Anne o'brien [amor e redenção 01] tempo de amar (hist 54)

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Tempo de Amar Battle-Torn Bride

Anne O’Brien

Forçada a se casar com o homem escolhido por seu pai, nada mais restou a lady Beatrice Somerton senão desistir de sua paixão por Sir Richard Stafford. Mas a morte de seu marido, lorde Somerton, em uma batalha, muda completamente seu destino. Pois Beatrice voltou a ser uma mulher novamente livre e dona de seus próprios desejos. Porém, poderá ela ter uma segunda chance de ser feliz com o homem que sempre amou, mesmo sabendo que seu marido morreu pelas mãos dele? Doação e Revisão: Andréa Digitalização: Joyce


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien

Prólogo — Eu amei você. Pretendia me casar com você. No entanto, você me traiu, Richard. Traiu o nosso amor. — Traí? O quê...? — Acho que você jamais me amou. Não passei de um flerte da Décima Segunda Noite, para ser posta de lado antes da Festa das Candeias. — Beatrice... Como pode pensar isso? Meu coração é seu... Sempre foi seu. — Suponho que eu tenha sido esquecida assim que saí de suas vistas. — Jamais. Você me desonra! — Se isso é verdade... se algum dia de fato me amou... como pôde me abandonar, permitindo o meu casamento com um homem como William Somerton? Você partiu o meu coração, Richard Stafford.

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Capítulo Um Julho de 1460. Great Houghton Hall, uma mansão de pedras douradas. Lady Beatrice Somerton seguiu uma de suas serviçais — que habilmente equilibrava canecas e uma jarra de cerveja sobre uma pesada bandeja — até o interior do grande salão. Duas outras serviçais, roubadas às pressas de suas tarefas na cozinha, vinham atrás dela com travessas de pão, queijo e fatias de carne fria. Outra trazia um prato de tortinhas de carneiro. No salão, meia dúzia de cavalheiros, sentados ou em pé, estavam conversando. Recém-chegados, suas roupas e botas estavam cobertas de poeira, devido à cavalgada matinal. As espadas e os punhais compridos revelavam que estavam bem armados. A conversa, sobre política e repleta de comentários grosseiros, cessou quando a dama entrou. Apesar da pouca idade, ela era, sem dúvida, a senhora da mansão. Embora jovem e de estatura baixa, era dona de inconfundível dignidade e discreta autoridade. Seu porte decidido deixava transparecer que estava acostumada a ser obedecida por aqueles que a serviam. Os cavalheiros que estavam sentados ficaram de pé, e curvaram-se com respeito, e até um pouco de admiração. Lady Beatrice Somerton era muito bonita e digna de ser respeitada. — Fiquem à vontade, cavalheiros. — Ela cumprimentou os presentes com um sorriso. — Suponho que uma cerveja será bem-vinda. — Muito bem-vinda. Nós lhe somos gratos, lady Somerton. Um dos cavalheiros adiantou-se e curvou-se diante dela com galanteios ensaiados. Era uma dama muito atraente, e, conhecendo Sir William Somerton, um tipo que ninguém esperaria encontrar naquela casa. A dama era muitos anos mais nova do que o senhor da mansão. Lady Somerton orientou as empregadas, que começaram a servir a cerveja, e observou o modo como elas dispuseram as bandejas e as travessas sobre a mesa de carvalho. Depois, olhou ao redor, para se certificar de que tudo estava em ordem. — Se precisarem de mais alguma coisa, cavalheiros, Betsy estará por perto. Ela indicou a serviçal à sua direita. Em seguida, Beatrice se retirou — mas, para onde? Para seus próprios aposentos, ou talvez para os jardins, Betsy supôs. O marido e seu convidado mais importante, que agora estavam a sós na sala de estar, não precisavam mais dela. Isso fora deixado bem claro. Qualquer outra necessidade dos convidados poderia ser atendida pelo eficiente mordomo, mestre Lawson. Outro cavalheiro adentrou o amplo recinto, com teto de vigas de madeira e paredes apaineladas, após ter supervisionado os preparativos do destacamento armado que os acompanhara até Great Houghton. Após retirar o chapéu e as luvas, ele os depositou sobre o baú próximo à porta; depois, passou as mãos pelo espesso cabelo escuro, que adornava o rosto impressionante. Em seguida, o cavalheiro aproximou-se da mesa, atraído pela promessa de uma caneca de cerveja para tirar de sua garganta a poeira das estradas no verão. E se deteve no centro do recinto. Assim como Beatrice Somerton, no mesmo instante. O semblante do cavalheiro subitamente ficou privado de qualquer emoção, a 3


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien cerveja tornou-se um pensamento distante em sua mente. Seu corpo ficou rígido, e as mãos se apertaram ao lado do corpo. Os olhos da dama se arregalaram, seus lábios se entreabriram de choque. O sangue desapareceu de seu rosto, deixando sua pele pálida como a renda que adornava o corpete de seu vestido de veludo. Os dedos se afrouxaram ao redor das bordas da bandeja vazia que levava para a cozinha. A tensão entre os dois se estendeu ao máximo, como um arqueiro experiente esticando a corda maleável do arco, ao se preparar para atirar uma flecha com incrível precisão. Será que a tensão era evidente para todos no recinto, como algo vivo? No entanto, como Beatrice mal se deu conta, as conversas ao seu redor prosseguiram como se nada houvesse acontecido. Os convidados continuavam concentrados na comida, na cerveja e em seus próprios interesses. Por fim, a dama e o cavalheiro proferiram algumas palavras. Mas sem importância ou relevância para quem pudesse escutá-las. Nada que indicasse a intensidade com que os corações batiam, ou o calor que tomou conta deles. Era como se, naquele instante, houvessem sido privados de todo o juízo. — Minha senhora. Eu não pensei que... — Lorde Richard. Eu não sabia que... Ruidosamente, Beatrice depositou a bandeja que estava segurando sobre a mesa ao lado. Ela se deu conta de que prendia a respiração. O dia amanhecera sem a promessa de qualquer novidade, de qualquer fato fora do comum. Nada que pudesse perturbar sua vida monótona, dia após dia, em Great Houghton. Decerto, deveria ter havido algum indício, algum aviso, algum presságio. Talvez, o clima — uma violenta tempestade — ou a presença de uma gralha, empertigada, no jardim da cozinha, trazendo consigo todos os seus terríveis presságios e avisos. Não acontecera nada para alertá-la a respeito desta — desta catástrofe! E, no entanto, ali estava, em sua própria casa, o homem que detinha o poder de virar sua vida do avesso com o simples relancear daqueles olhos negros, que estavam fixos nela nesse instante. O homem que poderia ter transformado sua vida em ouro puro, fazendo com que seu coração pulsasse de total alegria, que seu sangue fervesse de paixão diante de um mero toque dele. E o que ele fizera? Nada — exceto desertá-la. Abandoná-la para uma existência fria e solitária ao lado de um homem que a desprezava, a ignorava e a humilhava. Uma existência desprovida de amor. O dia quente de verão começara tranquilo e sem nada fora do comum. Depois, talvez uma hora após a refeição do meio do dia, Sir William Somerton atravessou o pátio e adentrou o salão de sua elegante e protegida mansão. Com as mãos fechadas ao lado do corpo, ele permaneceu parado, diante da entrada pavimentada de pedra, com os olhos estreitados. — Beatrice! — Sua voz ecoou pelo recinto. — Beatrice! O homem franziu a testa ao erguer ainda mais a voz. Não obteve resposta. A casa permanecia em silêncio. As tapeçarias penduradas nas paredes absorviam o som. — Beatrice. Em nome de Deus, onde está você, mulher? Ele já estava se dirigindo furiosamente para a escadaria, quando a dama apareceu no topo desta, deteve-se e o fitou acima do corrimão ornamentado. — Aí está você. O que estava fazendo? Por que nunca está por perto quando preciso de você? Parece que temos visitas. De acordo com os informes que recebi dos sentinelas, mais de vinte. — Estava guardando o linho com ervas para protegê-lo das traças — 4


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien explicou a dama, respondendo à primeira pergunta do lorde. Sua voz, controlada apesar do tom rude usado para chamá-la, não continha nenhum vestígio de desculpas. Ela desceu lentamente, detendo-se pouco antes de chegar ao seu fim, de modo que seus olhos, de um roxo profundo semelhante ao amor-perfeito do jardim de ervas, mas, naquela ocasião, desprovidos de sua suavidade gentil, fitassem no mesmo nível os de Sir William. Seu olhar não esmoreceu diante do dele. — Quem nos visita, meu senhor? — Lorde Grey de Ruthin. — As sobrancelhas grisalhas de Somerton se fundiram em uma linha grossa diante da perspectiva. Seus lábios finos se estreitaram ainda mais. — Seu brasão preto e irregular está evidente em todos os membros da escolta e no estandarte. Tudo muito imponente! Ele vem acompanhado de um grupo de cavalheiros e um destacamento fortemente armado. Na verdade, é uma comitiva impressionante. — Sir William fitou a esposa. — O que em nome de Deus de Ruthin pode querer? — Como se Beatrice soubesse a resposta! — Já lhe paguei meus impostos feudais deste ano. — Suponho que, em breve, ele nos dirá. Beatrice reconhecia aquele nome. Um poderoso magnata com amigos influentes. Um partidário da Casa de Lancaster, como eles, preparado para liderar o seu exército em nome de Sua Majestade, o rei Henrique VI, contra o traiçoeiro poderio dos duques de York e Warwick, que planejavam tomar a Coroa e fazer de York o rei. Diante do som dos portões se abrindo e dos primeiros cavaleiros adentrando o pátio, William girou nos calcanhares e seguiu para a porta. — Cuide dos preparativos. Agora mesmo! — O que deseja? Acostumada a falar com as costas do marido, Beatrice o seguiu tranquilamente até o corredor. — Cerveja e comida para lorde Grey e seus cavalheiros. Diga a Lawson para se encarregar dos soldados no pátio. — Com as mãos na cintura, ele deixou a casa para supervisionar a chegada. — Duvido que se demorem por aqui. Lorde Grey de Ruthin e sua imponente comitiva cruzaram a ponte sobre o fosso e adentraram o pátio cercado. Beatrice os observou da porta aberta. Belos cavalos, uniformes vistosos, o brilho do sol refletindo-se nas armas e nos equipamentos lustrados, o brasão preto e irregular tremulando arrogantemente sobre todos, e estampado no peito dos soldados armados. Imóvel, William aguardava nos degraus, deixando bem claro quem era o senhor da mansão. Ele não se deixaria intimidar em sua própria casa, embora estivesse ciente do perigo de contrariar este homem a quem devia lealdade feudal pelas propriedades prósperas de Letcham e Rosedale. Beatrice já dera as devidas instruções a mestre Lawson e, agora, sentia-se tentada a aguardar para escutar o que seria dito. Algo diferente, algo intrigante e importante, muito mais interessante do que guardar o linho e se preocupar com traças. Mas, pressentindo a sua presença, William virou-se. — Vá cuidar de suas obrigações, madame. Isso não é assunto para a senhora. Sem se dar ao trabalho de disfarçar seu ressentimento, ela recuou alguns passos. Não que William fosse notar. Como ele ousava se dirigir a ela como se fosse uma mera serviçal! Este homem era o seu marido, embora não por opção dela, um homem mais velho do que seu próprio pai o seria hoje, caso ainda 5


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien estivesse vivo. Um homem que a tratava como se ela não passasse de uma castelã que cuidava de sua casa e de suas necessidades, apesar do dote vultoso que ela lhe proporcionara, sem mencionar a aliança com os Hattons de Mears Ashby, sua própria família influente, com contatos importantes. A verdade era que ela só tinha utilidade para o marido como governanta e William com certeza não gostava dela. Ele raramente demonstrava paciência. O lorde até preferia a figura ampla de uma das serviçais para aquecer seu leito. É claro que Beatrice se sentia grata por isso. William já possuía um herdeiro de seu primeiro casamento — na verdade, dois filhos adultos para levar adiante o nome da família. De modo que Beatrice Hatton não passava de uma irrelevância — com exceção, é claro, do fato de ser uma fonte de riqueza e influência em assuntos da região. Ela exibiu os dentes em algo que em nada se assemelhava a um sorriso, mas retrocedeu na direção do salão, relutante em provocar a ira imprevisível do marido. Contudo, recuou apenas até as sombras além do vão da porta, de onde ainda podia escutá-los. Os cavalheiros, talvez seis deles, desmontaram em meio a ordens e intensa atividade. Lorde Grey se aproximou. A autoridade era tão evidente em seus ombros quanto o pesado manto que naquele instante ele retirara, devido ao crescente calor do sol, e depositou-o sobre seu cavalo. Com o rosto sério, era claramente um homem que não estava acostumado a ser contrariado. — Lorde Grey. Seja bem-vindo a Great Houghton Hall. Sir William inclinou bruscamente a cabeça, exibindo um sorriso frio que não combinava com o calor da tarde. — Obrigado, Somerton — de Ruthin respondeu com frieza equivalente. O nobre visitante deixou ostensivamente claro que não tinha tempo para formalidades prolongadas. — Preciso lhe falar. A respeito de negócios urgentes, que devem ser resolvidos sem demora. — Quando os exércitos estão em campo, todos os negócios são urgentes, meu senhor. — Ainda mais quando a batalha é iminente. Um silêncio tenso tomou conta do pátio, como se ninguém estivesse disposto a admitir a possibilidade de outra batalha. Escutava-se apenas o tinido dos arreios e os ruídos dos cascos dos animais. Sir William ergueu o queixo. — Uma batalha? — O rei está em Northampton com seu exército. — Lorde Grey segurou o cinturão do qual pendia a espada. — Está acampado entre os muros da cidade e o rio Nené. Northampton! Tão próximo! Quando de Ruthin prosseguiu, Beatrice inclinou a cabeça para escutar mais sobre a atual situação. — Fomos alertados de que o conde de Warwick está se aproximando pelo sul, trazendo consigo um exército considerável. Sem dúvida, a não ser que Warwick escolha bater em retirada, haverá conflito. E não creio que ele irá fazêlo. — O que deseja de mim, meu senhor? — Sir William franziu a testa. — Minha lealdade à causa da Casa de Lancaster e minha fidelidade ao senhor jamais estiveram cm dúvida. — Estou ciente. O rei Henrique é muito grato por isso. — De Ruthin retirou as pesadas luvas de couro e as socou na própria perna, soltando uma nuvem de 6


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien poeira. — Gostaria de lhe falar em particular, Sir William. É um assunto apenas para os seus ouvidos. Embora formulado como um pedido, o olhar intenso do nobre levou Somerton a concordar. — Muito bem. — Sir William resistiu ao ímpeto de dar de ombros. — Se puder me acompanhar... — Obrigado, Sir William. Talvez possa oferecer algo para os cavalheiros que me acompanham. Estamos na estrada desde cedo e ainda não comemos. — É claro. — Sir William deu um passo para o lado para permitir que lorde Grey entrasse na casa antes dele. Quem poderia imaginar que o apoio de lorde Grey de Ruthin viria a calhar neste interminável conflito entre as casas reais de York e Lancaster. — Tudo está preparado no grande salão para os cavalheiros de seu grupo. Haverá cerveja e comida para todos... Beatrice já havia desaparecido para providenciar suas obrigações. Fosse qual fosse o propósito da visita de lorde Grey de Ruthin, ela duvidava que ele afetaria sua existência infeliz naquela casa.

Capítulo Dois Beatrice Somerton se viu diante do último homem do planeta que esperava receber no castelo. O homem em quem não punha os olhos desde aquele dia em janeiro, há mais de dois anos, no palácio real de Westminster. Um rosto que assombrava seus dias e suas noites. Lorde Richard Stafford. Um defensor das reivindicações legítimas do rei Henrique VI. Um homem com reputação notável, devido à sua perícia como cavaleiro, tanto em torneios quanto na realidade implacável do campo de batalha. Os homens costumavam falar de suas proezas em Ludford Bridge, quando os partidários da Casa de Lancaster haviam devastado tudo à sua frente e o duque de York fora forçado a se exilar na Irlanda. Parente próximo do poderoso aristocrata, o duque de Buckingham, comandante dos exércitos do rei, lorde Richard adquirira renome como um dos mais fervorosos defensores da Coroa. E, agora que lorde Richard estava imóvel diante dela, Beatrice não sabia o que dizer, além das palavras mais mundanas. Enfim, notando alguns olhares interessados ao seu redor e, em um ato de pura força de vontade, ela voltou a exibir o sorriso educado e o refinamento da senhora de Great Houghton Hall. — Lorde Richard. Seja bem-vindo. Suponho que aceite um pouco de cerveja. Lorde Richard Stafford também procurou recuperar o controle dos sentidos desordenados. Com uma expressão imperturbável, teve presença de espírito suficiente para executar uma graciosa e formal mesura para a dama que deixara a bandeja cair sobre a mesa com dedos surpreendentemente desajeitados. Ela o fitava como se estivesse diante de uma aparição do além, em sua própria casa. O cavalheiro foi incapaz de perceber as emoções que deixaram o olhar da dama sombrio e privaram sua pele da cor delicada. — Obrigado, lady Beatrice. Adoraria um pouco de cerveja. Beatrice pegou uma jarra de cerveja e uma caneca de estanho. Depois, por comum acordo, a dama e o cavalheiro se afastaram um pouco do grupo, buscando a relativa privacidade de um vão de janela. A vidraça recém-instalada e as aberturas ampliadas, indícios da riqueza de Sir William e de sua posição na região, lhes ofereciam uma visão muito atraente dos jardins que Beatrice tanto 7


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien amava e cuidava. Mas, nem lorde Richard e nem lady Beatrice estavam interessados na beleza das rosas, no perfume inebriante dos cravos ou no encanto régio dos lírios. Sequer olharam para fora da janela. Ela serviu a cerveja e, sem erguer os olhos, passou-lhe a caneca. Richard aceitou, sem desviar o olhar do rosto da jovem. Se suas mãos viessem a roçar nos dedos dela, a mais suave das carícias ao aceitar o cálice, ninguém notaria, nem veria nada digno de comentários. Mas, Beatrice notou, e prendeu a respiração diante do frio suave que sentia na barriga. Para Richard, a sensação lembrou mais um violento golpe na boca do estômago. O desejo que sentia por ela, forte e inesperado, percorreu o corpo do cavalheiro. — Beatrice — murmurou, após um gole de cerveja para aliviar a secura da garganta, que nada tinha a ver com o calor do dia. — Você está bem? — Estou. E você? — Ela levantou os olhos. — Nada diferente do que poderia ver. E ele estava lindo. Richard preenchia seu horizonte de tal modo que ela era incapaz de tirar os olhos dele. Tudo mais no aposento parecia insignificante. Alto e musculoso, Richard postava-se diante dela com a graça elegante que ela recordava, característica do homem que conhecera na celebração da Décima Segunda Noite, na Corte real. Seu cabelo ainda era do mesmo tom castanhoescuro, com reflexos dourados quando atingidos pelos raios do sol. Adornava um rosto que não era convencionalmente bonito. Estreito e austero, com o nariz reto e o queixo firme, era o rosto de um homem que comandava o próprio destino, e o de outros homens. Um rosto ao mesmo tempo anguloso e liso. Havia nele um vestígio de arrogância do qual Beatrice se lembrava tão bem. Aquele ar dominador, e a aura de poder masculino. O rosto de um intelectual no corpo de um homem de ação. Uma combinação letal. Beatrice mais uma vez se viu capturada pelo olhar dele. Olhos claros e penetrantes sob as sobrancelhas escuras, profundos e de uma tonalidade entre o cinza e o verde, com rajadas douradas. Ah, sim. Exatamente como nos sonhos dela. Agressivos e intensos, protegidos pelas pesadas pálpebras. Um rosto impressionante, sem dúvida nenhuma. Capaz de capturar o olhar de qualquer mulher e lhe fazer suspirar. — Está feliz? Sua voz também era como ela recordava. Serena e profunda. Linda. Seus tons sedosos acariciavam os sentidos de Beatrice, de modo que as lembranças arrepiavam-lhe a coluna, levando-a novamente ao passado. Mas não podia permitir isso! Sacudindo a cabeça, ela se forçou a se concentrar no significado de suas palavras. — Você está feliz, Beatrice? Ela não conseguiu responder. Sacudiu a cabeça. Depois, em nome da sinceridade, respondeu, de modo ligeiramente brusco, pois a pergunta tocava no âmago da situação entre os dois. — Não posso me queixar. A vida aqui é bem confortável. Tenho tudo de que preciso e mais. Não me falta nada em termos materiais. Um ligeiro silêncio pairou no ar. — Você se casou? — enfim, ela perguntou. A resposta em nada poderia afetar sua vida, mas mesmo assim Beatrice se viu tensa aguardando a resposta. — Não. Não me casei. E seus pais? Gozam de boa saúde? — Meu pai faleceu ano passado, vitima de uma febre infecciosa. Ned, meu irmão, está agora à frente da família. Está morando em Mears Ashby, com a 8


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien esposa e um filho pequeno. Minha mãe, lady Margery, mora com eles. — Seguiuse uma ligeira hesitação, para reprimir um detalhe sem importância. Depois, ela prosseguiu baixinho: — Ned jamais teria me forçado a desposar William Somerton só porque sua propriedade se situava à margem da nossa. Não havia nada que Richard pudesse dizer. Ele ergueu uma das mãos, como se fosse acariciar-lhe a face, e depois a abaixou. Não podia. Seria comprometedor demais. — Ele... Somerton a trata bem? — Ele não me bate. Essas palavras eram reveladoras. Beatrice ergueu a cabeça. O orgulho lhe empertigou as costas. — Você merece ser amada. Ele a ama? — Richard insistiu. — Não. Ele recebeu um excelente dote. E a conexão com os Hatton. Era tudo que ele queria. Não precisa de mim. Beatrice não pôde evitar que os dedos se entrelaçassem. Eles estavam esbranquiçados devido à pressão, mas ela teve cuidado para que seu rosto não traísse nenhuma expressão. Lorde Richard sabia que não deveria perguntar — mas também sabia que precisava saber a resposta. — Ele trata você com consideração? Pega de surpresa pela indagação tão direta, ela o fitou. Sabia o que ele queria dizer, e respondeu com a costumeira sinceridade. Não podia mentir para este homem que era dono de cada suspiro seu. — Ele não procura a minha cama, meu senhor. A resposta foi praticamente um sussurro para que ninguém mais pudesse escutar, mas para Richard foi bastante clara. — Ah, Beatrice... Não havia nada a ser dito. Nada que expressasse pesar pelo fato de ela ser prisioneira de um casamento sem amor, ou que explicasse a estranha sensação de alívio que lhe relaxava os músculos. Como ela era linda. Os anos haviam lhe dado um brilho de experiência e maturidade, polindo aquele charme imaturo que, a princípio, o havia atraído. Como a senhora de Great Houghton, seu cabelo escuro estava preso para trás, coberto por um véu transparente, elegante e de bom gosto. Ele sabia que, quando soltos, seus cachos caíam sobre os ombros. Se ela permitisse, eles se enroscariam em seus dedos. Macios como a seda, fortes como um filamento de prata. Beatrice tinha estatura mediana, o que Richard considerava a altura perfeita. Sua cabeça poderia descansar nos ombros dele, enquanto os braços facilmente lhe envolveriam a cintura esbelta. Sua esperteza e agilidade lhe chamaram a atenção pela primeira vez nas brincadeiras tolas da Décima Segunda Noite. A pele clara, que ele tanto ansiava tocar, exibia agora um suave rubor. Os olhos escuros, quase roxos, com cílios compridos, davam a aparência de calmos e contidos, até se incendiarem com fúria ou paixão, como ele já pudera comprovar por si mesmo. Beatrice não era uma dama submissa e tolerante. Ele não pôde deixar de se perguntar como ela reagira ao receber Somerton por marido. Provavelmente, nada bem. Ela decerto teria reagido com veemência às tentativas do lorde de podá-la e de lhe domar o espírito. Mas, enquanto Somerton não decidisse utilizar o chicote... Lorde Richard esforçou-se para tirar da cabeça o pensamento desagradável. A relação de Beatrice com o marido, por mais velho, frio e egoísta que fosse, não era de sua conta. 9


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Ele se esforçou em se concentrar no adorável rosto voltado para ele. Uma boca bonita, com lábios carnudos, que sorriam com facilidade. Sua voz era baixa e rouca. O azul profundo do vestido lhe acentuava o colorido glorioso. Ele a desejara antes; e a desejava agora. Seu corpo enrijecia-se por ela, forçando-o a respirar profundamente, em uma tentativa se resistir à voracidade ardente. Mas, na essência, nada mudara entre eles. O pai de Beatrice recusara sua oferta de casamento. Agora, ela pertencia ao marido. Não havia futuro para os dois. Ela não deveria sequer pensar nisso. — Beatrice... Não devo falar sobre o que se passa no meu coração. Não seria honrado. — Então, eu falarei do que se passa no meu. Ali estava a confiança da qual ele se recordava, a centelha em seus olhos, o espírito forte que o encantava e intrigava. Por um instante, Beatrice desviou o olhar, fitando o jardim. Mas, quando olhou novamente para ele, não havia nenhum traço de satisfação, de amor no seu rosto. Os lábios estavam comprimidos em uma linha fina, os olhos cheios de dor e raiva. Suas palavras de reprovação tiveram o mesmo efeito de uma bofetada na face de Richard. — Eu o amei. Pretendia desposá-lo. Como pude me enganar tanto? Você me traiu, Richard. Traiu o nosso amor. — Traí? O quê...? — Tive muito tempo para pensar nisso... E acho que jamais me amou. — A voz dela falhou um pouco, depois, rapidamente, voltou ao controle. Com certeza não havia lágrimas naqueles olhos zangados. — Acho que não passei de um flerte da Décima Segunda Noite. — Beatrice... Como pode pensar isso? — Ele estava perplexo. — Meu coração é seu... Sempre foi seu. Richard segurou-lhe a mão, independente de quem pudesse ver a cena. A dama não ficou impressionada. A bofetada transformou-se em uma lâmina afiada retorcendo-se no coração dele. — Suponho que eu tenha sido esquecida assim que saí das suas vistas. Suponho que minha família não era importante o suficiente para você buscar uma aliança. — Jamais! Mas, ela se mostrou implacável. Retirou os dedos da mão do homem como se aquele toque a queimasse. — Minha mãe me avisou que isso acabaria acontecendo. Deveria saber que não se pode confiar nos homens. O sangue gelou nas veias do cavalheiro. Um tremor de fúria percorreu-lhe o corpo. — Como pode dizer algo assim? Como pode ter tão pouca consideração por mim? Ele revirou a mente em busca de algo que pudesse dizer para provar o seu amor, que pudesse extraí-lo deste fosso infindável que, sem aviso, se abrira sob seus pés. Pôs a mão dentro da túnica, através da abertura do pescoço, e retirou um pequeno embrulho envolto em veludo. Estendeu-o para ela. — Se não a houvesse amado, Beatrice, se ainda não a amasse, por que ainda andaria por aí com isso próximo ao meu coração? Por que haveria de tê-lo guardado e valorizado se quem me deu nada significasse para mim? Era um cisne, pequeno o bastante para caber na palma de sua mão, grande o bastante para visualizar os entalhes na peça de artesanato. Ele fora feito de 10


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien uma peça de marfim; com o tempo adquirira uma tonalidade creme. As penas, as asas e o peito, com suas magníficas curvas suaves e pontas duras, haviam sido entalhados pelas mãos de um mestre. Uma obra-prima de observação e habilidade. Os olhos, o bico e os pés eram de ouro; as garras e a ponta do bico foram destacadas com esmalte preto. Era uma obra representativa da Casa de Lancaster, dada a um protetor de Sua Majestade, como deixava evidente a coroa dourada ao redor do cisne. Presa à coroa havia uma pesada corrente de ouro, talvez um símbolo do compromisso de seu dono com a causa. A corrente terminava em um anel, para prender a peça na roupa com um alfinete, a fim de impedir a sua perda. Uma jóia excepcionalmente distinta, tão apropriada para um homem quanto para uma mulher. — Eu me lembro do dia em que você me deu essa jóia. Um legado dos Hatton, você me disse. E você me deu como símbolo de seu amor. E eu o guardei, uma recordação inestimável da dama que tem nas mãos o meu coração. — Eu me lembro. Mas não sabia que minha devoção seria maior do que a sua. — Beatrice! — lorde Richard estava perplexo. — Você é a luz de minha vida. Será que não sabe disso? Lady Beatrice Somerton não estava disposta a se acalmar. — Não, Richard. Que adianta negar? Se isso é verdade... se algum dia de fato me amou... como pôde me abandonar, permitindo o meu casamento com um homem como William Somerton? Você prometeu vir me buscar, e, no entanto, jamais o fez. — Não! Não foi isso que... Mas ela não estava disposta a escutar. A tristeza dos últimos dois anos de um casamento malfadado endurecera o seu coração. — Você partiu o meu coração, Richard Stafford! — Beatrice... Beatrice jamais saberia o que lorde Richard tinha a dizer em sua defesa, pois, com um súbito impacto de pesadas botas no chão, e o abrir e fechar de portas, lorde Grey adentrou o salão, vestindo suas luvas. Seus lábios estavam firmemente cerrados, as costas empertigadas, os olhos faiscando, mas ele mediu bem as palavras. Seu olhar vasculhou o aposento. — Stafford! — Ele fez um sinal para que lorde Richard se aproximasse. — Os cavalos. Partiremos imediatamente. — Sim, meu senhor. Lorde Grey deixou transparecer sua impaciência, quando Richard hesitou ao lado da dama e, depois, virou-se para o anfitrião. — Devo lhe agradecer por sua hospitalidade, Sir William. Seu tom de voz não condizia com suas palavras. — Foi um prazer, meu senhor. — Qualquer um que olhasse para o rosto de Somerton perceberia que isso não era bem verdade. — Lamento que minha resposta não tenha sido do seu agrado. — É. Não foi mesmo. Evidentemente julguei mal a força de suas convicções. Espero que não venha a se arrepender de sua decisão. — Como já deixei bem claro, meu senhor, minha decisão não é definitiva. Tenho de considerar cuidadosamente onde repousam meus deveres e minhas lealdades. — Assim como todos nós — retrucou lorde Grey. — Suponho que também vá 11


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien considerar cuidadosamente onde repousam seus interesses. Apenas um tolo se alia no lado perdedor. Sir William permaneceu em silêncio diante desta resposta enigmática. Depois, perguntou: — Tem certeza de que haverá uma batalha, meu senhor? — Sem dúvida. Em dois ou três dias. — Lorde Grey gesticulou bruscamente na direção dos cavalheiros, que ainda observavam e escutavam a conversa com evidente interesse. — Os dois exércitos estão próximos demais para recuarem. — Não há possibilidade de negociação? — Warwick pode até se dispor a fazê-lo, mas Buckingham jamais permitiria que ele chegasse perto do rei. Lorde Grey sequer tentou disfarçar seu desprezo pelo rei Henrique. — Infelizmente, nosso rei consagrado nem sempre sabe o que diz. Sir William ignorou o comentário que beirava a traição, porém sua resposta permaneceu conciliatória. — Tomarei minha decisão, meu senhor, e a informarei ao senhor. — Muito bem. Aconselho-o a não me desapontar. — Lorde Grey deu as costas a Sir William. — Minha senhora. — Ele curvou-se bruscamente na direção de lady Beatrice. — Cavalheiros. Vamos. Sem mais nada dizer, lorde Grey girou nos calcanhares e marchou na direção da porta, deixando suas palavras ecoando na mente de Beatrice. Uma batalha. Em menos de uma semana, e próximo dali. — Então, estará engajado no combate? Seu coração lhe dizia para ir até Sir Richard e tocá-lo, enquanto ele pegava sua espada e sua capa, depois segui-lo até a porta. Mas se recusava a fazê-lo. Não podia fazê-lo. Não acabara de lhe dizer que seu coração fora partido por ele? — Estarei. — Será perigoso. Pode acabar ferido. — Sem dúvida. — A intensidade em sua voz se tornava mais evidente a cada resposta. — Gostaria de pensar que se importa com o que possa me acontecer. Mas já não tenho tanta certeza. Por um longo instante ela fechou os olhos, em uma tentativa de apagar as terríveis imagens de sua mente. Como era possível desejar o toque dele e ao mesmo tempo acusá-lo? Sim, ele quebrara a promessa que lhe fizera. Mas ele poderia correr perigo em uma batalha nas cercanias de sua casa, talvez tornar-se prisioneiro, ou ser ferido, quem sabe até sofrer um ferimento fatal que lhe custe a vida... E ela talvez jamais viesse a saber. Não poderia suportar. Sem entender muito bem, Richard pôde perceber o conflito íntimo da dama. Sir William e lorde Grey haviam seguido para o pátio. Os cavalos estavam sendo trazidos dos estábulos, e a escolta já estava montada. Ele pôde escutar a voz impaciente de lorde Grey gritando o seu nome, requisitando sua presença. Deteve-se no vão da porta, olhando para trás, por sobre o ombro. — Preciso ir, Beatrice. Mas, não posso partir assim. Precisamos conversar. Não há tempo agora. Mas, após a batalha, com a ajuda de Deus, eu voltarei. — Era tarde demais agora. Tarde demais para explicações. — Eu jamais a traí, nem a abandonei. Quem dera fosse possível ficamos juntos. Que eu pudesse encontrar um modo de fazer isso acontecer... Não. Em nome de Deus! Ele não podia deixá-la com essa questão pairando no ar. Contra todos os preceitos do bom senso, Richard cruzou novamente o 12


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien recinto na direção da dama, passou o braço ao redor de sua cintura e a puxou para si, beijando-a. Não foi um encontro gentil de lábios. Não havia nenhuma lembrança de ternura, nem a promessa de um doce futuro. Era apenas uma manifestação arrasadora de desejo. A princípio, Beatrice resistiu, empurrando-o pelos ombros, com a boca fria e indiferente, indignada pelo modo como ele a tratava. Porém, Richard a puxou mais para perto de si, até ela sentir a potência rígida de seu corpo de encontro à maciez do dela. — Beatrice, eu quero você... E Beatrice não teve como não saber disso. Ela estremeceu diante da reação física primordial do corpo dele, que foi na mesma hora espelhada pelo dela. Incansável, a boca de Richard se apossou da dela até que seus lábios se entreabriram diante da insistência do cavalheiro. Foi um ataque de paixão descontrolada, repleta de dor, perda e uma terrível incerteza. De uma sensação de posse que jamais poderia ser concretizada. De uma separação que os feria até a alma. Uma paixão que percorreu as veias de ambos, chegando aos corações, deixando-os incendiados. Depois, tão subitamente quanto a tomara nos braços, Richard a soltou, receando prolongar a intimidade. — Eu voltarei. Não permitirei que este mal-entendido permaneça entre nós. Lembre-se disso, independente do que o futuro nos traga. Meu amor e devoção são seus. Devido a essa promessa, ficarei com o cisne dos Hatton. Curvando ligeiramente a cabeça como forma de despedida, ele recolocou o embrulho de veludo no interior da túnica, e, incapaz de dizer qualquer coisa, deixou o recinto. — Richard... Com a angústia pesando no peito, ela estendeu as mãos, dominada pela necessidade de pedir perdão. Mas ele já havia partido. O que não lhe deixou outra opção a não ser ficar ali assistindo, as palavras de Richard gravadas em sua mente, ele pegar as rédeas das mãos de um cavalariço e montar na sela de seu magnífico cavalo escuro. Sem olhar para trás, Richard virou o animal, atravessou os portões e cruzou a ponte sobre o fosso. Ignorando o bom senso, ela subiu correndo até o parapeito da muralha para continuar olhando-o, até que a nuvem de poeira foi gradativamente engolindo o pequeno grupo de cavaleiros, ao longe. Ela levou os dedos aos lábios, tentando reter a lembrança do contato da boca de Richard na sua. Beatrice ainda podia sentir o calor tomar conta de cada centímetro de seu corpo. Ainda podia sentir o gosto dele. Enfim, não foi capaz de conter as lágrimas, mas tratou logo de enxugá-las. Ela não choraria, nem por ela e muito menos por ele. Mas... — Temo por você — murmurou. — Eu o amo, Richard Stafford — admitiu. Porque, apesar de tudo, não podia negar que ainda o desejava, ainda ansiava por senti-lo, a força do seu corpo, as suas carícias ousadas. E isso só tornava pior o modo descuidado como fora abandonada. Agora ele realmente a deixara. Duvidava que algum dia fosse vê-lo novamente. Ela sequer se despedira dele, apenas o deixara com a lembrança de suas palavras ríspidas e acusações amargas. Eu voltarei. Que Deus permitisse que sim. Porque ele levara consigo o presente que ela lhe dera, e o beijo dele lhe tocou o coração. Tudo que podia fazer era se apegar à esperança de que seu amor por ela ainda fosse tão forte quanto no passado. — Beatrice! 13


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Todas as emoções foram logo postas sob controle. Com o rosto transformado em uma máscara impassível, ela desceu até o pátio, onde Sir William a aguardava. Seu mau humor obviamente ainda não havia melhorado. Na verdade, a visita de lorde Grey parecia só ter servido para piorá-lo. — Traga mais cerveja para a sala de estar. E uma jarra do melhor vinho. Agora mesmo. — Quando ela entrou, ele ainda completou: — Mande Lawson trazer. Não preciso mais de você hoje. Sem dizer uma palavra, ela fez a vontade do marido. Não importava. Nada mais parecia importar diante da perda que lhe apertava implacavelmente o coração. Lorde Richard Stafford afastou-se de Great Houghton cavalgando. Os sulcos ao lado dos olhos e da boca estavam bem evidentes. Só conseguia pensar na mulher que acabara de questionar sua honra e sua integridade. Há cerca de dois anos, por acaso comparecera à tradicional festa na corte do rei Henrique, em Westminster. E fora lá que pela primeira vez pusera os olhos em Beatrice Hatton. Quanto tempo fora preciso para se apaixonar por ela? Apenas o suficiente para mergulhar nas profundezas de seus olhos cor de violeta, e se afogar neles. A princípio, ele observara de longe sua participação alegre na dança, sua habilidade audaz ao montar um cavalo para a caçada. Sua felicidade em tudo que fazia. E, com o sangue fervendo, ele se vira atraído por ela. Foi só na competição de arco e flecha que a abordou pela primeira vez, encorajando-a a responder à sua lisonja sutil, divertindo-se com a sua resposta inocente, vendo-se cativado pela força vital indomável, pelo encanto translúcido. Alegre e inegavelmente linda, ela atraía todos os olhares, mas, fora para ele que a dama olhara. Fora a ele que ela concedera uma sucessão de danças. Agora, ao se afastar de Great Houghton, lorde Richard recordava-se dela, quando Beatrice se sentara entre a mãe sorridente e o pai carrancudo, observando as danças, o desejo de participar evidente em cada curva de seu corpo, no bater de seu pé no chão. Ela usara um vestido de seda de cintura alta, com a bainha enfeitada de pele e um generoso decote. A saia farta com certeza dificultaria a dança, porém, com sua graça e agilidade naturais, ela não permitiria que isso a atrapalhasse. O cabelo estava coberto por um véu comprido, preso por uma faixa cravejada de gemas, que no conjunto enfatizava o lindo rosto oval, enquanto a seda pálida atraía a atenção para seus olhos gloriosos. Foi naquele instante que flautas, cornetas e tambores começaram a tocar uma melodia popular, e Richard soubera que tinha de dançar com ela. De modo que abordara Sir Walter Hatton, sério e ameaçador, apesar da ocasião ser festiva. — Com a sua permissão, Sir Walter, gostaria que sua filha me acompanhasse nesta dança. Sir Walter franzira a testa, repugnando a elegância suave do jovem cortejador que se curvava tão graciosamente na direção de Beatrice. Mas ele não poderia recusar o pedido abertamente, sem motivar comentários. Stafford possuía poderosas conexões. Além do mais, lady Margery sorrira em sinal de aprovação, e Beatrice cutucara ligeiramente o braço do pai. De modo que, relutantemente, Sir Walter teve de aceitar. — Se ela assim o desejar, cavalheiro. É claro que ela desejava. Seu rosto se iluminou. Ela se levantou antes que o pai pudesse mudar de ideia, e pousou a mão sobre a de Richard, para que ele a conduzisse à pista de dança. 14


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien — Achou que eu ia recusar? Os dedos dela se fecharam ao redor dos dele, e seus dentes brilharam em um sorriso de pura alegria. — Não, mas pensei que seu pai recusaria. Ela olhou para trás e percebeu que o pai permanecia carrancudo, fitando o divertimento em geral e aquele casal em particular. — Ele não gosta muito da Corte. Está aqui apenas por dever, e por lealdade ao rei. Ele desconfia que todos os cortesões sejam donos de sorrisos vazios e palavras falsas. Mas por que ele haveria de recusar algo tão trivial como uma dança? — Talvez tenha planos diferentes para a linda filha. — Ela franziu ligeiramente a testa. — Não entendo o que pretende dizer, meu senhor. Planos diferentes do quê? — De a senhorita se tornar a minha amada. De ser minha esposa. Ela o fitou nos olhos. Seus lábios se entreabriram de choque. — Meu senhor... Sinceramente... — Jamais teria acreditado ser possível eu me apaixonar perdida e irremediavelmente pela senhorita, ou por qualquer outra mulher, em tão pouco tempo. Mas é o que aconteceu, srta. Hatton. O que pensa a este respeito? Será que existe mesmo amor à primeira vista? — Eu... Eu me sinto lisonjeada, meu senhor. — Durante a dança, Beatrice afastou-se dele, apenas para retornar um instante mais tarde, e, demonstrando total confiança, pousar sua mão na dele. — Pois eu estou lisonjeando-a — ele prosseguiu, notando com satisfação o rubor de suas faces. — Como poderia deixar de lisonjear uma dama tão adorável? Mas tudo vem do fundo do coração que tem essas mãos delicadas. Ele apertou a mão dela ao se aproximarem ainda mais no decorrer da dança. — Lorde Richard! — Srta. Hatton! Eles foram forçados a se separar novamente. Porém, ela jamais tirou os olhos dele. Instantes depois, estavam juntos mais uma vez, com um dos braços dele firmemente ao redor da cintura dela, enquanto executavam os passos animados. — Acho que me apaixonei pela senhorita. O que acha disso? Ela o fitou. — O seu coração está batendo com tanta força quanto o meu, meu senhor? — Sem dúvida, milady. Ele bate pela senhorita. — Neste caso, acho que pode ter razão. E ele tinha mesmo. Em algum momento entre a festiva dança natalina e os passos complicados da alegre pavana, ele havia se apaixonado. Tão simples e fácil assim. Para um soldado adepto das táticas militares não fora desafio algum organizar vários encontros secretos com a dama. Encontros nos quais ele conseguia convencê-la a aceitar um abraço ou até um beijo. Apenas manteve a promessa de que sua inocência não se perderia. As emoções de Beatrice também estavam à flor da pele e ansiavam por mais do que um mero beijo roubado. Ele queria o casamento, e ela também. Eles haviam descoberto uma galeria discreta, pouco mais do que um corredor entre dois aposentos no enorme Palácio de Westminster. Porém, dispunha de assentos sob a janela e era frio o suficiente para que só fosse usado 15


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien apenas em caso de extrema necessidade. Esse local testemunhara as trocas de juras de amor dos dois. Certa vez, quando a dama estremecera devido à corrente de ar frio, ele retirara seu manto de peles e a envolvera no calor dele. Beatrice suspirara de prazer e se aconchegara em Richard. Até que um cavalheiro e sua dama passaram por eles, lançando-lhes olhares de esguelha e sorrisos maliciosos. — Devemos ir. Acho que não deveria ficar sozinha com você. Minha mãe não aprovaria. Ela apertara o braço dele com os dedos nervosos. — E seu pai provavelmente me expulsaria do palácio a chibatadas! — Richard sorrira, compreensivamente. — Minha adorável Beatrice... Será que poderia me conceder um pequeno privilégio antes de irmos? — Talvez. Os dentes da moça brilharam na escuridão. — Seu cabelo, milady. Será que me permite soltá-lo? — O que minha mãe diria? Com certeza desaprovaria. — Mas Beatrice riu diante dessa perspectiva. — Muito bem, querido Richard. Se conseguir. Porém, devo alertá-lo. Não é uma tarefa fácil. Então ele se pusera a lutar com os finos fios dourados que mantinham no lugar o ornamento de cabeça. Removendo-o cuidadosamente, ele o pôs de lado. Depois, o véu transparente. E, por fim, os grampos que prendiam o cabelo. — É mais fácil vestir a minha armadura! — ele se recordou de ter murmurado, ao deixar cair os grampos no chão. — Pensei que meu senhor seria um homem mais hábil — ela zombou, censurando de forma tolerante a falta de jeito dele. — Costumo ser. — Ele deu de ombros displicentemente, mas foi incapaz de conter um sorriso arrogante. — Mas, milady, precisa saber que, nesta situação, minhas mãos estão frias, e meus dedos pouco ágeis. Um leve beijo a silenciara finalmente. E seu cabelo enfim se soltara. Ele caíra sobre os ombros de Beatrice e lhe descera pelas costas. Richard enroscara os dedos nele, enquanto os cachos macios, de um castanho profundo, brilhavam devido à luz fria que vinha da janela atrás deles. — Eu me lembrarei disso. O cavalheiro curvou-se para pressionar os lábios sobre os cabelos, e depois alisou a face com eles. — Alguém está vindo! Ao escutar o ruído de passos distantes, Beatrice lhe cutucara o braço. Uma situação tão comprometedora deveria ser evitada por uma moça bem-educada. De modo que lorde Richard escondera os fios e o véu sob a saia farta da moça, depois cobrira a cabeça dela com o capuz de seu manto, protegendo o seu rosto de olhos curiosos. Ela era jovem, e ele tinha de ter muito cuidado com a reputação imaculada de Beatrice. Aquela fora a última vez que ficaram a sós. A última vez que puderam falar livremente, longe do terrível constrangimento do seu encontro final, nos aposentos temporários da família de Beatrice, em Westminster. Ele jamais tivera a oportunidade de perguntar que desculpa a dama dera à mãe por retornar sem o véu. Enquanto cavalgava para longe de Great Houghton, o sorriso em seus lábios era amargo. Porque ele estivera correto em sua primeira impressão de Sir Walter 16


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Hatton. O cavalheiro preferiria entregar a filha a um homem de seu próprio universo restrito, do que a um cortesão frívolo, mesmo que tal cortesão fosse um Stafford, com todas as conexões e ligações familiares que vinham com o nome, além da vantagem adicional da reputação que conquistara como soldado. De modo que Beatrice Hatton, que lhe roubara o coração, fora afastada da Corte e de suas influências fúteis e para um casamento, para um homem que não a merecia como esposa. Sir William Somerton, envelhecido antes do tempo, egoísta, impaciente, demonstrando, em cada gesto, cada palavra, a evidente soberba, não era um marido digno de uma jovem cheia de vida e com o espírito alegre como Beatrice. Mantendo sua promessa a Beatrice, ele se despedira da Corte e seguira para Mears Ashby, determinado a enfrentar Sir Walter, reivindicar sua dama e levá-la para sua própria casa. Mas não passara do pátio. Mal chegara a desmontar. Sir Walter não fora muito hospitaleiro. — Estou aqui para pedir que reconsidere sua decisão, Sir Walter. — Lorde Richard. O senhor não estava sendo esperado. Por mais que lhe admire a tenacidade, minha decisão já foi tomada. Não mudarei de ideia. — Eu estou disposto a fazer uma generosa oferta para ter Beatrice como minha esposa. — Não estou interessado no nome Stafford e nem em qualquer oferta. Somerton é um homem muito influente por estas bandas. — Será que posso ver sua filha? — Não, não pode. — Será que não posso sequer me despedir? — Àquela altura, Richard já buscava qualquer desculpa para ver Beatrice. — Não. Ela não está aqui. Está na casa do novo marido. — O quê? Já se casaram? Ele ainda podia se recordar da sensação amarga de ter chegado tarde demais. A resposta brusca de Sir Walter não dava margem para concessões. — Não. Ela é convidada da família do futuro marido. Está costurando as roupas do casamento e coisas do gênero. Trabalho de mulher. Ela permanecerá lá até a cerimônia. Tudo já foi acertado entre Somerton e eu, e todos os acordos foram assinados. Minha filha não voltará mais para cá. Tudo isto deixara Richard perdido, sem argumentos. Sem ter o que fazer. A não ser que pretendesse bater à porta do futuro noivo e exigir a noiva para si. Fugir com ela no lombo de seu cavalo e desposá-la diante de forte oposição e transgredindo acordos válidos aos olhos da lei. Talvez fosse o comportamento apropriado, e romântico, para as canções dos menestréis sobre o amor cavalheiresco e a devoção eterna, mas, na verdade, só faria manchar o nome da dama e a sua própria honra. Ele retornara cabisbaixo para Londres. Aparentemente, Sir Walter jamais contara a Beatrice sobre a visita dele, a insistência de seu pedido. Bem, isso ele poderia consertar. Mas não havia nada que Richard pudesse fazer para mudar a situação, nem no passado e nem agora. Beatrice estava tão fora de seu alcance quanto as damas da antiga mitologia que o fitavam com os olhos vidrados e as bocas sérias das tapeçarias na sua casa em Elton Marsh, bordadas por mulheres da família Stafford, há muito mortas. Richard amaldiçoou a memória do falecido pai de Beatrice, que havia rejeitado a sua própria reputação imaculada, sua posição na Corte e o sangue nobre dos Stafford que corria em suas veias, de modo tão arrogante. Escolhera as conexões 17


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien de Somerton e a expansão de seu poder local, visto que as propriedades dos Hatton e dos Somerton eram adjacentes. Sem dúvida nenhuma, a política local fora colocada na balança, em contraposição aos próprios desejos e à felicidade de Beatrice. Richard apertou os dedos nas rédeas, o que fez com que seu garanhão jogasse a cabeça para trás e se rebelasse diante desse tratamento incomum. Isso serviu para trazê-lo de volta à realidade. Deliberadamente, o cavalheiro fez um esforço para se concentrar em questões mais imediatas. Tais como sua desconfiança crescente nos interesses de lorde Grey de Ruthin. A razão da presença de Grey em Great Houghton. Sua evidente fúria diante da resposta de Sir William. Jamais houvera suspeitas concretas quanto à lealdade de Grey ao rei Henrique, mas talvez, no futuro, seria melhor ficar de olho em lorde Grey de Ruthin. Lorde Richard deveria relatar suas suspeitas a seu primo, o duque de Buckingham, responsável por sua presença ali, no cortejo de lorde de Ruthin. Com os olhos estreitados, Richard fitou os ombros rígidos de lorde de Ruthin, pouco adiante, como se fosse capaz de enxergar as ambições do homem através de sua túnica. Nas últimas semanas, de Ruthin estivera muito ocupado em reuniões e discussões a portas fechadas com um surpreendente número de lordes partidários da casa de Lancaster. Lorde Richard suspirou, exalando lentamente o ar dos pulmões. Com uma batalha tão iminente, era crucial que se concentrasse em seus deveres para com a Coroa. Não tinha o direito de colocar Beatrice Hatton, sua atual e futura felicidade, à frente da segurança de seu rei. Ou, pensando bem, considerar sua própria felicidade um assunto de suprema importância. Lorde Richard demonstrou ser péssima companhia durante a cavalgada até o quartel-general dos partidários de Lancaster, em Northampton. Após algumas respostas curtas e atravessadas, seus companheiros de nobreza decidiram deixálo em paz.

Capítulo Três Na manhã seguinte à visita de lorde Grey, Sir William deu início aos preparativos para a iminente batalha. Rickerby, o comandante da pequena guarnição em Great Houghton, foi nomeado destinatário de instruções sucintas. Seus soldados deveriam preparar as armas, cotas de couro e capacetes. Beatrice também fora instruída a supervisionar os combatentes uniformizados que jurariam lealdade à família Somerton. O grifo prateado, com as asas abertas, em contraste com o fundo azul-escuro, começou a se espalhar pelos homens da região. Mensageiros foram enviados para os vassalos nas mansões da redondeza, para informá-los de que seu senhor exigiria a devoção feudal deles na batalha. A própria armadura de Somerton foi desempacotada por seu escudeiro, que a limpou, poliu e a deixou pronta para ser vestida nos aposentos do lorde. Ao seu lado estavam, o elmo com visor e proteção para o pescoço e a garganta. Sua espada foi afiada. Depois, tudo que tinham a fazer era esperar. O que proporcionou a Beatrice muito mais tempo do que necessitava para se preocupar, pensar e recordar. Era inevitável que as imagens que lhe invadiram a cabeça fossem justamente aquelas da ocasião em que vira lorde Richard Stafford pela primeira vez. Intimidada como estava por sua visita à Corte Real e pelo esplendor da ocasião, ela ainda notou a bela figura do lorde. De longe, o observara e admirara. 18


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Discretamente, é claro. Que interesse uma jovem de propriedade pequena poderia despertar naquele homem, quando a família dele tinha acesso constante ao rei? Ainda jovem — na realidade, apenas alguns anos mais velho do que seu próprio irmão, Ned — lorde Richard ostentava autoridade e reputação brilhante, com a mesma facilidade com que montava a cavalo nas competições do torneio de Natal, e com equivalente sucesso. Era alvo de inveja e admiração, tanto dos homens quanto das mulheres. Lorde Richard Stafford poderia conseguir uma esposa onde bem entendesse, ou até uma dama disposta a compartilhar de sua cama em um acordo meramente carnal, se assim o desejasse. Mesmo assim, ela se viu incapaz de tirar os olhos dele. Notava-lhe a presença cada vez que ele adentrava o recinto. O corpo dele parecia ter sido feito para a moda da época. Beatrice ainda podia vê-lo em sua mente, de pé entre um pequeno grupo de conselheiros reais, com uma túnica cor de damasco, que ia até a altura das coxas, as botas de couro de cano alto e a calça justa, feita da mais fina lã. Um chapéu de copa baixa, com uma jóia brilhante, presa à aba virada, chamava a atenção para o rosto dele. Beatrice supunha terem sido os olhos claros e as sobrancelhas escuras, semelhante a um falcão do pai, que a deixaram encantada. Quando ele tomara a mão de uma das damas da corte para dançar, ela conheceu, pela primeira vez em sua vida adulta, a pontada desagradável do ciúme em seu coração. Mas é claro que ele sequer olhava para ela. Um Stafford jamais olharia para uma menina que mal acabara de largar as saias da mãe. Até certo dia. Beatrice não pôde deixar de sorrir diante da lembrança daquele dia, mais ensolarado do que os outros, quando alvos de arco e flecha haviam sido erguidos em um dos pátios, para oferecer algum tipo de entretenimento aos convidados que não iam à caçada. Todos que assim o desejassem, inclusive as damas, eram bem-vindos a participar. Treinada pelo irmão com afinco, Beatrice demonstrou confiança ao selecionar um dos menores arcos compridos. Tudo que precisava era das flechas. E ao ir buscar um feixe para si, notou lorde Richard ali, de pé ao seu lado. Ele fez uma elegante mesura. Seus lábios se curvaram de prazer diante da surpresa da dama. — Srta. Hatton. Permita-me ajudá-la. Ele lhe entregou o primeiro feixe de flechas do monte. Ele sabe o meu nome! Beatrice pôde sentir o rosto corar e a boca ficar seca. Ela rezou para que as mãos não tremessem diante da proximidade do cavalheiro. — Obrigada, meu senhor. É muita gentileza de sua parte. Ela pegou as flechas das mãos elegantes de lorde Richard. Os curiosos que os cercavam começaram a fazer piadas e comentários jocosos, sugerindo que, agora que as damas iriam participar, talvez fosse melhor manter certa distância. — Será que devo me afastar? — perguntou com seriedade lorde Richard, fitando-a nos olhos. Foi a primeira vez que ela notara o brilho dourado que lhe aquecia o olhar aparentemente frio. Ela o fitou de esguelha. — Não confia na minha pontaria, meu senhor? O sorriso do homem se alargou diante do flerte deliberado. A dama podia ser jovem e inocente, mas sem dúvida alguma tinha o seu charme. — Acho que confio plenamente na senhorita, srta. Hatton. — Com a primeira flecha? Primeiras flechas são notoriamente imprevisíveis, 19


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien meu senhor. — Às vezes. Precisa determinar o seu alcance? — Acho que conheço muito bem o meu alcance. — Então, vamos testá-lo. — Quer fazer uma aposta quanto ao resultado, meu senhor? — Na verdade, quero. — Ela sentiu que ele a observava, sem conseguir tirar os olhos do seu rosto alegre. — Afinal de contas, o que é uma competição sem uma aposta? Uma moeda de ouro caso acerte o alvo. Com a primeira flecha. — E se eu acertar o centro do alvo? Diante dessa indagação não tão inocente assim, seus olhos se arregalaram, permitindo que lorde Richard absorvesse o impacto total do olhar direto de Beatrice Hatton. Totalmente encantado, o cavalheiro riu. — É uma excelente negociadora, srta. Hatton. Responderei como qualquer cavalheiro deveria responder diante de uma dama tão confiante. Duas moedas de ouro caso consiga atingir tal magnífica precisão. Beatrice assentiu. A mãe com certeza ficaria horrorizada se pudesse escutar a fala de sua filha tão bem-educada. Libertina! — Muito bem, meu senhor! Ela posicionou o corpo de lado em relação ao alvo, com suprema graça e considerável habilidade, e puxou para trás a corda do arco até a altura da orelha. Mirou calmamente ao longo da flecha enfeitada com penas de ganso. E a soltou. A flecha se enterrou no centro do alvo que, ela admitiu, não estava tão longe assim. Uma onda de aplausos e comentários ecoou ao redor deles, mas nenhum dos dois prestou muita atenção. Lorde Richard tomou-lhe a mão e a levou formalmente aos lábios. — Sua perícia é de fato magnífica, srta. Hatton. — Eu avisei. Ela sabia que seus dedos estavam se apertando sobre os dele. Ele se inclinou um pouco mais para a frente, de modo que suas próximas palavras fossem apenas ouvidas por ela. — Será que suas flechas letais seriam tão rápidas e certeiras ao perfurarem o meu coração? — Espero que sim, meu senhor. — Ela entendeu perfeitamente o significado daquelas palavras. E, embora ruborizada, não hesitou em lhe responder de maneira semelhante. — Pois meu coração também foi atingido. Não gostaria de sofrer sozinha este tormento. E quando mais tarde lorde Richard Stafford teve a oportunidade de entregar as duas moedas de ouro à bela arqueira, ele o fez em um canto reservado dos jardins internos, com um beijo. Não uma carícia formal na face da dama, ao qual ninguém poderia se opor. Mas com os braços, puxando-a para perto de si, modelando-lhe os seios, os quadris e as coxas ao corpo dele, e a pressão de boca a boca, que possuía e prometia tudo. Um beijo que a deixara momentaneamente atordoada e sem palavras, e fizera seu sangue ferver. Agora, em seus aposentos em Great Houghton, ela suspirava ao se recordar. E apertou nas mãos as duas moedas de ouro. Beatrice jamais se separaria delas. E lembrou-se também que, naquele jardim, lorde Richard pintara um belo retrato de seu próprio lar. Elton's Marsh, em Norfolk. Despertado à vida por 20


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien palavras que deixavam bem claro o amor de lorde Richard pelo lugar. — Por acaso, é enorme, com correntes de ar que assoviam por longos corredores? — Beatrice ficara meio cética quanto à descrição. — E possui cantos escuros, nos quais é impossível costurar algo ou escrever uma carta? Ela estava familiarizada com os dois inconvenientes de seu próprio lar em Mears Ashby. Ele sorria diante da incredulidade dela, dando ao seu rosto, em geral sério, um charme jovial, que a deixou toda arrepiada. — De fato é enorme, mas menos ventoso e, com certeza, mais claro do que a maioria. — Como isso é possível? Meu senhor está contando vantagem? Ela o recompensara com o arquear das sobrancelhas. — Se vou contar vantagem, será sobre os feitos de meu avô. Saiba que ele lutou na guerra na Europa e voltou para casa como um homem rico. Na França, viu castelos muito diferentes dos nossos, e sentiu-se fascinado. De modo que, pensando neles, construiu Elton's Marsh. — E você se orgulha muito dessa propriedade. Ela podia perceber isso pelos olhos dele, na voz de Richard, ao descrevê-la. — Ela é linda. — Lorde Richard enlaçou a mão de Beatrice por dentro do braço dele, enquanto caminhavam pelas trilhas úmidas do jardim, pulando poças e roçando nos ramos molhados, ignorando solenemente as gotas prateadas que ameaçavam ensopar suas roupas. — É feita de tijolos, e brilha em um tom vermelho-ouro sob os raios do sol. À noite, após um dia claro, é agradavelmente quente. Meu avô mandou instalar janelas grandes e muitas câmaras pequenas, em vez de um único salão principal. Elton's Marsh possui um jardim tão grande quanto este. — E não seria fácil atacar e destruir um castelo como esse? — Não. Meu avô era um homem prudente, de modo que Elton's Marsh possui um fosso e uma torre de vigia bem alta. Além de fortificações e cancelas. Posso rechaçar qualquer um que não deseje receber em meus portões. Beatrice não resistiu à pergunta. — Estaria disposto a me receber em seus portões, meu senhor? — Adoraria fazê-lo — respondeu de imediato lorde Richard. — Na verdade, eu insistiria em fazê-lo. E como ela sonhara e torcera para que isso acontecesse, atraída pelos beijos dele, despertada para as necessidades do próprio corpo, ao conhecer a destreza de sua boca e as carícias experientes de suas mãos. Ainda naquele instante, seu sangue fervia diante da lembrança da língua de Richard traçando o contorno de seus lábios, provocando seus cantos sensíveis, encorajando-a a permitir que ele lhe explorasse o interior macio. Uma posse tão íntima quanto a pressão da mão do cavalheiro em seu seio, de modo que seus mamilos se enrijeceram e ela suspirou diante dessa sensação gloriosa. Como poderia não ter se apaixonado por ele e acreditado no retrato sedutor que ele pintara da vida dos dois juntos? Em vez disso, seus sonhos foram estilhaçados. A família dela deixou a Corte, e seu pai decidiu casá-la com William Somerton. Lady Margery, sua mãe, pôde apenas aconselhar à filha que ela esqueceria qualquer flerte festivo assim que retornasse à normalidade de sua vida, longe do palácio de Westminster. Que ela estava sofrendo de mera paixão passageira por um homem experiente e glamouroso. A mão de Beatrice apertou com força o metal brilhante das moedas. O amor permanecera firmemente entrincheirado em seu coração, mesmo quando 21


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien os dias se passaram e Richard não viera. Mesmo quando William colocara a aliança em seu dedo. Richard esquecera Beatrice. Embora ele houvesse negado, talvez simplesmente não a amasse o bastante. Com o coração apertado, ela devolveu as moedas ao cofre que continha suas jóias. Mais uma vez, precisaria aprender a viver sem ele. No quarto dia, os habitantes de Great Houghton Hall acordaram com o céu ainda escuro e uma chuva que não mostrava sinais iminentes de parar. Depois, tomaram ciência das inconfundíveis marcas de um exército em movimento. Não havia dúvida. Era o exército do conde de Warwick, apoiando a reivindicação real do ausente duque de York, muito próximo e seguindo ruidosamente na direção de Northampton. A batalha estava prestes a começar, exatamente como lorde Grey previra. Beatrice estava esperando que Sir William reunisse seus homens e partisse imediatamente, para evitar as tropas partidárias de York e para se unir ao flanco dos defensores da Casa de Lancaster. Para sua surpresa, o pátio permaneceu em silêncio, sem atividade alguma, além dos serviçais indo da leiteria para a cozinha. Ela encontrou Sir William sentado na plataforma, no centro do Grande Salão, fitando a chuva, que ainda batia nas janelas intensamente. Com os dedos, ele tamborilava sobre a mesa, com insistente e cansativa monotonia. Com a testa franzida e em silêncio, não se deu conta da entrada de Beatrice no recinto. As horas da manhã foram passando. Rickerby andava de um lado para o outro diante da porta, resmungando do atraso, aguardando ordens que nunca chegavam. Mestre Lawson observava das sombras. Sir William permanecia no mesmo lugar, agora com uma jarra de cerveja ao lado. O movimento das tropas prosseguia. Por fim, Beatrice não fora capaz de se conter mais. Ela postou-se ao lado do marido. — Este barulho com certeza é o exército dos aliados de York sob o comando do conde de Warwick — ela informou, desnecessariamente. — Meu senhor não vai? — Não. Sir William permaneceu sentado em silêncio solene, com o rosto deliberadamente escondido da esposa. Quase, ela pensou, como se não ousasse enfrentar o seu olhar crítico. Beatrice achou impossível de acreditar nele. — Não vai se juntar aos partidários de Lancaster e lutar pelo seu rei contra aqueles que querem usurpar o poder legítimo? Tanto Warwick quanto York já foram declarados traidores pelo parlamento. — Não é uma decisão simples. Apesar da resposta brusca, era impossível ocultar a ansiedade nos olhos de Sir William. Ele estava esgotado, como se não houvesse dormido bem, e parecia uma década mais velho do que realmente era. — Mas Sua Majestade vai procurá-lo, vai procurar seu estandarte. Os Somerton sempre não defenderam a Coroa? Beatrice ergueu as mãos, e depois, ainda sem entender o marido, abaixouas. Diante disso, Sir William levantou-se bruscamente, quase derrubando a cadeira. — Ah, sim! Os Somerton possuem uma excelente reputação por sua 22


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien lealdade. Sem dúvida, somos fiéis à Casa de Lancaster. Você não faz ideia da escolha que foi colocada sobre os meus ombros, mulher. Ele deu as costas à dama, que tão inocentemente fazia o papel que sua consciência mandava, e saiu do aposento, deixando-a para trás a fitá-lo, totalmente sem ação. A refeição da metade do dia foi servida, mas ninguém parecia estar com muito apetite. Um ensopado picante de coelho, um dos pratos favoritos de Sir William, esfriou na travessa. O delicioso empadão de galinha Lombard, repleto de carne e temperos, sequer foi provado. A espera continuava. Os exércitos em manobra ficaram em silêncio. Um silêncio frágil que se estendeu também pela casa. Desta vez, Beatrice optou por não rompê-lo. Depois, por volta das duas da tarde, com a chuva ainda caindo incessantemente, gritos e lamentos distantes, acompanhados do som pesado dos disparos de canhões, alcançaram o castelo. — Começou. Sir William andava de um lado para o outro no salão, com os dentes fincados no lábio inferior. — Meu senhor... Beatrice não sabia o que dizer. Mas Sir William enfim havia tomado sua decisão e ergueu a cabeça. — Partiremos imediatamente. — Ele fez um sinal para o mordomo. — Diga a Rickerby para vir me ver. — Mas não pode ir assim. Não está usando a sua armadura. Estará em perigo... As palavras de Beatrice morreram quando o marido ergueu a mão para silenciá-la. — Não acho a armadura necessária. — A expressão no rosto do lorde era séria, e Beatrice não acreditava que fosse por causa do medo da batalha ou da morte. — Deveria ter partido há horas. Sei o que dita minha consciência, mas não ouso... — Ele interrompeu suas palavras. — Isso será proteção o suficiente. Ajude-me. Ele começou a vestir uma pesada brigandina de couro, revestida com placas de metal para oferecer uma proteção básica, como as usadas pelos arqueiros. — Pelo menos leve o seu elmo. Não pode ir sem ele. — Muito bem. — O escudeiro foi buscá-lo. — Escute! — A mão de Sir William fechou-se ao redor do pulso de Beatrice. — Temo não saber qual será o resultado... Não devo demorar, mas Deus me ajude, preciso jurar minha lealdade a lorde Grey de Ruthin. Ele cavalgou para fora do castelo, liderando seu pequeno, porém orgulhoso exército, deixando Beatrice para trás, a observá-los com crescente temor, sem entender o significado das palavras do marido. Sobre a planície diante das muralhas de Northampton, as forças partidárias de Lancaster no flanco direito, sob o comando de Lorde Grey de Ruthin, permitiram que o exército de York avançasse sem oposição. De onde comandava, o duque de Buckingham ficou abismado, incapaz de acreditar no que via. — Aonde eles estão indo? Em nome de Deus, fomos traídos! Se Warwick atravessar nossas linhas, o próprio rei ficará exposto a um ataque e até à captura. Devo atacar? À direita de Buckingham, lorde Richard Stafford fez sinal para que seus homens se aproximassem. 23


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien — Deve. Sem clemência. Se Warwick capturar o rei, ele correrá perigo de vida. — Buckingham fechou o visor do elmo. — Devemos proteger Sua Majestade a todo custo. Richard Stafford liderou seus soldados na direção do desastre em andamento. O brasão dos Stafford, vermelho e preto com o orgulhoso leão prateado, tremulava bravamente acima de suas cabeças. O profundo grito de Stafford ressoou pelo ar, acima do barulho dos cascos e dos gritos das tropas. Ao desembainhar a espada e se preparar para selvagens combates corpo a corpo, lorde Richard amaldiçoou a guerra, a ambição desmedida do duque de Warwick e o dia em que se tornara impossível distinguir amigos de inimigos. E depois não houve mais tempo de pensar em nada. Beatrice aguardou pelo restante daquele dia que parecia interminável. Após um crepúsculo prematuro, a chuva ficou mais fraca. William não retornou. Mas soldados em fuga, alguns deles exibindo as cores da Casa de Lancaster, começaram a cruzar, apressada e desordenadamente, a estrada próxima ao castelo. Não havia sinal de seus líderes. — Quais são as novas? — indagou o sentinela de Great Houghton. A resposta gelou o sangue nas veias de Beatrice. — O rei foi derrotado. Nada detém as tropas de Warwick. O rei Henrique foi capturado. Beatrice passou aquela longa noite sentada em seus aposentos, preocupada com a segurança do marido, como uma esposa deveria estar. Dormir sequer passara pela sua cabeça. A dama também se sentia tomada de culpa, por saber que a origem de sua ansiedade era outra. Ela desconhecia o destino de Lorde Richard Stafford. Estava presa nas garras de seu receio pela segurança dele, garras ardentes demais para permitir lágrimas. O glorioso sol do dia seguinte, tão cruel em sua beleza, após a tempestade torrencial e o massacre sangrento, lançou seus raios sobre a cavalgada que se aproximava de Great Houghton Hall. Beatrice observou a aproximação, analisando os rostos dos cavaleiros e, depois, com o coração pesado, ordenou a abertura dos portões. Estava aguardando no pátio quando eles entraram. Alguns dos soldados de Somerton lideravam o grupo, mas nem todos que haviam partido com Sir William haviam retornado, Ela ficou aliviada ao avistar Rickerby. Também encontrou Sir Edward Hatton, seu irmão. E na retaguarda, uma carroça de suprimentos trazia um vulto coberto. — Ned. — Beatrice se postou aos pés do cavalo do irmão, o rosto mais pálido que ele já havia visto, contrastando com o vermelho de seu vestido. — É William? — Beatrice... — Com palidez semelhante, Ned desmontou para postar-se ao lado dela. Também possuía o temperamento forte da irmã, mas a maturidade lhe dava uma perspectiva mais tranquila. Ele retirou o elmo e passou a mão pelo rosto, que mostrava claramente a tensão decorrente das atividades dos últimos dias. Em seguida, tomou a mão da irmã. — Beatrice, o que posso dizer? — É William, não é? — É. — Você viu quando aconteceu? Seus lábios estavam rígidos, como se fosse difícil pronunciar as palavras. — Vi. Eu estava lá. — Deixe-me vê-lo. Ela caminhou até a carroça. Ned curvou-se para dentro dela, a fim de 24


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien afastar o manto que cobria o corpo, e Beatrice fitou o rosto do marido morto. As roupas e o cabelo estavam imundos devido à lama do campo de batalha onde ele caíra. O ruivo de seu cabelo grisalho praticamente desaparecera sob o vermelho do sangue seco que lhe salpicava o rosto e manchava as roupas. Os olhos estavam fechados, mas a boca parecia retorcida de dor, ou talvez de medo. Ela tocou uma das mãos posicionadas sobre o peito. — William. Era difícil lamentar a morte deste homem que a tratara com tanta indiferença e desdém. Ela não conseguia se forçar a chorar por ele. Ah, mas conseguia chorar por Richard Stafford. Será que lorde Richard estava largado em algum lugar, ferido? Talvez até morto? Ela o enviara para a batalha sem lhe oferecer nenhuma das palavras de amor, de preocupação e de ternura que estavam em seu coração. Na verdade, rejeitara-o sem piedade. Mas e se ele estivesse morto? E se pensara antes de morrer ela o condenara? Beatrice jamais se perdoaria. Lembrando-se de seus deveres, ela ordenou que fossem trazidas comida e cerveja para os soldados. E que a capela fosse preparada para receber o corpo de Sir William. Depois virou-se para Ned. — Conte-me o que aconteceu. Fomos informados de que nossas forças foram derrotadas pelos partidários de York. — Foi um desastre — respondeu Ned com a voz tomada de incredulidade. — Eles nos expulsaram do campo de batalha e mataram muitos lordes partidários de Lancaster. — E William também foi derrubado. — Foi. Ele não estava usando a armadura completa. Uma brigandina como a dele jamais deteria a lâmina pesada de uma espada. Em que este homem estava pensando para arriscar a vida desse jeito? Beatrice sacudiu a cabeça, mas não explicou a estranha postergação da batalha por parte de William. Que diferença faria? William estava morto. — Ah, a propósito, eu encontrei isso. — Ned lhe interrompeu os pensamentos ao começar a revirar os bolsos. — Eu o reconheci na mesma hora. Suponho que o tenha dado a William como um talismã, para proteção. Embora eu o tivesse considerado valioso demais para arriscar em um campo de batalha. — Ele deu um arremedo de sorriso. — Eu o encontrei por puro acaso... Ela viu o que ele trazia nas mãos. Impossível! Seu coração disparou, e a garganta ficou seca, quando ela se lembrou de onde o havia visto pela última vez. Ela esforçou-se para encontrar a voz. — Onde conseguiu isso? — Na lama. Vi o brilho do ouro. A pouca distância do corpo de Somerton. Deve ter caído de suas roupas quando ele foi derrubado. Beatrice não conseguiu encontrar as palavras. Ela pegou o objeto das mãos de Ned. — Você o deu ao seu marido? — Ela fitou Ned horrorizada. Ele não entendeu a resposta dela. Viu apenas o rosto pálido da irmã, a brancura que rodeou os lábios quando ela os apertou, a cor profunda de seus olhos, quando ela percebeu o significado do que acabara de escutar. Ned decidiu que era apenas choque e pesar. Um casamento político não a faria se lamentar da morte do marido. Não havia por que lhe contar sobre os atos ignóbeis de William no campo de batalha. Isso só serviria para causar mais dor à irmã. Beatrice fechou a mão ao redor do braço do irmão, fincando as unhas nele. 25


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Sua voz, apesar de baixa, era intensa. — Como era ele? O homem que matou William? Você disse que o viu. — De que importa algo tão inconsequente? Se um homem cai no campo de batalha, que importa quem segurava a espada? Mas, se fosse para aliviar a dor que tomava conta da irmã, que ele sentia vibrar nos dedos que seguravam o seu braço, ele lhe contaria. — Não o vi sem o elmo e nem com o visor levantado. Estava ocupado demais protegendo minha própria pele. Mas o brasão de seu destacamento era o dos Stafford, um leão prateado em um fundo metade preto, metade vermelho. É um dos brasões mais conhecidos no país. De modo que deve ter sido lorde Richard Stafford. Beatrice simplesmente ficou a fitá-lo, com os lábios entreabertos, sem perceber que estava apertando os dedos no braço do irmão, fincando-os como se fossem garras, até que Ned estremeceu, devido ao desconforto. Sua mente se recusava a aceitar a verdade. Os fatos se chocavam em seu cérebro, buscando uma explicação que não fosse a que gritava em sua cabeça. Richard Stafford matara William. Como era possível? Não estavam os dois lutando pela coroa? Ao lembrar-se das palavras de Richard ao deixá-la, uma resposta esgueirouse em seus pensamentos. Eu voltarei. Quem dera fosse possível para nós ficarmos juntos. Que eu pudesse encontrar um modo de fazer isso acontecer. Será que era isso? Beatrice o acusara de permitir que ela fosse vendida para um casamento cruel. Deixara bem claro que estava infeliz, não deixara? Será que Richard decidira fazer algo a esse respeito? Será que se aproveitara do caos da batalha para causar a morte de William, ele modo que pudesse resgatá-la e talvez se redimir aos seus olhos? Deixá-la livre para desposá-lo? Com certeza, não. Com certeza, não! E, no entanto... podia ser. Tudo se encaixava bem demais para essa ideia ser descartada. Neste caso, era tão culpada quanto Richard. Ela desviou o rosto, para que o irmão não pudesse notar sua agonia chocante. Que a mão do assassino podia ser a mão do homem que ela amava mais do que a própria vida. E que ela, também, tinha a mão no punho da espada. Ah, Deus! Permita que não seja verdade. Conflitos internos tomaram conta dela. O terrível alívio de estar livre para sempre de William Somerton. A possibilidade gloriosa de que poderia satisfazer seu sonho e se unir a Richard. Mas será que Richard agira incentivado por ela? Sentiu fisgadas de culpa e vergonha. Estava envolvida no crime. E Richard. Um assassino renegado, desprovido de sua honra. Se Richard Stafford a livrara do casamento daquela maneira, ele condenara ao fracasso qualquer futuro que pudessem ter juntos. Ela o acusara de trair o amor deles. E nesse instante haviam destruído qualquer possibilidade de tal amor dar frutos. Afinal, como poderia o amor sobreviver à culpa, à vergonha e a um assassinato? Ned deixou Great Houghton, relutante em abandonar a irmã em sua hora de luto, mas ciente da necessidade de avisar a própria família em Mears Ashby de que estava a salvo. Além do mais, não havia nada que pudesse fazer por ela. Quanto ao resto — a inacreditável traição que virtualmente destruíra o exército dos partidários de Lancaster — bem, ele lhe contaria quando sua dor não fosse tão recente. Tomada de dor e desespero, Beatrice cuidou dos preparativos necessários 26


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien para o enterro na igreja da aldeia. Suas ações eram automáticas, e seus pensamentos iam de sérias dúvidas à absoluta certeza. Quando teve a oportunidade, levou o pequeno cisne até seus aposentos e o limpou, tirando a lama das penas. Um dos pés estava retorcido, talvez atingido pelo casco de um cavalo e a seguir enquanto estava soterrado na lama, dando à pequena figura um ar extravagante, em contraste com a dignidade séria da coroa dourada. Ela fechou os dedos ao redor do objeto, segurando-o de encontro ao peito, e, enfim, permitiu que as lágrimas corressem. Ela o amava. Amava Richard Stafford e o amaria até o fim de seus dias, mas não poderia concordar com este terrível ato. Como aceitaria o fato de o homem que amava ter feito algo tão desonroso? Deliberadamente transformá-la em viúva para que pudesse desposá-la. Como ele poderia acreditar que uma relação entre eles, fundada sobre o sangue de William Somerton, poderia lhes trazer felicidade e realização? Não havia paz em seu espírito, apenas dor, tristeza e lágrimas amargas.

Capítulo Quatro William Somerton foi enterrado com todas as formalidades na igreja de St. Michael & All Angels, ao lado de outras gerações de Somertons. Os dois filhos e as respectivas famílias vieram presenciar a ocasião sem demonstrar excessiva tristeza. Sir William jamais se fizera amar pela família. Ao perceber os olhares de soslaio em sua direção, Beatrice foi forçada a admitir que os familiares dele desaprovavam o fato de ter se casado com uma mulher bem mais jovem e que o testamento fizera dela uma viúva abastada. Por saber os termos negociados para o seu casamento por William e pelo pai, Beatrice estava contando em receber os direitos de seu dote. Mas ficou abismada com o que recebera no testamento de William. Com a morte de William, de uma hora para a outra, ela se tornara uma mulher de consideráveis posses e riquezas. A casa em Great Houghton, as suas terras e tudo em seu interior foram destinados a ela, por toda a sua vida. No entanto, a boa sorte não a empolgava. Foram as feições sombrias de Richard Stafford que lhe trouxeram lágrimas aos olhos, quando o corpo de William foi depositado na sepultura. Os Somertons foram para casa, deixando-a sozinha em Great Houghton. Tendo recusado o gentil convite de se juntar a Ned, à cunhada, Alice, e à própria mãe em Mears Ashby, ela perambulava pelos cômodos vazios. Era a primeira a admitir que não seria boa companhia. Nos dias que se seguiram, a rotina de Beatrice permaneceu a mesma de quando William estava vivo. Mas seus pensamentos eram outros. Às vezes concentravam-se em lorde Richard Stafford. Frequentemente, estavam com ele. Quase todos os instantes do dia! Ela cobriu os olhos com as mãos, ao se levantar novamente da cama, insone. Ora era tomada de um amor impossível pelo homem. Ora por uma fúria incontrolável diante do fato de que os atos de Richard — e as próprias palavras impensadas dela — haviam colocado o amor dos dois totalmente fora de alcance. Ela sequer tinha certeza de que ele havia escapado com vida da sangrenta batalha. Richard poderia estar morto, perdido para todo o sempre. Sua fúria se dissipou diante da perspectiva de jamais revê-lo e a dor tomou conta de seu corpo. Ela deixou de lado a tapeçaria na qual vinha trabalhando sem nenhum 27


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien entusiasmo e começou a andar de um lado para o outro no interior do aposento. Isso não era bom! Se estivesse vivo, Richard teria sangue nas mãos. Teria cometido um crime imperdoável. A fúria voltou a brilhar em seus olhos, enquanto os pés tamborilavam sobre as tábuas de carvalho do chão. Ela se atirou ao trabalho com uma energia tamanha, que quando se esgotou, foi direto para a cama. Então a angustia retornou, e, embora tivesse se recusado a revelar seu estado para ninguém, Beatrice foi incapaz de conter as lágrimas. Aparentemente, não haveria fim para a sua infelicidade. Até aquela tarde. — Um cavalheiro veio vê-la, minha senhora — anunciou Lawson, o mordomo, que se incumbira de manter um olhar paternal sobre a jovem patroa. — Quem é, Lawson? — Ela tirou novamente os olhos da tapeçaria, que, na falta de algo melhor para distrair seus pensamentos estava novamente em evidência. — Eu o conheço? — Conhece, minha senhora. Ele esteve aqui na companhia de lorde Grey de Ruthin. É lorde Richard Stafford. — Lorde Richard... Suas mãos pareciam paralisadas sobre a tapeçaria. Que audácia de vir vêla... — Isso mesmo, minha senhora. Lorde Richard — Lawson respondeu após alguns instantes. Sem receber qualquer instrução, ele resolveu insistir: — Devo trazê-lo até o solário? — Não! Aqui, não! — A veemência da resposta o surpreendeu, assim como sua negativa. — Não posso vê-lo. É reservado demais. íntimo demais. — Devo informar a lorde Richard que minha senhora não está se sentindo bem? — Deve... Ou melhor, não. Eu o receberei. — Então, devo trazê-lo aqui? A senhora estava muito estranha hoje. — Não, leve-o ao Grande Salão. Já vou descer. — Quer que eu sirva alguma coisa, minha senhora? Lorde Richard parece ter viajado grande distância. — Não, não é necessário. Ela ficou de pé, empertigando os ombros sob o tecido aveludado do vestido. Será que havia alguma chance de reparar o mal que fizeram? Um perigoso e profundo abismo parecia se estender entre eles. — Muito bem, minha senhora. — Sacudindo a cabeça, Lawson retirou-se. Beatrice permaneceu parada, conduzindo uma conversa muito séria entre o coração e a razão, o que só resultou em mais dor de cabeça, pois nenhum dos dois lados parecia ser capaz de declarar vitória. Ele está aqui. Está vivo. O coração da dama pulava do alegria. Posso olhar para ele, tocá-lo. Estremecer ao ouvir sua voz, ao toque dele, quando me cumprimentar. Apesar de todos os meus temores, ele não está morto. Mas ele matou o seu marido! Seu lado racional deixou bem claro o desdém diante da evidente alegria. Ela ainda tentou se agarrar a detalhes tolos. Não tenho provas de que foi a mão dele que segurava a espada. Que outras provas precisa além das que tem? Além do fato de Ned tê-lo visto? Sua racionalidade era implacável. 28


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Então, perguntarei a ele — e lhe perguntarei o motivo e sei que ele me dirá a verdade. Suspirou no seu íntimo, com a esperança de que tudo pudesse ser facilmente consertado. Acho que sabe muito bem o motivo! Pela insistência, a lógica destruiu essas esperanças. Silêncio! Com esta ordem interior, e passos controlados, desceu até o Grande Salão, como se o visitante não passasse de um conhecido qualquer. Beatrice prometeu a si mesma que permaneceria calma e composta. Escutaria o que lorde Richard Stafford tinha a dizer. E se recusaria a julgá-lo antes que ele tivesse a oportunidade de se defender. Ele estava diante das janelas, exatamente onde haviam tido a última conversa, fitando os jardins, enquanto a aguardava. Beatrice não podia ver sua expressão. Quando a dama entrou, ele ergueu a cabeça, pressentindo sua presença. Richard sorriu, as sobrancelhas escuras se ergueram de prazer ao vê-la, e o afeto se espalhou pelo rosto dele, dissipando a seriedade reservada, tornando-o mais acessível. Ele se postou diante dela com toda a sua altura e orgulho, e Beatrice não pôde negar o quanto estava emocionada. O sangue latejava em seu corpo, das pontas dos pés ao topo da cabeça. Seria tão fácil cruzar a distân cia que os separava, tocar-lhe a face, e permitir que ele a tomasse nos braços fortes, onde a morte, a destruição e a perda da guerra não teriam lugar. Onde a culpa poderia ser esquecida no ardor da paixão. Ela agora estava livre para permitir a tão desejada intimidade entre eles... Por um instante, Beatrice quase agiu por impulso. Ah, não. Não podia se esquecer. Ela se deteve brevemente após cruzar a porta, como se toda a extensão do aposento os separasse. Beatrice! Richard logo se deu conta de que era incapaz de ler com clareza a expressão do rosto da moça. No entanto, sabia estar diante de uma jovem cujas emoções costumavam ficar estampadas em seus olhos, na curvatura de seus lábios, no porte altivo, evidentes para quem as quisesse notar. Mas agora... Após a batalha, nos longos dias de dor e perda para a sua família, ele vivera apenas para este momento, determinado a reconquistar a confiança de sua amada. No entanto, parecia não ser bem-vindo ali. Nenhum sorriso, nenhuma ternura. Nada além de fria avaliação, quase condenação. Ela permaneceu onde estava, sem sequer avançar na direção dele, austera em seu vestido preto, envolta por um ar de reserva deliberada. Notando que ela não ia se aproximar dele, Richard avançou um passo na direção dela, mas algo o fez preservar a distância. Uma ruga profunda se formou entre as suas sobrancelhas. Havia um problema, que estava apagando a luz dos olhos de Beatrice. Será que ela estava a par de seu papel na morte de William, que o marido morrera por suas mãos? Como já ocorrera muitas vezes desde o acontecimento lamentável, um arrepio de culpa percorreu-lhe a espinha. Com as emoções cuidadosamente mascaradas, Beatrice foi a primeira a se pronunciar. — Lorde Richard. Vejo que sobreviveu à batalha. — Ela estava sendo tão formal, tão reservada. — Tive sorte em escapar do massacre perpetrado por Warwick. A voz de Richard vibrou por todas as terminações nervosas da dama. Tão profunda e tão máscula. Por tantas vezes ansiara escutar aqueles tons firmes que lhe arrepiavam a pele. Trincando os dentes para reprimir a onda de prazer, Beatrice encarou a verdade. 29


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien — Meu marido não sobreviveu. Ele não teve tanta sorte. — Eu sei. — Richard escolheu cuidadosamente, e com grande dificuldade, as palavras. — Eu vim aqui para... Eu tinha de vir. Para explicar... Para lhe pedir perdão. — O lorde suspirou. — Lamento tê-la feito sofrer, Beatrice. Os lábios dela se entreabriram para responder. Antes que tivesse chance de fazê-lo, ele admitiu o que confirmou todos os argumentos de sua mente e a afogou em dor e culpa. — Preciso lhe contar, Beatrice... Somerton morreu pela minha mão. Tão fácil de dizer, tão destrutivo em suas repercussões. Beatrice aproximouse, mas não o suficiente para que pudesse tocá-lo. Isso acabaria com ela. — Eu sei — disse. — Ned testemunhou o ataque. Ele reconheceu o brasão dos Stafford. Ele me contou, e trouxe isso... Ele o encontrou na lama, perto do corpo de William. Ela estendeu a mão aberta, em cujo centro estava o pequeno cisne que brilhava inocentemente. Richard enfim entendeu o tratamento distante. — Beatrice... O que posso lhe dizer? Não tive escolha. Gostaria que houvesse acontecido de outro modo. — Não teve escolha? — A voz dela se transformou quase em um sussurro. — É isso que eu não entendo. Eram ambos partidários de Lancaster, ambos engajados na defesa de nosso rei contra aqueles que desejavam capturá-lo e destroná-lo. Como pôde ter acontecido? Como pôde ser você o responsável pela morte de William? Richard inspirou profundamente ao observar o rosto angustiado. Então ela não sabe o que William fez. Será que devo contar? Que o marido dela cometeu traição contra o rei? As próximas palavras dela o pegaram de surpresa. — Não entendo, mas gostaria muito, Richard. Será que pode me explicar? — A mão dela apertou-se ao redor do cisne de marfim, e a voz de Beatrice parecia controlada, embora lutasse contra a ameaça das lágrimas. — Será que pode me garantir, com toda a sinceridade, que não matou William para me tirar deste casamento, deixando-me livre para desposá-lo? Pode jurar jamais ter cogitado que sua espada poderia garantir a minha liberdade? Richard sentiu o sangue fugir das faces. Ela tocou no ponto exato que vinha destruindo sua paz de espírito nos últimos dias. Naquele instante em que ficou ali, frente a frente com Beatrice, sentindo as palavras lhe secarem os lábios, repassou na cabeça, com toda a clareza, o fiasco em Northampton. William enfrentando-o no campo de batalha, sendo instantaneamente reconhecido pelo uniforme dos Somerton, o combate selvagem, a necessidade de manter o rei Henrique a salvo das garras das tropas de York. Somerton avançando na direção dele com a faca e a espada desembainhadas. Sua própria reação automática ao encarar a morte. E ao erguer a espada, pensou que sua próxima ação poderia libertar Beatrice de seu deplorável casamento. Sua espada bloqueara o golpe fatal de Somerton, desviara outro ataque mortal, e, depois, seu punhal se enterrara no corpo do homem, entre as costelas. Somerton tombara a seus pés, morto. Sim, ele pensara a esse respeito, que homem não pensaria? Mas tirar uma vida para satisfazer seus próprios desejos pessoais? Seria um ato injustificável e desprezível. Ele não o faria. No entanto, o feito lhe pesava no coração. Richard voltou ao presente para escutar Beatrice, em um apelo desesperado, repetir aquela pergunta. Ela notara a sua hesitação, e isso só servira para 30


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien confirmar seus piores temores. — Diga-me, Richard, eu lhe imploro, que não sabia que seus atos naquele dia me livrariam de um marido que eu desprezava. E, sendo um homem honrado, ele não podia mentir, mas seus lábios estavam imóveis e seus músculos e tendões retesados. — Beatrice... Não posso negar... Eu sabia o que estava fazendo. Não podia fugir do embate com William Somerton, mas não... Eu estava a par das consequências. Os olhos dela se arregalaram e seu rosto empalideceu na penumbra do aposento. — Ah, Richard, o que fez? — Apenas o que se deve fazer no campo de batalha. — Matar o meu marido para que pudéssemos ser felizes juntos? — Minha própria felicidade não foi o motivo para eu erguer minha espada contra Sir William. Será que conto para ela? Será que desculpo minhas ações e coloco a culpa em Somerton? Destruo qualquer vestígio de respeito que ela possa ter por ele, a lembrança de ele ser fiel à causa de Lancaster, em nome de meus próprios desejos? E, mais uma vez, ele foi incapaz de fazê-lo. Todos os princípios do cavalheirismo sob os quais fora criado exigiam que não o fizesse. O que acontecia no campo de batalha deveria permanecer lá. Quando viu Beatrice estender as mãos para ele, angustiada, o coração de lorde Richard se despedaçou. — Diga-me algo que me dê esperança — ela implorou. — Não posso mudar o que aconteceu no campo de batalha. Ou o fato de Somerton estar morto. Lágrimas escorriam pelo rosto da jovem. Seu coração estava despedaçado pela imensa dor. — Como posso me casar com você agora, libertada com a morte de meu marido, quando você é o responsável por essa morte? — desesperada, ela cobriu o rosto com as mãos. — Se ao menos outra pessoa o houvesse matado. — Mas ele morreu pela minha mão. — As palavras amargas de Richard refletiam seus pensamentos. — Eu matei Somerton, e nada pode mudar isso. — Minha senhora. — Lawson estava postado à porta. Há alguns minutos estava ali, desavergonhadamente escutando, ciente das necessidades da hospitalidade, apesar da recusa pouco característica da patroa. Ele trazia uma bandeja com uma jarra de cerveja, canecas e uma travessa de empadinhas de carneiro. — Pensei em trazer algo para lorde Richard comer e beber. — Não será necessário, Lawson. — Ela virou de costas para que o mordomo não notasse como estava alterada. — Lorde Richard não vai ficar. — Muito bem, minha senhora. Lawson virou-se e deixou o recinto, mas sua mente trabalhava fervorosamente. Escutara a resposta de lorde Richard e se deteve no corredor. Para pensar. A atmosfera no Grande Salão era insuportável, sufocante por tantas acusações e recusas. Então, lorde Richard Stafford matara Sir William a sangue frio! Lawson deixou a bandeja sobre o aparador mais próximo e correu até os estábulos do pátio para falar com Rickerby. Talvez fosse dever dos empregados de Somerton buscar vingança, em nome do seu senhor morto. Obter justiça por sua morte. 31


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Sem saber do que se passava na cabeça do mordomo, dolorosamente comprometidos por suas palavras e ações, como uma borboleta presa na teia viscosa de uma aranha, Richard e Beatrice chegaram ao fim de sua conversa. — Deve ir embora, Richard. De nada adianta ficar aqui. — Ela ergueu a cabeça orgulhosamente, ignorando as lágrimas que escorriam pelas faces. — Se é o que minha senhora deseja. Com movimentos ferozmente contidos, Richard aceitou o preço de seus atos. — Tem que ser. Tenho medo. Beatrice não ousava falar em amor, não ousava contemplar o fato de que o estava expulsando de sua vida para sempre. — Medo do quê? Atraído pela apreensão de Beatrice, querendo apenas lhe oferecer o consolo nos seus braços, porque era tudo que ele podia oferecer, Richard aproximou-se. — De meu próprio pecado. De que a culpa pela morte de William é tão minha quanto sua. De que você tenha agido simplesmente porque eu o acusei de não fazer nada para impedir o meu casamento. De que, se eu estivesse ao seu lado naquele instante decisivo no campo de batalha, talvez o houvesse encorajado a desferir aquele golpe fatal. — Percebendo a intenção de Richard, ela recuou. — Não me toque, eu lhe suplico. Isso me destruiria. As palavras pronunciadas pela dama o fizeram parar. Quando ele estendeu as mãos, ela escondeu as suas atrás do próprio corpo. Desesperado diante da admissão de culpa de Beatrice, Richard ajoelhou-se diante dela e, ignorando o ligeiro grito de surpresa da jovem, pegou-lhe a bainha do vestido. Curvando a cabeça, o cavalheiro a levou aos lábios. — Dou minha palavra que jamais faria algo para magoá-la, para forçá-la a fazer algo contra a sua vontade. Tudo que desejo no mundo é a sua felicidade. Mas peço que reconsidere, Beatrice. Vai permitir que Somerton continue a nos separar? — Ele deve continuar. — Sua alma protestava aos gritos, enquanto ela condenava o amor dos dois. — Pois minha culpa é tão grande quanto a sua, Richard. Sou tão responsável pela morte de William quanto você. Mas sua determinação estremeceu diante da proximidade e da paixão contida naquele gesto. Ela foi incapaz de resistir à tentação de tocar nos cabelos escuros do cavalheiro, tão macios e bonitos, a mais breve das carícias. Logo depois, recolheu a mão, como se estivesse queimando. E Richard por fim entendeu. A transgressão de Beatrice, como ela a enxergava, cimentava o muro que os separava. Ambos tinham o peso da culpa a carregar, talvez imerecida e desnecessária, mas ela ainda representava uma nuvem negra que cobria o sol. Mesmo sentindo o toque suave nos cabelos, ele sabia que havia sido privado de qualquer escolha. De pé, Richard pegou, independente da vontade dela, sua mão. E levou os lábios aos dedos frios. Apesar da rejeição, eles se agarraram aos dele como se Beatrice receasse soltá-los. O cavalheiro virou a mão da dama e pressionou a boca de encontro à palma macia. — Adeus, Beatrice. Que Deus a abençoe e a proteja. Você estará sempre em meus pensamentos. — Gostaria que não tivéssemos de nos despedir desta maneira. Mas ele já havia se afastado dela. — Eu também. Mas que esperança tem um amor pago a um preço tão alto? Ele deixou o aposento. E Beatrice pressionou a palma da mão sobre o coração, a fim de preservar para sempre aquela carícia final. Depois que ele 32


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien partiu, e não havia mais ninguém para escutá-la, ela se deixou cair no chão, chorando de tristeza, destroçada pela barreira que havia ajudado a construir entre os dois. Em largas passadas de desespero, Richard Stafford deixou o Grande Salão, desceu a pequena escadaria e cruzou o pátio na direção dos estábulos. Uma frustração tão absoluta que era capaz de ameaçar o seu autocontrole, provocar uma explosão violenta de fúria, devorava-o. Silenciosamente, ele amaldiçoou o capricho do destino que se abatera sobre eles. Quando Beatrice olhara para ele... Richard amaldiçoou aquela lembrança. É claro que poderia lhe contar que Somerton havia quebrado os votos sagrados de lealdade ao rei. Mas de que adiantaria isso? Será que apenas não lhe causaria mais dor? O sangue de Somerton ainda estaria em suas mãos. Ele a amava demais para magoá-la dessa maneira, de modo que carregaria esse fardo nos próprios ombros. E como poderia lhe negar a acusação? De que a enviuvara deliberadamente para poder desposá-la? Um ato insensível, mas que homem nas circunstâncias dele não o consideraria? Será que agira sob a influência de um pensamento tão vergonhoso? Não. Mas sabia muito bem qual seria o resultado final, não sabia? No estábulo, ansioso para montar, pegou as rédeas de seu cavalo das mãos do cavalariço, sem a costumeira expressão de agradecimento. Subitamente, lorde Richard se deu conta de que estava cercado por soldados de Somerton. No interior do círculo, estavam Rickerby e Lawson, o mordomo. — O que é isso? Querem impedir a minha partida? Eu acho que não! Sua pergunta era um desafio a qualquer um que procurasse impedi-lo, uma afirmação clara de sua posição como um lorde dos Stafford. Mas bastou um olhar para os rostos que o cercavam. O significado da cena se alojou com violência em seu íntimo. Talvez ainda não houvesse armas à mostra, mas a visão era claramente ameaçadora. O mordomo assumiu o papel de porta-voz. Sem a costumeira postura deferente, não havia qualquer vestígio de respeito pela autoridade de Richard em sua voz. Comportava-se mais como juiz e carrasco. — Lorde Richard. O senhor foi responsável pela morte de Sir William Somerton no dia da batalha. — Fui. Foi minha a espada que o matou — retrucou lorde Richard. Ele mantinha os olhos firmes nos do mordomo, mas seus sentidos estavam atentos ao perigo que o cercava. O cavalheiro soltou as rédeas e fitou cada um de seus acusadores com um olhar que combinava arrogância e convicção. — Sir William devia sua lealdade à Coroa. Os Somerton sempre foram leais à causa defendida pela Casa de Lancaster. — Caso Lawson pudesse rosnar, ele o teria feito agora. — No entanto, o senhor, em nome dos Lancaster, o matou. Que traição é essa? O senhor não sairá vivo daqui, lorde Richard. Vai pagar pela morte de nosso senhor com a sua própria. — Não! Não foi como pensam... Subitamente, sua vida dependia da revelação das circunstâncias da morte de Somerton. Mas após o estridente som de metal sendo raspado, lorde Richard se viu cercado por um brilhante anel de aço. Não havia esperança. Sedentos de sangue como estavam, eles não dariam ouvidos a argumentos racionais. Em grande desvantagem numérica, ele jamais poderia rechaçar um bando de soldados treinados e armados, homens em busca de vingança. Mas Richard não facilitaria as coisas para seus adversários. Visto 33


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien que não havia chance de escapar, com um longo e lento movimento, ele usou a mão direita para desembainhar a espada. A mão esquerda puxou do cinto o punhal de lâmina comprida. Não iria morrer facilmente. Fazê-lo seria admitir sua culpa diante da acusação de assassino inescrupuloso. Contudo, não pôde deixar de se perguntar se Beatrice estava a par desta emboscada. — Então vamos. Ou são covardes demais para enfrentar um homem sozinho? — Ele girou a espada ao redor do círculo com destreza letal, sério e conformado, mas com absoluta coragem. — Devo avisar que nem todos deixarão este pátio incólumes. E os discursos chegaram ao fim. Rickerby foi o primeiro a avançar. Com um hábil movimento defensivo, pelo lado direito, Richard Stafford bloqueou o primeiro ataque. Que ridículo, ele chegou a pensar, antes de ficar ocupado demais para fazêlo. Era absurdamente irônico o fato de que ele, que escapara da carnificina no campo de batalha, onde os partidários de York se empenharam em matar cada um dos nobres defensores da Casa dos Lancaster, acabasse morrendo nas mãos destes empregados de Somerton, que deviam lealdade à mulher que ele amava. O barulho inconfundível de combate corpo-a-corpo chegou aos ouvidos de Beatrice no interior do castelo, interrompendo os tremores que ainda sentia. Ela se levantou rapidamente e correu na direção dos ruídos de metal raspando metal. E deteve-se com um grito de pavor diante do que viu perto dos estábulos. Richard Stafford, ainda segurando sua espada, mas com um dos joelhos no chão e a faca enterrada na terra a seus pés. Cercado por cinco dos soldados da guarnição dela, que, apesar de respeitar a perícia de seu alvo, ainda fariam valer seus objetivos de morte pela ponta da espada. Não havia dúvidas quanto ao resultado do combate. — Parem. — A voz dela ecoou com toda a confiança e autoridade de que foi capaz. Beatrice não podia deixar o medo transparecer, pois o desejo de sangue e morte poderia ser mais forte do que o controle dela sobre a lealdade dos soldados. — Abaixem as espadas! Parem! — Ela adiantou-se correndo, rezando para que a obedecessem. Eles ainda permaneceram concentrados em sua presa, a determinação completa de uma raposa caçando um coelho, e então ela segurou o braço do mordomo. — Lawson. Detenha-os! Não serei responsável por isso! — Ele matou o seu marido! Deve pagar por isso. — Com o olhar ligeiramente descontrolado, o mordomo virou-se para ela. — Eu escutei sua acusação. Ele sequer tentou negar. — Eu mandei detê-lo. — O rosto dela irradiava determinação. — Rickerby! Abaixe a espada. Não vou tolerar isso. Obedeça e faça o que ordenei. Sua atenção estava toda voltada para lorde Richard. Ele estava ocupado demais para notar a intervenção da dama. Todas as suas energias estavam concentradas em observar e reagir, defender e contra-atacar, impedir que o aço mortal se mantivesse longe dele. Sangue escorria de sua têmpora, descendo pela face, resultado de um violento golpe na cabeça. O braço esquerdo pendia sem vida, exibindo um corte brutal, o sangue pingando de seus dedos no chão empoeirado. Cada golpe desferido o deixava mais fraco. Quanto tempo teria antes que uma daquelas espadas achasse um meio de lhe perfurar o peito, ou a barriga? O suor escorria de seu rosto, misturando-se com o sangue. Sua respiração estava ofegante. O cavalheiro sacudiu a cabeça, como que para 34


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien espantar a escuridão que ameaçava dominar seu cérebro. Ele não resistiria por muito mais tempo. Os dedos de Beatrice fincaram-se dolorosamente no braço de Lawson. Ela era agora de fato a senhora de Great Houghton, exigindo total obediência. — Nós não vamos sujar o nome dos Somerton com o sangue deste homem. Isso só faria desonrar o nome de nosso senhor. Isto deve parar, agora mesmo. Apesar da hesitação inicial do mordomo, a determinação e a fúria da senhora do castelo foram suficientes. Com a própria espada desembainhada, ele avançou, empurrando e bloqueando aqueles que ainda prosseguiam com os ataques. Assim que as ordens da dama dissiparam a sede de sangue, eles recuaram, mas não antes que algumas botas pesadas acertassem a figura agachada. Beatrice estava livre para ajoelhar-se ao lado de Richard Stafford, agora, caído no chão, quase inconsciente, mas ainda lutando, contra a dor e contra a escuridão que ameaçavam tragá-lo, tentando se levantar. O punho da espada ainda estava firme em sua mão, embora ele já não tivesse mais forças para erguêla. Por sobre os ombros dele, ela fitou os empregados, composta e de forma autoritária, sem demonstrar qualquer indício de seu conflito interno de emoções. — Entendo seus motivos. Que queiram se vingar por Sir William. Mas não seremos responsáveis por tirar outra vida. Homens demais já morreram nas últimas semanas. Não podemos acrescentar outro nome à lista. — Ela os fitou um por um. — Vocês devem aceitar minha decisão. Só quando teve certeza de que seria obedecida ela se virou para Richard, que ainda se esforçava para ficar de pé e enfrentar seus agressores. — Beatrice... — Sua voz não passava de um gemido. — O que fez? Dito isso, ele deslizou para o chão silenciosamente, depois soltou a espada, com o rosto escondido pelo cabelo escuro. Ela não perdeu tempo pensando se ele poderia estar morto aos seus pés. — Levantem-no — ordenou. — Levem-no para a casa. Por favor, prepare um dos quartos, mestre Lawson. Com cuidado. Não será atribuída culpa a ninguém, mas vocês não tirarão a vida dele. Sem nada dizer, os homens obedeceram. Beatrice seguiu. Ela estremeceu só de pensar em como chegara perto de presenciar a morte brutal de Richard, mas forçou as pernas a sustentarem o peso do corpo, e os ombros a permanecerem firmes. Ele está vivo. Não permitirei que morra. Com todos os caprichos e viradas do destino, a vida de lorde Richard Stafford estava agora em suas mãos. Ele foi levado até um quarto, rapidamente disponibilizado sob as ordens de Lawson, que se viu inexplicavelmente como alvo da fúria da patroa. Será que não fora correto em buscar vingança? Mas Beatrice não estava interessada em discutir o assunto. Mandou duas serviçais trazerem água, lençóis e bálsamos, e Lawson tratou de rasgar as pesadas roupas do lorde e aplicar compressas nas feridas mais profundas para estancar o sangue. Esses cuidados deixaram à mostra, ao olhar ansioso de Beatrice, vários machucados e feridas. O corpo magnífico, de músculos perfeitamente torneados, sofrera. Ela se sentiu sufocada pela culpa e pela pena. Suas palavras, ouvidas por acaso, sem dúvida alguma eram as responsáveis por tudo. Mas além do resultado da ação das mãos de seus homens, a batalha em Northampton também deixara suas marcas. Extensas contusões multicoloridas, que já estavam começando a 35


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien desaparecer, poderiam ser indícios de uma queda da sela. Havia um corte de espada superficial, também parcialmente cicatrizado, ao longo de um dos braços. Uma perfuração profunda em uma das coxas. E a irritação avermelhada da armadura, ao redor do pescoço e dos ombros, agora em processo de desaparecimento, após aquele longo dia de intensa atividade no campo de batalha, sob grande umidade e chuva intensa. E ainda havia as feridas recentes. Nada capaz de ameaçar a vida, ela notou. O alívio tomou conta dela como uma corrente de ar frio, dissipando suas piores preocupações. Mas um golpe de raspão da ponta de uma espada no ombro havia rasgado a pele, e sangrava abundantemente. Novas contusões apareciam ao longo das costelas — provavelmente resultante dos chutes dos soldados — que podiam estar quebradas. A mais séria foi a pancada na cabeça que o deixara inconsciente. O ferimento era profundo, na têmpora, onde o cabelo estava empapado de sangue. Provavelmente deixaria uma cicatriz feia, e ela torcia para que não fosse fatal. Ferimentos na cabeça podiam ser fatais. Com o rosto sério ela analisou seus ferimentos. Depois trocou um olhar com Lawson. Até Lawson desviar os olhos, incapaz de enfrentar a preocupação e a culpa que a patroa não conseguia ocultar. — Perdoe-me, minha senhora. Talvez não devêssemos... — Não. — Ela suspirou. — Não deviam. — Eu pensei... — Eu sei. Sei do que eu o acusei, e o que você escutou. Mas, seja qual for a verdade sobre a morte de meu marido, lorde Richard não merecia sofrer nas mãos de vocês. A culpa foi minha. — Mas, minha senhora — ele voltou a fitá-la. — Eu a escutei acusando-o da morte de meu senhor... — E eu acusei mesmo. Não consigo mais achar que... — O pânico apossouse de seu raciocínio. Tudo que Beatrice sabia era que, se lorde Richard morresse por culpa dela, teria de viver com essa culpa até o fim de seus dias. Um pensamento terrível demais para pensar. Mas precisava agir de acordo com ele. Ela inspirou profundamente quando uma das criadas entrou trazendo lençóis, uma vasilha e uma jarra de água. Beatrice pegou a vasilha e aproximou-se da cama, usando todo o autocontrole para não pensar que, talvez, ele não resistisse. A voz dela conseguiu manter-se calma. — O melhor que podemos fazer é restaurar a saúde dele. — É claro. — Lawson ergueu a jarra e despejou a água. — Posso cuidar disso, minha senhora. — Não. O fardo também é meu. — Ela forçou um ligeiro sorriso. —Acho que também preciso me redimir. Ajudarei como puder. Uma hora mais tarde, Richard Stafford estava lavado e seus ferimentos limpos. As feridas envoltas em tiras de linho, e os devidos bálsamos haviam sido aplicados para aliviar a dor. Durante todo o processo, Beatrice rezou para que ele recobrasse a consciência. Como poderia aguentar se Richard jamais acordasse, se morresse sem que ela falasse com ele novamente? Depois de ordenar que uma das criadas ficasse ao seu lado até que ele acordasse, ela voltou para os próprios aposentos para retirar o vestido sujo de sangue e repreender a si mesma pelas palavras passionais que dissera. Ele ainda era o homem que ela amava, e nada poderia destruir isso. Tudo que podia pedir era que Richard se recuperasse. Ele ainda a deixaria, é claro. A culpa ainda pesaria em suas almas. Mas, contanto que ele estivesse curado, ela poderia aceitar o inevitável. 36


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Quando retornou ao quarto dele, a agradável noite de verão estava caindo. — Como ele está? A criada levantou-se. — Não houve nenhuma mudança, minha senhora. — Beatrice passou os dedos pela testa de Richard, a mais suave das carícias. Não estava com febre. Nenhum motivo aparente para preocupação, exceto o fato de ele não acordar. Ela não resistiu, e permitiu que os dedos afastassem do rosto um cacho de cabelo. — Vá comer alguma coisa e descansar um pouco. — Ela sorriu para a moça, em sinal de agradecimento. — Eu ficarei um pouco com ele. Beatrice sentou-se na cadeira de espaldar alto e ficou a observá-lo. Cílios escuros sobre faces sombrias. Pele bronzeada contrastando com o tom creme das bandagens. Mãos imóveis, dedos ligeiramente curvados, respiração lenta e regular. Tudo que ela podia fazer era aguardar, torcer e pedir perdão silenciosamente. Ela tocou na mão dele. Que dedos fortes. Quanto poder contido. Poder suficiente para cometer um assassinato? É claro que ele poderia, mas jamais o faria! É honrado demais. Seu coração sussurrou nos recantos sombrios da mente. Jamais estivera tão perto dele fisicamente quanto naquele instante, em que ele estava deitado ali, à mercê dela. No entanto, tudo estava acabado entre eles. Precisava ser assim. Ela teria retirado a mão pousada sobre a dele, mas Richard agitava-se na cama alta, a cabeça parecia desconfortável no travesseiro. De modo que ela a deixou onde estava, envolvendo calorosamente aqueles dedos frios, como que para ancorá-lo ao presente. À vida. Sua mente retornou à ocasião em que lorde Richard procurara seu pai para pedir a mão dela em casamento, em noivado formal. Ele se apresentara na movimentada residência temporária da família dela em Westminster. Vestido para impressionar, usando veludo estampado verde e preto, mostrou-se um experiente cortesão, um homem que pela simples presença exigia atenção e respeito. Ele usava a espada presa à cintura por uma tira de couro trabalhado. Por algum motivo, ela se recordava do artesanato soberbo na confecção do punho. E do pesado rubi que ele usara em sua mão direita. Hoje, não estava usando anéis tão caros. Os dedos de Beatrice alisaram os dele. Nenhum homem de bom senso usaria jóias como aquelas ao viajar por estradas infestadas de ladrões. Naquela manhã, também usara a pesada capa de pele sobre as roupas. E havia feito o pedido ao seu pai com toda a devida honra e dignidade, sem imaginar que este seria recusado, que Sir Walter poderia ter outro pretendente para desposar a filha. Os olhos dela agora repousavam no rosto do cavalheiro, tão imóvel e pálido quanto a cera das velas. Ele a quisera como esposa. E fora brutalmente rejeitado. As palavras o atingiram com força semelhante à da marreta do ferreiro. — Não, cavalheiro. Não pode reclamar a mão de minha filha. Beatrice já está prometida a outro. As palavras do pai, ecoando daquele passado distante, ainda possuíam o poder de deixá-la sem fôlego. Decerto, Sir Walter não deixaria passar a oportunidade de casar a filha com o membro de uma família tão poderosa. Ela e a mãe se entreolharam com os olhos arregalados. Lady Margery abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu. — É isso mesmo — prosseguiu Sir Walter. — Já tenho um compromisso no que diz respeito ao casamento de minha filha. Já está acordado há muitos anos. Sir William Somerton precisa de uma esposa. 37


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien E assim, com um breve pronunciamento, tudo fora decidido. E quanto a lorde Richard? Seus olhos buscaram os dela. Ele deve ter percebido o choque, a onda de desespero que a deixara paralisada. — Meu senhor... — Seus olhos brilharam de fúria, mas ele tentaria novamente. — Rogo para que ao menos considere os desejos de sua filha com relação a este assunto. Assim como o que tem a ganhar caso concorde com minha proposta. — Ele se interrompera, e, depois, com grande humildade, acrescentara pela primeira vez: — Minha família não é desprovida de poder e influência. E Beatrice se viu forçada a se pronunciar. — Pai... Se ao menos puder considerar a questão. — Ela erguera as mãos, em um apelo desesperado. — Eu lhe imploro, William Somerton, não. Mas Sir Walter a ignorou. — O acordo já foi feito. A aliança com Somerton é importante para mim. Você se casará com ele. E, então, estava tudo acabado. O rosto de Richard era uma máscara impenetrável. Ele se curvou de modo formal para Sir Walter, depois, para lady Margery. E, por fim, para ela. — Srta. Hatton. Perdoe-me caso eu a tenha ofendido de qualquer forma. Deve saber que meus sentimentos não se alteraram em nada. — Depois, baixinho, apenas para os ouvidos dela. — Não aceitarei essa decisão. Eu virei buscá-la. Ele se afastou dela e deixou o aposento. Ela podia apenas se apegar às últimas palavras do lorde, como um talismã. Só o veria novamente no dia em que ele viera a Great Houghton na companhia de lorde Grey. Sir Walter fizera as malas e deixara Londres com a família quase imediatamente, como se receasse que Beatrice pudesse desobedecer seu pronunciamento. Ela sequer pudera enviar uma mensagem para lorde Richard, muito menos revê-lo. Ele jamais viera buscála. No entanto, sem dúvida nenhuma, ele a quisera naquela época. Mas o suficiente para, três anos mais tarde, matar para poder libertá-la? Sua mente cansada lutava contra a confissão dele ter ciência de seus atos, com seus próprios desejos ocultos, permitindo que paixões do passado voltassem à tona. Ela podia ter sido a filha obediente e ter se casado com Sir William, mas seu coração sempre pertencera a este homem, que repousava tão imóvel sob seus dedos. Retirando a mão de cima dele, ela se recostou na cadeira para observá-lo, enquanto a escuridão caía. Com o passar do tempo, no silêncio do quarto, Beatrice adormeceu, exausta. Pouco antes da alvorada, quando a luz através da janela era o suficiente apenas para permitir o vislumbre de contornos acinzentados, Richard acordou. Esforçando-se para recobrar a consciência, ele procurava se agarrar a vestígios de lembranças que tendiam a rodar como fumaça em uma corrente de ar e escapar de seu alcance. Ele estremeceu ao se mover contra os travesseiros. Sua cabeça latejava de dor. Suas costelas — bem, ele preferiu não pensar nisso após a devastadora primeira pontada de agonia. Descobriu que o ombro estava imobilizado e firmemente enfaixado. Estivera sonhando. Sentindo dor. Devia ser após a batalha de Northampton, quando tudo começara a desmoronar, quando tudo que haviam planejado começara a se desenredar nas mãos de lorde Grey de Ruthin. Esse devia ser o motivo de seus ferimentos... Mas onde estava? Não conhecia este aposento. 38


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien E, subitamente, lembrou-se. Lentamente, Richard girou a cabeça no travesseiro. Ele a viu sentada ali, com a cabeça recostada no encosto alto da cadeira, virada na direção oposta a ele. Seu primeiro pensamento foi que ela amanheceria dolorida. Não podia ver-lhe o rosto, apenas o cabelo escuro, solto sobre os ombros. À medida que o aposento ficou mais claro, pôde ver suas mãos pálidas dobradas sobre o colo. Seus pensamentos desordenados começaram a ficar mais claros, trazendo de volta a lembrança dos acontecimentos do dia. Que terrível confusão de desejo e culpa os aprisionava. Tudo culminou em uma emboscada eficiente dos empregados de Somerton, que sem dúvida alguma desejavam a sua morte. Será que Beatrice dera as ordens fatais devido a uma necessidade de retribuição? Sua mente confusa era incapaz de aceitar tal possibilidade, assim como a dor de seu corpo não poderia ser comparada à tristeza de sua alma. Teve vontade de esticar a mão e tocá-la, em busca de qualquer vestígio de consolo, mas não teve forças para fazê-lo. Contra sua vontade, suas pálpebras começaram a se fechar. Richard mais uma vez se entregou ao doce esquecimento. Quando acordou novamente, o dia já havia raiado. A janela havia sido aberta para permitir a entrada de ar fresco no quarto, e os raios do sol espalhavam-se pelo chão, quase alcançando a cama. O latejar de sua cabeça havia diminuído, transformando-se em uma dor constante, mas suportável. As costelas doloridas não o impediriam de montar um cavalo. A poltrona ao seu lado estava agora vazia. Suas roupas, limpas e remendadas, estavam estendidas sobre um baú ao lado da janela. Quando os raios do sol brilharam no punho da espada, os acontecimentos do dia anterior, mais uma vez, vieram-lhe à cabeça, claros como a luz do dia. A raiva começou a ferver-lhe o sangue. Partir, antes que sofresse outro atentado, tornou-se imperativo. Se possível, partiria sem ter que ver Beatrice Somerton novamente. Seu plano falhou. Quando Beatrice abriu a porta e entrou, ela se deteve, surpresa. Precisou de um segundo para se recuperar. Lorde Richard Stafford estava vestido — embora, não tenha sido fácil. Em algum momento, removera a bandagem da cabeça, revelando o ferimento profundo ao longo da linha do cabelo. Com a espada nas mãos e movendo-se com incomum dificuldade e falta de graça, ele se empertigou, cuidadosamente. Se não estivesse enganada, as rugas profundas entre as sobrancelhas davam indícios de uma dor de cabeça. Ele não devia ter deixado a cama. Não estava em condições de viajar. — O que está fazendo? — Lady Beatrice. — Os olhos dele, frios e acinzentados como as águas de um rio, fixaram-se no rosto dela. — Como pode ver, estou me preparando para partir. — Não pode. Não está em condições de cavalgar. Suas costelas... — Estão doloridas, mas isso não me impedirá. Nem o ferimento na cabeça, pelo qual tenho de agradecer seus valorosos soldados. Já abusei demais de sua hospitalidade. Ela jamais o havia visto com aquele olhar de escárnio. Toda a emoção do dia anterior desaparecera. Restava apenas o controle absoluto da mente e do corpo. Bem, ela era capaz de fazer o mesmo. Beatrice ergueu a cabeça e permitiu que seu orgulho e dignidade produzissem uma resposta. — Acho que não deveria fazê-lo. Mas faça como achar melhor. Com a boca transformada em uma fina linha firme, Richard fez menção de pegar a espada. Depois, virou-se para encará-la. Toda a tensão, mágoa e dor 39


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien física fundiram-se em uma acusação furiosa e amarga. — Você ordenou que seus homens montassem uma emboscada e me matassem, Beatrice? Ela piscou diante do ataque. Seu próprio mau gênio havia sido despertado. — Não. Como ousa sugerir um ato tão vil e desprezível? — No entanto, você não teve receios de me fazer acusações sem provas. — Sem provas? — Os olhos dela arregalaram-se diante da seriedade da acusação de Richard, ainda mais após a longa noite em que sua própria consciência a censurara por suas palavras impensadas. — Você disse que viria me buscar, mas não veio. Admitiu ter matado William. De que outras provas preciso? Uma fúria amarga os envolvia, ameaçando afogá-los. Lorde Richard se viu falando, a despeito de seus instintos. Subitamente, aquelas terríveis palavras foram pronunciadas, e não havia mais como retroceder. — E você, por acaso, sabe por que matei Somerton? Quer mesmo escutar a verdade? Ele era um traidor. Abandonou a causa e mudou de lado no meio da batalha. Por causa dele, meu primo, Buckingham, morreu. — É mentira. — Os lábios dela ficaram brancos, devido ao choque. — William sempre foi leal a Lancaster. — Ah, não. — Mais uma vez aquele olhar de escárnio despedaçou o coração de Beatrice como as garras de uma ave de rapina. — Seu marido voltou a espada contra o próprio rei. E eu o matei por isso. Os olhos de Richard cuspiam fogo. Ela jamais o vira desse jeito. O cortesão elegante e gentil de Westminster estava furioso, impelido por fortes emoções, com os instintos agressivos de um soldado. O ar ao redor deles, decididamente, estava em chamas. — Foi por ordem sua, Beatrice? Neste caso, eu deveria me ajoelhar para agradecê-la por me trazer de volta à vida, em vez de me atirar aos abutres do outro lado de sua muralha. Foi a gota d'água. A compostura dela se desintegrou por completo. Mais tarde, ficaria horrorizada diante de seu comportamento impensado. Tratar um homem ferido daquela maneira. Porém, Beatrice fora provocada além da razão. Ela ergueu a mão, rápida como um raio, pronta para golpear, dar uma bofetada naquele rosto desdenhoso, que ainda era capaz de lhe fazer o sangue ferver. Ainda que debilitados pelos ferimentos, os reflexos de Richard eram ágeis, e mais rápidos do que os dela. Movido por puro instinto, ele lhe agarrou firmemente o pulso e a puxou para perto de si. — Não, minha cara, você não vai me acertar, a não ser que eu permita. Ele não a soltou. Puxou-a ainda mais perto. Até que o corpo dela tocou o dele. Até que tudo que Beatrice sentia era o calor da proximidade do cavalheiro, a quentura de seu hálito no rosto, em seus cabelos. A boca do homem pairava a poucos milímetros dos lábios dela. Ele era puro poder e fúria dominante. Beatrice ficou aguardando, incapaz de respirar, esperando a qualquer instante sentir a selvagem marca de sua fúria. Todavia, ele não se aproximou. A curva em seus lábios não manifestava sinal algum quando ele a fitou. — Será que devo me despedir com um beijo? Em memória do nosso falecido amor. — Aquela curva desapareceu, assim como o ardor em seus olhos, e Richard recuperou o autocontrole. — Se o fizesse, seria uma punição, não um sinal de 40


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien afeição. Não farei isso. Ele a empurrou bruscamente, e ela se esforçou para não se desequilibrar. Um comedimento gélido havia retornado com força total. Ela viu as mãos dele tremerem, procurando se conter. — Perdoe-me, lady Somerton. Meus modos foram imperdoáveis. Jamais machucaria uma mulher, e nem ergueria a mão contra ela. Independente do quanto me sentisse impelido a fazê-lo. Beatrice estava sem palavras. O que ela poderia ter feito para fazê-lo chegar tão perto de perder o controle? Tudo o que tinham havia sido destruído, de modo que se sentiam separados, sem qualquer esperança de salvação. Lorde Richard pegou seu manto e o jogou ao redor dos ombros, ignorando uma rápida pontada de dor que percorreu seu corpo. A sensação colaborou para ditar o tom de suas próximas palavras. — Foi muita sorte, minha senhora, descobrirmos que não somos compatíveis. Beatrice ergueu o queixo. Ela não se entregaria à emoção que ameaçava lhe destroçar o coração, mas responderia à altura. — Muita sorte mesmo. Adeus, Richard Stafford. — Ele inclinou ligeiramente a cabeça. — Adeus, Beatrice Somerton. A escolha destas palavras atingiu-a com violência, tanto quanto a bofetada que tentou desferir nele. De forma definitiva. Era como uma faca que se retorcia numa ferida. Eu o amo. Eu sempre o amarei. Ela repetiu isso em silêncio, quando ele abriu a porta e começou a descer lentamente as escadas. Beatrice jamais se sentira tão infeliz em toda a sua vida. Richard também.

Capítulo Cinco Mais uma vez Beatrice se postou no parapeito da muralha de sua morada para assisti-lo cavalgar pela estrada que cruzava a propriedade de Great Houghton. Passei minha vida inteira vendo Richard Stafford partir. Como na ocasião anterior, ele não olhou para trás. De modo que, enfim, levantando as mãos em um gesto de desespero, Beatrice fez menção de deixar seu ponto de observação, mas deteve-se ao avistar um outro cavaleiro aproximandose pela estrada. Ela pôde reconhecer o irmão. Quando o caminho dos dois homens se cruzou, eles se detiveram. Conversaram brevemente. Beatrice viu Richard olhar para trás, viu Ned erguer o braço e balançá-lo de um lado para o outro. Depois, com um aperto de mãos, eles se separaram. Richard esporeou o cavalo e desapareceu através da folhagem espessa de um pequeno matagal. Ned seguiu mais lentamente para o castelo. — Encontrei Richard Stafford no caminho. — Ned largou-se em uma cadeira no grande salão, esticou as pernas e expulsou um dos cachorros que veio lhe cheirar as botas. — Ele me cumprimentou com certa reserva. Estava em um estado deplorável, e preferiu não jogar muita conversa fora. Também parecia não querer se demorar. Tinha muitas preocupações na cabeça. — Ned olhou de 41


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien soslaio para a irmã. — A ferida na cabeça dele parecia ser recente. Eu diria que mais recente do que a batalha. — É. — Beatrice evitou o olhar do irmão. — Houve um... um incidente por aqui. Lorde Richard foi ferido. Mas sentia-se bem o bastante para cavalgar. — Ah... — Ned teve a oportunidade de fitá-la diretamente quando Beatrice lhe trouxe uma caneca de cerveja. Ele a interrogou. — O que ele estava fazendo aqui? E que incidente foi esse que você tenta tão engenhosamente ocultar? Eu quero a verdade, Beatrice. Ela abaixou a jarra de cerveja. — Eu... — O que poderia dizer? — Ele veio prestar suas condolências... pela morte de William. Ele... Lorde Richard... A dama foi incapaz de continuar disfarçando sua tristeza. Cobrindo o rosto com as mãos, esforçou-se para recuperar a compostura. — Beatrice. O que foi? — Surpreso, Ned levantou-se e envolveu a irmã com os braços, ficando ainda mais preocupado quando ela se recusou a permanecer ali. — Conte-me o que aconteceu. Ned imaginava o que era. Ela se afastou dele, e deixou as mãos caírem ao lado do corpo. Seus olhos grandes estavam sombrios de desespero. — Eu o amo, Ned. Eu o amo tanto. E sei que ele me ama... Ou, pelo menos, que me amava, antes que eu tornasse isso impossível. Mas ele matou William. E, talvez, tenha feito isso para remover o único obstáculo entre nós. O que teria sido meu maior desejo. E isso faz de mim tão culpada quanto ele, pois tornaria a morte de William um assassinato, cometido por Richard e incentivado por mim! Eu sempre o amarei, mas como posso ficar com ele neste caso? Além do mais, ele disse... que... — Ela passou a língua pelos lábios secos. — Ele disse que William era um traidor. E eu o chamei de mentiroso. — Era exatamente o que Ned temia. — Ah, Beatrice... — Ned a puxou até o banco de madeira, sentou-se ao seu lado e lhe passou sua caneca de cerveja. Parece que era necessário contar a Beatrice essa verdade — Beatrice... É verdade. Somerton voltou-se contra o rei. — Não. — Em parte, isto é culpa minha. Eu não lhe contei tudo que sabia a respeito da batalha. Mas me escute agora. — O rosto de Ned estava sério. — Como eu lhe disse, foi uma derrota completa. Fomos traídos. Nossa posição de defesa era soberba. Jamais deveríamos ter sido derrotados... — Ele praguejou abundantemente, apertando com força a caneca que Beatrice lhe devolvera. — Fomos traídos pelos partidários de York — ele repetiu. — Por lorde Grey de Ruthin, que Deus amaldiçoe a sua alma negra! Ele havia providenciado tudo. Assim que o conde de Warwick deu início ao seu avanço, Grey mandou seus homens abaixarem as armas e permitir que as tropas de Warwick, sem enfrentar nenhuma resistência, seguissem diretamente para o acampamento onde o rei Henrique aguardava notícias da batalha. — Ele sacudiu a cabeça, com incredulidade. — De modo que Warwick simplesmente marchou e fez Henrique prisioneiro. Foi desesperador. Em trinta minutos, tudo estava acabado. — E quanto a William? Ned franziu a testa ao fitar a irmã, que ansiosamente apertava as próprias mãos. Não havia como anunciou o que ocorreu de modo gentil. — Somerton trocou de lado. Ele se uniu a de Ruthin em sua traição e se juntou aos aliados de York. Beatrice não podia acreditar naquelas palavras. Richard dissera a verdade. 42


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Ele não mentira para ela. Ela o acusara de calúnia deliberada e lhe pisoteara a honra. Chamara-o de mentiroso. Beatrice sentiu um aperto no coração ao se lembrar de suas cruéis palavras. — Eu vi tudo acontecer — prosseguiu Ned. — Vi Somerton postar-se ao lado dos homens de lorde de Ruthin, sob o seu brasão negro. Eu o vi erguer a espada contra partidários de Lancaster que corriam para proteger o rei. Eu o vi unir-se ao ataque a Buckingham, quando nosso próprio comandante veio em defesa de Sua Majestade. — Ah, Ned. À medida que ia absorvendo as palavras de Ned, a história da traição de Grey e de William, Beatrice sentiu um frio se apoderar de seu coração, congelando-o de medo, tornando-o gelado como uma noite de inverno. — E vi Stafford matar Somerton, na tentativa de salvar o rei e o primo, Buckinham. Ele falhou, e mal escapou com vida. O duque de Buckingham morreu esquartejado. Beatrice ficou sentada em silêncio, com os olhos arregalados diante da seriedade do que havia feito. Depois, perguntou: — Por que não me contou nada disso antes? — Para poupá-la da mácula da traição. Uma ruga se formou entre as sobrancelhas da jovem. — Ned, por que William haveria de cometer um ato tão vil? Ned deu de ombros. — Somerton devia lealdade a de Ruthin devido a algumas de suas propriedades. De Ruthin deve ter exigido sua vassalagem. De Ruthin não é o tipo de homem que se quer como inimigo. Talvez o lorde houvesse lhe prometido riquezas caso o plano fosse bem-sucedido. Duvido que algum dia saberemos a verdade. Beatrice assentiu. Isso se encaixava perfeitamente com o que ela sabia. — Somerton era culpado de traição — Ned prosseguiu, determinado a não deixar dúvidas na mente da irmã. — Stafford matou William por pura necessidade, e porque era o seu dever, Beatrice. — Ele hesitou um instante, e depois concluiu seu pensamento. — Stafford não a traiu. William a traiu. Traiu a todos nós. — Ah, Ned! — Ela virou o rosto, para que o irmão não pudesse ver seu remorso. — E eu acusei Richard de deliberadamente assassinar William, por razões ignóbeis. Pior do que isso, meus homens quase o mataram. — Beatriz sentiu a emoção apertar-lhe o coração. — Ele era inocente de qualquer desonra, e, no entanto, eu o mandei embora. — O horror de seus últimos atos a deixava atordoada. — Sabe o que eu fiz? Tentei esbofeteá-lo! Embora ele estivesse ferido e sentindo dor. Como pude fazer algo tão terrível? Ned a observava, preocupado com a profundidade de sua tristeza. Depois a puxou para perto de si. — Vamos, não chore. O que já está feito talvez possa ser desfeito. — Não vejo como. Ele vai me odiar para sempre. E não posso culpá-lo. Disse coisas terríveis para ele. Ned, como Richard ainda pode sentir algo por mim? Eu destruí o amor que ele sentia por mim, e lhe causei enorme sofrimento. Ned fitou as faces pálidas da irmã, a firmeza de seus lábios enquanto ela lutava para recuperar o autocontrole. O que pensava o pai deles ao condenar a filha a um casamento tão injusto e desprovido de amor! Mas a influência local de Somerton pesara na balança e, por isso, Beatrice tivera de pagar o preço. E Sir 43


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Walter mal vivera um ano para aproveitar os benefícios da transação! Em sinal de solidariedade, Ned apertou mais uma vez a mão da irmã, e depois ficou de pé, ajudando-a a fazer o mesmo. — Preciso ir, Beatrice. Será que ficará bem, sozinha aqui? Ela inspirou profundamente, e ergueu a cabeça. A culpa era dela, e precisava aprender a conviver com isso. Pelo menos, agora sabia da verdade. Da desonra que a traição de William trouxera à sua família. E, mais importante, da imaculada integridade e inocência de Richard. — Só mais uma coisa, antes que se vá, Ned... Quando fui mandada para a casa de minha tia, antes do casamento... Por acaso, Richard esteve em Mears Ashby? Ned parecia ligeiramente envergonhado: — Esteve sim. — O que aconteceu? — Ele queria vê-la. Rogou para que nosso pai reconsiderasse. — E? — Papai lhe disse que os contratos nupciais já haviam sido assinados e que você já estava morando em Great Houghton. Que você estaria casada em poucas semanas. — Entendo. E ninguém jamais me disse nada. O olhar repleto de culpa de Ned recaiu sobre a irmã, esperando uma reação explosiva que não ocorreu. — De que teria adiantado? — De nada, eu suponho. Mas a voz dela estava carregada de emoção. — Era importante? — Não. — Ela sacudiu a cabeça. — Pelo menos, não é mais. Era apenas mais uma ferida. — Procure não se culpar. — Ned seguiu para a porta. — Mas acho que deveria acertar as coisas com Stafford. — Eu sei. — Ela inutilmente tentou esboçar um sorriso. — Não deixarei as coisas do jeito que estão. Acho que tenho orgulho demais, e a vergonha está me incomodando, tanto a minha própria, pelo que eu fiz, quanto a causada pela desonra de William. De um jeito ou de outro, preciso me retratar. O que ela poderia fazer para reparar essa situação? Apenas uma ideia lhe vinha à cabeça. Uma vez tomada a decisão, o resto parecia ser fácil — mas o resultado era imprevisível. A dor no coração era tão intensa que parecia quase física. Beatrice abriu o baú em seus aposentos, e de lá retirou uma caixa de madeira trabalhada. No seu interior estava o cisne de marfim. Ela acariciou o pobre pé danificado, maravilhando-se com a resistência da jóia tão frágil, capaz de sobreviver ao conflito relativamente incólume. Depois, enrolou a jóia em um tecido macio, a seguir em uma tira de couro, e por fim amarrou o embrulho com uma corda de cânhamo bem resistente. Se o cisne podia sobreviver à batalha, poderia sobreviver à jornada nas mãos cuidadosas de um mensageiro. As estradas pareciam estar tranquilas. Ela o enviaria com um de seus homens até Elton's Marsh, a casa de lorde Richard em East Anglia. Depois, pegou uma delicada folha de pergaminho. E um cálamo de pena de ganso, que afiou. Beatrice sentou-se diante da mesa em seus aposentos, onde a luz da janela incidia sobre o que se esforçava para escrever. O que dizer a ele? 44


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Diga o que está em seu coração. Peça o perdão dele. Submeta-se ao julgamento dele. Sinceridade é o melhor caminho. Neste caso, é o único caminho. De modo que ela se abriria por completo para ele e deixaria a decisão final a cargo de Richard. Mergulhando o cálamo no tinteiro, ela começou. As palavras vieram lentamente, eram difíceis e formais, mas era o melhor que ela podia fazer. Meu querido Richard, Agora sei da verdade. Tarde demais, eu sei, mas, na medida do possível, precisava me retratar com você. Meu irmão, Ned, me contou da perfídia de lorde Grey, de sua traição à Sua Majestade em plena batalha, o que resultou no massacre de tantos homens leais. E também da decisão perniciosa de William de apoiar de Ruthin, de se unir a ele neste ato desprezível. E de como você foi forçado a desafiá-lo e a lhe tirar a vida em uma tentativa inútil de impedir a captura de Sua Majestade, assim como para proteger a vida de seu primo, o duque de Buckingham. Meu querido Richard, será que algum dia poderá me perdoar — por tê-lo acusado de colocar seus desejos pessoais acima de sua lealdade à Coroa? Sei que é um homem de muita honra e consciência. O que William não foi. Ned também me disse que você veio à minha procura em Mears Ashby. Eu estava em Lincoln. Meu pai mentiu para você e para mim. A culpa é minha. Sei que não há desculpa para o que eu disse. Nem para o meu papel no tocante ao ataque que sofreu, em que minhas palavras impensadas foram responsáveis. Permiti que minha cabeça o acusasse de assassinato, mesmo quando meu coração o negava. Você poderia ter morrido nas mãos de meus empregados, agindo em meu nome. Como posso me perdoar por isso? Tudo o que posso fazer é pedir o seu perdão, e torcer para que acredite que esta mísera retratação não é composta de palavras vãs. Espero que, a esta altura, já tenha aberto o embrulho. É meu maior desejo lhe devolver o cisne. Espero que o aceite como símbolo de minha penitência. William morreu pelo seu terrível crime contra a Coroa. Devido a todo o sofrimento e dor que lhe causei, não posso mais escrever. Você tem todo o meu amor. Sempre o teve. Sempre o terá. Compreendo se não se sentir mais capaz de retribuir este sentimento. Ah, meu querido Richard, eu gostaria, com toda a minha alma, com cada fibra de meu ser, que tudo não tivesse acabado assim. Beatrice Ela hesitou. Depois escreveu firmemente: Hatton A carta estava terminada. Continha tudo que havia em seu coração. Beatrice passou as mãos na face, para impedir que as lágrimas caíssem no papel e borrassem a caligrafia. Depois, cuidadosamente dobrou o documento, embrulhou-o em outra camada de couro, junto com a jóia, e procurou o mensageiro, para lhe dar instruções acerca da jornada, antes que pudesse mudar de ideia. Talvez fosse uma causa perdida. Ela havia ofendido sua honra e integridade, e ele era um homem que, como provara em sua tentativa de poupá-la da dor, se atinha às mais altas aspirações do cavalheirismo. O embrulho fora devidamente entregue na casa de lorde Richard Stafford em Elton's Marsh. O mensageiro retornou a Great Houghton sem trazer uma 45


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien resposta. Lorde Richard não estava lá. Ainda estava com o exército dos defensores da causa de Lancaster. Beatrice sabia que havia feito tudo que podia. Era um pensamento amedrontador que nada serviu para consolá-la. Os meses se passaram. O verão transformou-se em outono e, depois, este foi substituído pelo frio do inverno. A neve caiu e cobriu os campos de batalha onde tantos haviam lutado e morrido, como que para apagar a lembrança de acontecimentos tão brutais entre famílias que outrora haviam sido amigas. Beatrice e os habitantes de Great Houghton se enclausuraram no interior de suas muralhas. Não havia nenhuma notícia. O Natal chegou com a promessa de comemorações para aliviar os corações. Beatrice teria preferido ficar em Great Houghton — ela não estava se sentindo muito festiva — mas Ned insistiu que ela se unisse à família, em Mears Ashby. Pálida e com olheiras, ela o fez. Respeitosamente, sorriu e aplaudiu as palhaçadas do bobo da corte, e as melodias e letras dos músicos. Ela dançou, tomou parte nas brincadeiras tradicionais. Foi um esforço nobre, que não enganou ninguém. Frequentemente brincava com a comida, sem apetite, e ficava sentada com uma expressão sonhadora no rosto, com o olhar perdido fitando alguma cena indesejada do passado. Assim que a cortesia o permitiu, ela voltou para casa. A esposa de Ned, Alice Hatton, expressou ao marido sua surpresa por Beatrice sofrer tanto com a perda de Sir William Somerton. — Ele a tratava pouco melhor do que qualquer outra serviçal em seu castelo. — É verdade. — Você jamais me trataria tão mal, não é? — É claro que não! Ned procurou em vão uma desculpa para mudar de assunto. — Eu jamais gostei dele. Tinha lábios finos. Pobre Beatrice. — Sem dúvida. Pobre Beatrice. — Mas, agora, ela está livre dele. Por que não está mais feliz? Pensei que o tempo curaria essas feridas. — Eu também. Diante de surpreendente intuição, Ned achou melhor ficar calado. Em nada ajudaria Beatrice escutar o nome de Richard Stafford dos lábios inquisitivos de Alice. Voltando para Great Houghton, Beatrice se viu, em numerosas ocasiões, postada diante do parapeito da muralha, enrolada em uma capa de veludo para se proteger do vento frio, observando a estrada que levava ao castelo. Por fim, ela sempre acabava se forçando a entrar. Ele não vinha. O tempo começou a exercer mais pressão no seu coração. Então, começaram a chegar rumores de uma grande batalha no norte, em Wakefield. Uma vitória dos partidários de Lancaster, na qual o próprio duque de York, recém-chegado da Irlanda, fora morto. Será que Richard lutara na batalha? Sentada diante da lareira de seus aposentos, Beatrice estremeceu diante dessa ideia, sabendo que, com toda a certeza, ele estaria no centro do combate. E como ela desejava que ele estivesse na segurança de seu lar em Elton's Marsh. Será que ele ainda tinha o cisne, ou o havia guardado no fundo de algum cofre e esquecido dele, como um berloque de pouca importância e sem valor sentimental. 46


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Ela visitou o túmulo de William Somerton na igreja da aldeia, a St. Michael & All Angels. Ele estava agora completo, com um monumento em alabastro de William usando armadura completa, a cabeça repousando no elmo, o pé apoiado em um grifo alado, como o de seu brasão. As mãos estavam com as palmas encostadas uma na outra diante do peito, em sinal de prece. Beatrice jamais o vira tão sereno. E nem tão satisfeito consigo mesmo. Por que William, com todo o rancor de que era capaz, procurara prendê-la a ele na morte, do mesmo modo que o fizera em vida. O testamento, tão generoso em seus termos, incluía em suas cláusulas a última ferroada do escorpião. Caso ela se cassasse novamente, perderia sua herança e seu lar em Great Houghton, que reverteriam ao filho mais velho de Sir William. Beatrice ficaria, então, apenas com a quantia bem menos opulenta de quarenta libras e bens materiais no valor de dez marcos. Uma parca herança, que certamente não atrairia outro marido. Uma artimanha desprezível. Beatrice tocou o rosto frio de William Somerton. — Como pôde fazer isso comigo? A escultura de William permaneceu presunçosamente em silêncio. Cuidado com o que deseja. As palavras sorrateiramente se intrometeram em seus pensamentos. Ela desejara se livrar deste casamento, mas não desse jeito. Não nesses termos. Ela se agarrou ao próprio sentimento de culpa. Não era a morte de William que estava partindo o seu coração. Uma fúria inútil surgiu em seu ser, como uma tempestade em céu de verão, apenas para atormentá-la, quando ela retornou ao Grande Salão. — Por que não podia ter me respondido, Richard? Ela falou as palavras em voz alta para as gralhas indiferentes, empoleiradas em um majestoso agrupamento de árvores. Mesmo se sua rejeição à petição dela fosse tão definitiva de modo a lançar na lama suas esperanças, teria preferido não saber. Será que todos os homens eram tão intransigentes assim? Como ele ousava fazê-la passar por esta deplorável incerteza. Logo a raiva desapareceu, deixando em seu lugar um vazio profundo na alma. Para Richard Stafford, as semanas e os meses não foram melhores, mas por necessidade, ocuparam menos os seus pensamentos. Ele lutara na batalha de Wakefield, sobrevivendo a ela praticamente incólume, tirando os arranhões e machucados costumeiros em combates violentos. Fora um confronto sangrento, no qual testemunhara o duque de York ser cercado e golpeado até a morte no campo de batalha. Richard deixou o combate tomado pelo desgosto, desiludido com tanto sangue derramado e com o massacre deliberado, sem clemência e nem perdão, da nobreza York, e retornou para Elton's Marsh. Sentindo a necessidade de cicatrizar antigas feridas e reaver uma pequena jóia que ele jamais arriscaria novamente no campo de batalha. Um cisne de marfim que representava um reluzente símbolo de esperança, um brilho de luz quando a morte e o sangue ocupavam seus sonhos. Da possibilidade de um futuro com a mulher que, apesar de tudo, ainda era a dona de seu coração. Sorrindo, passou os dedos pelas pequenas penas de marfim. Releu a carta de Beatrice, imaginando-a sentada, escrevendo-a em seus aposentos. Ele se recordou da maciez de sua boca contra a dele, o perfume de seus cabelos quando os soltara para acariciá-los entre os dedos. Há seis meses não via Beatrice, desde que saíra cavalgando de sua vida, com a mente repleta de amargura e raiva dirigidas ao capricho do destino que colocara sua amada ao seu alcance, apenas para roubá-la dele novamente. A consciência 47


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien o feria com a lâmina afiada da culpa, forçando-o a questionar seus próprios motivos naquele dia em Northampton. Mas, nos meses que se seguiram, enfrentara novamente a morte no campo de batalha. Quando o barulho, o sangue e a violência excessiva privam um homem de todos os pensamentos, de toda decisão, com exceção da necessidade de bloquear o próximo golpe, derrotar o próximo oponente. E, ele sabia que, quando confrontado com a ponta de uma espada ou de um punhal, com o golpe de uma maça, ou com a estocada de uma alabarda, não havia outra escolha a não ser sobreviver. Nas mesmas circunstâncias, para salvar a si mesmo, ou a Buckingham, ou ao rei, ele faria novamente o mesmo, independente de seu adversário. William Somerton, ou qualquer outro. E, por fim, havia aceitado o fato de que não carregava culpa alguma por ter assassinado o marido de Beatrice. Richard havia tirado um peso de seus ombros. Às vezes, a consciência e o dever serviam apenas para complicar as coisas. Mas, agora, Beatrice sabia da verdade sobre o que acontecera naquele dia terrível. O abismo que os separava poderia ser transposto. Era chegada a hora de Richard dar o próximo passo.

Capítulo Seis Era primavera. Abril havia chegado após um mês de março frio e inconstante, com dias de ventos tépidos e chuvas rápidas. Os abrunheiros floresciam nas cercas vivas, assim como as prímulas nas cantoneiras do jardim de Beatrice. Suas pétalas amarelas e o verde frágil de suas folhas confortavam a dama. Ela ainda usava vestidos pretos, como um sinal formal de sua viuvez, mas a nova vida que a cercava afastava seus pensamentos de contemplações melancólicas. William morrera há mais de seis meses. Ela se mantinha a par do mundo exterior através das visitas de Ned e das cartas de sua mãe, que havia viajado para Londres para ficar com a irmã. Beatrice lia as longas missivas de lady Margery a respeito da atual batalha pelo poder, depois dobrava os pergaminhos e os guardava. Sua consciência se preocupava com o fato de a ascensão e a queda dos Lancaster e dos York serem de tão pouca importância para ela. Só havia uma única carta que ela realmente queria receber. A única informação que chegou a ela, através de Ned, que de fato era de suprema importância para sua vida, era que Richard Stafford estava vivo, tendo sobrevivido à carnificina em Wakefield, e, mais tarde, a uma batalha ainda mais sangrenta em Towton. Tal notícia lhe trouxe certo consolo. Se ele ao menos encontrasse tempo para lhe escrever... Mas, após um silêncio tão prolongado, ela já desistira de voltar a ter notícias de Richard. — Minha senhora, temos visitas. Beatrice colocou no chão a pesada tesoura de ferro para poda, ao lado da cesta com os restos de flores mortas do outono anterior. — Quem é, Lawson? — Não disse o nome, minha senhora. Não havia necessidade de fazê-lo. Surpresa, Beatrice ergueu as sobrancelhas. Lawson costumava ser tão eficiente neste ponto. — Então, como saberei se devo recebê-lo? Eu o conheço? Lawson esforçou-se para manter séria a expressão do rosto. 48


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien — O cavalheiro me pediu para lhe dar isso, minha senhora. Disse que assim a senhora decidirá se quer recebê-lo. Ele estendeu um pequeno embrulho de veludo preto. Como se estivesse sonhando, Beatrice pegou o embrulho. Sabendo exatamente o que encontraria lá dentro, seus dedos tremiam, ao desenrolar apressadamente o tecido macio. Inspirando fundo, sua mão se fechou ao redor do conteúdo. Ela olhou para Lawson. — Onde ele está? — Tomei a liberdade de levá-lo até a sala de estar. Supus que a senhora iria querer isso. — Lawson se permitiu um sorriso. — Ele a está aguardando. Muito havia sido esclarecido para mestre Lawson. Lorde Richard era bemvindo naquela casa, mais do que bem-vindo, considerando-se que ele era capaz de fazer lady Beatrice sorrir novamente. Beatrice não hesitou um segundo sequer. Richard estava em sua casa. Ela ergueu as saias escuras e correu, deixando de lado toda a dignidade. Abriu impetuosamente a porta da sala de estar, escancarando-a. E, então, por fim, deteve-se no vão da porta. E viu Richard. Ele não havia mudado nada. Talvez, estivesse um pouco mais magro, com novas rugas delineando-lhe o rosto, ao redor da boca e nos cantos dos olhos. Ela notou de imediato a cicatriz do ferimento na cabeça. Mas, apesar de tudo, ainda era o mesmo Richard. Ele havia voltado para ela. Seu coração começou a bater mais forte no peito. Tantas palavras que ela queria dizer. Todos os arrependimentos e explicações, todas as palavras de amor ensaiadas para ele, caso algum dia voltassem a se ver. Nada disso veio à sua mente. — Sonhei tanto com este momento — foi tudo que ela conseguiu dizer. — E o que fez em seu sonho? — Eu sonhei que... — ela sacudiu ligeiramente a cabeça. Ainda não podia lhe contar. A situação entre os dois ainda não estava resolvida. Beatrice sequer sabia a razão de ele estar ali para vê-la. Era impossível decifrar aquele rosto sério e determinado, e também desconfiado. — Por que está aqui, Richard? Será que ele ia simplesmente devolver a jóia, porque não tinha mais utilidade, e ir embora? — Eu vim, Beatrice, porque não consegui ficar longe. Sua voz era tão séria quanto a expressão de seu rosto, mas a chama da esperança se acendeu no íntimo da jovem. — Eu disse na última vez que nos vimos que não éramos compatíveis. Lamento minhas palavras. — Eu me lembro. — Aquela ocasião ainda a enchia de vergonha. Ela abaixou os olhos, diante do olhar do cavalheiro. — Lamento minha intransigência. — Diga-me, apesar de tudo o que aconteceu, tudo aquilo nos separou, ainda me ama? A esperança começou a arder com maior intensidade. Beatrice sentiu a face enrubescer diante. Ela levantou os olhos. — Amo — disse, e prendeu a respiração. — Graças a Deus... — Richard suspirou, como se um peso grande demais para ser suportado houvesse sido retirado de cima da alma. — Neste caso, me diga, minha cara: o que fez em seu sonho? — Sua boca enfim relaxou e sorriu, vendo-a ali, no vão da porta, com sua beleza indiscutível, apesar do luto, 49


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien emoldurada pela madeira escura. Todas as suas dúvidas dissiparam-se como a névoa sob o sol da manhã. A rejeição não estava entre as emoções que o rosto da dama deixava transparecer. Havia apenas a esperança e a alegria. — O que você fez, Beatrice? — insistiu. Richard poderia ter avançado, ido até ela, mas queria dar a Beatrice essa liberdade. — Ah, Richard. No meu sonho, fiz isso... Por fim, Beatrice deu um passo à frente. E, depois outro, reduzindo a distância que os separava. Ele abriu os braços, e os fechou ao redor dela, abraçando-a apertadamente, com a poeira da viagem envolvendo os dois. Não importava. Ela estava em seus braços, segurando o cisne dos Hatton, apertado de encontro ao seu coração. — Eu o feri. Seu rosto está ferido, e a culpa é minha. — Com o rosto pressionado contra a base do pescoço dele, a voz de Beatrice saiu abafada. — É passado. Não importa mais agora. — Pensei que havia me abandonado, me esquecido. — Sua voz tremeu um pouco, ao se recordar da desolação absoluta das manhãs de inverno. — Como eu merecia. — Jamais a esqueci. Como poderia? — Os dedos de Richard acariciaram-lhe o cabelo, onde ele aparecia sob o véu, na altura das têmporas, inalando-lhe a fragrância de alfazema, enquanto ele maravilhava-se com o que enfim estava acontecendo. Seu próprio sonho, de que ela deliberadamente se atiraria em seus braços, estava se realizando. — Não me deixe, Richard. Nunca mais. Agora, com os olhos brilhando de lágrimas contidas, ela o fitou, ergueu uma das mãos para lhe tocar o rosto, e ainda não podia acreditar que não era algum terrível pesadelo recorrente, no qual ele desapareceria no instante em que ela abrisse os olhos para o sol da manhã, acordando sozinha. — Não deixarei. — Emoldurando-lhe o rosto com as mãos, ele enxugou a umidade de sua face. — Jamais darei motivos para fazê-la chorar. E selarei esta promessa. Richard abaixou a cabeça, seu beijo quente roubando-lhe o fôlego. Ele concentrou naquele encontro de lábios todo o seu amor e a saudade pelos meses de separação. Todo o arrependimento pela dor e mágoas causadas. Até que a ternura suprema fosse superada por um ardor que lhe percorria o sangue, incendiando a ânsia mais primitiva de posse. Até que o beijo não bastasse mais e o desejo começasse a latejar. — Há tanto tempo eu queria beijá-la, tê-la em meus braços. Soltando os lábios da dama, ele lhe acariciou de leve a testa, as pálpebras, a maciez das têmporas, e a pele ainda mais macia sob o queixo. Os dedos de Beatrice se fincaram nos antebraços dele, puxando-o ainda mais para perto. — Também sonhei com isso. — Ela virou a cabeça, para retribuir os beijos. — Tanto dormindo, quanto acordada. Richard a segurou diante de si, notando que o coração dela batia tão rápido quanto o dele. Beatrice estava tão envolvida quanto ele. E tinha certeza absoluta de que desejava aquela mulher mais do que já quisera qualquer coisa, ou qualquer outra em sua vida. E rezava para que ela também o quisesse. Seus olhos capturaram os dela, recusando-se a soltá-la, mantendo ambos prisioneiros em uma teia de carinho e gentileza, mas com a promessa da deliciosa paixão que os aguardava. Palavras não eram mais necessárias entre os dois. Richard viu o 50


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien rubor delicado que se apossou da face da moça quando ela se deu conta de suas intenções. Ele decidiu correr o risco e lhe oferecer a chance de recusar. — Meu amor, quero fazer mais do que apenas beijá-la. — Ela entendeu. Regozijando-se com o fato de ele estar disposto a lhe oferecer a escolha. De modo que Beatrice decidiu escolher o que seu coração mandava. — Também quero. Venha. Puxando-o pela mão, ela o conduziu até o pé da escadaria. Lawson, sempre atento ao bem-estar de sua senhora, emergiu das sombras. — Precisa de alguma coisa, minha senhora? — Não, Lawson. Não precisamos de nada. — Lady Beatrice Somerton sorriu e sacudiu a cabeça, sem saber e nem ligar para o que os serviçais poderiam achar de seu comportamento, ou dos mexericos que seriam espalhados durante a refeição da tarde. —Agora, tenho tudo de que preciso. Ela se retirou para os seus aposentos com lorde Richard Stafford, em plena luz do dia, sem se dar conta de que seus empregados queriam apenas que ela fosse feliz. Entrando no aposento depois dela, Richard fechou a porta e aguardou até que ela se virasse para ele. Ao estender a mão para ela, a alegria e a expectativa no rosto de Beatrice eliminaram todas as dúvidas. — Nada pode se colocar entre nós. E eu jamais permitirei que algo o faça novamente. — É o que eu desejo, Richard. Eu não confiei o suficiente em você. Esse foi o meu pecado. E William. Como William pôde trair tudo em que sempre acreditou? Sei que isso o forçou a fazer uma escolha impossível. — Confia em mim, agora? — Confio. Oh, como confio. Ele ergueu o queixo de Beatrice e manteve os dedos quase firmes. Alisou sua pele de cetim, depois a segurou, imóvel, diante de si. Suas palavras foram severas, de uma sinceridade quase dolorosa. — Eu fiz aquela escolha, Beatrice. Sei que, se necessário, faria a mesma escolha novamente, e não me sentiria culpado. O terrível custo da guerra não é apenas no campo de batalha; alcança todos. Cria obstáculos impossíveis, cava abismos sem fim, que dividem e separam. Traição e derramamento de sangue jamais devem ser encarados com leviandade. — As linhas severas de seu rosto se transformaram em um sorriso. — Mas, independente do motivo, o destino optou por sorrir para nós, dar-nos uma segunda chance de ficarmos juntos. — A mão que ainda segurava a dela se apertou, os dedos de Richard se entrelaçando aos dela, formando um vínculo indestrutível. — A traição de Somerton não se colocará entre nós. Tranquilize seu coração, amada. — Será que conseguiremos cicatrizar nossas feridas? — Certamente. Podemos começar agora mesmo a curá-las. Seu amado não poderia ter dito nada melhor, nada mais direto ou mais tranquilizador para o seu coração inquieto. Ela virou o rosto para beijar o pulso de Richard, em cujas veias o sangue pulsava fortemente. — Eu amo você, Richard Stafford. Se assim o desejar, meu coração é seu. Os braços dele rodearam Beatrice. — E eu a amo. Você é a minha vida e a minha alma. Aceito de bom grado o seu coração, pois, com toda certeza, você já é dona do meu. — Richard encostou o rosto na curva do pescoço macio de Beatrice; seus grandes temores, quase insuportáveis, enfim foram dissipados. — Fomos destinados a ficar juntos. 51


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Haviam esperado muito tempo por aquele momento, acreditando que jamais o experimentariam. Não apenas os terríveis meses desde a última vez que se viram, mas também quando suas mãos se tocaram pela primeira vez, quando seus lábios se encontraram e se afastaram pela primeira vez. Quando seus desejos foram frustrados pela ambição de um ganancioso pai obstinado. Agora, aquele momento pertencia a eles e a porta dos aposentos de Beatrice estava fechada, isolando-os do resto do mundo. Trancada para que ninguém entrasse. Nada impediria que consumassem seu amor. Ela guardou o cisne na segurança do cofre da janela. Depois, virou-se para ele, confiante de que Richard a protegeria. Com um galanteio formal, Richard soltou a cinta de renda, que caiu no chão. Depois, mostrou-se perito em desfazer todos os laços e amarras na cintura e no pescoço, até que a vestimenta deslizou pelo seu corpo, deixando-a apenas com uma combinação de linho. Ele ficou maravilhado. Como a moda da época servia para esconder e disfarçar os aspectos mais gloriosos do corpo da mulher! As curvas e depressões macias dos seios e dos quadris. Ela permitiu que uma das mãos luxuriosamente a acariciasse ombro abaixo. Depois, com dedos cuidadosos, ergueu o véu e o retirou. Por fim, como já se imaginara fazendo tantas vezes, desde aquela tarde distante nas sombras do corredor bem arejado no palácio de Westminster, ele soltou os grampos de seu cabelo. Eles eram tão gloriosos quanto ele se recordava, deveras macios e lustrosos. Richard não teve outra escolha senão agarrá-los firmemente, puxá-la para perto de si, e enterrar o rosto naquele emaranhado perfumado. — Beatrice. Enfim, você é minha. — Sim. Ao que tudo indicava, ela também era perfeitamente capaz de desnudar um homem. Retirar-lhe o casaco dos ombros. De desafivelar o cinturão e retirar a pesada espada. Desfazer os laços da camisa. Mas seus dedos tremiam, surpreendentemente desajeitados. A mão de Richard os amparou de encontro ao peito. — Acho que farei isso mais rápido. De repente, a urgência parecia fundamental. Ela ficou de pé, pegou a camisa das mãos dele, e as botas quando ele as retirou. Depois, fitando-o nos olhos, estendeu a mão para detê-lo. — Richard... Ele ergueu o olhar e lhe notou a preocupação passageira. Com compreensão e sensibilidade, ele a ajudou a se sentar na cama, e sentou-se ao seu lado. — Não quer isso? Perdoe a minha impaciência. — Ele sorriu maliciosamente. Com incomum timidez ela sacudiu a cabeça. — Acho que merece saber que... Tenho pouca experiência. William só veio para a minha cama na noite de nosso casamento. Ele não precisava de mais herdeiros. Preferia buscar o prazer com outras mulheres. — Ah, Beatrice... Tomar ciência dessa rejeição provocou um aperto no coração de Richard. Tudo que ele pôde fazer foi segurar-lhe carinhosamente a mão. — Minha única experiência foi de... desconforto e uma cama fria — ela prosseguiu. — Mesmo naquela noite, ele não se demorou mais do que... o necessário. — Isso não muda nada para mim, Beatrice. — É que... talvez prefira compartilhar a cama com alguém mais experiente. 52


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Tanta insegurança numa dama tão confiante. — Prefiro você. Temos toda a experiência de que precisamos. Adorarei lhe proporcionar conhecimento e prazer. A luz do sol entrou pela janela, criando um tom dourado na borda da cama, quando ele afastou a combinação de seus ombros. O linho deslizou até os antebraços da dama. — Como ele foi capaz de resistir? — murmurou Richard. — Pois eu não consigo. Apesar de magra, Beatrice era soberbamente feminina. Seus seios eram firmes, e, na opinião de Richard, perfeitos. Os ombros pediam para serem beijados, e ele o fez, subindo depois para a pele macia do pescoço. Era inebriante. A pele de Beatrice aqueceu-se e ruborizou-se sob as carícias dos lábios e da língua do amado. — Deixe-me tocá-lo. As palmas de suas mãos alisaram a pele dele, aquecida pelo sol que agora os iluminava. A pele de Richard era firme, após tantos exercícios e extenuantes combates. Ela estremecia, à medida que ia explorando, à medida que seus dedos alisavam antigas cicatrizes. Estremeceu novamente, junto com ele. Estava na hora. Com habilidade, ele puxou os lençóis da cama dela, e a levantou no colo, depositando-a sobre os travesseiros. Enquanto Beatrice o aguardava, deitada, ele livrou-se do restante de suas roupas e se juntou a ela. — Agora, posso olhar para você. Você é tão belo. Os quadris e coxas musculosos, os ombros largos e a cintura estreita. As camadas de pêlos escuros, cobrindo o peito e a virilha. Sua impressionante ereção, prova de seu desejo por ela. Por um breve instante, Beatrice lembrou-se do corpo envelhecido de William. Depois, afastou aquela imagem de seus pensamentos. Jamais teria de pensar nisso novamente. Agora, estava com Richard. Ela se virou para vê-lo quando ele se esticou ao seu lado. Ergueu os braços para puxá-lo para perto de si, e Richard fez o mesmo. Todas as dúvidas, todos os temores, toda a culpa das últimas semanas desapareceram, quando a boca de Richard percorreu uma trilha que ia de seus olhos fechados até a face delicadamente ruborizada. A felicidade que irradiava dela era incrível. — Você é minha, com ou sem a sanção da lei e da igreja. Com ou sem a permissão de sua família. Eu juro. Ele murmurou as palavras de encontro à pele sedosa do ombro dela. — Eu juro. Richard preocupava-se com o nervosismo dela, sem necessidade. Ela se entregaria a ele com toda a espontaneidade e alegria que lhe eram inerentes. Aprenderia de bom grado com ele. Richard pôde perceber isso em seus beijos, na maciez de seus lábios, e sua rendição ao ser possuída pela língua do cavalheiro. E assim começou a gentil campanha de sedução. Carícias lentas e demoradas, o alisar de pele sobre a pele ainda mais macia. Nada para apressá-los ou preocupálos à medida que as horas do dia foram passando. O momento pertencia a eles, para saborear e aproveitar. Mas nenhum dos dois simplesmente permaneceria calmo e tranquilo, em puro deleite mútuo. Nem a separação forçada, com toda a sua dor e incerteza prescrevia lentidão no ato de amar. O desejo mútuo foi incendiado pelos longos beijos, e as carícias dos dedos hábeis. Ele queimou, depois ardeu, e, por fim, explodiu com a necessidade de provar o amor deles, a despeito de tudo que 53


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien colaborara para destruí-lo e negar este desejo que consumia a ambos. Nada mais importava para eles, nem o conforto do aposento que os cercava, nem as partículas de poeira flutuando no ar que brilhavam sob os raios do sol, nem o canto do melro na macieira do lado de fora da janela. Não se atinham a nada que pudesse distraí-los do que poderiam descobrir um no outro. A mais pura celebração da vida, o momento em que, enfim, estavam juntos. Nada os separaria novamente. Eles se agarraram a este único fato, enquanto Beatrice percebeu-se no limiar de sensações que ameaçavam atirá-la de cabeça em um território desconhecido. Elas lhe percorriam as veias, floresciam em seu íntimo, desabrochando suas pétalas até então comprimidas. A intensidade da sensação estava em algum lugar entre o prazer e a dor deliciosa. Privava Beatrice de seu controle e da capacidade de pensar. — Não! — Suas unhas arranhavam a pele dos ombros de Richard. — Eu não posso. — Pode sim! Seu amante não possuía clemência. Capturou as mãos que tentavam empurrá-lo. Continuou a atacar cada terminação nervosa em seu corpo com a boca e o toque habilidoso. O deslizar eletrizante de dentes e língua, explorando com toda a sua destreza. Até que deslizou os dedos para dentro dela. Ela teria gritado, mas a boca de Richard cobriu a sua, engolindo-lhe a reação atordoada. Depois disso, as chamas a devoraram e Beatrice não teve outra escolha senão abrir mão do autocontrole e mergulhar no desconhecido. E achá-lo insuportavelmente delicioso. E ela também descobriu que não estava sozinha. Pois Richard a abraçava, enquanto ela tremia descontroladamente de encontro a ele. Abraçou-a até os tremores passarem e ela enterrar o rosto em seu peito. O quarto ao redor deles ficou em imóvel silêncio; até mesmo o melro havia cessado sua canção. — Jamais experimentei algo parecido — ela sussurrou, extasiada, de encontro à garganta dele, sentindo a necessidade de esconder o rosto. — Como eu poderia saber? — Eu lhe proporcionei prazer? Sem dúvida, ele devia saber a resposta. — Claro. Mas não terminou ali. Sua boca agora marcava com o calor a pele dela, suas mãos pareciam ainda mais ávidas, e seus corpos estavam suados de excitação. A língua de Richard possuiu a boca de Beatrice com mais voracidade. Depois, trilhou ao longo da elegante curva da garganta de Beatrice, descendo até o vale macio entre os seios, e ainda mais para baixo, à medida que seus dedos iam explorando todos os segredos escondidos. Até que ela arquejou e gritou novamente, sentindo a pressão do ardor acumular-se, provocando pontiagudos golpes de paixão em seu ventre. Até que o homem não foi mais capaz de se conter. Agilmente, Richard se apoiou nos braços e a manteve no lugar ao enfiar a mão no emaranhado de cabelos sedosos de Beatrice. A reação dela foi imediata, um convite irresistível. O peso do homem parecia deleitá-la. De modo que ela arqueou os quadris, e afastou as coxas, envolvendo-o com as pernas. Sentiu-lhe a potência rígida e suave de encontro a si, ansiando por ter aquele calor expandindo-se dentro de si. Ele arremeteu contra ela, incapaz de se conter mais um segundo sequer. 54


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien Duro e potente. Repetidas vezes. Beatrice percebeu instintivamente que deveria repetir seus movimentos. Ele ficou imóvel por um instante, quase perdendo o controle. Apoiou todo o peso nos braços, emoldurou-lhe o rosto com as mãos e beijou-lhe a boca com tamanha ternura, em desacordo com sua posição dominante. Ela estremecia diante de sua glória. — Beatrice... Ele suspirou de encontro à boca da mulher, enquanto esforçava-se para lhe prolongar a experiência. — Richard. Os olhos, arregalados e do mais profundo azul, fitaram os dele. Era como se Beatrice estivesse permitindo que ele lhe vislumbrasse o fundo da alma, do mesmo modo que ela o havia recebido no interior úmido de seu corpo. — Você está me destruindo — ele gemeu. — E isso é bom? — Ah, sim. — Ele voltou a se mover. — É mais do que bom. E com uma arremetida, sem ter outra escolha, Richard encontrou o próprio alívio das pressões indescritíveis que dominavam seu corpo inteiro, fitando-a nos olhos, enquanto ela também estremecia em seus braços. — Então, minha querida? A respiração dele havia se acalmado, o trovão do sangue em suas veias se tranquilizado. Ele ficou ao lado dela e a puxou para perto. Jamais a soltaria. — Acho que foi um milagre. — Melhor do que pensou que seria? — Sequer pensei em William! — Que Deus tenha a alma daquele miserável! — Amém. — Eu não percebi que... Foi... Não consigo pensar. — Plantando beijos rápidos ao longo do queixo de Richard, ela se alinhou ao corpo dele, com todo o contentamento de uma gata se deitando sob os raios do sol. — Minha mente parece não mais me pertencer. — Pois pode ser ainda melhor. Ele curvou a cabeça, seus lábios lhe redescobrindo os seios, os bicos intumescidos. A língua de Richard a deixou inteiramente arrepiada. Seus dentes provocaram pontadas agudas de desejo. — Ah! — Pode ser... inacreditável — ele murmurou, com o hálito quente, a boca ardendo, e os dedos insistentes. — Não vejo como... Mas você poderia me mostrar. — Ele sentiu o sorriso na voz dela, sentiu-lhe as mãos movendo-se sedutoramente ao longo de sua espinha, arranhando-lhe as costas. Richard se viu revigorado quando ela se esticou ao lado dele de maneira obviamente convidativa. — Olhe para mim. — Ele aguardou até que os cílios se levantassem, e ela o fitasse com os olhos sedutores e cheios de segredos. — Desta vez, olhe para mim quando eu a possuir. Saiba que é minha. Um sorriso iluminou o rosto de Beatrice. Forçando-o a inspirar fundo diante da beleza daquela mulher deitada, em seus braços, que confiava plenamente nele. Beatrice podia ver-lhe a voracidade nos olhos, senti-la em seu corpo, quando ele a penetrou. — Eu conheço você, Richard Stafford. 55


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien — E, eu conheço você, Beatrice Hatton. Eu amo você. Eu a adoro. E estou disposto a passar minha vida provando isso a você. E Richard se dedicou a cumprir sua palavra.

Epílogo O curto dia de abril findava, com Beatrice deitada com a cabeça nos ombros de Richard, envolta por seus braços. As sombras começaram a ficar mais densas ao redor deles, auxiliadas pelos painéis de madeira escura das paredes e pesadas cortinas cor de damasco da cama. O melro retornou para uma canção de final de tarde. Richard e Beatrice a escutaram sem nada comentar. Não havia necessidade de falar. O demorado ato amoroso de sua primeira e dramática consumação dizia muito mais do que meras palavras poderiam fazê-lo. O sangue dela normalizou-se, seu coração acalmou-se; foram substituídos por puro contentamento, como sabia haver acontecido com Richard. A felicidade os envolvia como cobertas de cetim. — Beatrice? Você está muito calada. — Ela podia lhe sentir a boca sorrindo de encontro ao seu cabelo. — Você nunca fica tão quieta assim. Uma das mãos acariciou-lhe a pele sedosa do ombro até o pulso. Ele a sentiu estremecer de encontro a ele. — Não. Sentindo-se tomada por um vestígio de dúvida, Beatrice escondeu o rosto nos ombros musculosos de Richard. Quando ela nada mais disse, ele lhe beijou a têmpora. — O que a está incomodando? — Richard, preciso saber de algo. Ela levantou o corpo, sentando-se ao seu lado, mas os dedos permaneceram entrelaçados, e Beatrice nem notou que o lençol de linho lhe caiu até a cintura. — O quê? Foi difícil reprimir o sorriso. Ou a reação imediata de seu corpo. Ele ainda não havia terminado com ela. — Por que esperou tanto tempo para voltar? Por que não me escreveu? — Foi então que ela notou o pesar, breve, porém feroz, tocar-lhe o rosto com seus dedos cruéis, e pressentiu a profundidade de seu sofrimento e perda nas semanas de combate. Ela apertou a mão ao redor da dele, como se o calor dela pudesse cicatrizar as feridas. — Pensei que pudesse ter morrido. Eu não sabia, e me preocupava tanto. Não havia ninguém que pudesse me dizer nada. — Neste caso, devo pedir o seu perdão. — Ele ergueu as mãos entrelaçadas para lhe beijar os dedos, um a um, uma manobra delicada, que provocou um novo arrepio no ventre de Beatrice. — Pois eu deliberadamente posterguei minha vinda até hoje. — Achou que eu mudaria de ideia, e deixaria de amá-lo com a mesma velocidade com que me apaixonei por você? Não sou uma criança que se apaixona por mero capricho! O brilho nos seus olhos, o ângulo de seu queixo erguido, não deixavam dúvidas da determinação e do gênio explosivo de Beatrice. Ele amava isso nela. — Ah, a volubilidade das mulheres. — Ele estava deliciado com o desafio que ela oferecia. Que futuro maravilhoso teria com esta mulher imprevisível. Ele se acomodou de lado nos travesseiros e, com a ponta do polegar, alisou os lábios da 56


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien dama. — Não. Jamais tive receios quanto a isso. Se você se dispôs a mandar o cisne para o outro extremo do país, correndo o risco de perdê-lo para ladrões e assaltantes, visto que o caos impera no reino, eu sabia que ainda devia sentir o mesmo que eu. Minha querida Beatrice... Os dedos do cavalheiro lhe envolveram a nuca, puxando-a mais perto. Ela não resistiu à sedução de suas palavras e se inclinou para beijá-lo com os lábios tão macios e convidativos como ele se recordava. Ele a beijou novamente, aumentando a pressão e o ardor. — Esperei mais de seis meses. Queria ter certeza, em minha própria mente, de que poderia vir procurá-la totalmente livre de sentimentos de culpa. E, para evitar qualquer objeção ao meu pedido formal, achei que seis meses de luto seriam aceitáveis para a sua família. — Fitando-a, observando cada detalhe de seu rosto, ele fez a pergunta que estivera em seus pensamentos desde que recebera a carta e o cisne. — Quer se casar comigo, Beatrice? Não acho que seu irmão vá se opor. O brilho em seu olhar era inconfundível, mas a resposta seria solene, típica de Beatrice. — Não. Ele não vai se opor. Ned desejará a nossa felicidade. Mas se sua intenção é desposar uma viúva rica, acho que tem o direito de saber. Ela o fitou por detrás dos cílios escuros. Richard sorriu diante da preocupação da amada. — O que tenho o direito de saber? Que não terá direito a nada? Neste caso, devo retirar o meu pedido. Mas não havia humor na resposta de Beatrice. — A influência de William se estende muito além do túmulo. Ele me deixou uma viúva rica. Mas, se eu me casar novamente, minha herança se transformará em pouco mais do que uma cama, uma mesa e a pequena quantia de quarenta libras! — Então o astuto Somerton achou um jeito de condená-la à viuvez com dinheiro. Exatamente o que usou para tê-la por esposa. — É. Richard, querido Richard, será que vai querer desposar uma mulher pobre? Ele lhe notou a ansiedade. E uma incomum insegurança. Richard ficou surpreso e comovido. — Não vim até aqui para negociá-la, Beatrice — ele retrucou de modo simples e direto. — Vim para fazer de você minha esposa. — Eu perderei esta casa. — Neste caso, é claro, virá morar comigo em Elton's Marsh. Nunca esteve em seus planos permitir outra situação. Desde que tivesse Beatrice Hatton, para que iria querer Great Houghton? — Perderei a propriedade e a sua renda. — Neste caso, terei de pagar eu mesmo por suas jóias e roupas extravagantes, minha, querida. — Posso ser muito extravagante, quando quero. — Beatrice riu, e subitamente um som alegre tomou conta do aposento, antes tão silencioso. — Beatrice? — Agora, só restava cuidar das formalidades. Richard segurou-a diante de si, para que pudesse olhar para ela, observar-lhe as reações quando ele falasse e ela respondesse. — Escute o que tenho a dizer. — Sua resposta significava mais para ele do que jamais poderia imaginar. — Eu quero você, Beatrice Hatton. Com ou sem herança. Será que me concede a sua mão em casa57


HRH 54.1 – Tempo de Amar – Anne O’Brien mento? Será que virá morar comigo em Elton's Marsh, onde eu poderei amá-la? Será que aceitaria ser mãe de meus herdeiros, e ficar ao meu lado até a morte? Por um longo instante, ela fitou aquele rosto tão amado, admirando-lhe a alma generosa, incapaz de acreditar que, enfim, Richard lhe pertencia. A sombra de William não mais pairava sobre eles, as feridas do passado estavam cicatrizadas. — Sim, Richard Stafford. — Ela levou os dedos aos lábios dele. — Sim, eu farei tudo o que disse. Com todo o meu coração!

Fim

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