repartição sanitária municipal indicava em relatório que o tifo não era apenas endêmico, como em todas as grandes cidades, mas “desde alguns anos, ele se fez francamente epidêmico, manifestando- se com uma periodicidade regular e bianual, em Março e Outubro”. Entre fins de 1911 e julho de 1912 houvera uma epidemia, “a maior das que se recordam, embora também seja a que menor mortalidade produziu, nestes últimos 20 anos”. Na época, o serviço sanitário argentino não sabia ao certo onde estavam os focos de propagação da doença, ao contrário do que acontecera durante a epidemia de 1907, na qual eles foram identificados em dezenas de “poços de balde” que abasteciam boa parte da população portenha.52 Em São Paulo, como foi visto, os temores de que a cidade fosse atingida por grandes epidemias, no final do século XIX, estimulou obras de saneamento, que vinham ao encontro das reivindicações dos moradores.53 Contudo, existência de uma rede de coleta de esgotos não significava, por si só, mais saúde. Na Inglaterra, em 1847, uma reforma sanitária introduziu o uso generalizado da descarga hidráulica dos vasos sanitários, ligando-os aos sistemas de esgotos, até então usados, especialmente para o escoamento da águas das chuvas. A prática do touta Végout, se difundiu pela França e depois para outros “Notícias Diversas. Queixas e Reclamações”, O Estado de S. Paulo, 7/2/1919, p. 5.

50

“Febre Amarela, O Estado de S. Paulo, 1211929, p. 2; “O Estado Sanitário”. O Estado de S. Paulo, 20/2/1929, p. 3.

51

Revista Médica de São Paulo, 15/02/1913, p. 53-56.

52

“Higiene Pública”, Correio Paulistano, 16/03/1892; Companhia Cantareira e Esgotos, 02/08/1890; “Cantareira e Esgotos”, Correio Paulistano, 24/09/1890; “Higiene”, Correio Paulistano,03/10/1890.

53

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países da Europa e América. Contudo, como o esgoto era jogado diretamente nos cursos d’água sem tratamento, que, assim, recebiam dejetos humanos de cidades cada vez mais populosas, desiguais e insalubres, houve uma enorme difusão de agentes patogênicos, iniciando-se então a era das grandes epidemias de doenças bacterianas de veiculação hídrica, em especial a febre tifóide e o cólera, que castigaram a Europa.54 Saturnino de Brito, em 1925, acreditava que a capital paulista, em poucos anos, ao atingir a marca de 1,2 milhões de habitantes, lançaria uma descarga de esgoto no Tietê da ordem de aproximadamente 200 mil metros cúbicos por dia, o que equivalia a dizer que “a descarga do rio, em estiagem, será então apenas quatro vezes a dos esgotos”, o que tornaria “a situação intolerável”:

Desde que foram feitos os primeiros esgotos o rio foi considerado o exutório natural; nenhum inconveniente sério se apresentava, mormente atendendo à largura da várzea e ao afastamento obrigatório das habitações, em vista das inundações: - a descarga, não sendo nociva, não causava também incômodos. Com o rápido desenvolvimento da cidade a situação foi se tornando menos tolerável. Infelizmente, as extensões da rede fizeram-se sem plano de conjunto, sem a preocupação do destino definitivo a dar ao volume crescente dos despejos. (...) Disto não se cuidou em tempo porque o Tietê continuou a ser sempre considerado o receptor e veículo natural de todos os despejos. Agora, qualquer projeto ficará forçosamente gravado com um excesso de custo ou de custeio.55

54 Branco, Samuel Murgel. “Água, Meio Ambiente e Saúde” In: Rebouças, Aldo da Cunha; Braga, Benedito; Tundusi, José Galizia (orgs.) Águas doces no Brasil - Capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras, 1999, p. 229.

Brito, op. cit., p. 184-185.

55

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Em 1927, segundo o engenheiro chefe da Comissão das Obras de Saneamento da Capital, Theodoro Ramos, na estiagem baixa, a relação água/esgotos no Tietê era de 10 por 1. O rio recebia diariamente dos coletores cerca de 30 toneladas de matéria sólida, que se acumulavam no fundo do leito e em suas margens, formando-se na época mais seca “bancos imundos, que dificilmente são removidos pelas enchentes do rio e ficam a descoberto durante as estiagens”.56 Como a rede de coleta de esgotos não atingia toda a cidade, isso significava que o rio recebia, ainda, esgotos domésticos e industriais diretamente ou através de seus tributários. Por outro lado, o uso de fossas em muitas residências e estabelecimentos diversos mantinha parte dos dejetos humanos fora dos cursos d’água, embora houvesse quem o jogasse diretamente na rua, através dos mesmos caminhos que levavam as águas pluviais. Como tudo em uma metrópole, mesmo que nascente, a escala fazia toda diferença. Em meados do século XIX, Chicago, nos Estados Unidos, tinha aproximadamente 30 mil habitantes e despejava seu esgoto no rio Chicago e nas margens do lago Michigan, o que não parecia causar grandes transtornos aos seus moradores. Contudo, no último quartel do século, quando a cidade iniciou um processo acelerado de industrialização e crescimento populacional, a situação se alterou radicalmente. Os habitantes de Chicago e arredores passaram a sofrer uma infinidade de doenças de veiculação hídrica, o que tomou a cidade afamada não só por sua indústria e cosmopolitismo, mas igualmente pelo tifo que flagelava sua população. Para sanear a cidade, foi implementado o maior projeto de engenharia estadunidense até a construção do canal do Panamá, o Chicago Metropolitan Sanitation District.57 Em um artigo publicado no Boletim da RAE, em 1937, o engenheiro Jesus Netto fazia um diagnóstico nada animador sobre o esgotamento sanitário da capital paulista:

Cuida-se muito, entre nós - embora ainda com certos métodos e dispositivos um tanto antiquados do tratamento das Relatório da Comissão de Obras e Saneamento da Capital. São Paulo: Typografia Brazil de Rothschild 8c Co., 1927, p. 5.

56

57 Neil. J. R. Something New Under The Sun. An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York/London: W. W. Norton, 2001, p. 126-127.

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águas de abastecimento, que são distribuídas às populações mais ou menos expurgadas dos seus elementos nocivos. Pouca ou nenhuma atenção se dá aos problemas de esgotos. Predomina ainda, nas soluções dos nossos problemas sanitários, a estranha subordinação de um exagerado senso de economia, sobre as soluções justas e adequadas. Essa situação é ainda agravada por uma certa dose de incredulidade dos técnicos, que, ao invés de investigar o assunto em seus detalhes, rejeitam, a priori, os métodos ensaiados no estrangeiro, e de algum modo duvidam — sem a menor base aliás -, da eficiência de certos dispositivos tendentes a melhorar e facilitar os trabalhos das instalações de tratamento, seja de esgotos seja de águas de abastecimento. Junte-se a isto a falta de regulamentação sobre o assunto, e temos a visão do quanto ainda há por fazer na defesa da higiene e da saúde pública, no campo da disposição final dos líquidos de esgotos.58

O mesmo Jesus Neto, em 1932, liderara a implantação da Estação Experimental de Tratamentos de Esgotos da Ponte Pequena, com “lodos ativados, digestão e aproveitamento de gás em motor a explosão”, usando, nas palavras de um especialista, “material de sucata”.59 O conhecimento acumulado nessa estação permitiu à RAE implantar, em 1937, no Ipiranga, uma outra estação experimental, agora em maiores dimensões. Com isso esperava-se dar prosseguimento “e confirmação das complexas investigações levadas a efeito na experimental da Ponte Pequena” e superar as “pre-

Jesus Netto, J. P. “Uma pequena instalação moderna de tratamento de esgotos. Ypiranga”. In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 2, março de 1937, p. 176.

58

59 Netto, José M. Azevedo. “Cronologia dos Serviços de Esgotos com especial menção ao Brasil”, In: Revista do Departamento de Águas e Esgotos, n. 33, abril de 1959, p. 19. “Depoimentos. Utilização dos Recursos Hídricos. Samuel Murgel Branco” In: Revista Spam, novembro de 1984, p. 28.

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cárias condições sanitárias daquele distrito”.60 Desse modo, alguns técnicos da Repartição de Águas e Esgotos procuravam acompanhar o que havia de mais avançado no plano internacional na área. Nos anos 1920 e 1930, as grandes cidades no Ocidente começaram a construir estações de tratamento de esgoto, como a estadunidense Washington, D.C., que fez a sua em 1934. Já Moscou montou pequenas estações no final dos anos 1930, sendo que em Tóquio, elas só apareceram após 1945. Até meados dos anos 1910, havia apenas o tratamento primário de esgoto, quando então engenheiros britânicos desenvolveram o processo de lodos ativados (sludge activation process).61 Além da escassez de investimentos públicos, do provincianismo dos técnicos e da falta de regulamentação, um outro obstáculo era apontado pelos engenheiros da RAE como entrave à instalação de um sistema eficiente de coleta e tratamento de esgotos; a desmesurada expansão horizontal de São Paulo, como visto, resultado do consórcio entre especulação imobiliária e discriminação social. Desde a década de 1920, os engenheiros da RAE ressaltavam que a “extensão territorial da capital”, com a transformação sistemática da terra rural em urbana, estava “em desproporção com o número de seus habitantes”, fenômeno que já estava tomando “aspecto mórbidos”, constituindo “caso de crescimento vicioso ao qual cabe com propriedade a denominação de gigantismo urbano. Cresce a área da cidade, dificultando a execução normal dos serviços públicos, como cresce o corpo do gigante, provocando distúrbios em suas funções vitais”.62 A instalação da rede de esgotos em São Paulo não era mesmo algo simples. Em 1937, um engenheiro da RAE ressaltava que as “correções de arruamentos” ao encontrar “a obra de saneamento executada” impunham, muitas vezes, que esta fosse abandonada e tivesse que ser reconstruída os arruamentos eram tarefa da prefeitura. Assim, “de algum tempo para cá, a Repartição tem-se negado intransigentemente em executar coletores de esgotos e galerias pluviais, assentados fora dos lugares próprios ou dentro de propriedades particulares”.

Jesus Netto, op. cit., p. 162.

60

McNeill, op. cit., p. 127-128.

61

Amarante, Oscar. “A Urbanização da Zona Rural” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 13, setembro de 1941, p. 87-88. 62

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Disso tem resultado ficarem privados desses melhoramentos inúmeros quarteirões, inteiramente edificados, muitas vezes dispostos em série, ao longo de um pequeno curso d’água. Dentro dessas zonas permanecem ainda o sistema e o uso de fossas absorventes, ficando elas como manchas negras encravadas dentro das malhas das redes sanitárias. Acontece que nem sempre o terreno é favorável à drenagem das águas pelo subsolo, sobrevindo o transbordamento das fossas, e essas águas fecais, sem nenhum dispositivo corretor, vão contaminar as águas que correm pelos fundos das quadras. Essas águas, muitas vezes fétidas, servem para a irrigação de hortas e plantações de agriões que abastecem a população. Já temos solicitado a interdição de tais hortas e que sejam coibidos tais abusos, sem termos conseguido a medida necessária.63 Medidas legislativas em defesa da qualidade das águas dos rios e córregos existiam, mas, por si sós, não eram capazes de interromper a degradação crescente. Em 1931, um decreto estadual, dispunha em seu artigo 5º que “é igualmente proibido despejar nas águas dos rios, córregos, lagos e lagoas substâncias e resíduos industriais nocivos à vida dos peixes”.64 Promulgado em 10 de junho de 1934, o “Código de Águas”, de âmbito federal, fazia referência à degradação dos recursos hídricos no seu livro II, título VI, “Águas Nocivas”:

,Art.109. A ninguém é licito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros. Art.110. Os trabalhos para a salubridade das águas serão 63 Silva, Hippolyto da. “Urbanismo e Saneamento” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n” 2, março de 1937, p. 104. 64 Projeto de lei dispondo sobre a poluição das águas no Estado de São Paulo” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 21, julho de 1948, p. 106.

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executados à custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos. Art.111. Se os interesses relevantes da agricultura ou da indústria o exigirem, e mediante expressa autorização administrativa, as águas poderão ser inquinadas, mas os agricultores ou industriais deverão providenciar para que elas se purifiquem, por qualquer processo, ou sigam o seu esgoto natural. Art. 112. Os agricultores ou industriais deverão indenizar a União, os Estados, os Municípios, as corporações ou os particulares que pelo favor concedido no caso do artigo antecedente forem lesados.65

Em 10 de janeiro de 1940, o governo estadual instituiu a “Comissão de investigações da Poluição das Águas do Estado” composta por nove “membros, entre os quais, obrigatoriamente, pelo menos um representante do Instituto de Higiene, um do Departamento de Saúde, um da Repartição de Águas e Esgotos e um do Departamento de Indústria Animal”. Na justificativa, ressaltava-se:

“a inadiável necessidade de regulamentar a utilização das águas interiores ou litorâneas do estado como receptáculo dos despejos industriais e mesmo domésticos”. Mas, diante da “complexidade do problema” apenas “parcialmente resolvido mesmo nos países em que há longo tempo a solução se tornou premente” não era possível a “fixação pura e simplesde limites na composição dos efluentes industrias;” devendo a poluição ser reduzida dentro dos limites que “comportem uma solução econômica para a coletividade e para a indústria”.66 Coleção das Leis dos Estados Unidos do Brasil, p. 697-698.

65

Coletanea de Legislação do Estado de São Paulo e da Prefeitura da Capital. São Paulo: Lex Ltda Editora, 1940,2’ Seção, p. 19-20. 66

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Como se vê, o debate sobre como evitar a poluição das águas ficava mais complexo na década de 1930, pois envolvia agora interesses de um setor em expansão na economia nacional”, a indústria, o que significa dizer que interessava diretamente aos empresários, trabalhadores e governo. Desde o início do século a industrialização avançava no estado de São Paulo, que, em 1920, respondia por 31,5% do produto industrial do país e, em 1938, por 43,2%, sendo que a capital respondia por cerca de metade da produção paulista.67 Para as indústrias, uma forte ação estatal em defesa da qualidade das águas significaria restrição aos negócios, ou, ao menos a necessidade de investimentos em processos que amenizassem o impacto destrutivo de suas atividades. A cidade de São Paulo se transformava em uma enorme unidade produtiva, processando quantidades crescentes de trabalho, energia e recursos naturais. Nesse contexto, o Tietê e seus afluentes ao fornecer água, espaço e, em muitos casos, transporte, ao afastar os dejetos industriais e possibilitar a produção de energia elétrica, não seriam, então, algo a se preservar, mas sim a garantia de que a indústria paulistana poderia se expandir. Além disso, a pesca, a caça e a coleta amenizavam a extrema carência das classes populares da cidade, viabilizando a reprodução de um mercado de trabalho que apresentava baixos níveis salariais, o que favorecia já acumulação de capital.68 Em 1942 o diretor da Repartição de Águas e Esgotos, o engenheiro Plínio Penteado Whitaker apresentou o “Plano Geral de Distribuição de Água” e o Plano Geral de Coleta e Tratamento Depurador de Esgotos para a Capital”. Preconizava a atuação conjunta da Repartição de Águas e Esgotos e da Prefeitura, a construção de emissários e estações de tratamento de esgotos ao longo dos rios Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, sendo que no caso dos emissários, já existiam pequenos trechos prontos - a Estação Experimental do Ipiranga continuaria suas atividades. Para Whitaker urna parte das obras somente poderia ser concluída após a retificação dos rios, mas o plano geral poderia ser executado em um período de seis a dez anos, de forma a não trazer grandes encargos financeiros ao Tesouro Estadual. Depois que o governo garantisse o recolhimento e tratamento do esgoto domiciliar, poderia exigir “de todas as indústrias Singer, Paulo. “São Paulo” In: Szmrecsányi, Tamás (org.). História Econômica da Cidade de São Paulo. São Paulo: Globo, 2004, p. 183.

67

Polanyi, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

68

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adequado tratamento de seus despejos”.69 Cinco anos depois da apresentação de seu plano, entretanto, o diretor da Repartição de Águas e Esgotos afirmava que:

A capital deste Estado, cidade que pelo desenvolvimento econômico e pelo número de seus habitantes situa-se hoje entre as grandes metrópoles mundiais, tem absoluta falta e urgente necessidade de ver resolvidos dois problemas básicos de seu saneamento: o tratamento depurador do líquido cloacal veiculado pelas redes sanitárias - que despejam seus resíduos “ In: natura” nos rios Tietê e Pinheiros, que cortam a zona urbana da cidade — e o tratamento adequado dos resíduos sólidos provenientes do lixo da cidade. O segundo desses problemas é dependente da Prefeitura Municipal, que faz a coleta domiciliar do lixo da cidade. Um e outro desses problemas exige solução pronta e adequada, a fim de proporcionar à cidade um ambiente higiênico, dentro do qual possa a sua população desenvolver-se com o conforto indispensável a uma cidade civilizada.70

Nas décadas seguintes os dois “problemas básicos” de São Paulo somente iriam se agravar. Assim, entende-se porque aqueles que entravam em contato com o Tietê ficavam cada vez mais expostos aos males provocados pela degradação ambiental. Como era de se esperar, isso ficou evidente entre os que praticavam a natação no rio. Em 1944, a tradicional “Travessia de São Paulo a Nado” foi realizado pela última vez, pois não era possível assegurar águas saudáveis aos competidores, tanto que alguns deles, contraíram tifo e outras doenças. A partir de 1929 os clubes à beira do Tietê começaram a construir piscinas em suas dependências, inicialmente para propiciar aos seus atletas de natação melhores condições de treinamento, mas logo elas passariam a

69 Bueno, Laura Machado de Mello. “O Saneamento na Urbanização de São Paulo”. São Paulo: Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 1994, p. 84-87. 70 Whitaker, Plínio Penteado. “Problema do Saneamento da Cidade de São Paulo” in Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 18, janeiro de 1947, p. 128.

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substituir totalmente os “cochos” no rio.71 Mas mesmo aqueles que não tinham contato direto com o Tietê podiam ser prejudicados por suas águas contaminadas. Isso porque em fins do século XIX, a RAE enfrentava dificuldades em suprir a rede de abastecimento de água e como o sistema de distribuição era por gravidade, quando isso ocorria, os bairros ricos, localizados na parte alta da cidade eram atingidos, o que não ocorria com os bairros populares nas baixadas. Em 1898, para fazer frente a tal situação, a Repartição de Águas e Esgotos excluiu as localidades proletárias do Brás, Bom Retiro, Barra Funda, Belenzinho, Ponte Grande e Cambuci do sistema Cantareira, que tinha uma água de excelente qualidade, para garantir o suprimento constante e seguro da parte alta da cidade. Excluídos do sistema Cantareira esses bairros passaram a ser abastecidos com água captada no rio Tietê, um volume que chegou a 6 milhões de litros por dia.72 O uso das águas do Tietê para o abastecimento público provocou uma grande reação contrária nos círculos médicos paulistanos pois não havia um sistema de tratamento que garantisse sua qualidade. Uma análise feita pelo Instituto Bacteriológico considerava as águas captadas na altura do Belenzinho como inadequadas para o consumo da população. A Sociedade de Medicina e Cirurgia, em assembléia, manifestou-se contra a RAE e médicos de renome atribuíam a essa medida o “fato de os moradores do Brás serem fustigados por inúmeras doenças gastro-intestinais. O bairro apresentava ainda a maior porcentagem de óbitos na faixa etária de zero a cinco anos, em sua maioria causados por moléstias ligadas ao aparelho digestivo: gastroenterite, enterite e diarréia.73 Em 1901, a diarréia era responsável por 21,31% do total de óbitos da cidade e atingia especialmente as crianças com menos de um ano de idade, cuja taxa de mortalidade era de cerca de 178 por mil nascidos vivos, ano em que a febre tifoide foi responsável por um 1,5% das mortes na capital. As estatísticas demográfico-sanitárias das décadas de 1890 a 1920 indicavam 71

Nicolini, Henrique. Tietê: o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001, p. 100,106.

Tomás. Elaine. “O Tietê, o Higienismo e as Transformações na Cidade de São Paulo (1890-1930)”. Florianópolis: Dissertação de Mestrado Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 97; Queiroz, Victor Oscar de Seixas. “Abastecimento de Água na Cidade de São Paulo” In: Revista dab, n. 52, março de 1964, p. 1. 72

73

Ribeiro, op. cit., p. 144 e ss.

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igualmente altos índices de óbitos por doenças infecto-contagiosas.74 Entre 1914 e 1915, São Paulo conheceria uma epidemia de febre tifóide, doença de veiculação hídrica e alimentar, que assolou principalmente os moradores da parte baixa da cidade, justamente aquela abastecida pelo Tietê. Mais de dez mil doses de vacinas preparadas pelo Instituto Bacteriológico contra a enfermidade foram aplicadas na população. Pouco acima de onde estavam instaladas as bombas de captação de água do Tietê descobriu-se um barqueiro doente, que residia na própria barca. A epidemia voltou a eclodir nos anos de 1920 e 1921. Acreditava-se que poços e nascentes contaminadas também colaborassem na difusão da peste.75 Apesar das críticas e alertas, a Repartição de Águas e Esgotos continuaria a suprir as carências do sistema de abastecimento com água do Tietê, captada agora na altura do Tatuapé e Aricanduva. Contudo, esses dois córregos recebiam o esgoto de inúmeras habitações, fábricas, do Instituto Disciplinar e as águas das chuvas que lavavam o depósito de Lixo da 4Parada. Em janeiro de 1920, o dr. Bruno Rangel Pestana, que trabalhava no Instituto Bacteriológico, vinculado ao Serviço Sanitário do Estado, em relatório reproduzido pela imprensa, criticou duramente a RAE por tal medida.76 Mas a repartição, em 1923, defendia o “aproveitamento das águas do rio Tietê submetidas a rigoroso tratamento, inclusive desinfecção com cloro líquido”. Nesse caso, a novidade seria a cloração permanente das águas destinadas ao abastecimento público, ação que foi empregada pela primeira vez, em 1902, na cidade belga de Middlekerk. Em 1916, praticamente a totalidade da água distribuída em Londres passou a ser clorada e no início dos anos “1920 cidades como Lima, Havana e Buenos Aires adotavam a medida. Geraldo Horácio de Paula Souza, então diretor da RAE, era um entusiasta da cloração, mas foi somente a partir de 22 de junho de 1926 que toda a água canalizada distribuída em São Paulo, 1,5 metros cúbicos por segundo, foi clorada.77 Laurenti, Ruy. “Saúde e Condições de Vida” In: Szmrecsányi, Tamás (org.). História Eco-tenica da Cidade de São Paulo. São Paulo: Globo, 2004, p. 366-367; Ribeiro, Maria Alice Rosa. História sem fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo: Unesp, 1993, p. 110-111. 74

Tomás, op. cit., p. 100; Mensagem enviada ao Congresso do Estado a 14 de julho de 1915 pelo Dr. D. Francisco de Paula Rodrigues Alves, Presidente do Estado, p. 29.

75

Sevcenko, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole. São Paulo, Sociedade e Cultura nos Frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 135-136.

76

77 Capocchi, José. “Crônica da Cloração de Aguas e Esgotos” In: Revista DAE, n. 44, março de 1962, p. 24-25.

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O desenvolvimento de São Paulo, ao mesmo tempo que destruía seus rios e córregos, estimulava o aumento no consumo de água devido ao crescimento da população e das atividades produtivas, de novos hábitos de higiene e bem-estar que se difundiam no plano individual ou coletivo. A partir de fins do século XIX, os mananciais paulistanos foram engolidos pela urbanização predatória, processo que, desde então, nunca mais interrompido. Os primeiros mananciais atingidos foram aqueles que supriam os chafarizes e os moradores do centro da cidade. Já no último quarto do século XIX, o Anhangabaú sofria com o despejo de resíduos em suas águas e, ao passar pelo Matadouro Público, recebia “todo o sangue das rezes abatidas, de forma que se tornava, a partir das duas horas da tarde em diante, um verdadeiro riacho de sangue”. O Tanque Municipal, que abastecia parte da cidade, recebia as águas do Anhangabaú a montante do Matadouro e o tanque de Santa Tereza, que supria a freguesia da Sé, era aumentado pelas nascentes do riacho, mas ambos foram destruídos pelo adensamento urbano e tiveram de ser abandonados, assim como o Tanque do Bexiga.78 Por todo o centro e arredores as nascentes eram estancadas e os córregos cada vez mais degradados, canalizados e tapados, como o ribeirão da Mandioca, cujas águas em 1855 eram consideradas de boa qualidade.79 A existência de mananciais alternativos, com um volume maior de água, cuja exploração era viabilizada pelo desenvolvimento técnico e aumento da capacidade de investimento social fazia com que muitos vissem o abandono dos primeiros mananciais, de capacidade reduzida para as novas dimensões da cidade e o sepultamento dos córregos do centro e arredores como algo sem importância, inevitável, até mesmo salutar, no tempo dos miasmas por diminuir a umidade da região, depois, por supostamente afastar as águas contaminadas dos passantes. Além do mais, em fins do século XIX, foram incorporados à rede de abastecimento os mananciais da Serra da Cantareira, do rio Cotia e das nascentes do Ipiranga, conce78 Freitas, Afonso de. Tradições e Reminiscências Paulistanas. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1954, p. 31.

”Mapa da Imperial Cidade de São Paulo 1855”. São Paulo Antigo. Plantas da Cidade, Coleção de Mapas do IV Centenário, 1954. Mas em 2006, próximo ao Pátio do Colégio, uma mina d’água insiste em vazar nos barrancos concretados sobre o qual ergue-se o Solar da Marquesa, vertendo em direção ao Tamanduateí, apesar de todas as tentativas de estancá-la. Ao invés disso, mais proveitoso seria musealizar tal nascente e incorporála ao acervo da instituição vinculada à Prefeitura do Município de São Paulo

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bidos com base no princípio das “águas protegidas”, ou seja, com a desapropriação e isolamento do território que continha a bacia hidrográfica contribuinte desses mananciais. Acreditava-se que o isolamento completo era a única maneira de se garantir a qualidade das águas. Contudo, no caso do reservatório das nascentes do Ipiranga, nem toda a bacia hidrográfica foi protegida pela desapropriação. Assim, em 1928, a captação ali foi interrompida, pois suas águas estavam comprometidas devido à crescente urbanização de seu entorno por indústrias e moradias. Por pouco a área não foi loteada e vendida, mas acabou por ser transformada em um parque estadual.80 Mesmo um reservatório de grandes dimensões, que no final dos anos 1920 contribuía com cerca de 37% da adução total da capital não estava livre da ameaça da degradação. Em 1937, Haroldo Paranhos, engenheiro ajudante da Segunda Seção Técnica da Repartição de Águas e Esgotos, apresentou um estudo sobre a melhor maneira de se garantir a “defesa sanitária” da represa de Guararapiranga, “poderoso manancial” no qual identificara”© aumento de poluição das águas” devido ao “crescente número de focos de contaminação” resultantes do povoamento que se fazia de suas margens”. Como fora concebido pela Light para regular a vazão do Tietê e assim aumentar a produção de energia elétrica da usina de Parnaíba, não houve preocupação em preservar a qualidade das águas de Guarapiranga pela desapropriação de sua bacia contribuinte. Um dos problemas apontados pelo técnico da RAE era a “jurisprudência formada em torno do direito de propriedade”,

o mais sério embaraço que se apresenta a quem queira empreender uma obra de saneamento. Daí as inúmeras dificuldades de ordem jurídica que entravam os trabalhos de higiene pública, impedindo muitas vezes a sua realização. Entre nós, nada existe feito neste sentido, particularmente no setor de proteção aos mananciais.

Por outro lado, não acreditava na solução das bacias protegidas, devi80 Marcondes, Maria José de Azevedo. Cidade e Natureza. Proteção dos Mananciais e Exclusão Social. São Paulo: Studio Nobel/EdUSP/FAPESP, 1999, p. 63; Bueno, op. cit, p. 72.

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do às “custosas desapropriações”, o que, “para os grandes cursos d’águas, e lagos de considerável massa líquida” era “inexequível”. Além disso “as infrações de proibições de entrada de pessoas e animais dentro dos perímetros que delimitam as bacias” eram constantes, e “não há medidas legais capazes de garantir a ação enérgica dos zeladores de matas”. Diante disso pedia uma “legislação especial capaz de defender o rio ou lago das poluições oriundas quer de despejos sanitários, quer de despejos de águas industriais”.’81 Se era difícil impedir a degradação dos mananciais relativamente isolados, o que dizer das águas do Tietê? Cada vez mais poluídas elas perdiam sua vitalidade e seus atrativos estéticos. Nos final dos anos 1940 ainda era possível encontrar mulheres lavando roupas na beira do rio, mas isso se tomava cada vez mais difícil. Nos bairros periféricos era a água retirada de poços a mais utilizada para essa tarefa, embora sempre que houvesse nascentes por perto, elas fossem frequentadas por algumas lavadeiras. Do mesmo modo, enquanto no início do século XX os barqueiros do Tietê utilizavam a água do rio para beber e fazer comida, quarenta anos depois não julgavam mais possível fazer o mesmo, levando a água que consumiam em garrafas e potes dentro do barco. Mesmo em regiões à montante da Ponte Grande, com ocupação mais esparsa, a poluição era facilmente percebida como constatou o jornalista Jerônimo Monteiro que, em reportagem sobre os barqueiros do Tietê, descrevia a água do rio como “torva, cortada de veios furta-cores”, com “mau cheiro, às vezes estonteante”.82 As águas descritas pelo jornalista eram as mesmas “águas oleosas e pesadas” do conhecido poema de Mário de Andrade escrito em 1945, “A meditação sobre o Tietê”, a indicar um avanço dos dejetos de origem industrial no rio. A mesma reportagem da Folha da Noite de 1943, informava que na altura de São Miguel, uma descarga de efluentes industriais da Companhia Nitro-Química, que começara a operar em 1937, fez com que a água do rio ficasse contaminada e os peixes sumissem por um longo trecho. Segundo o testemunho do barqueiro Antonio foram “tantos os peixes mortos que nos remansos se acumulavam toneladas de várias espécies a 81 Paranhos, Haroldo “Saneamento do Lago de Santo Amaro”, In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 2, março de 1937, p. 179-180. 82 Cabe lembrar que agentes patogênicos podem estar presentes em águas aparentemente potáveis. “Os Barqueiros do Tietê”, Folha da Noite, 21/12/1943, p. 7.

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ponto de estorvar a navegação”. Além do esgoto, outras atividades degradavam o rio. A exploração de areia e pedregulho nas várzeas, feita com dragas era tremendamente mais agressiva do que aquela praticada manualmente por barqueiros avulsos no leito do rio. E havia ainda a extração de barro. Assim, imensas cavas de exploração desses materiais pontilhavam longos trechos do Tietê, do Tamanduateí e do Pinheiros, tomando o lugar da várzea outrora existente, contribuindo para o assoreamento do rio. Inicialmente, a maioria dessas lagoas mantinha-se relativamente livre da poluição, mas, em meados do século XX, entretanto, passavam a receber o lixo varrido pela chuva e cargas maiores de esgotos, além das próprias águas poluídas dos rios que ladeavam, quando da época das cheias. Já nos anos 1920 Saturnino Rodrigues de Brito notara os efeitos nocivos do extrativismo para o Tietê e recomendou que se interrompessem os “abusos das escavações para retirada de areia e barro e dos cortes para lenha, nas margens e na várzea, pouco importando aos exploradores a estabilidade das obras públicas fluviais, a estagnação das águas e a exposição dos barrancos às erosões por falta de vegetação que os proteja”.83 Um Tietê mais degradado tomava mais insalubre e, em certos casos, penoso, a atividade extrativista. Os barqueiros avulsos que retiravam areia e pedregulho no próprio leito do Tietê, além da concorrência das grandes empresas e da escassez de material devido à exploração ininterrupta, se depararam, a partir do final dos anos 1920, com uma camada de lodo no fundo do leito do rio, que se estendia desde a confluência com o Tamanduateí até o encontro com o Pinheiros. Esse lodo prejudicava a extração manual de areia e pedregulho, pois diminuía o material aproveitável retirado do rio, favorecendo as explorações feitas com dragas, acessíveis apenas a quem tivesse certo capital. A única alternativa dos barqueiros avulsos, então, era subir o Tietê além do Tamanduateí, ou descer além do Pinheiros, evitando o trecho poluído. Com isso, a distância entre as áreas de extração e os portos de areia aumentava, o que exigia jornada de trabalho ainda mais prolongada.84 Brito, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo. São Paulo: Seção de Obras d’0 Estado de S. Paulo, 1926, p. 209.

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84 Seabra, Odette Carvalho de Lima. “Meandros dos Rios nos Meandros do Poder. Tietê e Pinheiros: Valorização dos Rios e das Várzeas na Cidade de São Paulo”. Tese de Doutorado, PFLCH-USP, Depto. de Geografia, 1987, p. 103.

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Nos anos 1940, segundo alguns ribeirinhos, as águas do Tietê, ao serem utilizadas na irrigação de hortaliças e plantas ornamentais, começaram a “queimar as plantas”.85 Em certos casos, os chacareiros abriam poços para regar as plantações com águas subterrâneas, como se fazia na chácara de Elvira Ginesi localizada no Canindé. A poluição tornava as cheias dos rios ainda mais destrutivas para as culturas agrícolas, ao anular o efeito benéfico que outrora exerciam sobre a terra. Quando chovia muito, segundo Francisco Teixeira, um chacareiro nascido em Portugal no ano de 1909, as águas do rio Pinheiros cobriam as plantações e, então, “se perdia tudo, Mas como “a terra ficava forte” devido ao húmus trazido pelo rio, semeava-se tudo de novo.86 Assim, provavelmente a perda da qualidade das águas também contribuiu para que muitos chacareiros que ocupavam as margens do Tietê nas áreas mais próximas ao centro se deslocassem para áreas mais afastadas da cidade, migração detectada já nos anos 1920.87 Não parecia haver dúvida, no início dos anos 1940, que o Tietê era um rio cada vez mais degradado e perigoso para a maioria dos seres vivos que se aproximavam de suas águas. Entretanto, nessa mesma época, não deixava de existir quem acreditasse que o principal rio de São Paulo e seus afluentes seriam recuperados. Ainda mais porque funcionários da própria Repartição de Águas e Esgotos manifestavam publicamente essa convicção. Em 1946, Jesus Netto, afirmava otimista que São Paulo:

não tem ainda o tratamento dos seus esgotos, por motivo das dificuldades criadas, durante quase cinco anos, pela conflagração mundial. Essas dificuldades, que ainda permanecem em parte, vêm sendo porém removidas, de sorte que dentro em breve a cidade de São Paulo terá os seus esgotos tratados, e saneados os rios que banham os seus arredores.88 Rocha, Aristides Almeida. Do Lendário Anhembi ao Poluído Tietê. São Paulo: EdUSP, 1991, p. 45.

85

São Paulo (Estado). O Rio Pinheiros. São Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 2002, p. 59.

86

Langenbuch, Richard. A Estruturação da Grande São Paulo. Estudo de Geografia Urbana. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Documentação e Divulgação Geográfica e Cartográfica, 1971, p. 118,165. 87

Jesus Netto, J. P. “Dados Sumários sobre os esgotos da Cidade de São Paulo, e Estação Experimental de Tratamento de Esgotos do Ipiranga” In: Boletim da Repartição de Águas e Esgotos, n. 17, novembro de 1946, p. 115.

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Paulo Cursino de Moura, em 1943, em uma nota de rodapé para a 2º edição de seu à São Paulo de Outrora, depois de referir-se à confluência do Tietê com o Tamanduateí, conhecida como o “cagão” e comentar a retificação do Tamanduateí, afirmava que:

São Paulo remodela-se a cada dia. Assim é que o insalubre trecho do Tietê está sendo transformado, com a retificação do rio e a construção da bela, e realmente grande - Ponte das Bandeiras. Os esgotos, em conseqüência, também serão tratados de acordo com modernos processos. Pelo que somente a evocação triste e mal cheirosa do local ficará na lembrança dos coevos!89

É provável que as gigantescas obras de retificação do Tietê, impressionantes, contribuíssem para esse o otimismo. Afinal, porque uma cidade que conseguia implementar tamanho empreendimento não seria capaz de recolher e tratar seus esgotos e recuperar as águas de seu principal rio? Tais obras criavam mesmo expectativas grandiosas, como se nota, em um artigo de Gumercindo Fleury, publicado na revista Paulistânia em dezembro de 1948:

A fita que se descortina ao nossos olhos é de uma parte do rio, já retificado. Amanhã, terminada mais essa obra de engenharia, o Tietê esplêndido será uma estrada por onde trafegarão barcos de passageiros e de mercadorias. O velho rio mais uma vez correrá em ajuda da cidade que viu nascer e embala na cavatina suave de suas águas.90

Infelizmente, a novidade da São Paulo dos anos 1940 não foi o Tietê recuperado, mas sim o aparecimento das favelas na cidade, como a da Moura, Paulo Cursino de. São Paulo de Outrora (evocações da metrópole). São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1941.

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Paulistânia, n. 26, dezembro de 1948, p. 41.

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Baixada do Penteado, Ibirapuera, Canindé, Ordem e Progresso, Lapa, Vila Prudente, Vila Guilherme, Piqueri, Tatuapé e Vergueiro, muitas delas localizadas nas várzeas do Tietê. Embora as favelas inicialmente não acolhessem ainda um grande número de moradores, quando comparadas aos cortiços ou aos bairros da periferia, davam visibilidade plena à pobreza outrora disfarçada pelas fachadas e porões dos prédios que serviam de cortiços nas áreas mais centrais ou pelo semi-isolamento dos bairros afastados. Em 1957, 50 mil pessoas viviam em 8,5 mil barracos nas favelas paulistanas. Em 1973, as favelas abrigariam 1,3% da população de São Paulo, percentual que, em 1987, chegou a 8%. Praticamente metade das 1.600 favelas da cidade, então, tinham alguma parte situada na beira de cursos d’água e por volta de um terço delas estavam sujeitas às enchentes e seus males.91 O surgimento das favelas era decorrência do agravamento da crise habitacional da cida4e, cuja população continuava a crescer. O aumento do custo de vida no país fez com que o governo federal decretasse a “Lei do Inquilinato” que congelou os preços dos aluguéis, mas provocou dois efeitos colaterais indesejados, porém, algo previsíveis em uma economia de mercado. Assim, houve um declínio do investimento privado na construção de novos imóveis destinados à locação, o que aumentava a falta de moradia. E diante da queda de sua renda os locadores aceleraram os despejos dos antigos inquilinos, mesmo os de classe média, fosse para vender seus imóveis, construir prédios de maior valor ou mesmo alugá-los por um preço mais elevado.92 Simultaneamente a essa crise, no mercado de imóveis residenciais em São Paulo, houve um boom de construções de edifícios de alto padrão na região central e mais valorizada de São Paulo. Os arranha-céus provocavam inúmeras demolições de antigos prédios, casarões e pequenas casas, demolições multiplicadas pelo início das obras viárias do governo Prestes Maia. Como muitos desses prédios demolidos serviam anteriormente como moradia, mais pessoas foram se juntar às levas de despejados da cidade. Em conseqüência, os tradicionais e numerosos 91 Bonduki, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998, p. 262; Maricato, Ermínia. “Metrópole periférica, desigualdade social e meio-ambiente” In: Viana, Gilney; Silva, Marina; Diniz, Nilo. (orgs.). O Desafio da sustentabilidade. Um debate sócio-ambiental no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 220.

Bonduki, op. cit., p. 248-249.

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cortiços paulistanos ficaram superlotados, ao mesmo tempo que a ocupação da periferia da cidade, onde tudo era precário, se intensificou. Ali, entre 1940 e 1950, aproximadamente 100 mil famílias passaram a morar em casas próprias autoconstruídas em lotes comprados geralmente a prestação, mais de 500 mil pessoas.93 Fosse porque não tinham dinheiro nem mesmo para pagar o aluguel dos cortiços ou porque as vagas neles escasseavam, fosse porque se recusavam a ir para a periferia distante, o que significava encerrar relações sociais e afetivas em sua antiga vizinhança e ficar muito longe do local de trabalho, muitas famílias preferiam ocupar as favelas nascentes. Na favela da baixada do Penteado, na avenida do Estado, que margeava o Tamanduateí, um levantamento apresentado por um deputado em 1946 indicava que cerca da metade dos moradores era proveniente da capital e 37% declararam explicitamente que haviam se mudado devido a ações de despejo ou demolição dos prédios onde moravam. Dos 172 moradores, apenas nove (5%) estavam desempregados, contando-se 47 operários, 31 empregados de serviços diversos, 27 de serviços domésticos, 22 de serventes de pedreiros, seis pedreiros, além de carpinteiros; tintureiros, motorneiros, encanadores, motoristas e sapateiros. Apenas 13% das famílias tinha renda inferior a um salário mínimo da época, enquanto 40% recebiam de um a dois e 33% malis de três salários mínimos.94 Na beira do Tietê uma das primeiras favelas a surgir foi a do Canindé. Teve início, provavelmente, na rua do Porto, estruturando-se, depois, em ruas a, b, c etc. Ocupava um terreno que pertencia à prefeitura e no final dos anos 1950 contava com cerca de 180 barracos, que ficavam parcialmente alagados toda vez que o rio transbordava. Por isso mesmo, muitos deles eram construí- dos sobre estacas de madeira acima do solo, e, portanto, menos sujeitos às águas e à umidade excessiva, mas nem todos eram assim. Quem tinha parentes ou amigos em outras partes da cidade deixava a favela na época da chuvas para só voltar em fins de março, quando as água do rio baixavam. O lugar era encharcado grande parte do tempo, o que fazia com que os homens, ao ir trabalhar, tivessem de levar seus sapatos nas mãos e arregaçar as calças até que chegassem em 93 Raquel, Rolnik. A cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo; Studio Nobel/FAPESP, 1999, p. 181, 205. Bonduki, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, fapesp, 1998, p. 262.

Bonduki, op. cit., p. 264

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locais secos. O barro que se formava nas vielas exalava um odor forte e desagradável e, além disso, os moradores da favela do Canindé tinham que aturar zombarias, já que muitos diziam que ali era a “Veneza brasileira” ou a “cidade náutica”. Os barracos ficavam cheios de pernilongos, que eram mortos com uma folha de jornal transformada em tocha e passada nas paredes infestadas.95 Para lavar as roupas de suas famílias as mulheres utilizavam uma lagoa próxima à favela, provavelmente formada pela extração de areia e pedregulho. No final dos anos 1950, agentes de saúde alertavam os moradores sobre os perigos de contraírem doenças nessas lagoas mas era difícil seguir tal orientação, pois não era fácil obter água onde viviam. Nos primeiros anos da favela do Canindé, os moradores eram abastecidos por vizinhos ou traziam água de outros locais, inclusive c o trabalho. Mas surgiu uma, depois outra torneira mantida por um “dono”, que cobrava uma taxa de cada barraco. A fila para recolher água começava cedo, era longa, o que provocava brigas e discussões. Muitas vezes a água praticamente desaparecia no cortiço da tarde, correndo apenas um “fiapo”, o que tornava a espera ainda mais demorada. Cada vez mais degradado, o Tietê tinha pouco a oferecer aos novos ribeirinhos da cidade.

95 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1960, p. 109,117. Meihy, Jose Carlos Sebe; Levine, Robert. Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: Editora da ufrj, 1994, p. 22

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O Fim 186


O Tietê foi muito celebrado em São Paulo. Sobre ele foram feitos inúmeros poemas, declarações de amor e de saudade, foi motivo para diversas pinturas, cartões postais e canções. Cronistas, intelectuais e memorialistas o citaram em suas obras e a imprensa sempre esteve aberta a artigos que o exaltavam. Em 1948 Mello Nóbrega publicou mesmo um livro sobre o rio. Pode-se afirmar que, no período em estudo e, de certo modo, até hoje, o Tietê constituiu-se em um símbolo da ambígua e cambiante identidade paulista, símbolo ao qual foram se agregando elementos de afeto de natureza diversa, que acabaram por reforçar o seu poder evocativo. Contudo, apesar de tamanho carisma, o rio foi aniquilado em todo o seu trecho superior, o que torna perturbador pensar sobre o futuro de realidades igualmente celebradas, mas nem por isso preservadas em nosso Brasil e no mundo. Caio Prado Jr. não deixou de reconhecer a importância do Tietê na história de São Paulo, mas isso não o impediu de julgá-lo um rio “pouco atraente” em meados do século passado. Em algum momento entre 1929 e 1935, Antônio de Alcântara Machado escreveu que sentia falta em São Paulo de “um rio largo, rio cheio de pontes, rio cheio de curvas, e cais, ostensivo e inevitável, que corte o miolo da cidade sem dó. Porque o Tietê é só histórico: não tem nada de urbanístico. Foge do centro, passa de largo, sem nenhuma função decorativa”. Em artigo de 1958, Elina O. Santos via os moradores de São Paulo distantes do Tietê, mas acreditava, como muitos outros, que tal situação deveria mudar quando as obras de retificação estivessem terminadas e as várzeas totalmente ocupadas.1 De fato, o Tietê agonizava no final dos anos 1950. Havia a poluição crescente de suas águas e as obras de retificação e viárias que deixavam o beira-rio Prado Júnior, Caio. “A cidade de São Paulo: geografia e história” In: Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Brasiliense, 1966; Machado, Antônio de Alcântara. Cavaquinho e Saxofone. São Paulo; Santos, Elina. O. “tietê, o rio de São Paulo” In: Azevedo, Aroldo. A cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. Sâo Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, vol. 1, p 46.

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ainda mais esburacado e atravancado, pois às cavas de exploração de areia e pedregulho somavam-se agora trechos inacabados do canal que era construído e do antigo leito abandonado. Assim, não foram poucos os ribeirinhos afastados do Tietê, que para muitos paulistanos tornara-se um lugar inacessível, não havendo mesmo porque se aproximar dele. Mas nem todos pensavam assim. Contra todo o bom senso, atletas de remo insistiam em treinar e competir no Tietê mas, em 1972, foi realizada uma última regata de despedida, pois além da água poluída havia as pistas marginais que isolavam o rio dos clubes de remo.2 Quem via o rio não apenas como uma referência espacial na cidade, mas sim como parte integrante de seu cotidiano e de sua história se recusava a abandoná-lo. E quando isso foi inelutável, a perda foi sentida. Jacob Penteado, em Belenzinho 1910, conta que:

As margens do Tietê eram sombreadas por frondosas árvores, onde pontificavam os ingazeiros, que nos forneciam seus frutos, em forma de vagem, açucarados e deliciosos. Os córregos que nele desaguavam, principalmente o Tatuapé, também nos apresentavam rica FAUna ictiológica. (...) Os passeios de barco representavam outra constante e agradável distração. Quando não conseguíamos quem nos levasse, apanhávamos um dos muitos botes que ficavam atracados no porto do Castilho, um ancoradouro de barcaças de areia ou de tijolos (...). A entrada ficava na avenida Celso Garcia, à esquerda da Capela de N. S. do Belém, e hoje serve de ligação entre a mesma avenida e as ruas que se abriram com a retificação do Tietê. Ao rever esse trecho, em 1960, tive uma bem amarga decepção. O nosso velho e querido Tietê, teatro de tantas brincadeiras e horas felizes, desaparecera. Sim, esta é a verdadeira expressão, pois não se pode mais chamar de rio aquele canal de águas sujas, poluídas e tornadas perigosas pelos detritos das numerosas indústrias que o margeiam e pelo lançamento dos canos de esgoto, águas servidas das tinturarias, desde São Miguel, onde se encontra a NitroQuímica, até os últimos limites da cidade.

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Nicolini, Henrique. Tietê: o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001, p. 78.

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O coração me constrangeu, ao lembrar-me quando nós nos divertíamos, eu e meus companheiros de infância e, mais tarde, meus filhos, que ali também aprenderam a nadar e pescar. Senti imensa pena das crianças de hoje, que jamais tiveram a felicidade de que nós gozamos, nos tempos de então. Hoje, elas têm cinema, bastante aperfeiçoado, rádio, televisão e muitas outras distrações, entretanto, não conheceram, nem conhecerão, nunca, os prazeres naturais de uma vida ao ar livre, em pleno contato com a natureza.3

Nostalgia e indignação perpassam a lembrança de Jacob Penteado, que, em 1962, ano da primeira edição de Belenzinho 1910, procurava manter viva a memória de um convívio interrompido entre os moradores e o rio. Recuperar tal dimensão perdida da vida urbana paulistana é demonstrar o que foi tomado dos moradores da cidade devido à degradação do Tietê e seus afluentes. Nota-se, assim, que a morte do rio não passou despercebida e como entre o Tietê e os moradores se criavam laços afetivos, de pertencimento. O texto explicita ainda, do ponto de vista do cotidiano dos moradraeores, uma ruptura histórica: as crianças do Belenzinho não podendo mais pescar e nadar no Tietê. E o que é pior, ganhando em troca um ambiente hostil - o que, na verdade, se repetiu em todos os bairros lindeiros ao Tietê. Com sua degradação o nado deixou de pertencer ao repertório de práticas costumeiras da maioria dos moradores dessas localidades e tornou-se privilégio daqueles que podiam freqüentar um clube - o que não era o caso da maior parte dos paulistanos, em geral, pobres. Encerraram-se também as pescarias, esvaziando-se o prato dos moradores dos bairros populares: o peixe agora vinha de longe e, quase sempre, custava caro. Nas últimas décadas do século XX, para a maioria dos habitantes de São Paulo, o encontro cotidiano e quase sempre feliz com rios, córregos e lagoas se perdera.

3 Penteado, Jacob. Belenzinho 1910 (Retrato de uma época). São Paulo: Martins Fontes, 1962; Penteado, op. cit.., p. 165.

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Agradecimentos

são muitos os agradecimentos. primeiro, à professora maria Inez Machado Borges Pinto, minha orientadora no Departamento de História da Universidade de São Paulo, onde, em abril de 2005, defendi a Tese de Doutoramento que originou este livro. Agradeço também ao parecerista anônimo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo que acompanhou a pesquisa de forma crítica e aberta, contribuindo para seu aprimoramento. Minha mãe, Marina Curto Jorge, Daniela Torres Moreti, Paulo Koguruma, Denise Curto da Silva, Claudia Martini Ferrari, Felipe Augusto Madaleno Jorge, Emilue Hsueh, Lúcia Juliani, Mariana Gonzaga, Victor Augusto Madaleno Jorge e o professor José Lima de Figueiredo e Robert M. Levine, me ajudaram quando eu pedi. Os amigos e colegas de pós-graduação Patrícia de Freitas Camargo, Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho e Cláudio Hiro Arasawa leram e discutiram comigo o trabalho, atividade das mais importantes em uma universidade. Muito obrigado a todos! Sou grato aos professores Maria Cristina Wissenbach e Elias Thomé Saliba do Departamento de História da Universidade de São Paulo, ao professor Paulo Henrique Martinez do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista/Assis e ao professor Carlos Roberto Brandão do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, integrantes da banca examinadora, pelas valiosas sugestões que fizeram durante a defesa da tese. E preciso lembrar ainda os funcionários das bibliotecas da Universidade de São Paulo que freqüentei (FFLCH, ECA, FAU, POLI, IEB, IB, FMVZ, MAE, Museu Paulista e Museu de Zoologia) e aqueles que trabalham no setor de Pós-Graduação da FFLCH; os funcionários da Biblioteca Municipal Mario de Andrade; da biblioteca da Câmara Municipal de São

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Paulo; do Instituto Geográfico e Cartográfico; da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; da biblioteca da Secretaria da Agricultura de São Paulo; da Fundação do Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo; do Instituto Moreira Salles e do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo. Sou grato à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo por me conceder uma bolsa de estudos durante a minha pesquisa e por financiar a publicação deste livro em conjunto com a Editora Alameda. Por fim, agradeço às inúmeras pessoas que conversaram comigo sobre sua relação pessoal ou familiar com o Tietê e seus afluentes, logo que souberam do tema da minha pesquisa, como foi o caso de Odila Ginesi, Durval Jorge da Silva e Ana Paula Nascimento, que gentilmente me cederam fotos suas ou de seus familiares.

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Agradeço à UMAPAZ – Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura de Paz, Departamento de Educação Ambiental da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) da Cidade de São Paulo pela segunda edição deste livro, agora em versão digital e com distribuição gratuita, livro que estava esgotado fazia anos. As conversas que propiciaram que isso ocorresse foram iniciadas com Ruth Weg e Débora Pontalti Marcondes, e, ao citá-las, estendo minha gratidão a todas as pessoas que se envolveram com a iniciativa, entre elas Mirna Bernardita Salazar Camacho, Isabella Maria Bérgamo Bertolli e Karoline Marques. Registro também meus agradecimentos à Jessica Scheer Salles e Orlando Guarnieri, historiadores formados na Universidade Federal de São Paulo, que me ajudaram a elaborar o arquivo digital da primeira edição do livro, que não estava disponível.

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janes jorge Professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo/Campus Guarulhos. É organizador do livro: Cidades Paulistas: estudos de história ambiental urbana. São Paulo: Alameda/ Fapesp, 2015.


Realização:

O projeto gráfico deste ebook utilizou as fontes Alegreya, Alegreya SC e Work Sans


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