Véu da Inocência INNOCENCE UNVEILED
Blythe Gifford
Ele é um homem de segredos. Ela, uma mulher de mentiras. Quando um comerciante misterioso e sedutor chega à casa da nobre Katrine de Gravere, ela reluta em lhe dar abrigo, mas finalmente cede. Afinal, receberia como pagamento lã suficiente para manter seus preciosos teares cheios. Dormindo debaixo do mesmo teto e a cada minuto tentado a acariciar os cabelos vermelho-fogo da inocente e reservada mulher, Renard se pergunta se ela suspeita de suas verdadeiras razões para estar ali. Em uma cidade onde ninguém está a salvo, Katrine desperta nele desejos proibidos. Renard poderia estar, seguro de que ela não iria traí-lo ?
Disponibilização: Projeto Revisoras
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107)
Tradução Ana Helena Garcia HARLEQUIN 2012 PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V./S.à.r.l. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: INNOCENCE UNVEILED Copyright © 2008 by Wendy B. Gifford Originalmente publicado em 2008 por Harlequin Historicals Projeto gráfico de capa: nucleo i designers associados Arte-final de capa: Isabelle Paiva Editoração Eletrônica: SBNigri Artes e Textos Ltda. Tel.: (55 XX 21) 2233-8354 Impressão: RR DONNELLEY Tel.: (55 XX 11) 2148-3500 www.rrdonnelley.com.br Distribuição exclusiva para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil: Fernando Ghinaglia Distribuidora S/A Rua Teodoro da Silva, 907 Grajaú, Rio de Janeiro, RJ — 20563-900 Para solicitar edições antigas, entre em contato com o DISK BANCAS: (55 XX 11) 2195-3186 / 2195-3185 / 2195-3182 Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171,4e andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 Correspondência para: Caixa Postal 8516 Rio de Janeiro, RJ — 20220-971 Aos cuidados de Virgínia Rivera virginia.rivera@harlequinbooks.com.br
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Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107)
CAPÍTULO UM
Flandres, Países Baixos, primavera de 1337 O coração de Katrine batia acelerado, e ela percebeu um tom de ameaça na voz do homem cujo rosto não via por causa das sombras. — Você é que sabe — disse ele. — Posso lhe arranjar a lã de que precisa, mas se deixar passar esta oportunidade... — Ele deu de ombros e, com o corpo, tapou a entrada do sol da manhã na sala de tecelagem. — Existem outros compradores por aí. — Todo tecelão em Ghent estará disposto a comprar lã — tentou falar Katrine sem tremer. Isso não era segredo para ninguém. Privados da lã, a cidade de tecelões estava morrendo de fome. Assim, quando um estranho afirmou que podia encontrar pele de carneiro para seus teares, ela resolveu ouvi-lo. Ele não precisava de Katrine, mas ela queria a lã dele. Queria desesperadamente. Com os braços cruzados, o contrabandista encostou- se na parede tão à vontade que parecia o proprietário do lugar. — Decida, moça. Ou aceita negociar comigo ou vai morrer de fome. Apoiando-se no tear, ela sentiu o corpo encostar-se a uma peça vertical, como se fosse uma mártir. Ela passou a dedilhar os fios para se distrair. Os fios tremiam sob os dedos. Não deveria ceder facilmente, caso contrário, não poderia negociar o preço. — Você não tem sotaque do povo de Ghent. — Ela não sabia nada sobre o homem nem o nome dele. — Onde é sua casa? A luz do sol bateu no seu cabelo castanho. De início, ele nada disse, e ela chegou a se perguntar se a tinha ouvido. Mas depois ele falou. — Nasci em Brabante. Sua resposta parecia satisfazê-la. O ducado vizinho era um dos seis feudos localizados perto do canal entre a Inglaterra e a França. Deveria, ao menos, saber que tipo de bens ele oferecia. Katrine passou a mão pelo tecido e sentiu sua maciez. — Costumo usar apenas tecidos finos. Sou exigente para comprar. Sua lã é inglesa ou espanhola? — Inglesa. — Ótimo. Katrine começou a caminhar de um lado para o outro, como se considerasse as opções. Era melhor não perguntar como ele a conseguiu. O rei da Inglaterra havia embargado todos os carregamentos nos últimos nove meses. — Onde foram criadas as ovelhas? Eu prefiro a lã das ovelhas criadas por monges cistercienses, da Abadia de Tintern, mas também aceito lã de Yorkshire. — Aceita? — Ele achou graça. — Você vai aceitar o que eu lhe oferecer, pois não 3
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) tem escolha. Minha Santa Catarina, o que devo fazer? Já tinha negociado com as maiores tecelagens de lã. Havia batalhado por lã de animais criados nas costas, e até orientado seus tecelões a fabricar um tecido de trama mais frouxa, na esperança de melhorar o produto final. Não havia mais nenhum truque. Já tinha até pedido ajuda ao seu insensível tio. Agora ela temia ficar sem trabalhar, até seu pai voltar, caso não confiasse nesse estranho misterioso. Ao menos, as mãos grandes de dedos longos desse estranho pareciam confiáveis e até familiares. — Quanto pode me conseguir? — Talvez um saco. — Isso é material que um tecelão usa em uma semana — comentou Katrine desapontada. -- É mais do que você tem agora. — E se eu concordar, qual é o seu preço? — Vinte e cinco libras de ouro por saco. Adiantadas. — Quinze. — Se soubesse negociar, o ouro que seu pai havia deixado daria para comprar três sacos de lã. — E na entrega. — Vinte e oito. — Mas você tinha dito 25 antes. — E amanhã, se eu quiser, direi que o preço é 30. Não tente barganhar comigo, moça. Você não tem nada para barganhar. Pela primeira vez, ela conseguiu ver os olhos dele, azuis. E ele piscou para ela. — Ou talvez tenha — disse ele. Alguma coisa a mais do que simplesmente medo mexeu com ela. Algo que tinha a ver com ele. — Só faço negócios com ouro. Eu quero a lã, mas tenho outro fornecedor. — Ela confiava um pouco mais no tio do que nesse estranho, mas não deixaria que ele sou besse disso. — Se melhorar sua oferta, posso ficar com três sacos a 20 libras cada, pagando 10 adiantados e o restante na entrega. — Ela hesitou antes de continuar. — Se quiser mais do que isso, procure outro comprador. — Não importa o que você diz. É seu marido quem vai decidir. Katrine se apressou em esconder uma mecha de cabelo ruivo na touca. Tinha se esquecido de uma das pequenas mentiras na sua vida. Estava tão acostumada à sua touca que se esqueceu que isso significava que tinha um marido que governava todos os seus atos. — Tenho autoridade para resolver este assunto. Na ausência do pai, a corporação dos comerciantes de tecidos havia autorizado que ela conduzisse os negócios dele, mas ela estava atingindo o limite do permitido. Assim como o da paciência deles. 4
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Katrine esperava que ele desistisse, pois a maioria não gostava de negociar com mulheres. No entanto, quando o contrabandista começou a falar, demonstrava respeito por ela. — Você negocia como um homem, moça. Imagino que administre bem seus negócios. — De fato. Ela resolveu se calar e esperar pela resposta. Do lado de fora, o vento balançou o letreiro da tecelagem, com o nome Marca da Margarida, no qual se via uma margarida de quatro pétalas. — Acordo fechado — disse ele. — Fechado se eu não conseguir um acordo melhor. — Agora Katrine tinha uma opção a mais, caso seu tio lhe negasse ajuda. — Terá minha resposta no fim do dia. — Estarei aguardando. — Mas o respeito que ela havia percebido na voz dele não existia mais. — Não vou ceder aos seus caprichos quando existem outras pessoas ansiosas para comprar. — Quando verei minha lã se fecharmos o negócio? Ele deu de ombros. — Permanecerei aqui enquanto faço os arranjos. — Aqui? — Foi uma loucura querer negociar com um estranho. Agora ele já estava mudando o negócio. — A menos que você queira que o Conselho da cidade saiba do nosso negócio. Qualquer dono de hospedaria passará adiante informações sobre mim em troca de algum dinheiro. Katrine estava sem argumentos. A Inglaterra e a França estavam perto de uma guerra. O clima na cidade era de desconfiança. Qualquer dono de hospedaria suspeitaria de um homem alto, de olhos azuis, falando com sotaque flamengo. — Estou lhe pagando 20 libras pela lã. Quanto vai me pagar pela hospedagem? — Está querendo recomeçar as negociações? — Ele não demonstrou nenhuma surpresa. — Foi você que recomeçou. Se resolver ficar, seu quarto vai lhe custar cinco pence por semana, sem refeições. Pegue a cama do terceiro andar — falou ela, sentindo-se inquieta por pensar que dormiria sob o mesmo teto que ele. — Com os aprendizes? — Há meses não temos mais aprendizes. — Não precisava mentir sobre isso. Ele logo saberia mesmo. — Não tem aprendizes? Como consegue administrar o negócio de vendas? — perguntou ele como se já soubesse a resposta. — Sem lã, os negócios estão fracos. — Em vez de um estoque de roupas coloridas com a etiqueta da Marca da Margarida, as prateleiras de Katrine estavam vazias. O sujeito se abaixou, pegou seu saco de viagem e o levou ao ombro, sem nenhum esforço. Seus braços eram fortes, e a carga era leve. — Então, o que vai fazer com sua lã? — Nos dias de hoje, vende-se qualquer coisa com facilidade, mas azul-escuro teria 5
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) um bom preço. Azul índigo sobre lã cinza... Ele a observava com um meio sorriso, como se lesse seus pensamentos. — Lã de fio penteado em azul índigo — disse ela. — O mercado não está acostumado a ver isso, exceto na época de Natal, portanto deve render, ao menos, uns 50 florins. Isto é, se você me trouxer uma lã de boa qualidade. — Qualquer coisa que eu traga vai ter que pagar por ela. — Sim, claro. Sou uma mulher honesta. — É o que você diz. — Ele se dirigiu para a escada, mas logo fez uma pausa. — Isso é importante para você, não é? — perguntou ele sem olhar para ela. Deixo a tecelagem nas suas mãos, filha. Cuide bem dela. — É a minha vida. Ele a observou sem nada dizer, como se quisesse avaliar que tipo de vida era essa. Katrine permaneceu firme, esperando que ele visse nela uma esposa confiável. Não podia desconfiar da sua verdadeira identidade. O sino tocou a badalada do meio-dia, quebrando o silêncio. — Preciso ir. — O seu tio estaria chegando para o almoço a qualquer momento. Se ele tivesse falado com o conde sobre sua lã, talvez ela pudesse dispensar logo esse contrabandista. — Estarei de volta antes do sino da tarde. Esteja aqui quando eu voltar. — E assim que trata os seus tecelões, moça? — Quando é necessário, sim. — Com receio de deixá-lo ali sozinho, ela deu mais uma olhada para ele ao abrir a porta. — Como posso saber se devo confiar em você? Ele abriu um ligeiro sorriso. — Não pode saber. Minha Santa Catarina, me proteja das minhas tolices. Não sei nada sobre este homem, no entanto, ele me chamou pelo nome ao entrar na loja. — Ao menos, diga-me seu nome. — Renard. — Como a raposa? — Todo mundo conhecia as fábulas do irreverente malandro Renard, a Raposa. A recita dessas fábulas servia de entretenimento noturno. Ele piscou para ela antes de responder. — Exatamente. Quando ela fechou a porta, as palavras conhecidas ecoaram na sua cabeça. “Renard conhece muitos truques e artifícios. Ele trapaceia sempre que lhe dá vontade.” High Gate Street estava mais quieta que o normal. As famílias estavam reunidas em suas casas para o almoço. Muitos evitavam sair à rua nos dias atuais. Sem lã, não havia trabalho. Vendedores e mestres tecelões ficavam pelos cantos, mendigando e até ameaçando em troca de comida e dinheiro. Ela levantou o pano que cobria sua cabeça e deixou a brisa entrar e ventilar o cabelo. Em seguida, novamente com a cabeça protegida e os olhos baixos, se encaminhou para casa. Você negocia como um homem. 6
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Até um estranho podia ver seus defeitos. Ela não agia como uma mulher deveria agir. Agora que seu pai se fora, o seu tio lhe dizia isso a todo o momento. As mulheres nascem fracas e pecadoras. Somente pela obediência e submissão elas podem alcançar a perfeição, saindo de casa apenas para ir à igreja e ficando longe de todos os homens, exceto dos parentes. Katrine reparou que caminhava mais lentamente e que fitava o artesão de prata nos olhos e o cumprimentava. Rapidamente ela retomou seu passo, olhando para o chão, para não correr o risco de olhar outro homem nos olhos. Este era o mundo do lado de fora da sua loja. Do lado de dentro da tecelagem, Katrine tinha total liberdade. Mas agora um homem havia invadido seu santuário, trazendo dúvidas para onde ela sempre tivera certezas. Mesmo assim, Katrine rezava para que ele ainda estivesse lá quando ela voltasse.
Vinte libras de ouro, pensou Renard, enquanto observava Katrine se encaminhar para a praça do mercado de peixe. Ele deveria ter exigido 30 libras. Ela começou caminhando com passos curtos, mas antes que desaparecesse do seu campo de visão, já estava dando passadas largas e apressadas, tão confiante que ele chegou a duvidar que tivesse realmente outro fornecedor de lã. Renard massageou os músculos entre o pescoço e o ombro e ignorou o aborrecimento do negócio frustrado. Por que se importava com o preço da lã se não pretendia nunca entregá-la? Poderia dobrá-la se quisesse. Ele era um excelente negociante. Bastante controlado, ele sempre conseguia perceber o menor sinal de hesitação na voz do seu oponente e sabia quando tinha pressionado ao máximo. No poder dessa informação, ele conhecia a hora certa de negociar seus próprios termos. Foi este seu talento que o rei tinha usado ao longo dos anos. Katrine não representava nenhum desafio para ele. Era um fiapo de gente, com seios e quadris, se é que os tinha, bem disfarçados embaixo de roupas soltas e largas. Não era do tipo de mulher que poderia seduzir um homem. Se ele fosse um homem suscetível a tentações. Assustado por perceber que ainda fitava a rua vazia, Renard saiu da janela e subiu a escada, anotando mentalmente o ranger do terceiro degrau para evitá-lo na volta. A casa estava em total silêncio, como ele imaginava, depois de vigiá-la por três dias seguidos. Parecia até que ninguém morava ali. Ele espiou dentro do primeiro quarto, no primeiro andar, empoeirado por falta de uso, perguntando-se qual seria o quarto dela. Ele não ficaria ali por tanto tempo assim. Ao chegar no terceiro andar, ele teve que se curvar para não bater no teto, que tinha um forte rebaixamento, largando no chão seu saco de viagem. Havia pouca coisa dentro dele, apenas uma túnica, uma capa, um lenço de seda vermelha e um pedaço de lã desgastada escondida no fundo. Lã cisterciense. Que diferença isso fazia? Tomando cuidado para não ser visto, ele espiou pela janela que dava para o jardim 7
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) dos fundos e calculou a distância até a cerejeira. Era uma rota de fuga tênue, mas longe da vista do público. Ele pegou seu saco de viagem, segurou num galho da árvore e desceu até embaixo. Esteja aqui, ela havia ordenado, como se ele fosse ficar à mercê dos caprichos de uma mulher. Ela estava preocupada demais. Seus olhos castanhos brilhavam, e o corpo rígido demonstrava o medo que tinha de perder o negócio, como se uns poucos sacos de lã fizessem alguma diferença entre a vida e a morte. Esses sentimentos levavam a erros perigosos. Ele devia tirar vantagem disso. Devia ter pedido 50 libras de ouro. Mas, em vez disso, deixou-se enganar por outro possível fornecedor. Bem, ele conseguiu o que queria. Deixe-a pensar que vai ter a lã a 20 libras o saco. Quando ela voltasse, ele já teria ido embora, deixando uma pequena comerciante flamenga esperando um bom tempo pela sua lã.
Ao abrir a porta da confortável casa, Katrine sentiu um cheiro gostoso de peixe ensopado. Ela adorava essa casa, com suas paredes brancas e lareira de azulejos, até seu tio se apossar dela e do dinheiro que rendia. Agora, como o barão a preferia com paredes escuras, como no seu castelo, a casa nem parecia mais ser sua. Merkin, a criada que colocava a mesa, a fitou. — A senhora ouviu, milady? Um bispo inglês está chegando para fazer as pazes com o conde. Paz. A própria palavra a deixou cheia de esperança. Os reis da Inglaterra e da França estavam disputando o trono da França como cães brigam por um osso. Durante vários meses, os dois fizeram de tudo para obter o apoio dos flamengos. Primeiro o rei inglês cortou o fornecimento de lã. O conde flamengo retaliou prendendo os ingleses que estavam na região de Flandres. Então o rei Edward mandou prender todos os flamengos que estavam em Londres. Inclusive seu pai. Agora o conde e os plebeus tinham chegado a um impasse. O conde continuava leal ao rei francês, Philip. O povo, que dependia da lã inglesa, preferia o inglês Edward. Um acordo com a Inglaterra poria um fim a essa briga e traria seu pai para casa. — Quando ele chega? — Não sei — disse Merkin. — Mas ouvi dizer que existem 49 cavaleiros ingleses solteiros com ele. — Quarenta e nove? — Um número estranho. — Por que não cinqüenta? — Não sei, milady, mas todos os cavaleiros abençoados estão usando um tapaolho de seda vermelha, dia e noite. Katrine achou tudo muito estranho. — Como um cavaleiro pode lutar com um olho só? — Além de não poderem ver, eles também não falam. — Merkin passou a falar baixinho. — Ouvi dizer que prometeram às suas namoradas que usariam tapa-olhos e 8
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) que não falariam com ninguém até cumprirem sua missão contra os franceses. — Ela soltou um suspiro. — Não é romântico? — Romântico? — Katrine afundou no banco, com a mão na cabeça. Aos 16 anos, Merkin ainda tinha ideias sonhadoras em sua cabecinha oca. — Meu pai está na prisão, meus cofres, vazios, a Inglaterra e a França estão à beira de uma guerra, e os ingleses não encontram nada melhor para fazer do que galopar pelo campo usando tapa-olhos e mordaças imaginárias? — Ela riu com sarcasmo. — E meu tio insiste em falar na insanidade das mulheres! — Você chegou. — Sua risada chamou a atenção da sua tia Matilda, que entrava na sala. A vista de Matilda era tão fraca que mal dava para ela enxergar o que estava diante do seu nariz. E sua testa pálida estava cheia de rugas de expressão de tanto fazer força para enxergar as coisas à sua frente. — Estávamos preocupados com você. Quantas vezes já lhe dissemos que não deve sair na rua sem alguém para lhe acompanhar? Todos os dias, por nove meses, pensou Katrine e mentalmente pediu perdão a Santa Catarina. Sua santa protetora sempre ouviu as preces desta criança órfã. — Sem nenhum aprendiz, é só o que me resta fazer. Preferia deixar que a tia pensasse que ela saiu de casa apenas por necessidade. A tia não queria ouvir críticas ao seu marido. — Que bom que você voltou, Catherine. — Sua tia falava igual aos nobres franceses e sempre a chamava de “Catherine” em vez de Katrine, como se fala em flamengo. — Quero que fale com a menina que o barão não gostou do vinho que ela trouxe ontem e que, no futuro, deve sempre comprar o vinho Gascon. — O nome da menina é Merkin — informou Katrine, antes de traduzir e melhorar o que a tia dissera. Como não dominava a língua dos trabalhadores, a tia falava o mínimo possível de flamengo. Merkin revirou os olhos e resmungou alguma coisa parecida com “sem lã, sem vinho”. — O que foi isto, Merkin? — perguntou Katrine sorrindo. A porta se abriu de repente, batendo na parede com um estrondo. O sorriso desapareceu do rosto de Katrine. Charles, o barão de Gravere, tinha chegado em casa. — Esses ingleses idiotas acham que podem comprar lealdade — falou o tio aos berros enquanto seus homens invadiam a casa e se serviam do vinho misturado com água reservado para o almoço. Sua tia correu para ajudar quando o escudeiro soltou o cinto da espada do barão. Impaciente com a demora de Matilda em desatar o nó do seu manto, ele deu um puxão e o rasgou, para ela costurar novamente, e o deixou cair no chão. Matilda se abaixou para pegá-lo do chão. — Partiremos para Gravere hoje — disse ele ao se sentar à mesa. — O castelo deve ficar de prontidão caso os ingleses tenham disposição para lutar. O apetite de Katrine desapareceu com aquela notícia. — Pensei que tivessem vindo para promover a paz. — Ha! Este Edward, inglês, age como um comerciante, não como um rei. — Ele bebeu o vinho do cálice e bateu com ele na mesa, para que a esposa lhe servisse mais. O vinho do barão nunca era diluído com água. — Ele acha que o conde vai ser desleal ao rei Philip, em troca de ouro inglês. 9
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Se a barriga do conde estivesse tão vazia quanto a dos súditos, ele aceitaria sim. Ela já tinha ouvido seu tio elogiar a lealdade do conde ao rei francês muitas vezes. O homem se preocupava mais com lealdade do que com a fome do povo. O rei era necessário, claro. O povo era leal, e o rei o protegia. Tal lealdade era um luxo da nobreza, e ela estava começando a achar que era um luxo tolo. Enquanto os lordes lutavam, os burgueses sofriam. Que diferença fazia para os tintureiros a quem pertencia a coroa da França? Por que os tecelões se importariam se o trono era ocupado pela filha ou pelo filho? Invernos frios produziam lãs grossas do mesmo jeito. — Um brinde a Philip de Valois. O rei da França, agora e sempre — disse seu tio erguendo o cálice de vinho. E seus homens, de bocas cheias, o acompanharam. — Valois. Katrine estava triste. Os ingleses queriam luta. O solo flamengo ficaria coberto de sangue, vermelho como o tapa-olho que usavam. E talvez nunca mais ela visse seu pai. — Alguma notícia do meu pai? Eles pediram algum resgate? — Ninguém se importa com ele agora — informou o tio. Muito menos você. — E quanto à minha lã? O conde pode arranjar alguma lã da França? — Seria de má qualidade, mas ela poderia tecê-la. Ele encheu a colher de peixe com legumes. — Não perguntei. — Mas você prometeu que ia perguntar! — explodiu ela. Os homens mais próximos dela a fitaram. Então ela abaixou a voz. — Não posso fabricar tecido sem lã — disse, irritada com o conde, os franceses, os ingleses e todos que cuidavam dos assuntos do Estado em detrimento da vida do povo. — O conde só faz atrapalhar os negócios. — Catherine, cale-se. Se alguém lhe ouvir falando assim, poderá prendê-la. — Tia Matilda olhou para os cavaleiros em mesas próximas. — Todos poderemos ser presos. — Ninguém se importa com o que ela pensa — disse o tio, dando de ombros. — Ela tem cabelo da cor do diabo. Fala francês com sotaque flamengo e tem calos nos dedos. Nenhum homem nobre vai querer se sujar por causa dela. Katrine estremeceu ao ouvi-lo. Ele a fazia sentir vergonha de estar viva. Mas tentou não pensar sobre isso.. — Mais uma razão para eu cuidar da minha tecelagem. — Ao menos ali, ela podia fazer algo de útil. — Como se já não bastasse meu irmão ter contrariado a ordem natural das coisas, por ter empunhado uma tesoura em vez de uma espada. — No início, a família havia tolerado a decisão do seu pai de enveredar pelo comércio de tecidos. Não só por ele ser o filho mais novo, mas porque o ouro era sempre bem-vindo. Porém, com o sumiço dele e do ouro, seu tio estava revelando seus verdadeiros sentimentos. — E ainda por cima, em vez de criar você como uma dama nobre, ele permitiu que se tornasse uma cria de um tecelão. — Esse tecelão tinha nome. — Giles de Vos, o sócio de seu pai, havia morrido dois anos atrás e, como nunca teve filhos, deixou a parte na sociedade para ela, como 10
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) herança. Ela sentia falta dele quase tanto quanto do pai. — Enquanto nossa tecelagem rendia muito dinheiro, você sempre recebeu muito bem o tio Giles. O tio ficou furioso ao ouvir aquilo. — Não o chame de tio! Ele era um simples burguês. Eu sou o seu tio. Ela o encarou, sem se preocupar com quem a ouvia. — Eu preferia ter o sangue dele em vez do seu. — Chega! — Ele levantou o punho. Sua tia segurou a mão dele. — Peça desculpas ao seu tio, Catherine. A mão em punho vacilava. O ambiente ficou em total silêncio. — Peço desculpas se lhe ofendi — disse ela para ganhar tempo. Se, ao menos, ela pudesse ser igual ao contrabandista, que não pronunciava uma só palavra sem refletir primeiro. — Falei sem pensar. — Agora junte suas coisas — pediu sua tia. — Você ouviu o que seu tio disse. Partiremos esta tarde. Katrine baixou a cabeça, segurou a língua e ficou feliz de poder sair dali. Ela precisava deixar a casa sem ser vista e voltar para a loja e para seu estranho misterioso, que era sua última esperança. Torcia para ele ainda estar lá.
CAPÍTULO DOIS
Renard correu pela rua, à margem do canal, e ultrapassou com facilidade um burro resignado que puxava um barco com mastro recolhido, sob uma das inúmeras pontes da cidade. Com seus telhados em níveis diferentes e inúmeros rios, esta era uma cidade diferente. Ele sentia falta da Inglaterra. O ourives que abriu a porta da casa de pedra, de frente para o canal, olhou para um lado e para outro antes de o deixar entrar. — Vai partir hoje? — perguntou ele. — Amanhã — respondeu Renard antes de subir a escada para os aposentos privativos do ourives. Ele compreendia bem o nervosismo do homem. Precisava ter coragem para hospedar um comerciante inglês disfarçado. E seria pior ainda se ele soubesse que estava abrigando um rei. Ao ver o rei Edward de pé junto da janela, Renard ficou surpreso que o ourives não tivesse desconfiado. Banhado pela luz do sol, seu cabelo brilhava, como uma auréola na cabeça de um santo. Edward Plantagenete nunca teve que buscar seu lugar ao sol. O sol o procurou. Altivo, forte e vigoroso, mais do que ninguém, ele se parecia com um rei. 11
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Muita gente achava que Renard e Edward podiam passar por irmãos, pois ambos eram altos, tinham olhos azuis e eram guerreiros jovens e enérgicos. Mas Edward era louro e inquieto, ao contrário de Renard, que tinha cabelo castanho, além de um ar misterioso e contido. Renard inclinou a cabeça, num gesto de uma reverência disfarçada. — Majestade. — Até que enfim. O que você descobriu? — Edward parecia precisar de boas notícias. Com a permissão do rei, Renard se serviu de um copo de vinho. — Não existe lã na cidade, majestade. Todos os tecelões ouviram minha oferta. Poderia esvaziar nossos armazéns de Bruxelas. O povo o apoia. Só os nobres resistem. Renard tinha sido contra a viagem do rei desde o início, mas ele insistiu em desembarcar com o funcionário da embaixada para avaliar pessoalmente a situação. Renard veio antes, disfarçado, para colocar em dia seu flamengo enferrujado e ajudar seu rei. — Talvez fosse melhor eu mesmo encontrar o conde — sugeriu ele, segurando firme a taça de vinho. Renard discordou. — O ideal é que ninguém saiba da sua presença aqui. — O bispo pode persuadi-lo, eu creio. Ele já conseguiu o apoio de outros três. Restam apenas Brabante e Flandres. Renard tinha quase certeza de que os outros ducados apoiaram o rei porque eram parentes da rainha Philippa e não por influência do bispo, mas ele resol veu se calar sobre isto. — Parto para Brabante amanhã. — Renard havia solicitado esta tarefa. Isso o obrigaria a enfrentar seu passado. Edward andava de um lado para o outro, tamborilando no cálice de vinho. — Tenho que ter o apoio de Flandres. Se não retomarmos nosso comércio rapidamente, meus produtores de lã estarão tão infelizes quanto os tecelões do conde. — Ele fitou Renard nos olhos. — Você não vai a lugar algum. Brabante pode esperar. — Mas também precisa do apoio do duque. — Renard manteve a voz calma, mas estava cansado de viver conforme a vontade do rei. Edward sabia bem que essa viagem de Renard a Barbante tinha outros motivos além da diplomacia. — Tem razão, e eu sei que você vai conseguir isso, mas se o bispo falhar aqui, preciso ter um plano alternativo. O povo de Flandres já se levantou contra os franceses uma vez. Se o conde se recusar a fazer uma aliança, você deve incitar os trabalhadores, forçá-los a virem para o meu lado. Renard engoliu seu ressentimento. O rei nunca controlava seu temperamento imprevisível. Renard conseguia controlar o seu. — Não tenho tanta certeza se poderei passar por um trabalhador no meio da ralé. — Apesar de que se fazer passar por artesão não poderia ser mais difícil que entrar e sair de Flandres com um rei disfarçado. Edward se sentou em uma cadeira de espaldar alto, perto da lareira. De longe, parecia estar num trono. 12
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Não espero que você se envolva com essa gente. Encontre alguém que possa fazer isso por você. Renard fez uma reverência antes de se sentar em outra cadeira diante dele. O rei pedia a Renard que iniciasse um levante, como se estivesse encomendando uma veste de malha de metal. — Assim será feito, majestade. — Certifique-se de que o embargo continue. Quanto mais tempo eles ficarem sem lã, melhor será para minha causa. Isso só deve levar mais algumas semanas, depois você vai a Brabante e, em seguida, poderá voltar para casa. Ele queria muito voltar, apesar de não ter ninguém lhe esperando. Não tinha família, terras, nada que não tivesse sido dado pelo rei. Falaram sobre casamento, mas por ser filho ilegítimo, Renard tinha pouco a oferecer a uma filha legítima. Edward o pegou pelo ombro ao falar. — Eu preciso do apoio de Flandres. Você ou o bispo terão que conseguir isso, e depois eu vou recompensá-lo por tudo o que tem feito. Algo como... — Seu rosto se iluminou com uma nova ideia. — Já sei! Dê-me Flandres que farei de você um bispo. Bispo. Renard podia ouvir as batidas do coração em seus ouvidos e o sangue fluir pelos braços, como se tivesse acabado de ser chamado para uma batalha, mas por ler passado anos reprimindo sua reação, ele sabia que devia aguardar. A recompensa era tudo o que ele podia querer. Uma posição segura de poder, longe das tentações da carne. E uma vez nomeado bispo, ninguém poderia tirar isso dele, nem mesmo um rei. — Vossa majestade me honra com isso. O rei sorriu. — Claro que sim. Não posso administrar o país sem o dinheiro da igreja. Muita gente acha que o papa é mais importante que o rei deles. Preciso ter bispos em quem posso confiar. Mas, como bispo, o poder e a posição de Renard não dependeriam mais do rei. — Não será fácil, majestade. — O rei poderia nomear um bispo, mas o papa tinha que confirmá-lo. — Ainda não tenho idade para ser bispo. — É uma regra ridícula — protestou Edward, abanando a mão. — Eu assumi o trono com 15 anos. Você pode ser bispo antes dos 30. — E eu não venho evitando os prazeres da carne. Edward se levantou impaciente e passou a andar de um lado para o outro. — Assim como os bispos que conheço, exceto talvez por Stoningham, e nesse eu jamais confiei. Enquanto o rei circulava pelo quarto, Renard se levantou e encostou-se na parede. Apesar de estarem sozinhos, Renard não ousava ficar sentado quando seu rei estava de pé. — Você não é nenhum devasso, Renard. Na verdade, um pouco do seu autocontrole me faria bem, mas não há necessidade de você se manter puro ao tomar seus votos. — No entanto, honrarei meus votos. — Ao contrário de uns e outros que quebravam seus votos mais do que os honravam. 13
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ele mesmo veio ao mundo sem nome e sem posição por causa dos pecados da carne. Renard se recusava a cometer o mesmo erro. A vida toda lutou contra a paixão, como se fosse seu maior inimigo. Quando não conseguia derrubar o oponente, ele se obrigava a recuar. Como bispo, manteria-se longe das tentações com facilidade. — E depois — continuou ele. — Tem o problema da minha origem. O rei parou e o fitou com seus olhos azuis penetrantes. — Sei perfeitamente que um filho bastardo precisa ter uma permissão especial do papa. Uma carta do bispo de Clare resolverá isso. Renard não queria aceitar ajuda do hipócrita Henry Billesh, o bispo de Clare. Depois de recusar apoio à coroação do jovem Edward, o sujeito mudou o discurso quando viu que ele se tornaria rei. Renard jamais confiaria nele. — Ele pode relutar em recomendar meu nome. O rei virou o resto do vinho que ainda havia no copo. — Ele conhece bem as transgressões humanas, portanto, será compreensivo com você. Dessa vez, Renard não se conteve. — Mas a transgressão não foi minha, majestade. Edward, que tinha o temperamento tão explosivo quanto Renard, perdeu a paciência e jogou a melhor taça do ourives no fogo. Estrepitosa, a taça saltou do fogo para a lareira e espalhou cinzas pelo chão. — Você se prevalece dos nossos laços de sangue? Esqueceu que só possui aquilo que lhe dei? — Nunca, majestade. Se Renard fosse filho ilegítimo de um príncipe, ele teria tido algum direito ao trono, mas era filho de uma princesa. Portanto, apenas o rei sabia da verdade sobre o seu nascimento e a vergonha da princesa. Porém, com a mesma rapidez que as nuvens escondem o sol, a raiva sumiu do rosto de Edward e logo ele soltou uma gargalhada e pôs um braço sobre os om bros de Renard. A risada significava que perdoava o insulto do rapaz. E o abraço era sinal de que perdoava a si mesmo por ter insultado seu primo. Sorrindo, o rei fez menção de se esticar para pegar sua taça de vinho e ficou surpreso por ela não estar sobre a mesa. Sem dizer nada, Renard ofereceu a dele. — Você é duro com os meros mortais como nós, meu amigo. — Um raro momento de reflexão debelou a energia do rei. — Ao menos uma vez, gostaria de vê-lo humilde por causa de uma paixão. Poderá conhecer o tipo de alegria que encontrei com a minha rainha. Renard balançou a cabeça. Havia uma razão para que a luxúria fosse um dos sete pecados capitais. A paixão tornava a pessoa impotente, como sua mãe ficou quando se entregou ao amante. Quem seria ele? Isso era um segredo que nenhum dos dois sabia. — Receberei os votos de bom grado. — Pode ter certeza, meu amigo — disse Edward apertando o ombro dele. — Esta é a maior honraria que posso lhe dar, mas, uma vez concedida, você nunca mais será o mesmo Renard. 14
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard estava arrependido. Ele ficou tão empenhado em controlar sua alegria que nem chegou a agradecer a seu amigo de infância. Poder e posição, duas coisas que sua origem misteriosa havia lhe negado. — Perdoe-me, majestade. Não existe nada que eu queira mais. Ao menos, nada que o rei pudesse lhe dar. O rei podia lhe conceder muitas coisas, mas nunca reconheceria seu direito nato ao trono. Edward se dirigiu para a janela e olhou para o canal, como se pudesse ver a distante Paris. — Existe mais uma coisa que quero, Renard, e você vai me ajudar a conseguir isso. Renard tentou ignorar a inveja que havia em seu coração. Edward já tinha uma coroa. Por que precisaria de mais uma? No entanto, ele sabia a resposta. Edward queria seu direito nato ao trono, aquilo que lhe foi negado por ter nascido da filha mulher de um rei e não de um filho homem. Renard podia entender isso. — Pense nisso, Renard, você terá o anel de um bispo tão grande quanto o de Clare. — Ele riu. — E não terá mais que se reverenciar diante de mim! Renard sorriu pela primeira vez. — Um bispo só se curva diante do papa e de Deus. Agora ele não podia mais sair da cidade como havia planejado. E também precisava arranjar um local seguro e discreto para ficar. Talvez a casa da tecelagem servisse. Em uma cidade movimentada, uma casa vazia seria o lugar perfeito para um homem que queria ir e vir sem ser visto. Mas se fosse ficar lá por algum tempo, precisava conhecer melhor aquela mulher, de língua afiada, cujo nome ele ouviu ao segui-la até em casa. Seu lar poderia se transformar num refúgio para ele. Ou numa armadilha.
Quando Katrine voltou para a tecelagem, nenhum estranho de olhos azuis a esperava na janela. Ela procurou na sala da contabilidade e, aflita, subiu correndo a escada. — Renard? Ninguém respondeu ao seu chamado. Ele havia ameaçado procurar outro comprador. E se não tivesse esperado? No andar de cima, Katrine ficou de frente para uma fila de camas abandonadas há muito tempo, pelos aprendizes. Será que ele deixou o saco de viagem aqui? Se tivesse deixado, então voltaria. Ela levantou o colchão da primeira cama e viu apenas o estrado vazio. Tentando conter as lágrimas, chutou a cama seguinte, depois outra e outra até deixar o quarto em total desordem. Katrine levantou o último colchão, pronta para jogá-lo pela janela de tanta frustração. Sua última esperança. E se ela falhasse, o que diria ao seu pai? 15
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) O coração acelerado se acalmou, e ela recuperou o fôlego, sabendo que havia espalhado palha pelo chão. Santa Catarina, será que algum dia conseguirei domar este meu temperamento? Quando se virou para limpar a bagunça, ela deu de cara com o estranho segurando um punhal. Ele parecia mais alto do que ela se lembrava, e o azul dos olhos, mais escuro. Esperava sentir alívio com a sua volta, mas a incerteza que havia dentro dela parecia mais com medo. Ou excitação. — Então — disse ela. — O pródigo voltou. Renard colocou seu saco de viagem no chão e embainhou o punhal. — Você pediu que eu vigiasse a casa. Pensei que fosse um ladrão. Ela gemeu baixinho ao olhar para a bagunça que fizera, sentindo-se uma tola. Será que ele viu seu descontrole? Mas ela não tinha desculpa para isso, então resolveu ignorar o assunto e tratá-lo como se fosse um aprendiz. — Mandei que ficasse aqui até eu voltar. Onde você estava? A palha no chão fazia barulho à medida que ele se aproximava. Ele parecia enorme quando se aproximou dela, mesmo se curvando para evitar as vigas. — Não me lembro de que lhe dizer por onde ando fazia parte do nosso acordo. Aliás, nem firmamos um acordo ainda. — Não — falou ela. — Nós ainda não fechamos um acordo. Ele lhe segurou o queixo, com dedos frios e firmes, e virou seu rosto em direção à luz, como se quisesse ler seus pensamentos. Katrine quis se soltar. — Seu outro fornecedor lhe fez uma oferta melhor? Ela piscou e se traiu. — Então deduzo que temos um acordo. — Sim. — Ela se soltou da mão dele e começou a arrumar o quarto. Ele se ajoelhou do seu lado, pegou um punhado de palha e colocou sobre a cama. Surpreendida com a humildade dele em querer ajudar, ela escolheu outra cama para colocar a palha. Os dois trabalharam em silêncio. Katrine tentou decifrar-lhe o rosto, mas ele estava impassível. Que tipo de homem lhe ajudaria a arrumar a bagunça que ela criou? Ele merecia algum crédito por isso. — Estou muito agradecida a você — disse ela quando terminaram a arrumação. — Por que me ajudou? — Se vou dormir aqui, preciso manter o lugar em ordem. Dormir aqui, nossa, ela engoliu em seco. De repente, parecia uma palavra íntima demais. — Mudei de ideia. Não é seguro para você ficar aqui. É melhor procurar outro lugar. Ele balançou a cabeça, e seu olhar era implacável. — Não pode mudar as regras agora. Você quer a lã, não quer? Katrine estava ficando assustada, parecia que essa lã ia sair mais cara do que ela imaginava. — Sim, eu quero. 16
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Então vamos comer para selar nosso acordo — pediu. — Eu lhe disse que não forneço refeições. — Os armários estavam vazios. Ele abriu um sorriso. — Eu trouxe comida. Achei que podia dividir com você. — Ele fez uma pausa, mas sem desviar o olhar. — Por favor. Desconfiada, Katrine quis dizer não, mas seu estômago estava roncando de fome. Não tinha comido nada no almoço. Talvez o desconforto que ela estava sentindo não era nem de medo nem de excitação, mas de fome mesmo. Ela consentiu com um aceno de cabeça. Terminada a arrumação das camas, ela se encaminhou para o andar de baixo. Ele se acomodou em frente à lareira, apoiando-se em um dos cotovelos e esticando suas longas pernas pelo chão. E apresentou um pedaço de pão, outro de queijo e uma garrafa de cerveja, como se estivesse em casa. — Sirva-se. Ela se sentou no chão, e a saia ficou toda embolada à sua volta. Tinha que colocar esse homem na defensiva, caso contrário, ele ia querer mandar em tudo. — Você tem laranjas? — perguntou ela sorrindo e aguardou pela resposta dele. As laranjas eram muito, apreciadas nos bons tempos. Mas nas horas de dificuldade, elas eram tão valiosas quanto a lã. — Existe um embargo, como você sabe. Ele pegou uma faca, partiu o queijo e colocou sobre uma fatia de pão. Nem isso foi feito por acaso. — Você me decepciona. Eu imaginava que um contrabandista experiente poderia fornecer qualquer coisa que eu quisesse, sem se importar com o preço. — Vai ter que se contentar com pão e queijo. Ela esticou o braço para pegar o pão e, sem querer, tocou na mão dele. Eles trocaram olhares, imóveis e calados. O calor dele subiu-lhe pelo braço, envolvendo-os. Katrine percebeu sensações doces e fracas dentro dela. Cheia de vergonha, ela puxou a mão e tratou de comer o pão. Ele tomou um gole de cerveja e passou a garrafa para ela. Katrine bebeu para ajudar a descer o pão e tentou não se mostrar surpresa. Mesmo sendo um estranho, ele tinha encontrado a melhor cerveja da região. Que tipo de homem ela havia abrigado sob seu teto? Se não fosse cuidadosa, poderia perder dinheiro e muito mais. — Fale-me sobre você, Renard. Para conseguir driblar o embargo inglês, você deve ser leal ao rei Philip, assim como nosso conde. — Os reis não representam nada para mim — falou ele finalmente. Ele ergueu uma das sobrancelhas. — E quanto à senhora, o que significam-lhe os reis? Os olhos de Katrine passearam pela sala tão familiar. Restava um único novelo de lã grossa cinza no cesto de palha. Os ganchos que deviam estar cheios de novelos, para serem encaminhados às fiandeiras, pendiam solitários. As prateleiras vazias deveriam estar repletas de tecidos prontos para colocar no mercado. Ela teve um súbito desejo de que ele visse como devia estar movimentado, com gente trabalhando, prateleiras cheias de tecidos de lã finos e coloridos. 17
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Como você pode ver — disse ela. — Esta loja se transformou num campo de batalha desses reis. — Campo de batalha? E de que lado você está lutando? Do lado de Valois ou de Plantagenet? Está com o rei Philipe ou o rei Edward? Ela ignorou a pergunta, da mesma forma que ele havia feito com a dela. Era melhor ficar em silêncio. Quanto mais ela falava, mais mentiras contaria. Mordiscando o queijo ela o fitou com rabo de olho. — Não posso lutar. Sou apenas uma mulher, não um chevalier. — Existem muitas maneiras de lutar uma guerra — respondeu ele. As palavras dele lhe deram uma pausa. Como será que ele lutava? E para quem? — Esse seu marido, por exemplo — continuou ele. — Onde ele está? Marido. Onde está meu marido? Ela pegou um pedaço de queijo enquanto tentava pensar. Tia Matilda estava certa. Ela devia segurar a sua língua. Estava criando mentiras demais para contar. Nunca devia ter deixado esse homem ali sozinho. Se ele tivesse rondado a casa enquanto ela esteve fora, saberia que aqui não morava homem nenhum. Ela tomou outro gole de cerveja. — Já lhe disse que eu sou a responsável por aqui. Ele está fora. — Fora? — Ele frisou a palavra, como se pudesse desvendar uma história a partir daí. — E o que está fazendo... fora? Qual é a mentira que soa como verdade? — Comprando, vendendo. — Comprando e vendendo o quê? Ele se inclinou na sua direção. Perto demais. O sol de fim de tarde delineou as maçãs acentuadas do rosto dele, amenizadas pelos cachos do cabelo castanho. O silêncio era tão grande que ela teve que preenchê-lo. — Está tentando encontrar mais lã. — Ao menos, isso era verdade. Mas era seu pai, não seu marido, quem viajou para a Inglaterra atrás de lã. — Como ele vai ficar feliz quando voltar e descobrir que você teve sucesso. Renard sorriu para ela. Katrine relaxou. Ele estava satisfeito. Não haveria mais perguntas sobre seu marido. — Ele está fora há muito tempo? Ela se enganou. — Algum tempo. — Deve sentir falta dele. Katrine sentiu o rosto se desfazer. Ela se perguntou se sua expressão era apropriada para uma esposa, tarde demais. — Sim. — E onde seu marido está procurando por essa lã? Ela pegou mais um pouco de cerveja. Qualquer resposta que ela desse seria errada. 18
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Se dissesse que seu marido estava na Inglaterra, Renard saberia que só havia duas possibilidades: ou ele estava preso ou era um traidor do conde de Flandres. Se admitisse que ela não tinha marido, seria pega na mentira e se tornaria uma mulher vulnerável nas mãos de Renard. Se admitisse que estava sob a proteção do tio, Renard ia querer se encontrar com ele. — Não sei onde exatamente ele está esta semana, monsieur Renard — mentiu. — Não tem ninguém para protegê-la? Ela mordeu a língua por ter revelado tanto. Outra vez falou demais. Ele não precisava saber de mais nada sobre ela. No entanto, ela não conseguia se desviar dos olhos de Renard. Eles a obrigavam a pensar em coisas que homens e mulheres faziam. Sozinhos. O que faria se ele se aproximasse? Se ele a beijasse? Um pensamento que nenhuma mulher decente deveria ter. — Não — disse ela. — Você será meu protetor. Será que foi sua imaginação ou os olhos dele se tornaram mais escuros? — Mais demandas? Você ainda nem pagou pela lã. — Eu disse que você teria uma resposta hoje à tarde, não seu pagamento. — O saco de moedas do pai estava bem guardado no seu baú de roupas. — Não guardo dinheiro em qualquer lugar. — Primeiro você não pode decidir, depois não pode pagar. — Ele fez uma cara feia. Sentou-se, embrulhou o último pedaço de pão e queijo, como se fosse partir. — Não tenho mais tempo a perder com você. — Não, por favor. Espere. — Ela o segurou pelo braço. Não podia perdê-lo agora. — Por quanto tempo? Quanto tempo levaria para ir e voltar da casa do tio? — Até o toque de recolher. Ele abriu um sorriso. — Até o toque de recolher. Nem mais um minuto. Ela fez um aceno de cabeça a saiu da loja apressada. Ainda tremia ao cruzar a ponte e passar pelo castelo do conde que se projetava por cima da junção dos rios e canais, como uma montanha pairando sobre uma cidade. Mas não havia tempo para pensar nos olhos de Renard nem nos sentimentos desconfortáveis que despertava nela. Precisava entrar e sair de casa sem ser vista ou não estaria de volta antes do toque de recolher. Se seu tio a forçasse a acompanhá-lo a Grevere, ela não voltaria de forma alguma.
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CAPÍTULO TRÊS
Katrine subiu as escadas nas pontas dos pés até seu quarto, e ninguém a viu, exceto sua tia que bisbilhotava antes de cada garfo que embrulhava para a viagem. Mas quando Katrine abriu o baú para pegar o saco de moedas, escondido embaixo das roupas, ela ouviu passos pesados se aproximando. Seu tio abriu a porta de repente, com estardalhaço. Ela escondeu o saco de moedas de volta no fundo do baú, rapidamente, depois alisou as dobras do seu melhor vestido, arrumando o tecido de lã dourado com mãos úmidas de nervoso. — Não dê as costas para mim. — Ele a segurou pelo braço e a virou de frente para ele. O vestido caiu no chão, como um amontoado dourado, provocando em Katrine um gosto amargo na boca. — Estou de frente agora — disse ela, fitando-lhe os olhos. Havia alguma coisa de diferente que a fez estremecer. — O que você quer? — Arrume logo suas coisas. Estaremos longe daqui antes de escurecer. Pense antes de falar. Mas havia uma só verdade. — Eu não vou com vocês. Preciso cuidar dos negócios do meu pai. Ele apertou ainda mais o braço dela e a sacudiu. — Você vai ficar onde eu mandar. — Ele fechou a tampa do baú. — Vai ficar do meu lado. Seu pai fez suas vontades por tempo demais. A loja está fechada. Agora. Hoje. — Não. — Ela deu um puxão para se soltar dele e massageou o braço onde ele a segurou com tanta força que deixou marcados seus dedos. Era tarde demais para acalmá-lo, e ela nunca foi muito boa nisso. — Sua ordinária obstinada. Você é uma maldição sobre a família Gravere. Ele já havia repetido isso tantas vezes que Katrine tinha vontade de se esconder de uma vergonha que nem entendia a razão. — Se você pensa assim, então não precisa mais se preocupar comigo. Vou me mudar para a loja. Só de pensar nisso já se sentia aliviada. Que maravilha poder ficar longe do alcance da sua mão. — Acha que pode viver sozinha e bancar a prostituta? — Ele parecia estar fora de si. Katrine não o encarou mais. Transtornado, ele olhava para sua touca, sua túnica e depois para suas saias, como se procurasse uma maneira de livrá-la daquelas camadas de roupa. — Você é o mal em forma de gente, filha de Eva com o diabo — rosnou ele e depois completou: — Uma tentação para os homens. Virgem santa, o que faz este homem ter esse tipo de pensamento? — Sou filha de lady Mary e Sir Denys de Gravere — falou ela, desejando ter dito ao pai o que acontecia em casa quando ele estava fora. Não parecia ser importante quando ele viajava por apenas alguns dias. — Seu irmão não é nenhum demônio. Ele ficou ofegante. Dobrou os dedos das mãos, como se eles quisessem apalparlhe o corpo, e olhou para os lábios dela. 20
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Você é filha da sua mãe. Tem o rosto dela. O corpo dela. Os pecados dela. — Minha mãe não tinha pecados. — Ela mal se lembrava da mãe, mas sabia disso. — Chega. — Ele a agarrou e puxou. Surpreendida, os joelhos dela bambearam, e ela caiu no chão. — Você vai me obedecer. Santa Catarina, dê-me coragem. Ela engoliu o medo e o encarou de volta, segurando o tecido de lã do vestido com muita força. — Não. Ele então a segurou pelo pescoço e os polegares sufocaram sua respiração, até ela não conseguir mais engolir, mal podia enxergar, só podia se agarrar aos braços enormes dele, desesperada para se soltar. De repente, ele a soltou e se afastou, como se as mãos dele estivessem queimando. — Igualzinha a ela. — Ele saiu do quarto dizendo. Katrine se sentou no chão, tossindo, engasgando e tentando controlar a náusea que sentia. Não estaria mais segura naquela casa. Ir embora não era mais uma questão de escolha, mas uma necessidade. Ao ouvir o tilintar de uma espada no corredor, ela se virou para a porta e viu o tio com um de seus criados. — Já que quer ficar, você vai ficar sim, mas aqui. Neste quarto. — Seu tio tirou uma chave do bolso e puxou a porta falando com o criado. — Vigie a moça até eu voltar. Em seguida, ele fechou e trancou a porta. — Não! — Ela se apressou em levantar, tropeçando na saia ao correr para a porta. Depois de bater inutilmente durante um bom tempo na porta, as palmas das suas mãos ficaram vermelhas e ardendo.
Quando os sinos da tarde soaram, toda a família já tinha ido embora. Katrine andava da cama para a porta e da porta para a janela tantas vezes que perdeu a con ta. Ela juntou uns poucos pertences seus em um saco que pudesse carregar. Umas poucas roupas, um pente, um pequeno espelho redondo de prata alemã do tio Giles, gravado com uma margarida de quatro pétalas. O tríptico de marfim da sua mãe, bento no santuário de Santa Catarina. Era tão pouca coisa. O mais importante estava na sala de tecelagem. Ela segurava na palma da mão o presente de despedida que seu pai lhe deu. O saco de libras de ouro que não tinha o mesmo valor de estimação que o espelho e o tríptico, mas que servia para pagar o preço do contrabandista e mais um pouco. Isto devia sustentá-la até que conseguisse vender tecidos novamente. Se ela conseguisse fugir. Foi até a janela de novo. Os telhados alaranjados brilhavam com o pôr do sol. Frustrada, bateu no parapeito. Ela havia dito que voltaria antes do toque de recolher. E essa hora estava quase chegando. A voz alegre de Merkin surgiu na porta do quarto. — Boa noite! Trouxe seu jantar. 21
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) O guarda resmungou um grunhido. A tranca da porta chocalhou, e ela se abriu. De costas para ele, Merkin piscou para Katrine e levantou uma das sobrancelhas. — Pode ir comer, Ranf. Eu fico vigiando. Ele fechou a porta e logo elas ouviram seus passos descendo a escada. Merkin revirou os olhos. — O homem é tão estúpido quanto feio. — Ela colocou a bandeja sobre a mesa e escondeu o pão e o queijo dentro da bolsa. — Depressa, milady. Katrine agarrou seu pequeno saco de tesouros e seu manto com mãos trêmulas. — Como posso lhe agradecer? Ele vai lhe bater quando descobrir que eu fugi. Merkin sorriu. — Vai ter que me pegar primeiro, milady. Eu vou com você. Não havia tempo para discutir isso agora. Katrine lhe deu um abraço agradecido, depois elas desceram a escada e saíram pela porta do jardim. Sombras encobriam o rio embaixo da ponte, e o cheiro da pesca do dia as seguiu pelo caminho. Um homem agachado no chão, maltrapilho, com a mão estendida, murmurava um pedido ou uma ameaça. Ela puxou Merkin, e elas passaram por ele rapidamente. Enquanto corriam pelas ruas escuras, ela foi rezando para que os assuntos da guerra mantivessem seu tio afastado por um longo tempo. Ranf não saberia o que fazer sem as ordens do patrão. Katrine respirou aliviada quando estava dentro da loja, em segurança, e fechou a porta. — Renard? — chamou ela. Chamou mais uma vez e ninguém respondeu. Ela subiu para o andar de cima e ficou um pouco mais tranqüila ao ver que ele deixara ali seu saco de viagem. Nada sobre aquele homem era certo. — Por quem você está chamando? — perguntou Merkin quando Katrine desceu a escada. Ela fez uma pausa para poder pensar antes de falar. — Contratei um guarda. Desde que a casa ficou vazia, achei que seria bom ter alguém aqui para vigiá-la. Merkin revirou os olhos e murmurou alguma coisa tão baixinho que Katrine não ouviu. — Ele deve estar vigiando lá de cima da torre do sino, então, milady. Katrine sorriu, apesar de saber que não deveria. Merkin tinha a mesma língua solta que Katrine. — Não se esqueça, Merkin, é senhora, não milady. Se quisermos ficar aqui em segurança, ele deve achar que somos apenas vendedoras. — Se soubesse que ela havia fugido de uma família nobre, ele poderia entregá-la em troca de dinheiro. — Sim, senhora — falou Merkin exageradamente alto. — Estou certa de que ele chegará aqui a qualquer momento. — Ela olhava para os cantos escuros enquanto Merkin preparava sua cama na cozinha. Na verdade, só tinha 22
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) uma certeza: precisava voltar para casa. Katrine acordou e viu a sombra imóvel de uma pessoa alta na parede da sala de tecelagem, segurando um punhal. Renard havia voltado. Katrine nem levantou a cabeça. Ela havia dormido em cima do livro de contabilidade e fez da touca seu travesseiro. Já estava totalmente escuro, e ela achou que ainda podia ouvir o eco do sino da igreja. O resto do carvão ainda tinha umas poucas brasas ardendo, como nas profundezas do inferno. Lentamente ela se esticou e bocejou, levantou os braços para cima, de olhos fechados, fingindo não o ter visto. No entanto, com esse homem presente sua loja não parecia estar mais segura que a rua. O vestido solto de lã roçou nos seus seios, e ela teve vontade de encolher os braços para se proteger, mas ficou agradecida por seus seios serem tão pequenos. Assim, certamente ele não poderia vê-los. Enquanto embainhava o punhal, sua sombra caiu sobre ela como uma carícia. — Não esperava vê-lo assim tão tarde. — E eu estava esperando vê-la há muito tempo. Encontrou o sujeito que vai lhe emprestar o dinheiro? Ela contou as pesadas moedas e depois as entregou para ele, sem dizer nada. Não precisava contar mais uma mentira. — Tome aqui. Embora ainda não tenha feito nada para merecer isto. Eu o contratei para vigiar a casa, mas você nunca está aqui. E, ainda por cima, insiste em exibir a lâmina do seu punhal. Em silêncio, ele jogou as moedas no saco amarrado à sua túnica, sem ao menos contá-las. Moedas que ela contou inúmeras vezes. Como um contrabandista podia ser tão descuidado com dinheiro? Ela fechou o livro de contabilidade. — Diga-me, sr, Renard, como veio parar nessa vida? Você é um tecelão tentando trazer trabalho para seus colegas? A ideia parecia absurda. Ele tinha braços e peito fortes o suficiente para trabalhar como tecelão, mas suas pernas longas pareciam ter guiado cavalos para batalha, não estavam atrofiadas por ficarem presas embaixo de um tear. Ele jogou um graveto no fogo, e uma chama azulada o devorou em pouco tempo. Ela esperou uma resposta, mas nenhum dos dois temia o silêncio agora. — Monsieur Renard, sua xará, a raposa, nunca fica sem palavras. O gato comeu sua língua? — Renard, a raposa, tem sempre uma palavra inteligente. E, em geral, é mentira. — Isso quer dizer que suas palavras são mentiras? — As suas são verdades? Ela piscou, traindo-se novamente. Será que ele é padre para saber as verdades de um confessionário ? — Qual é a sua verdade, Renard? O que diz à sua esposa quando ela quer saber o 23
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) motivo da sua ausência? Ela achou ter visto uma nuvem de raiva tomar conta do rosto dele, mas o olhar indecifrável protegeu seus segredos, como se fosse uma armadura. No entanto, até mesmo uma seta certeira poderia penetrar uma armadura. Katrine tentou lhe acertar com essa seta imaginária. — Ou talvez as moças evitem se casar com um contrabandista? Ele hesitou antes de responder. — Não vejo necessidade de me casar. Feliz com sua pergunta certeira, ela avançou. — E seus pais? Eles se orgulham de você? — Quanto menos soubermos um do outro, mais seguros estaremos. Está tarde. — Em um movimento elegante, ele se curvou e segurou a mão dela para ajudá-la a se levantar. — Já que sou seu protetor, vou protegê-la daqui até o seu quarto de dormir. Ela estendeu a mão. Ele a puxou tão rapidamente que ela teve que segurar no braço forte para se equilibrar. Com o nariz encostado no peito de Renard, ela sentiu o cheiro doce das líquenes que haviam tingido a túnica. Nos braços dele, sentia-se segura. Estranho sentir-se segura com um homem tão ameaçador. Ela se sentia envolvida não só pelos braços, mas também pelo perfume, dele. Forte, rico, misterioso. Será que todos os homens cheiravam como ele? Katrine percebeu uma respiração irregular pelo movimento do peito dele ou talvez fosse ela que ficara sem fôlego. E logo a sensação de segurança desapareceu, e em seu lugar havia algo totalmente diferente. E perigoso. Ela olhou para cima e viu que os olhos dele não pareciam tão frios. Ela sentiu dificuldade de respirar quando ele passou o dedo próximo aos seus lábios. Depois, lentamente, ele traçou sua sobrancelha, o rosto, a bochecha, então voltou para os lábios, delineando-os com a suavidade de uma pluma. Finalmente, o dedo dele desceu pelo seu queixo e se emaranhou na sua nuca. A mão dele a segurou pelo pescoço, e o calor a queimava por baixo do tecido da roupa. Ele podia ter feito uma carícia ou a sufocado, mas ela sabia, de certa forma, que ele não faria nada disso. Mesmo que ela quisesse uma carícia. — E quem vai me proteger de você? Ela se soltou dos braços dele rapidamente, envergonhada. Renard sabia dos seus pensamentos pecaminosos, percebeu que desejava ser tocada por ele. Os homens sempre sabiam, foi o que seu tio lhe dissera. — Não vai precisar de nenhuma proteção contra mim. Só quero uma coisa de você. Katrine se encaminhou para a escada sem esperar ele acender uma vela e a seguir. No alto da escada, ela abriu a porta do quarto principal. Ao lado da cama, estava o tríptico de marfim da sua mãe. Ele vinha logo atrás dela. — Este é o seu quarto? 24
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Não, era o quarto de Giles. Na ausência de Renard, Katrine tinha colocado roupa de cama limpa e desfeito sua mala. — Claro que sim. — Estranho. Hoje cedo ele parecia diferente. Sem esperar pela resposta, Renard foi para o terceiro andar. Ele a dispensou. Como se ela fosse a criada e ele, o patrão. Katrine fechou a porta e encostou-se a ela, de olhos fechados. Podia ouvir os passos dele no andar de cima. Ouviu-o tirar a túnica e se deitar na cama. A palha do colchão gemia com o peso dele, e ela o imaginou deitado, deixando a brisa da janela bater em seu peito nu. Quem vai me proteger de você? Renard leu seus pensamentos, que deviam ser pecaminosos, mesmo que ela não os compreendesse muito bem. Mas ela não se sentia uma pecadora. O pecado devia fazer a pessoa se sentir cheia de sapos, larvas e bile. Fétida. Purulenta. Pior que uma dor de dente, dor de barriga e o incômodo mensal, tudo ao mesmo tempo. Em vez disso, ela se sentia alegre, como se fosse época de Natal. Devo ser mesmo uma pecadora para não estar me sentindo culpada. Ao abrir os olhos, ela saiu de perto da porta, envergonhada com seus pensamentos. Isso só provava que seu tio tinha razão. Tirou a túnica e ficou feliz de não ter acordado. Merkin, em sua cama na cozinha, para vir ajudá-la a se despir. Com certeza, os olhos azuis-escuros dele não se riam assim à luz do dia. Ela só estava ofegante e quente porque precisava de uma boa noite de sono. Sentia-se fraca pois tinha que se alimentar. Pela manhã, ele pareceria normal, e ela se sentiria bem. Foi até a janela para fechar as venezianas e se assustou ao vislumbrar um homem do outro lado da rua. Quem estava se escondendo nas sombras a essa hora da noite? Quando o reconheceu, ela estremeceu. Era Ranf, o criado do seu tio. Com as mãos suando e a boca seca, fechou rapidamente as janelas e passou a olhar pela fresta, até ver o homem desaparecer. Certamente ele não a levaria à força sem uma ordem expressa do seu tio. Ela estremeceu. Pelo visto, estava precisando de um segurança bem mais do que podia imaginar.
CAPÍTULO QUATRO 25
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107)
Renard rolava de um lado para o outro na cama, procurando uma posição na qual a palha fina não picasse sua pele. O zumbido de vozes na rua entrava pela janela, junto ao ar fresco da noite. Um vizinho burguês e a esposa estariam discutindo na cama? Ou estariam os homens do conde procurando por ele? Viu um homem espreitando a casa. Seria um inocente ou uma ameaça? Nossa, ele era um péssimo espião. Cada frase era uma armadilha. Cada palavra poderia significar a morte. Mas ele precisava desempenhar esse papel. Devia convencer essa moça de que era um contrabandista desonesto, interessado apenas em dinheiro. De olhos fechados, ele tentou se concentrar na sua missão. E em como se sentiria com o anel de safira na mão direita quando tudo isso terminasse. Mas, em vez disso, pensava em Katrine, pequena e delicada em seus braços. Ele a segurou mais tempo do que devia e tempo suficiente para sentir-lhe o cheiro, quente e forte, que mexeu com todo o seu corpo. Em algum lugar, embaixo de todo aquele tecido que a cobria, exceto pelas mãos e rosto, o batimento do seu coração combinava com o dele. Disso ele tinha certeza. Porém ele usou o instinto que aprendeu a desenvolver durante a vida e reprimiu o sentimento da paixão, antes de perceber que, dessa vez, não era isso o que ele queria. Esse tipo de comportamento já tinha se tornado um hábito para ele. Quem vai me proteger de você? As palavras tinham escapado de sua boca inexplicavelmente. Uma mulher vivida já teria percebido o poder que tinha nas mãos, mas essa mulher era tudo, menos experiente. Além de não conhecer o corpo de um homem, ela nem se sentia à vontade com o próprio corpo. Sua reação a ele foi estranha, como se fosse um escudeiro que pegava em uma espada pela primeira vez, com força apenas para controlá-la. A lâmina oscilou, mas ainda foi afiada e talvez até mais letal, pois seu golpe não seria hábil nem ágil, mas acidental. Sofrido. Fatal.
Quando o céu começou a clarear, Renard se levantou, pronto para fugir dali sem ser visto. O perigo rondava as ruas e até mesmo esses bairros não tinham seguran ça. No andar de baixo, havia uma tecelã que queria apenas furar o embargo de Edward. Sua voz insegura lhe dizia que ela estava escondendo alguma coisa. Esse marido dela não procurava lã. Ele já estava fora há muito tempo. *** Renard levou Edward clandestinamente até os cavaleiros que se encarregariam de levá-lo para o navio, e quando voltou para a cidade, os sinos do meio da tarde já estavam tocando. 26
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Agora, em vez de ir para Brabante, ele teria que ficar preso em um esconderijo. Alguns dos cavaleiros ingleses já tinham chegado e esperavam pelo bispo para começar as negociações formais. Ele precisava se arriscar em fazer contato, para avaliar a situação diplomática. Sem ser notado, entrou em uma casa perto do mercado na qual Jack de Beauchance tinha alugado alguns quartos. — Renard! — disse Jack, batendo em seu ombro. — Fale baixo — pediu ele, embora o carinho do amigo o alegrasse. Jack, de cabelo todo encaracolado, foi ordenado cavaleiro ao seu lado num campo da Escócia. — Onde esteve se escondendo desde que desembarcamos, sua raposa? Está tratando dos negócios do rei novamente? — E se estivesse, eu lhe diria? — Seja o que for, sua cara não é boa — disse Jack. Renard forçou um sorriso, mas ficou chateado que suas preocupações estivessem tão à mostra. Isso podia ser perigoso. — Olhe só para você, usando esse tapa-olho vermelho ridículo quando está sozinho no quarto — brincou ele para mudar de assunto. — Você dorme com isto tam bém? Jack cruzou os braços e levantou as sobrancelhas. — Bonito, não? Eu lhe garanto que as mulheres gostam muito. — As mulheres gostam de você, com ou sem este lenço. — Todo mundo gostava de Jack. Era inevitável. Como filho mais novo, o direito de herdeiro dele estava garantido, não que ele se importasse com isso. — Por que foi enviado para cá antes, se o bispo está em outro lugar? Jack revirou os olhos. — Ele ficou sabendo que estive com uma dama de companhia num canto escuro do jardim. — Deixe-me adivinhar. Uma mulher que o próprio bispo desejava? — Não acho que ele a terá, mesmo depois que saí de lá — disse Jack lamentando, mas logo ele abriu um sorriso. — Olhe só para isso — falou ele, segurando três bolas de pano. Ele as jogou para cima e pegou a primeira, a segunda, mas se esticou tanto para pegar a terceira que se espatifou no chão. Três bolas macias pularam em suas costas. Renard riu pela primeira vez em uma semana e se abaixou para ajudá-lo. — Isso é parte da estratégia de negociação? Fazer o conde rir tanto que ele será forçado a mudar de lado? Jack esfregou a mão no joelho e fez uma careta. — O conde nem aceitou marcar um encontro conosco. Talvez seja por isso que o bispo demora tanto com os familiares da rainha. — A esposa do rei Edward tinha vários parentes da nobreza nos Países Baixos. — Ele não quer levar a culpa pelo fracasso. Renard franziu a testa. — Isso é um mau presságio. — Se as negociações oficiais falharam, o trono de Edward dependia apenas da capacidade de Renard fomentar uma revolta. 27
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Ele enviou alguns de nós na frente para providenciar acomodações para ele. — Jack piscou. — E para fazer amizade com as pessoas. — Arremessando ouro nas ruas e roubando beijos? — As artimanhas dos cavaleiros ingleses já era de conhecimento de todos. — Você ainda aproveitou as Guerras Escocesas. Isso é muito mais agradável. — Essas mulheres têm os cabelos mais belos e os olhos mais azuis que eu já vi. Os olhos de Katrine eram castanhos, ele achava, de repente, se perguntando a cor do seu cabelo. As sobrancelhas dela tinham um tom avermelhado. Mas ele tentou ignorar qualquer sentimento bom a respeito disso. — Não tinha notado. — Você costumava gostar de mulheres tanto quanto eu. — Eu era mais jovem. — E tolo demais para entender que poderia gerar outro bastardo que sofreria tanto quanto ele. Não desejava isso a ninguém. — E uma pena que você resista tão facilmente aos prazeres do conforto feminino. — Facilmente? — zombou ele. — Sabe muito bem que não. Não vim para cá em missão de prazer. — Nem o resto de nós, mas o bispo de Clare não deixa que os negócios, nem seus votos, interfiram em seus prazeres. — O bispo é um hipócrita — Renard disparou as palavras com raiva. Em seguida, ele riu, para que Jack não levasse isso muito a sério. — Você precisa de uma mulher para melhorar seu humor. Conheci uma moça adorável na casa de banho. — Ele movimentou as sobrancelhas num gesto de pro vocação. Renard riu, achando o comentário engraçado. — Se você a conheceu na casa de banho, ela não é uma moça. Jack fez um gesto de ofendido, colocando uma das mãos sobre o peito. — É um estabelecimento de respeito. A moça tem lábios vermelhos, pele macia, cabelo louro sedoso e se você não gostar dela, estou certo que encontrará outra do seu agrado. Vamos até lá. — Não posso correr o risco de ser visto com você. — Ele se levantou. — Depois que eu sair, por favor, esqueça que estive aqui. — Se mudar de ideia sobre a casa de banho, ela fica na bifurcação do rio, depois do castelo do conde. Depois que deixou Jack, Renard pensou sobre o assunto. Uma casa de banho era um antro de fofocas. Se ele ficasse atento, poderia sentir o que o povo pensava e saber quem estava do lado da causa de Edward. Mas em vez de ir onde Jack lhe sugeriu, ele tentaria visitar uma casa mais discreta, que ficasse entre as tabernas da Praça das Atrações Proibidas... Onde ninguém faria perguntas. Renard voltou para a loja depois do sino das orações da noite, cansado de tanto forçar o sotaque flamengo. Até mesmo uma cama de colchão duro soava convidativa. Enquanto esteve nos mercados, nas tabernas e nas casas de banho, seu porte alto e olhos azuis chamavam atenção, mas seu flamengo, mesmo enferrujado, foi bem 28
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) convincente para ele passar por um visitante de Bruxelas. E fomentar a revolta não estava sendo tão difícil quanto ele podia imaginar. As pessoas pareciam fáceis de manipular, pois estavam zangadas por estarem sem lã para seus teares e sem pão. Se fossem estimuladas da forma correta, poderiam ser facilmente incitadas a apoiar Edward e a Inglaterra. A luz do luar o obrigou a andar nas sombras. O homem que ele havia visto rondando a casa não estava lá essa noite, mas ele não podia se arriscar. Já estava nas ruas após o toque de recolher e esperava que Katrine já tivesse se recolhido. Precisava evitar a curiosidade dela. E a tentação. Com a mão no punhal, entrou em casa pela cozinha, na qual reinava um forte cheiro de sopa de repolho. O brilho de brasas descobertas o atraiu para a sala da frente. Katrine dormia sobre seus livros novamente. A touca torta deixava à mostra uma mecha de cabelo que parecia acariciar seu rosto. Um dos dedos da mão direita, manchado de tinta, estava apoiado sobre o livro de contabilidade. Ele embainhou o punhal e entrou na sala em silêncio, para não a acordar. A luz do fogo formava longas sombras nos cantos da sala. A casa não ia muito além das sombras. O lugar era bem pequeno. O rei Edward precisaria de mais espaço do que isso para caminhar. No entanto, isso era tudo o que ela possuía. Nada de campos, vastas propriedades nem criados trabalhando fora dessas paredes. Apenas uma cerejeira e uma peça de tecido para impedir que ela morresse de fome. Não admira que ela precise de lã. Será que o marido não podia tomar conta dela? Ele se ajoelhou diante de Katrine e ficou com o rosto perigosamente perto do dela. E, instintivamente, tirou a mecha de cabelo dela e tentou escondê-la sob a touca, sentindo a maciez dos fios entre seus dedos. Ao sentir o toque dos dedos, ela acordou, abriu os grandes olhos castanhos e sorriu. — Você adormece todas as noites sobre o livro de contabilidade, senhora? — perguntou ele sorrindo. — Este negócio é tudo o que tenho. Farei qualquer coisa para mantê-lo funcionando. Ele se levantou em seguida e se perguntou que tipo de paixão teria pelo marido, se é que tinha um marido. De repente, ele achou importante saber. Já tinha negociado com reis, decerto conseguiria arrancar a verdade de uma simples tecelã. — E seu marido? Ele também faria qualquer coisa que fosse necessário? — Claro que sim — disse ela. Naquele momento, ele teve a certeza de que não havia marido algum. Sentiu um desejo de percorrer seu corpo todo. Nenhum homem a possuíra. Ele ia resistir, mas ela não devia saber disso. — Se está disposta a fazer qualquer coisa, faria algo que eu lhe pedisse? Queria deixá-la insegura sobre as intenções dele. Katrine ficou corada, seria de raiva ou de vergonha? Ela mordeu os lábios, com pequenos dentes brancos, como se a dor pudesse segurar seus impulsos. Ele já tinha 29
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) visto um cavaleiro em batalha lançar mão desse mesmo truque, cortando seu antebraço para distraí-lo de um golpe mortal. Ela o fitava, com olhar firme, e sussurrou para ele: — O que quer? O desejo percorreu seu corpo, como veneno. O que ele queria não podia ser dito em palavras, só a visão de uma união selvagem. Ele lutou contra essa imagem. Mesmo que se permitisse aproveitar os prazeres da carne, ele estava escondido no interior de um país que, em breve, poderia estar em guerra com o seu. Uma palavra dita sem pensar podia significar sua morte. — Peço que me diga a verdade. Ela se levantou e se afastou para as sombras. Escondendo-se. — E a verdade é que a senhora não tem marido. Ela surgiu diante dele, furiosa. — Não tenho marido — afirmou ela, zangada. — E você teria negociado comigo se soubesse disso? Sim, mas não pretendia lhe contar isso. Ele deu de ombros. — Então por que usa a touca? Ela cruzou os braços, como se os usasse como escudo. — As ruas não oferecem muita segurança nos dias de hoje. As mulheres casadas são mais respeitadas. — Mas você não está na rua agora. — Preciso de proteção. — Pensei que eu a estivesse protegendo. Ela sorriu. — Vai me proteger de você mesmo? Katrine lhe devolveu suas palavras. Renard pretendia deixá-la insegura, mas era ele quem estava perdido agora. Ele tentou aparentar desprezo para disfarçar a atração que sentia. Katrine não podia notar sua fraqueza por ela. — O que a faz pensar que precisa de proteção contra mim? — Fico feliz de saber que não vou precisar. — Ela passou a mão sobre a saia para esticá-la. — Quando vou ver minha lã? Ele sentiu um certo desconforto. Ela havia se recuperado mais rápido do que ele podia esperar. Imaginou que ela fosse uma simples moça plebeia, mas até agora, essa mulher não era nada do que ele esperava que fosse. — Não posso pedir lã contrabandeada no mercado. Se fosse assim tão fácil, não precisaria de mim. — Quanto tempo terei que esperar? — O tempo que for preciso. — O tempo que levar para conquistar a simpatia do povo de Flandres para o lado de Edward. — Semanas, não dias, senhora. — Já estou esperando há meses. — A paciência é uma virtude que a senhora não possui. 30
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — A paciência não é virtude quando se trata de fiandeiras e tecelões. Não tenho paciência para trabalho malfeito e não vou ter nada decente para vender. As palavras dela o intrigavam. Qual seria a sensação de estar satisfeito com quem você é e com o que faz? — Você tem orgulho do seu trabalho, não tem? Ela abriu um sorriso que iluminou seu rosto todo. — A Marca da Margarida é conhecida em todos os Países Baixos. Ela parecia apaixonada, pensou ele irritado. — E o que faz seu tecido ser tão especial? — Eu conheço a qualidade da lã só em pegar. Minhas fiandeiras entregam sete meadas de lã por dia, em vez de cinco. Quando meus tintureiros terminam, a cor está firme. Os pontos dos meus tecelões são tão apertados que raramente precisamos de um pisoador. — Pisoador? — Ele conhecia quase todas as palavras do idioma, mas, às vezes, ficava sem entender uma ou outra. — O que fazem eles? Ela olhou desconfiada. — Como pode lidar com lã e saber tão pouco do assunto? — Preciso saber como plantar trigo para poder negociá-lo? Ou como tirar sal das minas a fim de vendê-lo? — Bem, se você entendesse de lã, conheceria a nossa marca. Mesmo antes de eu nascer, nossa marca fez um tecido especial para a duquesa de Brabante. Renard ficou espantado com aquela revelação. Tecido da duquesa. Um pedaço de lã tingida de azul, cuidadosamente embrulhada em torno de um punhal de prata alemã. A única herança que o filho bastardo recebeu de sua mãe princesa, que se casou com um duque. Que destino terrível o trouxe exatamente para a loja que fabricou o tecido usado por sua mãe? — Tecido da duquesa? Foi você quem o fabricou? — Você o conhece? — Já ouvi falar dele. — Ele tentou disfarçar. — Estou surpresa. Foi há tanto tempo. — Eu nasci em Brabante, lembra-se? Quem o conhece afirma que só um milagre de Deus ou bruxaria do diabo poderia produzir um desenho tão complexo. Ela riu. — Nem Deus, nem o diabo. Apenas Giles de Vos. Ele tentou abaixar a voz, com medo de gritar para ser ouvido acima do barulho forte do batimento do seu coração. Devia fazer a pergunta como se a resposta não tivesse importância. — Então ele conheceu a duquesa? De repente, ele estava zangado de ouvir falar dela. Ninguém havia falado sobre sua mãe desde sua morte. 31
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — A duquesa foi uma grande patrocinadora dele — disse Katrine. — Ele tecia uma peça especial e mandava para ela todos os anos até ela morrer, há vinte anos. — Dezenove. Ela parecia confusa, mas não perguntou como ele sabia disso. — Ele nunca mais teceu um pano igual. — Por quê? — Ele disse que era um ofício e uma arte, e que a arte deve vir do coração. Acho que ele perdeu o amor pelo ofício depois que ela morreu. Isso era a visão romântica de uma mulher. A verdade era bem mais simples. De Vos era um comerciante. O dinheiro parou de vir. — Ele não fez nada parecido para sua mãe? — Minha... minha mãe? — Você disse que seu pai só fez esse tecido para a duquesa. Na certa, ele fez alguma coisa para a esposa. Ela balançou a cabeça, hesitando, como se sentisse dor. — Minha mãe não... Sua voz falhou novamente. Ele se perguntou se ela também havia perdido a mãe.
CAPÍTULO CINCO
Obrigada, santa Catarina, por ter segurado minha língua. Renard achou que Giles era seu pai. Quando falou “sua mãe”, ele se referia à esposa de Giles. Por pouco, ela não lhe contou que a mãe estava morta e que o pai era um nobre flamengo. E prisioneiro na Inglaterra. Ela jogou um pedaço de lenha no fogo, que esmorecia, e isso liberou uma chama, Era melhor ele pensar que Giles era seu pai. Afinal, ele já estava morto e não se importaria com uma esposa imaginária. Perdoe meu pecado de omissão. — Não, nem para minha mãe — repetiu ela as palavras dele. — Muitos o desejavam, mas o tecido da duquesa era feito exclusivamente para ela. Katrine se virou de frente para ele e notou que os olhos azuis pareciam profundamente sofridos. Ela piscou repetidas vezes, mas ao abrir os olhos novamente, a dor já desaparecera. Ela sacudiu a cabeça para dissipar aquela imagem. Deve ter se enganado. Esse homem não tinha sentimentos. E nenhuma razão para lamentar a morte de uma duquesa. 32
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Fale-me do seu pai — falou ele com uma expressão séria. Ela suspirou aliviada. Seria fácil se fazer passar por filha de Giles. — Ele me ensinou tudo o que pôde e me deixou tudo o que possuía. — Quando foi que ele morreu? — Há dois anos, na festa de são Miguel. — Sente muita falta dele. — A voz dele era como um braço sobre os seus ombros.. — Sinto, sim. — Não deve ser fácil para uma mulher ser uma vendedora de tecidos. Katrine resolveu não entrar em detalhes. Era melhor ele não saber o quanto era difícil. Devia vê-la como a proprietária de uma empresa e não como uma mulher que poderia ser presa pela sua paixão. Ela falou no mesmo tom que falava com estranhos. — Os trabalhadores me respeitam. Conheço bem o meu negócio. — Quantas vezes tem que provar isso? Todos os dias? Ele já tinha ouvido demais. — Tantas quantas forem preciso. Renard caminhou até o tear e se abaixou. — Este tear era dele — disse ela, observando Renard passar a mão nos fios, no sarrafo, como se estivesse procurando algum segredo. As mãos, fortes e graciosas em outras coisas, pareciam estranhas apenas quando se aproximavam do tear. — Ele foi um tecelão antes de começar a vender tecidos. — Mas continuou tecendo, segundo você disse. Teceu o pano da duquesa. — Ele estava sempre fazendo experiências, tentando coisas novas, até perder os movimentos das mãos. — Aproximando-se do tear, ela passou a mão sobre a madeira desgastada de mais de cinqüenta anos de uso. — Ele me ensinou a trabalhar neste tear aqui. Disse que eu precisava saber tecer para poder supervisionar os trabalhadores. — Mostre-me como é. A sua mão ficou imóvel, e ela tentou entendê-lo. Que pedido estranho. — Por que quer aprender? Ele não tirou os olhos dos fios. — Para ter algo para mostrar, depois de terminar. As palavras sussurradas dele pareciam uma confissão. A vida de um contrabandista era um mistério. — Talvez amanhã. — Com a luz do dia. Sem a intimidade da noite. — Agora. — No escuro? — Foi você quem disse que eu precisava conhecer esse trabalho. Não havia nenhum mal em ensinar, ela imaginava. Bons tecelões trabalhavam com 33
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) o tato, portanto a falta de luz não devia fazer diferença. E ela poderia provar para si mesma que não sentia nada de mais quando eles dois estavam no mesmo lugar. Sentando-se na ponta do banco, ela bateu de leve com a mão no espaço que sobrava. — Sente-se aqui. Ele se sentou, e as pernas dele eram tão compridas que passavam direto pelos pedais que ela mal alcançava com a ponta dos pés. Através das camadas da cota de malha dele e das suas saias, ela sentiu os músculos da perna dele flexionarem, num estranho movimento. — Estes — disse ela, tentando controlar o tom de voz — são os pedais. Pense neles como se fossem estribos. Seus pés controlam o tear com eles. Ele colocou os pés nos pedais, e seus joelhos ficaram junto do tecido no tear. — Todos os tecelões são homens pequenos? Ela sorriu. — Você é um homem muito alto. E este é um tear velho que eu ajustei para o meu tamanho. Os mais modernos acomodam dois homens. — Qual era a altura de Giles de Vos? Ele fez a pergunta sem olhar para ela, seus dedos percorriam o tear sem parar, acariciando a ripa, alisando os fios da urdidura. A visão dos dedos dele fez sua pele formigar. Ela esfregou a mão na manga do vestido, como se pudesse se livrar daquela sensação. — Giles era menor que você. Cerca de uma cabeça menor. Ele abriu os braços para alcançar o tear e atingiu facilmente a largura do tecido. Ela sentiu o cheiro de sabão na pele dele. Deve ter ido a uma casa de banho hoje. O cheiro dele, a pressão da perna contra a sua, escondida embaixo das saias, fez seu coração disparar. Minha Santa Catarina, é isso que chamam de tentação? Se for, a sensação é gostosa, aconchegante, emocionante e talvez um pouco perigosa, mas é muito boa. Ela não sentiu uma resposta da parte dele. Estava totalmente concentrado na madeira e na lã. Ele disse que eu não precisava ser protegida por ele. Devo mesmo ser uma mulher indecente se me sinto assim enquanto ele não sente nada. Katrine se levantou, esticou a saia e foi até a ponta do tear, onde o perfume dele estava mais fraco e seria mais fácil combater seus impulsos indecentes. — Posso lhe mostrar melhor daqui. Ela passou a mão pelo tear, verificando a tensão dos fios, tentando se concentrar. Por onde poderia começar? Era apenas uma criança quando aprendeu a reconhecer os fios da meada da direita que deviam passar os fios entre os da urdidura; os da esquerda deviam ser usados como a trama, tecendo os fios de forma uniforme, nem muito apertados nem muito frouxos. — Deixe-me lhe mostrar como usar. — Ela pegou a lançadeira de madeira, sem a bobina de fio, mas desgastado pelos dedos de Giles. — Primeiro pratique com um vazio para se acostumar e não estragar meu tecido. 34
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ele a observou em silêncio e muito atento. — Segure a lançadeira na palma da mão, em seguida, insira a ponta do fio e passe entre a trama para pegá-lo do outro lado. Vou lhe mostrar primeiro. Katrine passou um dos braços por cima dos ombros dele e sentiu um cachinho de cabelo fazendo cócegas no seu rosto. Ela trabalhou o pulso direito com a desenvoltura de alguém com prática no assunto. A lançadeira deslizou rapidamente sobre a trama, até o lado oposto, caindo no chão e quase estragando o piso de madeira. — Por que você não o pegou? — resmungou ela. Ajoelhada no chão, naquela escuridão, ela procurou pela lançadeira embaixo do tear. — Você não me mandou pegar, senhora. — Ele voltou a falar com altivez. — Disse apenas “vou lhe mostrar primeiro”. Seus dedos ficaram cheios de poeira antes mesmo de pegar a lançadeira. Ela esfregou o dedo nas pontas do dispositivo e verificou que não estava danificado. — Você podia ter quebrado a ponta ou tirado um pedaço — falou ela ao rastejar por baixo do tear e espirrando diante de toda aquela poeira. — Agora você vai tentar. Dê um impulso na lançadeira com uma das mãos para pegá-lo com a outra. Nem seus dedos nem a lançadeira devem tocar nos fios. Em seguida, empurre-a de volta. Um bom tecelão trabalha bem tanto com a mão esquerda quanto com a direita. Ele segurou a lançadeira como se fosse uma espada. — Não. É assim. — Ela colocou sua mão pequena por cima da dele, o dedo indicador ficou sobre a madeira desgastada da lançadeira. A proximidade provocou um súbito calor no seu braço, mas ela se recusou a soltá-lo. — Agora movimente assim... — Ela guiou o pulso dele. — Da próxima vez, solte-a e pegue-a. A lançadeira deslizou metade do caminho e parou no meio. Ela soltou um suspiro e se esticou para retirá-lo. Mas os dedos dele seguraram seu pulso. — Deixe comigo. Ela retirou o braço, e o local que ele havia tocado parecia em chamas. Depois de resgatar a lançadeira, ele flexionou os pulsos e empurrou a lançadeira pelos fios. De novo, ele parou no meio do caminho. Sem dizer nada, ele a pegou. Em vez de amaldiçoar a lançadeira, ou a ela, como fazia seu tio quando algo dava errado, ou a si mesmo, como teria feito seu pai, esse homem fez tudo de novo. E depois fez de novo. Na outra tentativa, a lançadeira passou pelos fios tranquilamente e foi parar na outra mão que esperava. Sorrindo, ele abanou a mão, e ela bateu palmas com prazer, mas logo se deu conta que o barulho podia acordar Merkin. — Você maneja um pente como se tivesse sangue de tecelão. O sorriso foi substituído por um olhar de advertência. Ele se levantou, dando a aula por encerrada. — Meu sangue não é da sua conta. Ela ignorou a ofensa e foi acender uma vela no fogo da lareira. — Estava lhe fazendo um elogio. Principalmente porque parece que você não entende nada de comércio. — Ela acendeu mais uma vela na lareira e entregou a ele. 35
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Acho que é mais importante conhecer meus compradores. — Pensei que você tivesse dito que quanto menos soubéssemos um do outro, melhor seria. — Eu devia ter dito que será melhor você não saber nada sobre mim. Você é minha compradora, tenho que saber do que você precisa. As palavras dele eram tão sedutoras quanto o seu corpo. Ela estava cansada de mentir, cansada de ficar sozinha, tão cansada que, por um momento, teve von tade de lhe contar tudo. Katrine respirou fundo e mordeu a língua. Impossível. Já havia mentido sobre muitas coisas. Este era um homem para temer, não para confiar. Ela apagou o fogo da lareira, para que a escuridão a protegesse. — Você já sabe do que estou precisando. Três sacos da sua melhor lã. — Ela começou a subir a escada. — Não acredito em nenhuma das mentiras que você disse. Se acreditasse, certamente eu queimaria no inferno.
O bispo de Clare, Henry Billesh, chegou na cidade cheio de pompa e se instalou em uma casa de três andares, perto do Mercado de Peixe. Renard se misturou com os vendedores de comida e comerciantes, chegando na casa do bispo sem ser notado ou anunciado. Por lealdade a Edward, ele deixaria de lado seu desgosto de cooperar com aquele homem. Não seria fácil. — Ah, é o mensageiro do rei. — O bispo estendeu a mão para que ele lhe beijasse o anel. A safira do anel tinha um gosto amargo nos lábios de Renard. — Tenho um relatório para compartilhar com você. Imagino que também tenha. Hospedado em uma cidade que passava fome, o bispo escolheu uma linda laranja de um cesto cheio de frutas e começou a descascá-la com unhas limpas e bem cortadas. — Não posso pensar em nada que você saiba que vá me interessar. — Não poderá saber até me ouvir. E aquilo que é do interesse do rei devia interessar a nós dois. — O rei e eu temos o mesmo interesse, Renard. E você que tem outro motivo, segundo eu soube. Será sagrado bispo em troca de Flandres, certo? Edward colocou um contra o outro. Assim, ele sairia ganhando de qualquer jeito. — Servirei a meu rei independentemente disso. — Você pode se decepcionar. Quando eu conquistar a confiança e o apoio do conde, não haverá necessidade de truques desonestos. Renard se curvou. — Assim esperamos, vossa excelência. Mas o rei é sábio e quer estar preparado para enfrentar todas as situações, inclusive o seu fracasso. Sentindo-se insultado, o bispo deu o troco. — Não se esqueça de que, para transformar um bastardo em bispo, até um rei 36
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) precisa de ajuda. — Ele arrancou um gomo da laranja, colocou-a contra a luz e a descar tou, por achar que estava muito amarga. — Minha ajuda. Renard olhou para a reluzente safira na mão do bispo e se perguntou se não pagaria um preço alto demais por isso. — Conheço bem as minhas circunstâncias especiais. O bispo olhou para a cesta cheia de frutas e, como um glutão ao fim de um jejum de quarenta dias, escolheu apenas as melhores, deixando o resto para ser descartado. — Bem — disse ele. — Se algo der errado com as negociações... — Ele parou para examinar uma tâmara. — Será pouco provável que eu escreva essa carta. — Ele resolveu que a tâmara estava boa e a jogou em sua boca. — Acredito que não será difícil trabalharmos para o bem do rei. Ele aguardou. O silêncio só era interrompido pelo som da mastigação do bispo. — Seu relatório... — falou ele com ar de desprezo. — Embora eu não saiba o que você pode me contar de útil sobre os artesãos... Eles não têm poder algum. — Nesta cidade, eles têm sim. Negociar diretamente com o conde será mais difícil aqui do que nas outras cidades. — E por quê? — perguntou o bispo, lambendo os dedos. Renard sorriu. — Em primeiro lugar, porque ele não é parente do rei por causa de casamento. — Os muitos familiares da rainha, em vez de facilitar, tornaram minha missão mais difícil. — Pode ser, mas aqui o conde não tem a palavra final. As associações dos tecelões têm direitos que nem o conde pode ignorar. Renard fez um resumo de suas outras descobertas. Os trabalhadores não gostavam do conde nem partilhavam da sua simpatia pelos franceses. Eles ainda lembravam, com orgulho, do dia em que seus avós, a pé e armados apenas de lanças, derrotaram os cavaleiros franceses em seus cavalos e roubaram seus esporões como troféus. Sua lealdade era com a Inglaterra, sua parceira comercial. Ele já tinha descoberto um aliado em potencial que poderia influenciar a região de Flandres a apoiar Edward oficialmente. Mas não ia informar o nome nem a posição desse homem ao bispo. Quando ele terminou de lhe dar as informações, o bispo deu de ombros. — Fique entre os camponeses, se isso lhe agrada. Eu vou cuidar da diplomacia. — O conde concordou em apoiar as reivindicações de Edward? — Renard já sabia a resposta. Só queria ver o homem se contorcer. — Com o tempo, ele vai concordar. O dinheiro derruba todos os obstáculos, na região de Flandres ou em outra qualquer. Se estivesse sentado na cadeira de um bispo pelo tempo que eu estou, você saberia que existem duas coisas a que homem nenhum resiste: dinheiro e mulher. Principalmente você. 37
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Que o rei seja vitorioso — respondeu ele e saiu antes que perdesse a paciência. Já tinha ouvido mais do que queria. Pela maneira de agir do bispo, era mais provável seu plano fracassar do que sair vitorioso. E se fracassasse, ele não ia escapar dessa atribuição. Renard teria que arriscar uma aproximação do homem que poderia liderar uma revolta. Segundo ele ouviu dizer, o homem costumava freqüentar a renomada casa de banhos de Jack.
A casa de banho na rica área do castelo do conde tinha boa reputação. Enquanto estava lá, Renard planejou uma visita a uma sala privativa com uma das mulheres que “trabalhavam” lá para parar de pensar em uma certa tecelã. A mulher que Jack lhe indicara não parecia diferente das outras. Era de uma beleza convencional, cabelo claro e formas arredondadas até demais se comparada ao corpo esbelto de Katrine. Mas ela não despertou seus sentimentos, assim ele partiu depois de lhe dar uma moeda e um sorriso. Estranho isso, depois de ter passado a semana toda lutando contra seus desejos físicos. Ele examinou a sala de banho rapidamente antes de entrar. Havia pouca gente no local, o suficiente para passarem despercebidos e não serem ouvidos. Fechou os olhos e deixou a umidade do ar invadir seus poros. Mas, em vez disso, foi Katrine que invadiu sua mente. Era como se ela estivesse sentada do seu lado, segurando sua mão, respirando perto do seu ouvido, pressionando-lhe com a coxa sob as várias camadas de lã da saia. Resolveu abrir os olhos para tentar não pensar naquilo. Devaneios eram perigosos. Assim que o sujeito entrou, ele o reconheceu. Era magro, com uma postura de militar e um ar aristocrático. Renard afundou o corpo na água e emergiu para se sentar no banco ao lado dele, como se fosse por acaso. Ambos acenaram a cabeça. — Sou um forasteiro vindo de Bruxelas — disse Renard casualmente. — O que o traz a Ghent? — Era uma pergunta inocente ou desconfiada? — Comércio de lã. O homem desviou o olhar. — Artigo escasso atualmente. O embargo não afetou sua cidade? — Bastante. Foi por isso que eu vim. — Não havia ninguém muito perto para ouvilos. Agora ele ia dar uma indicação. — Mas eu ouvi dizer que os ingleses vie ram com ouro. Talvez seja o fim dos problemas. O homem olhou para ele bruscamente. — Você é um estrangeiro. Muitos aqui vão apoiar Philip de Valois, não importa o que os ingleses façam. — Mas nem todos, certo? — Nem todos. 38
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard respirou aliviado. O homem não se afastou. Bom sinal. Ele ia dar o próximo passo. — Na minha cidade, tem gente que acha que uma aliança com os ingleses pode ser melhor que se manter leal a Philip. Uma negativa irada poderia significar que o homem fosse leal a Philip e à França. Mas não foi o que aconteceu. — Também tem gente que diz isso aqui. — Venho à casa de banho às terças-feiras. — Ele ficou quieto, ouvindo o outro homem mergulhar, esperando uma resposta. Os dois se olharam por um bom tempo, um estudando o outro. Finalmente seu companheiro falou. — Talvez nos encontremos aqui da próxima vez.
CAPÍTULO SEIS
Ao voltar com o corpo ainda molhado sob a túnica, Renard apressou o passo quando soavam os últimos toques dos sinos vespertinos. Do outro lado da rua, a mulher do padeiro fechou as janelas, impedindo que o aroma do pão da manhã se espalhasse pela rua. Renard estava bem mais animado. Por enquanto, ele estava em segurança, porém precisava ter muita atenção. No entanto, o dia tinha sido plenamente satisfatório. Sua preocupação anterior com Katrine agora parecia tolice. Se a beleza roliça na casa de banho não conseguiu provocálo, não havia necessidade de evitar uma mulher com seios pouco maiores que sua mão fechada. O homem que ele havia visto na rua estava de volta, então ele seguiu em frente, deu a volta na loja e entrou sorrateiramente pelo pátio, acenando para Merkin, que partia para uma missão tardia. A garota havia aceitado a explicação de Katrine de que ele seria um segurança. Ao menos, parecia ter aceitado. Katrine estava sentada sozinha no banco que eles tinham compartilhado na noite anterior, puxando a lançadeira para um lado e para o outro, depois batendo na trama. Distraída com o trabalho, ela não o ouviu entrar. Em silêncio, ele a observou. Baixa e magra, ela batia na altura do coração dele. Os dedos eram ásperos, ao contrário do que deviam ser os de uma senhora. Os olhos castanhos revelavam cada pensamento dela. Katrine colocou as duas mãos na nuca e deixou a cabeça cair para trás. Os ombros dela deviam estar cansados. No pouco tempo que passou no tear, ele já havia aprendido 39
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) bastante. — Deixe-me aliviar sua dor — disse ele atravessando a sala. Suas mãos estavam nos ombros dela antes que ela pudesse protestar e antes que ele pudesse refletir que tocá-la poderia ser muito arriscado. Ela se esticou, depois se inclinou na direção dele, fechou os olhos, como se estivesse esperando ele chegar em casa. Ele se convenceu que seu toque era impessoal, mesmo quando os dedos queriam se prolongar um pouco mais. As formas suaves dos seios dela estavam fora do seu alcance. Ele massageou o pescoço e os ombros por cima da lã fina e da touca sempre presente. O que será que ela escondia? Lentamente, sem querer assustá-la, ele puxou a touca da cabeça dela e deixou as tranças caírem soltas. Ao ver o cabelo dela pela primeira vez, seu corpo reagiu. O cabelo ruivo e brilhante só confirmou a imagem que ele havia feito dela. Ardente, selvagem, carente. Ele amassou a touca na sua mão, como se sufocasse os sentimentos. Negação. Controle. Katrine se virou, com olhos arregalados, assustada, e agarrou a touca. — Devolva-me isto, por favor. — Por quê? Já sei que você não tem marido. E você não está na rua. Ela segurou o tecido da touca com pulso firme. — Não gosto que as pessoas vejam meu cabelo — falou ela com a voz arrastada e os olhos angustiados. Ele segurou firme a touca. O que aconteceu com a mulher de língua solta? De repente, ela estava se encolhendo na sua frente. — Mas por quê? Se seu cabelo é tão bonito. — Está zombando de mim. Já viu que ele é vermelho. Em geral, as pessoas apreciavam mais as mulheres de cabelo louro e olhos azuis, mas olhando para o cabelo de fogo dela, tinha vontade de soltar as tranças e correr os dedos por entre seus fios. — Algumas pessoas o chamam assim. — Mas chamá-lo de vermelho era muito pobre. Estava mais para o fogo de um pôr do sol. Era de tirar o fôlego, exatamente como ele imaginava. Ela baixou os olhos e balançou a cabeça, esfregando os dedos na saia, como se quisesse tirar uma mancha. A mulher decidida, corajosa, que tanto mexeu com ele, agora parecia um ratinho com medo de encará-lo. — É uma das marcas do diabo. Ele já tinha ouvido alguns padres fazerem ligação entre cabelo vermelho e Satanás, mas essa era uma parte do cânone que não interessava a ele. As mulheres eram criaturas luxuriosas. Ele sabia disso melhor do que ninguém, mas daí a vê-la ser execrada só porque o cabelo era ruivo em vez de castanho, o deixou cheio de raiva. — Quem lhe disse isso? Ela balançou a cabeça e depois se virou para o tear. Ele se ajoelhou ao lado do 40
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) banco, pegou-a pelos braços e a sacudiu. — Diga-me. Katrine o fitou com lágrimas nos olhos. — Todo mundo sabe. Maria Madalena foi tão difamada. Ele ficou profundamente triste por ela. E a tristeza era mais forte que sua irritação e sua censura, despertando um sentimento de cavalheirismo que ele nunca sentiu por nenhuma dama da corte. Katrine precisava mais do que de proteção física. Ela precisava de proteção contra seus próprios sentimentos. Isso era uma coisa que ele podia lhe ensinar. — Eu não sou todo mundo — disse ele, segurando-lhe o queixo. — Eu não sei disso que está falando e não acredito nisso. Ela abriu um pequeno sorriso. — Talvez porque você seja o diabo. — Talvez isso signifique que você me pertence. — Ele deixou as palavras saírem sem pensar, mas, por um momento, não se importou com isso. Depois de esquecer da touca, ela se inclinou para ele com os olhos fechados, como se seu corpo soubesse que o que ele disse era verdade. Ele enfiou os dedos nas tranças dela, querendo soltá-las, se afogando no cheiro de Katrine. Ele lhe enxugou as lágrimas, uma a uma. Seus lábios estavam tão perto que ele poderia encher o peito com a respiração dela. Respirou fundo, atraindo os lábios dela para perto dos seus... De repente, ela se levantou, pondo um fim naquele momento de encantamento. Renard desabou no chão. Ele quase perdeu o controle. Quase a beijou e muito mais. Não importava qual era sua intenção com esta mulher, ele não tinha controle algum. A paixão dela combinava com a sua, como se a fraqueza dela combinasse com a sua. Longe do alcance de Renard, ela pigarreou. — Não, você não é um dos diabos de Satanás, mas se parece bem com ele. Isso deve ser de grande utilidade na sua profissão. — Ela pegou a touca no chão e a colocou na cabeça, com dedos tão trêmulos quanto a voz. Protegida pela touca, ela levantou a cabeça e voltou a ser a mesma mulher forte de antes. — Então, trouxe a minha lã? — Já lhe disse que isso pode levar algumas semanas. — Ele se apoiou no banco e levantou-se do chão. O seu corpo era uma arma que havia se virado contra ele. Por um momento, quase sucumbiu. Seus segredos se tornaram um fardo. Quase revelou a Katrine quem ele era. Que o que ele estava fazendo seria bom para ela. Mas se fizesse isso, estaria pondo em risco sua missão, seu rei e sua vida. Mesmo sob o domínio da paixão, como ele pôde esquecer? — Minhas idas e vindas serão de acordo com o meu prazer, e não com o seu. — Nada do que você faz me dá prazer, exceto trazer a minha lã e ficar longe de mim. — Mentirosa — disse ele, tentando manter uma barreira entre os dois. Ele não gostou de ver o choque no rosto dela, mas precisava despertar essa raiva. Era a única coisa que podia salvá-lo da própria fraqueza. — Mas, para mim, será um prazer ficar longe de você. 41
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Era duro ver a dor no rosto dela. Ele era um mentiroso, pensou ao subir a escada. Achando que podia resistir a ela, mentiu para si mesmo. Agora ela já sabia disso. De agora em diante, não poderia mais dar chance à tentação.
Os dias se passaram e Katrine não viu mais Renard. Merkin, que passou a gostar do homem, fez perguntas desconcertantes, que Katrine ignorou. As tábuas de madeira do piso acima dela gemiam com os passos de Renard, que só chegava depois do toque de recolher, mas ela nunca mais viu Renard nem a lã inglesa. Ele tinha dito que ela não podia confiar nele. Por um momento, ela havia se esquecido. Em vez disso, com a cabeça apoiada no peito dele, Katrine acreditou em tudo o que ele disse no momento em que a tocou. Acreditou que podia ser amada pelo que era. Mas assim que viu o seu cabelo, ele soube. Apesar do que disse, Renard a rejeitou tanto que nunca mais ficou na mesma sala que ela. Sua confiança foi embora. Ela havia deixado que seus anseios escondessem a verdade e foi tão tola que acreditou que ele lhe traria a lá pela qual pagou. Ela precisava ter certeza. Mesmo que tivesse que espioná-lo. Só porque ela se preocupava com os negócios, claro. Não se importava para onde ele ia nem de onde vinha, mas se ele não ia honrar o acordo, ela precisava encontrar uma saída. Desde que passou a sair antes que ela despertasse e voltar depois que ela se deitasse, Katrine começou a passar a noite na sala de tecelagem. Já tinha dormido sobre os livros de contabilidade antes. Ele não ficaria desconfiado. Logo depois que o primeiro sino da igreja tocou, ela o ouviu entrar na sala. Ele não fez barulho algum, mas ela sentiu a presença dele na sala. Ela manteve os olhos fechados e tentou respirar normalmente. Ele parou. Inspire, expire. Não deixe as pálpebras tremerem. Ele passou tão perto que chegou a balançar a saia dela. Katrine manteve a respiração tranqüila. A porta se fechou. Ela continuou sem se mexer por alguns minutos. Mais alguns segundos, ela pulou e correu para segui-lo. Acompanhar os passos largos dele era mais difícil do que ela podia imaginar. Apressada, passou pela Câmara Municipal, depois teve que se abaixar perto de uma barraca, no Mercado de Peixe, quando ele olhou para trás ao acaso. Não. Não foi ao acaso. Este homem não fazia nada ao acaso. Parecia que ele esperava que alguém o seguisse. Felizmente, ele era alto e fácil de se localizar, e ela era baixa e frequentemente passava despercebida. Ela ficou tensa ao vê-lo cruzar a ponte que conduzia ao castelo. Seria ele o homem 42
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) do conde? Mas, em vez de entrar, ele atravessou o canal e virou a rua onde ficava a casa do pai dela. E onde ela viu sua tia dando instruções aos criados para descarregar os cavalos. Seu tio tinha voltado. Katrine puxou a touca para a frente e se virou, fingindo estar interessada nas mercadorias do vidraceiro e, nessa hora, ficou aliviada pelo fato de a tia ter vista fraca. Logo, logo seu tio saberia que ela não estava mais lá. Provavelmente ia castigar Ranf pela falha e depois o quê? Será que ia tirá-la da loja e levá-la à força para casa? Ela correu atrás de Renard, sempre mantendo o rosto escondido. Mais do que nunca, ela estava com pressa de ter a lã. Só o dinheiro poderia acalmar seu tio. Se conseguisse mais lã, ela conseguiria fabricar tecidos novos... Renard diminuiu o passo ao se aproximar do fim da rua. Se fosse em frente, ele chegaria à casa das irmãs Bégiune, um destino pouco provável para um contrabandista. Mas em seguida ele parou diante da casa de banho Van Der Hoon e logo depois entrou. Ela ficou observando, do outro lado da rua, com o rosto queimando, sem saber o que fazer. Nunca havia entrado em uma casa de banho, e esta tinha boa reputação. Mas sentira cheiro de sabão nele apenas alguns dias atrás. Essa visita à casa de banho devia ter outro objetivo além da limpeza. Decidida, ela foi até a entrada. Uma matrona guardava a porta. — O dia das mulheres é amanhã. — Eu sei disso. — Ela mostrou uma moeda para a mulher. — Estou aqui para ter um quarto particular. — Você não é uma das mulheres que costumam freqüentar a casa. Não pode achar que vai se vender aqui dentro. Katrine pôs a mão na sua touca e fitou a mulher com o mesmo olhar cético que dedicava às fiandeiras que se atrasavam para o trabalho. — Pareço uma rameira? Sou uma mulher casada e estou aqui para tomar um banho. Isto aqui é uma casa de banho, não é? A mulher recuou. — É, sim. Perdoe-me, senhora. Katrine seguiu a mulher pelo corredor de paredes de treliças, que ecoava com vozes masculinas vindas das piscinas públicas abaixo. Ela se esforçou para ouvir a voz de Renard, mas a mulher não permitiu que ela permanecesse ali. Ela entrou numa pequena sala com uma banheira, uma lareira e um banco. A mulher colocou alguns panos para protegê-la de farpas e, em seguida, parou do seu lado, esperando que ela se despisse. — Não preciso de ajuda. Só água quente e uma toalha para me enrolar. — Alecrim ou sálvia? 43
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Como? — Quer folhas de alecrim ou de sálvia no seu banho? Ela escolheu alecrim e bateu o pé quando a mulher acendeu o fogo e encheu a banheira. — Isto já é suficiente, obrigada. — Até o próximo sino tocar. Se quiser mais tempo, terá que pagar. A mulher saiu e bateu a porta, sem esperar por uma resposta. Totalmente vestida, Katrine olhou para o luxo de uma banheira de água quente, depois abriu ligeiramente a porta. O corredor estava vazio. As portas dos outros quartos privativos estavam abertas. Então ele não veio aqui para isso. Ela sorriu ao andar na ponta dos pés até a outra extremidade do corredor. Ouviu vozes, mas as treliças que se abriam para o andar de baixo ficavam altas demais para ela. Não conseguia ver nada. A casa de Van Der Hoon merecia a boa reputação que tinha. Katrine voltou para o quarto, tirou os lençóis do banco e o arrastou pelo chão. Isso provocou um barulho ensurdecedor. Ao ouvir passos, ela parou, temendo que tivesse atraído a atenção da atendente. Barulho de água e risadas ocasionais subiam da grande sala abaixo. O corredor continuava vazio. Ela lutou para arrastar o banco até a janela, amenizando o barulho com o pé sob o banco. Ao chegar na janela, subiu no banco para espiar a sala lá embaixo. A vista do salão quase a derrubou. Preocupada em encontrar Renard, ela nem pensou que o banho estaria repleto de outros homens. E que todos estariam nus. Altos e baixos, gordos e magros, peludos ou não, eles enchiam as banheiras e bancos, como se estivessem num Jardim do Éden superlotado. Katrine se agarrou na treliça com dedos gelados. Naquela galeria de Adãos, ela via apenas um. Mesmo só vendo as costas, ela o reconheceu pela elegância. Ele se abaixou dentro d’água, mergulhou a cabeça de cabelo castanho e depois se levantou. Ao sair da piscina, a água escorreu sobre os músculos, ombros e costas. Katrine nunca tinha visto um homem nu antes, mas sabia também que nunca mais precisaria ver outro. A água lhe escorria pelas costas até pouco antes das coxas. Por onde a água passava, os olhos de Katrine a seguiam. O calor que sentiu pouco antes disso tomou conta do seu corpo. Ele se virou de frente, e o coração dela parou de bater. O desejo tomou conta de todo o seu corpo, começando pelos ombros que ele havia tocado e terminando no seu âmago. Suas mãos ansiavam por tocar aquele corpo molhado, percorrer as pernas bem torneadas. Ela fechou os olhos, se agarrou à treliça e gostou de ser espetada por uma farpa da madeira. Seu tio estava certo. Devia trazer o pecado de Eva dentro dela. O calor horrível e o 44
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) desejo estonteante deviam ser por causa disso. E agora ela podia ver o perigo que isso representava, por ser tentada a confiar mim homem que só mentiu para ela. Katrine fechou os olhos, desejando que a tonteira vergonhosa desaparecesse. Não havia nada de especial nesse homem. Não havia razão para acreditar que esse sentimento devesse ser honrado e não desprezado. Quando abriu os olhos novamente, ela respirou aliviada. Renard agora estava deitado em um dos bancos junto à parede e tinha uma toalha envolvendo o corpo. Mesmo sem roupas, ele parecia muito à vontade. Ela se deleitou com a visão do peito dele, coberto por pelos escuros, das pernas longas e musculosas que desapareciam por baixo da toalha para encontrar o que ela se envergonhava de imaginar. Katrine se forçou a desviar sua atenção e viu outro homem do lado dele. Mais baixo que Renard, ele tinha a postura de um soldado. Ao ver o rosto dele, ela se agarrou à treliça de madeira, mergulhando ainda mais fundo a farpa na sua mão. Era Sohier de Courtrai, lorde de Dronghen, o comandante da milícia da cidade. E ele conversava com Renard.
CAPÍTULO SETE
Envolto em panos de linho, Sohier de Courtrai estava sentado empertigado no banco de madeira ao lado de Renard. Nenhum dos dois se olhava, mas observan do suas bocas, Katrine sabia que eles se falavam. Seria um encontro casual? Não. Lorde de Dronghen estava tentando não ser visto. Estava sentado todo empertigado, como se estivesse examinado suas tropas e não numa casa de banho, cheia de homens nus. Ele parecia calmo, como Katrine se lembrava de tê-lo visto em paradas militares, mas pronto para a batalha. O comandante das milícias de Ghent era um dos homens mais respeitados da cidade. Era rico e bem-nascido, porém ganhou dinheiro no comércio. Ele era confidente do conde, recebia uma pensão do próprio rei Philip e também era amado pelo povo. Sua filha era casada com um poderoso membro do conselho. Ele tinha tudo. Todos confiavam nele. Não havia nenhum motivo para ele precisar se envolver com um contrabandista. Ela observou os lábios deles, tentando, em vão, decifrar as palavras. Os olhos de Renard vasculhavam a sala, da mesma forma como fizera na rua antes de chegar ali. Ela se abaixou com medo que ele olhasse para cima. Ao ouvir alguém subindo a escada, Katrine desceu depressa do banco, tropeçou na saia do vestido e quase perdeu o equilíbrio. Os passos pausaram, como se alguém tivesse parado para escutar, e em seguida, recomeçaram mais depressa. Katrine arrastou o banco de volta para a sala de banho e fez tanto barulho que teve certeza de que a mulher ouviu. 45
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela fechou a porta e empurrou o banco de forma a prendê-la, com medo que a atendente abrisse a porta de repente e a encontrasse ainda vestida. Tentou desamarrar os cadarços da túnica, mas se atrapalhou toda para conseguir isso. Os passos se aproximaram da porta. Katrine arrancou finalmente a túnica, a veste, jogou- as no chão e afundou na água morna, tiritando de frio. Dentro d’água, ela sentiu as folhas de alecrim na sua clavícula. O peito subia e descia, formando ondulações na água. A atendente bateu na porta e não esperou para abri-la e, ao fazê-lo, empurrou o banco que se desequilibrou e caiu com um estrondo. A mulher ficou boquiaberta. Ela olhou para o banco derrubado no chão, as roupas jogadas e Katrine sentada dentro da banheira, nua, mas ainda usando a touca. Katrine endireitou a touca na cabeça e fitou a mulher. — Qual foi o motivo que a levou a entrar aqui assim? — Pensei ter ouvido... — Ela olhou para o banco caído, depois para Katrine, cuja touca boiava na água, e sacudiu a cabeça. — Vejo que é casada mesmo — disse ela, sem se preocupar em levantar o banco. — Até o próximo sino. A mulher saiu e bateu a porta. Katrine recostou a cabeça na borda da banheira, acolchoada por um lençol dobrado, e tentou pensar. Mas, em vez disso, ela se lembrou da imagem de Renard saindo da piscina, com a água escorrendo pelo corpo e coxas musculosas. Sua respiração acelerou e os seios se enrugaram, cheios de folhas de alecrim em volta. Não me deixe cair em tentação, ela começou e depois parou. Era tarde demais para isso. Santa Catarina já sabia dos seus pensamentos pecaminosos. Ela tentou uma oração, diferente. Não me deixe ser enganada pela tentação de confiar nele. Quando Renard segurou as mãos dela e seu cheiro a impregnou, ela quis acreditar que ele se importava com ela. E teve vontade de confiar nele. A água do banho estava fria, mas a realidade era mais fria ainda. Renard estava tendo encontros clandestinos com o comandante militar da cidade. Seja lá o que for, ele não era um simples contrabandista. Talvez nem fosse um contrabandista, afinal. Agora, no entanto, seu tio já tinha voltado, e ela não podia simplesmente colocá-lo para fora. Ele já havia tomado seu dinheiro e mesmo que não lhe trouxesse a lã, ao menos, podia impedir seu tio de levá-la à força. Ao sair da banheira, Katrine tremeu de frio. Ela se secou, vestiu-se rapidamente e saiu de lá sem ser vista. Não podia admitir mais desculpas ardilosas. Ele ia ter que confessar quem realmente era. Ela devia ter se lembrado das palavras do conto da raposa: as promessas de Renard eram mera invenção. Ele verbalizou palavras sem intenção.
Naquela noite, Katrine mandou Merkin dormir na cozinha e deitou na sua cama 46
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) vestida, atenta a qualquer barulho no andar de cima. Ao ouvir um baque surdo, ela soube que ele estava de volta. Olhou para a escada estreita e o chamou. — Renard, preciso falar com você — disse ela, tentando controlar o medo. Quando chegou no terceiro andar, ele estava esperando por ela, usando apenas a cota de malha, de peito nu. Foi o bastante para ela se esquecer de tudo o que queria falar. Se esticasse o braço, poderia tocar no peito cabeludo. Ela fechou os olhos, mas então visualizou a imagem dele saindo da piscina, pegando a toalha... — Parece que preciso mesmo me proteger de você — falou ele friamente. Katrine abriu os olhos e cruzou os braços, tentando acalmar seu coração acelerado. Não devia permitir que ele a impedisse de falar. — Aonde você vai todos os dias? — Não é da sua conta. Ela sentiu um cheiro de alecrim e não sabia dizer se estava vindo dela mesma ou de Renard. — Está com cheiro de casa de banho. É lá que você vai? Ele se mostrou surpreso. — Tem um interesse incomum em mim, senhora. — Não em você — mentiu. — Mas ficou com o meu dinheiro, e eu nem tenho como provar isso. — O olhar dele a irritou. Ela queria se ver livre dos sentimentos que ele despertava nela. — Se eu não puder ter minha lã até amanhã, quero que vá embora daqui. Agora, esta noite. — Com o seu dinheiro? Que oferta generosa. — Ele sorriu e pegou seu saco de viagem. Ela havia falado demais. Também, quando estava perto dele, perdia a cabeça. — Não. Primeiro, devolva meu dinheiro. — Mas não se preocupe, alguém vai querer sua lã. Ele ficou em silêncio, como se soubesse que ela mudaria de ideia e pediria que ele ficasse. — Diga-me — disse ela finalmente. — Você é mesmo um contrabandista? Ela ficou observando a expressão do rosto dele, mas não conseguiu decifrar nada. — Achei que você tivesse decidido que eu era o diabo — comentou ele sorrindo e muito sedutor. — Não sei o quê ou quem você é. — Pode perguntar o que quiser. Seu tom de voz era frio, mas seus olhos pareciam acolhedores, e ela quis acreditar nele de novo. Talvez você pertença a mim, ele havia dito. Depois, ele a segurou como se... como se ela fosse digna de ser amada. 47
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela estendeu a mão, e todos os seus outros pensamentos evaporaram. Ele agarrou seu pulso e puxou o braço para o lado antes que ela o tocasse, mas isso só a trouxe mais para perto, e Katrine se encostou no peito nu dele. Impossibilitada de pensar ou falar, ela se recostou em Renard. Ele se curvou na sua direção, os lábios tão próximos que ela poderia prová-lo. Só mais um pouquinho... Ela tocou seus lábios nos dele. Por um momento, não pôde separar a sua respiração da dele. — Talvez você pertença a mim. Ele ficou rígido e a afastou dele. Ofegante, ela parou para respirar. E ele também. Pela primeira vez, parecia estar tão confuso quanto ela. — Parece que você quer algo mais do que minha lã. É por isso que me persegue até minha cama? Ela fechou os olhos, balançou a cabeça e cruzou os braços. Estava envergonhada de ter se jogado nos braços dele. O homem deixou bem claro a aversão que sentia por ela. Nenhum homem poderia amar uma mulher com pensamentos tão imorais. — Agora volte para sua cama antes de fazermos alguma coisa da qual vamos nos arrepender. Ele se virou de costas, e Katrine desceu correndo a escada.
Renard ficou deitado no escuro, recuperando a respiração e tentando se controlar. Seu desejo terminaria o levando à morte se ele não se cuidasse. Você é realmente um contrabandista? O que será que ela sabia? Estava desconfiando dele? Será que comentou isso com alguém? Se tivesse, ele corria o risco de ter o conde correndo atrás dele amanhã. Devia partir, deixar o dinheiro dela para trás e desaparecer. Devia existir outro lugar, mais seguro, para ele se esconder. Mesmo se ele não a desejasse tanto, esta mulher era uma adversária pior do que imaginava. Ele achou que estaria seguro ali. Achou que poderia intimidá-la. Mas ela não se acovardava, exceto diante da possibilidade de fazer amor. A única coisa que ele precisava evitar era a arma que tinha para se defender dela. E até isso, já não era seguro. Se ele não tivesse se afastado, Katrine teria se entregado... Por isso, ele devia se manter alerta, deixando-a insegura para que ele pudesse relaxar. Seria um jogo perigoso.
Na manhã seguinte, ela se levantou e tomou café, como se nada tivesse mudado. Mas tudo havia mudado. Ela não poderia mais olhar para ele, nem de dia, nem de noite. Tinha se oferecido a ele, fez todas as coisas que seu tio sempre disse que faria, tomou pública sua vergonha. Agora precisava arranjar lã em outro lugar. Podia não saber da verdade, mas sabia 48
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) que não podia confiar em Renard. Se havia um contrabandista, deveria haver outros também. Devia ter alguém nas docas que pudesse ajudá-la, alguém acostumado a fazer a rota do comércio. Ela fechou a loja, amarrou a bolsa com as libras restantes que seu pai lhe deixara sob a túnica e acariciou o manto, para se certificar de que estava bem escondido. Muitos homens já tinham morrido por causa de bolsas bem mais leves. A cada passo que ela dava no Mercado do Milho, o saco balançava e batia na sua perna. As ruas estavam lotadas de peixeiros reunidos para o desfile anual. O desfile começaria depois do meio-dia, mas a festa não terminaria antes da meia-noite. Se fosse, de fato, uma festa. Palavras de revolta eram ditas em alto e bom som. Eles estavam tão zangados com o conde que nem se importavam de esconder seu ódio. Katrine notou um movimento atrás dela, então acelerou o passo e olhou para trás. Seria um mendigo com uma faca ou um cão de rua? Ou seria Ranf? O silêncio do seu tio era pior que sua arrogância. Tudo o que ela via parecia normal. Pessoas entravam e saíam dos salões das associações de frente para o rio. Vendedores de madeira e água anunciavam seus produtos. Ela olhou mais uma vez para trás e não deu atenção ao pinicar que sentia na nuca. No cais, um brilho púrpura deixado pelos barcos borrava as águas que refletiam os telhados de alturas diferentes. Em todos os barcos, ela foi recebida com desconfiança e ouvia comentários que ela felizmente não compreendia direito. Renard estava certo. Não seria fácil encontrar lã. Ouviu apenas uma sugestão. Black Pieter. Fora dos muros da cidade, além do Muide Gate, na colônia dos leprosos. Até o momento de Katrine partir para o local, o sol já estava alto. O desfile já tinha começado, serpenteando pela cidade e atrapalhando a passagem dela. Ficou na beira da rua enquanto o sol ia alto no céu. Tentava atravessar, mas cada vez que ela o fazia, era forçada a voltar pelos foliões, a maioria deles bêbados. De repente, apareceu, ao lado dela, um escudeiro anunciando a passagem do seu mestre, um cavaleiro a cavalo. Esquecendo-se que uma mulher não deve olhar por muito tempo para um homem estranho, ela o fitou. O cavaleiro de cabelo encaracolado olhava para o mundo com um sorriso divertido, como se tudo tivesse sido organizado para o deleite dele. Usava um lenço de seda vermelho como tapa-olho. Então ele era inglês. Cavalgando pela rua, ele entrou pelo desfile adentro, como se estivesse no mar Vermelho; em seguida, ele acenou para ela e esperou que atravessasse em segurança. — Eu lhe agradeço. — Ela abriu um sorriso para ele, o primeiro do dia. — Como posso lhe chamar, senhor? O cavaleiro levou a mão ao coração e balançou a cabeça. Ele olhou para o céu, com o olho destapado e, em seguida, traçou um xis nos lábios. Eles prometeram a suas mulheres não falar com as damas francesas, segundo Merkin lhe dissera. Ela suspirou, lamentando sua ousadia de querer falar. Ele não seria tão nobre se tivesse lhe visto na noite passada. 49
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) A dama de tal cavaleiro teria cabelo louro, dedos delicados, olhos baixos e jamais perseguiria um homem até seu quarto. Ainda com a mão sobre o coração, o cavaleiro de cabelo cacheado suspirou. Ele levou o dedo aos lábios e jogou-lhe um beijo, em seguida, jogou um punhado de moedas para a rua. Os homens que desfilavam se ajoelharam e se engalfinharam para catar as moedas. Katrine foi em frente. Ao menos, o inglês teve piedade pelo embargo que eles mesmos criaram, ao contrário do conde. Ela se apressou em cruzar a ponte, pois tinha que estar de volta em casa antes de escurecer. Passando pelo portão da cidade, ela fez uma pausa. Quem, por es colha própria, viveria fora da proteção daqueles muros? O tilintar da campainha de um leproso a seguiu até a última cabana. O cheiro de maçãs podres passava pelas frestas das janelas fechadas por causa do sol. Ela respirou fundo, pediu coragem à Santa e bateu na porta. — Entre. Ela tapou o nariz por causa do cheiro e entrou. Um homem de cabelo preto desgrenhado estava sentado na única cadeira do lugar, com um copo de cerveja na mão. Ele arregalou os olhos ao ver Katrine entrar, mas falou sem demonstrar surpresa. — O que a traz aqui? — Lã — disse ela, tentando ser tão direta quanto o homem. Ele a fitou de cima a baixo com olhos lacrimejantes. — Está querendo comprar ou vender? Ela olhou para um sinal grande que ele tinha do lado esquerdo do nariz em vez de fitá-lo nos olhos. — Comprar — falou. — Ah. — Ele balançou a cabeça. — Isso é difícil. — Disseram-me que Black Pieter poderia me arranjar lã. Você pode? Ele olhou para ela por um bom tempo antes de responder. — Talvez. — Quanto consegue me arranjar? — Ela se lembrou que tinha feito essa mesma pergunta a Renard. Este homem parecia ainda menos confiável. — Depende. Quanto ela vale para você? Ela aprendeu algumas coisinhas sobre negócios desde a última vez. — Quinze libras de ouro por saca. Na entrega. Ele balançou a cabeça negativamente. — Vinte e cinco. Adiantado. — Ele a fitou. — E talvez mais alguma coisa. Katrine teve vontade de correr dali. Esta cabana era sua última chance. — Vinte. Na entrega. Nada além disso. Ele deu de ombros. — Se você não quer, outros vão querer. 50
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Mas não vão pagar em ouro, eu aposto. Os olhos dele brilharam. Tinha dito a coisa certa. — Vou lhe dar cinco agora e o total de 20 cada saca quando entregar duas. — Com o primeiro pagamento a Renard, Katrine tinha desfalcado seu precioso tesouro. O sujeito abriu um sorriso naquela boca desdentada. — Mostre-me as 5 libras. Ela sentiu seu rosto queimar. — Vire-se enquanto pego. — Ah, eu acho que vou querer ver. Ela se virou de costas e torceu para perceber qualquer movimento dele. Levantou a roupa e tentou não deixar que as moedas a delatassem. Se soubesse que Katrine tinha 50 libras ali, talvez tentasse matá-la pelo dinheiro. Ela arrumou a roupa e se virou esticando a mão com as moedas. Ele as arrancou da mão dela. — Quando vai ter a lã? — Mando lhe avisar. Onde é que você mora? — Deixe a lã na casa das irmãs Gheilaert, no mercado de tecidos. — Não queria que ele soubesse onde ela morava. Não queria nem que descobrisse quem ela era. — Diga-lhes que tem uma mensagem para Katrine. Ele tomou um gole da cerveja e limpou a boca na manga da camisa. — Seu marido lhe deixou a cama vazia, assim como o tear? — É só o tear que precisa ser ocupado. — Ela lhe lançou um olhar duro e saiu de lá, decidida a não lhe dar mais as costas.
O pôr do sol havia tingido de dourado os muros da cidade quando ela passou pelo portão. O desfile já havia acabado, mas ainda tinha bastante gente pelas tabernas rindo e discutindo por causa da cerveja. A sua touca não a protegia dos assobios e gracinhas. Nenhuma mulher respeitável andaria pelas ruas a essa hora do dia. Um dos homens tentou agarrá-la, mas ela se desvencilhou dele, pois estava bêbado demais para segurá-la. Para evitar mais problemas, Katrine evitou andar pelos lugares mais cheios e procurou pelas ruas mais desertas, tornando seu caminho para casa mais comprido. À medida que a noite avançava, até mesmo sua atenção redobrada não seria capaz de evitar bêbados ou homens armados a cometerem pecados. Já estava quase escuro quando ela chegou na High Gate Street. Havia percorrido esta rua inúmeras vezes com seu pai, quando eles olhavam para o céu e disputavam quem via mais estrelas. Ela sorriu ao olhar para cima e ver uma primeira estrela, então torceu para que seu pai voltasse para casa em segurança. Foi quando alguém saiu das sombras e lhe agarrou, arrastando-a para o beco da igreja de St. John, pegando-a totalmente de surpresa. Seu saco de dinheiro sacudia freneticamente enquanto ela chutava o sujeito. Devia ser um bêbado, sem dúvida, tentando beijá-la. Ou fazer algo pior do que isso. 51
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Katrine já ia gritar por socorro quando uma voz familiar a impediu. — Não faça isso. — Ela sentiu a lâmina fria por baixo da sua touca, pressionando-a perto da orelha esquerda. — Tenho um recado do seu tio. Ela tentou ficar imóvel e esconder o volume do saco de dinheiro que trazia junto ao corpo. — Que maneira mais estranha de dar um recado — disse ela, tentando disfarçar o medo que sentia. — Ele podia ter vindo até aqui. — Ele não quer que isso se torne público. — As palavras de Ranf e o pulso fechado dele a atingiram ao mesmo tempo. — Volte para a casa dele. — Ele a gol peou nas costelas. — Caso contrário, da próxima vez, serei mais duro com você. Ela se curvou, segurando nas costelas. Mas um golpe jogou sua cabeça para trás. Tonta, ela viu apenas sombras se movendo no escuro. Katrine esforçou-se para enxergar e viu apenas uma coisa em forma de bola balançando na mão da sombra, até ver que era um saco de linho com uma mancha de sangue. — E se pedir a ajuda de alguém, essa pessoa terá o mesmo fim que você. Ele abriu o saco de linho e jogou alguma coisa na rua, que rolou, espalhando sangue e lama, como uma poção de bruxaria. Ela olhou para aquilo sem querer acreditar no que via. Era a cabeça de Black Pieter. A última coisa que ela pensou, antes de desmaiar, foi em uma oração para agradecer que não fosse a cabeça de Renard.
CAPÍTULO OITO
Renard entrou pelo jardim dos fundos, feliz por ter se livrado dos peixeiros falastrões. Festa e cerveja, sob uma lua cheia, era uma combinação bombástica, mas tinha servido aos seus propósitos. Os vendedores de carpas não gostavam do conde e respeitavam Courtrai. O plano dele tinha dado certo. Ao fechar o portão, olhou mais uma vez para se certificar de que ninguém o tinha seguido. Ele se preocupava de ser seguido. Estava sempre sob ameaça, precisava cuidar da sua segurança e tomar cuidado com o que falava em público. Tanta preocupação já estava lhe deixando confuso. Ontem ele chegou a achar que Katrine estava lhe seguindo. Ao abrir a porta da casa, um sapato de madeira atingiu sua canela e quase o derrubou antes de um soco desajeitado errar sua barriga. Ele segurou a pessoa e descobriu que era Merkin, batendo nele com um rolo de 52
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) pastel, como se lutasse por sua vida. — Merkin, pare. Sou eu, Renard. — Ele pegou a arma da mão dela, se esforçando para ouvir algum sinal de Katrine na casa. Merkin parou de chutá-lo e começou a falar ofegante. — Finalmente. Belo segurança você é. Renard, instintivamente, levou a mão ao punhal. Um silêncio ameaçador pairava no ar enquanto ele esperava ouvir os passos de Katrine pela casa. — O que aconteceu? Onde está Katrine? O rosto de Merkin estava mais pálido que o de costume. — Ela foi atacada a duas casas daqui. Eles a trouxeram, e eu a coloquei na cama, mas agora não consigo acordá-la. Ele subiu a escada, dois degraus de cada vez. Com os músculos tensos, o punhal na mão, ele abriu a porta de Katrine. Enterrada embaixo de touca, vestido e cobertas, ela estava deitada, como se estivesse enrolada num casulo para se defender de um novo ataque. A roupa de cama estava manchada de sangue. Seria dela? O olho estava cercado por uma mancha roxa. Uma trança suja escapava da touca, provando que não servia de proteção para ela na rua. A trança despenteada estava caída sobre lençóis sujos. Por que será que Merkin a deixou assim? Renard abaixou seu punhal devagarzinho. — Katrine — disse baixinho. — Katrine, sou eu. Você está bem? Ela não respondeu. Ele se aproximou mais, mexendo a bainha do seu punhal. Os dedos dela estavam curvados e rígidos, como se ainda quisesse arranhar seu agressor. A luz do candelabro tremeluzia sobre a manga do vestido rasgado, por isso, Renard estava com dificuldade de distinguir o que era sombra e o que era contusão. E só Deus sabia que outras lesões ela poderia ter além dessas. Seus pensamentos confusos lhe pareciam uma oração, — Está tudo bem agora. Eu estou aqui. — Como se ele pudesse consertar tudo por estar ali. Como se ele tivesse culpa por não estar do lado dela. Katrine não respondeu. — Está se lembrando de mim? — Ele mal reconheceu a própria voz. Nada aconteceu. Ele se ajoelhou do lado da cama e sacudiu o ombro dela, com cuidado, para não a machucar. Os olhos encobertos por longos cílios permaneciam fechados, como se ela estivesse dormindo. Ou morta. Ele chegou mais perto e reparou que o peito dela subia e descia. O cheiro de sangue o levou de volta à Escócia, quando viu o campo de batalha ficar vermelho e, por várias vezes, viu guerreiros morrerem diante de seus olhos. — Então descanse. Acorde quando estiver pronta. Ficarei aqui, do seu lado, eu prometo. — Promessa. Ele tinha se tornado um mentiroso. Mas ele prometeria qualquer 53
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) coisa para trazê-la de volta daquele estado. Renard puxou um banquinho de madeira e se sentou, com os olhos fixos no rosto dela. As suas palavras não surtiram efeito, então ele tentou tocá-la. Esfregou- lhe os dedos frios, segurou-lhe as mãos, acariciou-lhe o braço. A chama da vela tremeluzia do seu lado, tão inútil quanto uma tocha em alto-mar. Eu ainda preciso de proteção, ela havia dito. Pensei que eu devia protegê-la, ele respondeu, sem entender bem. De repente, o pior pensamento passou por sua mente. Será que não foi assalto, mas estupro? O barulho de tamancos na porta o fez se virar. Merkin, de olhos arregalados de angústia, parou na porta. — Senhor, você deve partir. Não pode... — O que aconteceu, afinal? Quem fez isso? — Eu não sei — respondeu ela nervosa. — O vigia a encontrou perto da igreja e a trouxe para casa. — Quando foi isso? — Depois de escurecer. E, senhor, ainda tem mais uma coisa. Merkin olhou para Katrine antes de voltar a falar, dessa vez, sussurrando. — Ele disse que havia uma cabeça de homem do lado dela. — Ela fez o sinal da cruz. — Degolada. Ele estremeceu ao imaginar a cena e torceu para que o sangue que havia ali fosse do tal homem, não dela. — Quem era ele? — Renard chegou a ter esperança de que a agressão fosse um simples acaso, mas não. Foi uma coisa pessoal. — Ninguém o conhece, senhor. — Merkin estava a ponto de chorar. — Será que ele...? — Não conseguia concluir a frase. A criada não precisava se preocupar se a patroa tinha sido estuprada. — Eu quis chamar um médico — disse ela, sem perceber a preocupação dele. — Mas tive medo. Quem sabe o sujeito ainda está lá fora esperando? Ele teve pena da criada. — Ela chegou a comer alguma coisa? — Ela recusou comida, só ficou aí, deitada, como se não estivesse aqui. — Merkin olhou para Katrine. — Será que foi coisa do demônio? Será que está possuída? — Não, Merkin — falou ele lentamente. — O demônio que fez isto anda sobre duas pernas. E ele não vai andar por muito tempo. Ele tentou desviar esse pensamento. Como poderia castigar um fantasma? — Sei que sua patroa aprecia tudo o que você fez por ela. Agora precisamos dar um banho nela e verificar se existem outros ferimentos. Arranje água quente. Encontre uma banheira e sabão. Avise-me quando estiver tudo pronto. 54
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Senhor? — Os olhos de Merkin estavam arregalados de horror. — Não posso permitir isso. — Boquiaberta, ela se virou para a patroa, como se pedisse ajuda. De olhos fechados, Katrine estava em outro mundo. — Você quer ajudá-la, Merkin. E eu também quero. Então faça o que mandei. Agora. Ele falou o tom de comando que frequentemente usava com o rei. A criada se virou para sair, visivelmente feliz por poder dividir tamanha responsabilidade com alguém. Depois que a criada desceu a escada, Renard aproveitou o silêncio do quarto. — Katrine, quero que você abra os olhos e olhe para mim — pediu ele num tom baixo, pessoal e íntimo. — Pode fazer isso para mim? Tente, por favor? Ela permaneceu imóvel. — Está bem, ma petite, se está cansada demais para abrir os olhos, ce n’est rien. — A cama dela emanava mais perfume de canela do que de sangue. — Merkin vai trazer água, e vamos lavá-la. Quando estiver limpa e perfumada, vai se sentir melhor, nestpas! — Distraído, ele nem notou que falava francês. Ela assentiu com a cabeça. Katrine tinha ouvido e entendido o seu francês. Bem, isso não era incomum. Muitos patrícios entendiam a língua dos nobres. Se ela sabia francês, melhor. Seria um alívio não ter que se concentrar para falar em flamengo o tempo todo. — Então vai gostar de se sentir limpa de novo, oui? Quer que eu fale em francês por um tempo? Ela acenou mais uma vez, de olhos fechados. — Então vou contar uma história para te distrair. Sempre de olhos fechados, ela se virou para deitar de costas. Pressionou os lábios ao se mover, mas os dedos tinham perdido a rigidez. — Há muito tempo — Renard começou —, quando os animais ainda podiam falar e eram bem mais espertos que os humanos, existia uma raposa chamada Renard, que significa “boa conselheira”, porque era sábia e astuta. Ele podia contar todas as histórias sobre Renard, a raposa. Ao fim de cada uma dessas histórias, a raposa não era mais sábia nem astuta. Era chamada de mentirosa, enganadora e desleal. Para ter dado este nome a ele, sua mãe deve tê-lo odiado muito. — No décimo aniversário da coroação da rainha, todos fizeram uma contribuição para celebrar a felicidade no reino. Ela parecia mais relaxada, e seus lábios roliços deixavam Renard tentado a tocálos, como havia feito naquela primeira noite. — Chegaram presentes de toda a parte do país — continuou Renard. — Das ovelhas, vieram enormes rolos de tecidos de ouro. Do leão, veio uma coroa de diamantes, cada pedra tinha o tamanho de um ovo de ganso, refletindo milhares de minúsculos arcoíris quando colocada sob a luz do sol. Os presentes chegavam para homenagear a sua beleza, sabedoria e o sábio reinado. Mas enquanto a rainha examinava os presentes, ela 55
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) notou que não havia nenhum da raposa Renard, então ela se perguntou o motivo. Seus lábios se moviam para contar a conhecida história, mas seus olhos não se desgrudavam dela. Deitada de costas, olhos fechados, ela se mexia com facilidade, o corpo não estava mais tão rígido. Os dedos calejados estavam apoiados sobre a dobra do lençol. Ele refreou a vontade de entrelaçar seus dedos nos dela e continuou a contar a história. — O que você me mandou, Renard, para homenagear minha sabedoria e beleza? — perguntou a rainha à raposa. — Perdão, senhor — interrompeu-o Merkin. Katrine parecia estranhar aquela voz diferente. — O que foi? — Eu... Você disse... Você queria... A água está pronta. Ele olhou para Katrine. — Eu já volto. Eu prometo. — Renard passou a mão sobre o rosto de Katrine, e ela se virou na sua direção. Ele ficou todo animado. Mais aliviado, ele seguiu Merkin ao descer a escada. — Ela não tem família? Você podia ter chamado alguém. — O toque de recolher já tinha soado — retrucou Merkin. — E se ele ainda estivesse lá fora? Por que você não estava aqui? — Ninguém tentou descobrir o que aconteceu? Ninguém tentou achar esse homem? — À noite, quando é mais perigoso? Deus fará justiça. Ele não queria deixar Merkin mais assustada, porém isso não foi obra de vendedor de peixe bêbado. O ataque a Katrine foi um aviso. Mas de quem? Será que foi do homem que andava rondando a casa? E que ele era o próximo alvo? — O que estava contando para ela, senhor? — Contando? — Em francês. Parecia ser uma história. — Era a história de Renard e o presente da rainha. — Conte para mim também, por favor? Assim, ele repetiu o conto em flamengo enquanto reunia panos e sabão e carregava a pequena chaleira que derramava água nos seus pés enquanto ele subia a escada. Quando chegaram na porta do quarto de Katrine, Merkin parou e falou baixinho para ele: — Pendure a chaleira no gancho sobre a lareira antes de sair. — Eu não vou sair. Você não pode trocar as roupas dela sozinha, e eu entendo mais de contusões que você. — Mas... — Merkin, faça o que estou lhe mandando. 56
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ao entrar no quarto, ela revirou os olhos e lançou um olhar para ele, significando que estaria atenta a cada movimento seu.
CAPÍTULO NOVE
Katrine estava deitada do mesmo modo como a deixaram, o rosto pálido e as contusões contrastando com o cabelo ruivo. Não havia sangue fresco nos lençóis. Bom. Talvez nada disso seja dela. — Venha, Merkin. Aumente o fogo para ela não sentir frio. Quando ele sentou, a cama afundou. A curva do quadril dela, protegido por lã e roupas de cama, pressionava a sua coxa, e o cheiro da pele dela, quente embaixo das cobertas, se espalhou através das camadas de tecido. Bem que Merkin podia desaparecer e deixá-lo sozinho com Katrine. Sua voz e suas mãos poderiam curá-la. A respiração dela parecia ter voltado ao normal agora e os olhos continuavam fechados, mas ele não sabia se era porque ela estava dormindo ou fugindo da realidade. — Agora, mon petite lapin, Merkin vai te lavar, e você vai se sentir melhor. Ao som de suas palavras, ela se encolheu toda sob as cobertas, como se tivesse se escondendo de um mundo onde podia ser agredida na rua e ser deixada lá, vulnerável, com uma cabeça ensangüentada do lado. Com mão firme, mas com suavidade, ele a forçou a se deitar de costas, ainda de olhos fechados. Não foi à toa que ela tentou negar um mundo cheio de tal horror. Um horror que ele poderia ter evitado. — Não vamos lhe machucar, chérie, mas temos que ver se está ferida. Seja boazinha e acabaremos logo com isso. Ela parou de lutar, e ele deslizou as mãos desde os pulsos até os ombros dela, acariciando e tentando acalmá-la, sentindo-a gemer ao tocar o ombro machucado. — Tire as roupas dela, Merkin. Vamos ver onde ela está ferida. Ele começou a retirar a touca de Katrine, que logo reagiu, tentando segurar sua mão, sem saber que uma das tranças já tinha fugido, revelando o segredo dela. Katrine segurou os pulsos de Renard, sem força, para detê-lo, mas eram fortes como ferro, pois ele sabia a agonia que isso ia causar a ela. — Deixe para lá, ma petite. — Ele enfiou a trança de volta na touca. — Vamos deixá-la com sua proteção. De um dos lados da cama, ele e Merkin tiraram os lençóis. Merkin trabalhava com eficiência e rapidez, puxando o laço da frente da veste marrom e a túnica do corpo dela, mas sempre de olho nele. Com a túnica removida, ele pôde ver um volume por baixo da túnica de baixo. 57
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — O que é isto? Sem esperar pela resposta de Merkin, ele segurou no volume por cima da roupa, que fez um barulho de moedas. Um saco de moedas. Pesado. Mais do que suficiente para alguém querer matá-la. Será que o assaltante queria isto e não ela? De medo, ele passou a sentir raiva. — Ela tem o hábito de andar pela rua levando toda a sua riqueza? Merkin quis defendê-la, mas acabou desistindo. — Não, senhor. — Onde ela estava indo? — Ela não me disse. — Os olhos de Merkin, sempre tão alegres, se encheram de lágrimas. — Senhor, por favor, não pegue o dinheiro. É só o que temos. Seu rosto suplicante o deixou desconcertado. Será que a criada imaginava que ele fosse assim tão insensível? Bem, não era à toa. Depois do papelão que ele fez. Não tinha dado nenhuma razão para elas confiarem nele. E não pretendia começar agora. Ele abriu um sorriso cínico. — Pode deixar. Em breve, ele será meu. Fico feliz de saber que ela pode me pagar. — Para protegê-la? A pergunta dela o pegou. Se fosse por isso, certamente ele não merecia receber nada. Ele se levantou rapidamente e se virou de costas. — Deixe-a mais à vontade. Eu não vou olhar. As moedas tilintaram dentro do saco quando Merkin o tirou e o colocou sobre a cômoda. Pelo barulho que fez, era dinheiro suficiente para pagar pela lã que ela esperava que lhe trouxesse. Era uma mulher honesta, então, como havia afirmado ser. — Senhor, por favor, pode me ajudar? Não posso tirar a túnica e o vestido sozinha. A imagem de Katrine, desacordada, ali na cama, o perturbou. Mas ele não viu mais sangue. E ela havia acenado para ele. Merkin suspendeu a túnica dourada, e Renard enfiou um braço embaixo dos joelhos dela e outro embaixo da cintura, levantando-a dos lençóis. Katrine gemeu de dor. Ele a recolocou sobre a cama e tentou descobrir onde mais ela estava machucada. Merkin puxou a túnica sobre a cabeça de Katrine. Agora apenas uma fina camisola de linho o impedia de ver a pele dela, e ainda assim, ele podia sentir-lhe o calor do corpo através do fino tecido. Ele estava com a mesma sensação que tinha antes de lutar, só que dessa vez, o inimigo era ele mesmo, sua própria fraqueza. Uma fraqueza que, apesar de todas as tentativas, parecia estar em suas entranhas, na sua alma. Ele queria poder fechar os olhos para esta tentação, então experimentou olhar para ela.com frieza, como se fosse um cavaleiro em pleno campo de batalha. Nada de sangue. Nem ossos quebrados que ele visse. Apenas manchas roxas no rosto, braços e laterais do corpo. 58
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Merkin pegou um pano limpo, molhou na água quente e começou a lavar o rosto de Katrine. A água quente e os movimentos delicados pareciam lhe fazer bem. — Não estou vendo nenhuma outra ferida, senhor. Talvez sejam apenas estas as contusões. Porém Renard não acreditava nisso. Ela respirava com certa dificuldade. Ele se debruçou sobre ela, colocando um braço de cada lado para se apoiar na cama. — Katrine? Tente respirar fundo — falou. — Vamos, tente, respire forte. Ele sabia que Katrine tinha ouvido. Ela respirou seguidamente, mas quando tentou uma respiração mais profunda, ela se encolheu sobre o lado direito. O grito abafado dela cortou seu coração. — São as costelas. Devemos enfaixá-la para diminuir o sofrimento. Está bem, ma petite — disse ele, conversando com Katrine. — Já vi muito dessas lesões antes, em... — Droga, ele estava perdendo o foco, ele quase disse que tinha estado na Escócia. Se não tivesse cuidado, não guardaria mais nenhum segredo. — Vamos enfaixá-la. Só assim, ela vai sentir menos dor até as costelas cicatrizarem. A medida que Merkin acariciava Katrine, ele sentia cada toque como se fosse na sua pele. A ferida do ombro era profunda. Músculos esculpidos pelo trabalho no tear subiam pelos braços dela. A pele era fina e delicada. Ele respirava com dificuldade, sem saber se o ritmo era dela ou seu. — Por que não se senta ali no canto e conta mais histórias enquanto eu termino? — perguntou Merkin. Renard se afastou da cama, tropeçou no banco antes de sentar, mas não sabia se seria capaz de falar: Ele começou a falar alto demais e em francês, então, só quando viu o rosto desapontado de Merkin, ele se deu conta disso. E passou a falar em flamengo. Tudo bem. Isso o forçaria a manter o foco em outra coisa que não fosse Katrine. — A rainha recebeu um tributo de todos os súditos, pois era muito corajosa, bonita e bondosa, e todos a amavam. O cabelo dela era da cor de um céu vermelho do pôr do sol. Os olhos dela tinham cílios espessos, como um bosque. A pele era branca, como a flor de maio. — A rainha se parece com alguém que conhecemos, não é? — comentou Merkin alegre para a distante Katrine, mas olhando para Renard. Ele sempre escondeu suas emoções dos reis. Como foi que se tornou tão óbvio que até uma criança pôde perceber? Merkin passou uma das mãos sobre a perna esquerda de Katrine. A pele pálida estava ligeiramente vermelha. Em vez de permanecer imóvel, ela mexeu a perna quando a mão de Merkin desapareceu sob a camisola. Renard desviou o olhar e continuou. — Mas a rainha ainda não tinha recebido nada de Renard. “Você não vai me homenagear?”, perguntou ela. Então ele respondeu: “Ah, minha rainha, eu lhe enviei um presente que não tem preço. Um que vai lhe dar muito poder e colocar todas as maravilhas do mundo em suas mãos.” Merkin colocou o lençol de volta sobre o lado esquerdo de Katrine e foi para o outro lado da cama, onde estava Renard. Ela dobrou o lençol do lado direito expondo o ombro e o braço de Katrine. Ele continuou com a história. 59
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — “Onde está essa maravilha?”, perguntou a rainha. “Não encontrei nenhum presente entre os tesouros.” E Renard falou para a rainha: “Eu lhe enviei um globo de cristal para além dos sete mares. Olhe bem dentro dele. Sua alteza verá ali a verdade que busca, no presente, no passado ou no futuro.” Merkin voltou a cobrir o ombro e o braço de Katrine com o lençol e descobriu a perna, desde o quadril até o pé, ficando na frente para bloquear a visão de Renard, mas ele sabia que o lençol ia escorregar por entre as pernas de Katrine... Apesar dessa cena, ele continuou. — “Mas eu não recebi tal presente”, reclamou a rainha. “Devemos procurar pelo reino, pois o seu presente desapareceu.” Ele fez uma pausa. Katrine respirava tranquilamente agora. Merkin puxou a coberta para cobri-la. Aliviado, ele mandou Merkin sair. — Assim que clarear, vá buscar um médico. Eu fico aqui com ela. Merkin tirou os sapatos e se aproximou na ponta dos pés. — Diga-me, senhor, o que aconteceu com o globo de Renard? Renard se sentiu culpado por estar enganando a moça. — Não existia nenhum globo mágico. Renard tinha mentido sobre o presente. As últimas palavras da rainha foram: “Não confie em uma palavra que Renard disser. Todas são mentiras.”
Katrine fechou os olhos para a luz forte, mas não pôde evitar a cena que ficou gravada na sua memória. Black Pieter, sem vida, olhando para ela, numa poça de lama vermelha. Um porrete nas mãos de Ranf. Noite e dia, sonho e realidade se confundiam. Ela estava com medo de abrir os olhos. Quando sentiu que ia gritar, ela se concentrou na respiração e segurou nos lençóis enquanto combatia o medo. Ela se lembrava de pouca coisa depois disso. Lembrou-se das pedras frias da rua no seu rosto. Vozes nervosas em volta dela. Os seguidos sacolejos ao ser carregada por algum bom samaritano. Cada sacudida sacrificava suas costelas. O aconchego macio do travesseiro de penas. Lembrava-se de querer fugir, mas se sentia envergonhada por querer isso. Estava tão cansada e tão sozinha. Seu tio finalmente quebrou o silêncio. Ela foi corajosa por nada. Não haveria salvação daquela casa nojenta no fim da rua. Não havia mais esperança. Não havia razão para enfrentar o mundo novamente. Assim, sua mente a levou para um submundo, no qual ela não teria que enfrentar a verdade. No entanto, contra a sua vontade, ela seguiu o tolo conto de Renard sobre a raposa, a rainha e o globo mágico. Com delicadeza, ele a resgatou, até poder dormir sem aquelas visões. Ela se lembrava também de ouvir a voz de Renard, como uma carícia na sua pele, fazendo seu corpo estremecer. A voz dele provocava uma inquietação nela, mas também uma fraqueza interna. E esperança. O suficiente para deixar seu medo de lado. 60
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Agora, com a luz da manhã varrendo para longe aqueles pesadelos, ela queria ter o globo de Renard para lhe contar a verdade sobre ele. Ele veio de Bruxelas, mas falava francês normando. Era um contrabandista, fora da lei, mas se encontrou com o chefe da milícia de Ghent. Sua roupa era humilde, mas nunca hesitou em comandar. Não demonstrava emoção, no entanto, ela sentia ternura na voz dele. Tudo sobre ele lhe dizia para não confiar nele. Tudo nele a fazia desejá-lo. Querida Santa Catarina, me guie... A oração morreu nos seus lábios. Ela já não sabia aonde queria ir.
CAPÍTULO DEZ
— Você espalhou folhas de olmos para pegar pulgas, Katrine? Deitada confortavelmente em sua cama, Katrine espiava sua tia Matilda apoiar-se num joelho e examinar o chão, para ver se as folhas tinham sido empurradas para os cantos. — Não, tia Matilda. — Katrine suspirou. — Mas coloquei o mel na corda para pegar moscas. — Enquanto dormia, Merkin discretamente chamou o médico e depois a tia. Agora, enquanto tinha tia Matilda para colocar lenha na lareira, lhe dar sopa e afofar os travesseiros, ela precisava medir suas palavras. Sua tia só sabia o que Merkin havia lhe contado, assim ela esperava. Certamente, ela não sabia que seu marido havia mandado alguém bater em Katrine. Mas Katrine não queria que a tia contasse nada para o marido também. Sobre ela ou sobre Renard. — Que nada — reclamou a tia ao se levantar e bater com a cabeça na corda. — Tenho certeza de que você não as troca há muito tempo. — Ela soltou a corda que estava tão seca que nenhuma mosca ficaria tentada. — Você nunca soube cuidar de uma casa, desde pequena. Não é de se espantar que seu tio a despreze. Como poderá se casar se não sabe manter uma casa arrumada para o seu marido? — Eu não vou me casar. — Ninguém ia me querer. — Claro que vai, embora não seja com um homem tão especial quanto o seu tio. Não podemos fazer nada quanto à sua aparência, e muitos vão se opor ao que você faz aqui, mas com um belo dote, tudo isso será esquecido. Onde está a criada? Devia levá-la para casa e surrá-la por ter fugido. De tudo o que sua tia disse, apenas uma parte era da sua própria boca, o resto era opinião do tio. Katrine segurou a faixa que tinha sobre as costelas e se recostou nos travesseiros, 61
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) gemendo um pouquinho além da conta por causa da dor. — Você não espera que eu fique aqui sozinha sem Merkin, não é? Eu não posso subir e descer a escada. Tia Matilda balançou a cabeça. — Eu não quero você aqui e ponto. Fugiu de casa para ficar aqui sozinha, só com essa criada, e andou pelas ruas sozinha também. Agora olhe só o que aconteceu com você. Sem falar de Renard. Mas seria pouco provável que seu tio tivesse contado a ela tudo o que sabia. — Meu tio sabe que você está aqui, tia? — Ele foi se encontrar com o conde novamente. Mas quando eu lhe contar, vai ficar furioso. A primeira coisa que vai dizer é que deve voltar para a nossa casa. Voltar para a casa dele. Katrine não falou para ninguém sobre o recado de Ranf. Era melhor que todos achassem que ela fora uma vítima do acaso. — As ruas não são seguras para ninguém. Poderia ter acontecido em qualquer lugar, não importa onde eu moro. — Por que você fugiu? Só porque seu tio é genioso? Ele tem sido tão paciente com você. Depois que voltamos, todas as noites, ele diz que precisa trazer você de volta para poder protegê-la. Quando ele descobrir o que aconteceu com você, vai ficar transtornado. Tenho certeza de que ele próprio virá até aqui para levá-la de volta. Katrine apertou o braço da tia e a sacudiu. — Descobrir? Então você não sabe que ele... — Ela mordeu a própria língua. Deus tinha abençoado sua tia com uma vista fraca, para que ela não pudesse ver o que acontecia embaixo do seu próprio nariz. Por alguma razão, seu tio queria que sua volta para casa parecesse uma questão de escolha dela e não algo forçado por ele. Ou talvez ele só quisesse que ela tivesse tanto medo dele que voltasse para casa pedindo perdão. Isso quase funcionou. — Ele se preocupa demais, tia. — Ele sempre se preocupou com você. E foi assim com a sua mãe também. — Com a minha mãe? — Ah, sim. Ela era tão meiga e alegre no princípio e, depois, quando seu pai se foi, ele foi um bom cunhado para ela. Sua mãe era delicada demais. Estava sempre com alguma contusão aqui, outra ali. Charles ia atrás dela, onde ela estivesse, com o objetivo de deixá-la mais confortável. Katrine fechou os olhos e imaginou as garras daquele homem nos braços dela. Você é filha da sua mãe. Pecadora. Havia algo ali que ela não entendia direito. Será que sua mãe viveu sempre com medo também? A conversa de tia Matilda revelava fatos muito antigos. — Então, quando ela morreu de repente, quando nem ao menos estava doente, ninguém soube explicar o motivo. Só Deus sabe. Não sei quem ficou mais abatido, se Charles ou Denys. — A tia balançou a cabeça e afagou a mão de Katrine. — Deve ser por isso que ele se preocupa tanto com você. Porque sabe o quanto ela era frágil. Katrine agarrou a mão magra e enrugada da tia e se aproximou dela. — Não sou frágil, tia. Mas você não deve dizer isso a ele. 62
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Tia Matilda parecia compreensiva à primeira vista, mas logo depois, essa impressão foi desfeita. — Mas você foi espancada. E está acamada. — Não acha que existem coisas que é melhor ele não saber? — sussurrou Katrine para ela. — Lembra-se quando fomos à feira mesmo depois que nos proibiu de sair sem ele? Um comerciante de tecidos, muito bonito, sorriu para você... Eu me lembro. O rosto pálido da tia ficou corado. — Bem, sim, mas aquilo foi diferente... — Existem certos segredos que as mulheres devem guardar para si mesmas. Como a poção que deve tomar imediatamente após uma noite com o marido, se não se quer... — Psiu, minha filha. — Matilda piscou e gaguejou, olhando para a porta. — Se um padre a ouve falando isso, ele nos manda para o inferno. — Então diga ao meu tio que estou bem. Se a tia não mencionasse a agressão, talvez ele não pudesse agir como se soubesse. Matilda se levantou da cama, balançando a cabeça. — Não importa o que eu diga, logo, logo ele vai ficar sabendo. Se o conde não precisasse dele, noite e dia, no conselho de guerra, ele já teria voltado. — Ela abraçou Katrine e apertou sua mão. — Tenho que estar em casa quando ele chegar. Se precisar de alguma coisa, mande aquela garota preguiçosa até lá. Depois que a tia foi embora, Katrine abriu a tampa da caixa na qual estava o espelho que Giles lhe dera e acariciou a parte de trás, onde havia uma margarida de quatro pétalas. Repetiu o jogou infantil que tantas vezes tinha jogado com ele. Depois ele virava o espelho para ela, para que visse o quanto era especial. Katrine se assustou com sua imagem agora no espelho. Um grande hematoma cobria seu olho esquerdo. A bochecha ralada tinha uma casca grossa, como cicatriz. O que foi que Renard pensou quando a viu assim? Ela tocou o machucado e se encolheu de dor. Mas ele tinha visto mais do que isso. Ela se lembrou de estar sendo observada por ele, como num sonho. Mas era um sonho, não um pesadelo. Não percebeu nele nojo nem desrespeito, apenas cuidado. Será que tinha direito de ter isso de um homem? Você ainda pode se casar, disse sua tia. Será? Carregar as chaves. Cuidar da casa. Costurar roupas. Seria tão mais fácil. Certamente quando seu pai garantiu à corporação que ela ficaria no seu lugar, ele não esperava que ela suportasse tudo isso em troca de alguns rolos de tecido. Quando ele voltasse, e se Deus quisesse isso não ia demorar muito, ele ia se importar se a loja que ele e Giles levaram vinte anos para criar estivesse vazia? Os olhos refletiam no espelho uma outra verdade. Não era a perda do pai que ela temia. Não era a tristeza dele que enchiam seus olhos de lágrimas. Não era ao sonho dele que ela se agarrava. Mas ao seu sonho. Ela poderia dizer à corporação que estava fazendo isso por causa do pai, mas 63
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) sabia que não era verdade. Suas mãos ansiavam por lã. Ansiavam pela sensação da lã áspera, lubrificada antes de ser trabalhada. Pelo colorido dela. Pelo ritmo gostoso do tear. Pela alegria de criar alguma coisa a partir do nada. Era o único lugar no mundo no qual ela se sentia viva e no qual seus pecados, reais ou imaginários, não tinham a menor importância. Estranhamente calma, ela guardou o espelho de volta na caixa. Fechar a loja? Seria melhor ela morrer. Agora sua única esperança era Renard. Devia parar com essa fantasia tola de achar que ele se importava com ela e reprimir esses sentimentos. Se era mais do que um contrabandista, que fosse. Contanto que trouxesse sua lã, ela ia ignorar o resto. Caso contrário, não haveria razão para ficar ali esperando seu tio vir buscá-la.
A casa ainda estava sendo vigiada. Ao sair para se encontrar com o bispo, alguns dias mais tarde, Renard enganou o guarda preguiçoso. Será que ele tinha alguma coisa a ver com a agressão sofrida por Katrine? O sujeito nunca o seguiu ao sair da casa, e Renard não viu mais ninguém além dele, portanto, seus encontros com Courtrai pareciam seguros por enquanto, mas o tempo estava se esgotando. O bispo e Courtrai precisavam se encontrar, em breve, e ele tinha que sair da casa de Katrine. Além de não protegê-la, tinha colocado a moça em risco. Por outro lado, ele perderia um tempo precioso procurando por um novo esconderijo. Alguns dias a mais não fariam diferença. Uns dias a mais para ficar ao lado de Katrine. Até ela se recuperar e poder responder às perguntas dele. Quando Renard entrou no solar do bispo, Clare não desviou o olhar do seu pergaminho. Sua cara amarrada já indicava que seu relatório para Edward não seria bom. Os joelhos de Renard se recusaram a dobrar quando ele beijou o anel da mão estendida de Clare. — Fiz como meu rei mandou e achei um possível aliado para contrabalançar o conde. — Ele explicou a posição e a influência de lorde de Dronghen. — Não é um nobre? — A voz do bispo denotava desprezo. — Então como pode influenciar o conde? Renard sentiu suas pálpebras tremerem. O bispo se recusava a entender que a região de Flandres era diferente de outros ducados. — Não se trata apenas de convencer o conde. Os direitos do povo estão garantidos pela carta. Se o Conselho se declarar neutro, o conde não pode obrigá-los a mudar de ideia. E Courtrai é muito respeitado tanto pelo conde quanto pelo Conselho. O bispo bufou de raiva. Ele partiu as duas extremidades de um pão e as jogou de lado, depois enfiou uma faca no queijo para então espalhá-lo sobre uma fatia do pão. — Bem, você tem mais jeito para lidar com o povo. — Ele deu uma mordida no pão. A expressão seu bastardo não foi verbalizada, mas ficou subentendida. — O que o faz pensar que eles vão apoiar o rei? — Ele quer recebê-lo para o jantar, ao meio-dia, amanhã. O bispo se animou bastante e, pela primeira vez, desviou sua atenção do pão para 64
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) fitar Renard. — Ele tem uma boa adega de vinhos? Renard se perguntou quanto do ouro do rei não foi gasto em fazer alianças e quanto foi parar na mesa do bispo. — Ele é tão popular que a cidade não lhe cobra impostos sobre o vinho consumido em sua casa. Imagino que ele deva ter os melhores vinhos estocados em casa. O bispo sorriu. — Volte aqui amanhã que eu lhe direi como foi. — Na verdade, acho melhor eu ir a esse encontro também. Dronghen confia em mim. Ele não tem motivo para confiar em você. E nem eu. — Então você vai sair do seu esconderijo para integrar a delegação oficial? Renard hesitou. Ele não tinha acabado de decidir que devia deixar a casa da High Street Gate? Assim que Courtrai e o bispo se encontrassem, não haveria mais razão para ele ficar disfarçado e correr o risco de ser descoberto. Só teria uma razão: Katrine estava se recuperando, mas ainda não podia ficar sozinha. Ontem ela teria acendido a lareira sozinha se ele não a tivesse impedido. No dia anterior, ela insistiu em cortar cebolas. Ele a impediu de trabalhar no tear com a desculpa de lhe dar mais aulas. E ainda havia mais uma coisa que ele precisava saber e mais uma coisa que devia fazer antes de deixá-la. — A situação ainda não está bem definida — disse ele. — Posso servir melhor se permanecer invisível. O bispo tinha desviado sua atenção do pão para uma menina loura que estava do lado de fora da porta. — Como quiser — falou ele. — Tem mais uma coisa — disse Renard, esperando que o bispo lhe desse atenção. — Se vou continuar a fingir que sou contrabandista, devo produzir alguma lã, caso contrário, correrei o risco de expor minha real missão. O rei havia lhe dado carta branca, mas a assinatura do bispo era necessária para retirar lã do armazém vigiado em Bruxelas. — Está querendo trazer para cá toda a lã que estamos tentando manter longe daqui? — Para operar em sigilo, devo ter credibilidade para desempenhar meu papel. — Quem vai receber essa preciosa lã se eu der autorização? A moça mais valente do mundo. — Uma comerciante que tem sido de grande ajuda e que não sabe nada sobre mim nem por que estou aqui. De olho na menina que lhe servia, o bispo pegou sua pena e esticou o braço para apanhar um novo pergaminho. — Muito bem. Um saco. — Preciso de três. 65
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Três? — Três sacos. — Renard acenou. Clare deixou de lado a pena. — De que lado você está? — Que eu saiba, a minha lealdade ao rei nunca foi questionada. O homem trincou os dentes e rabiscou sua assinatura no pergaminho. Em seguida, ele colocou seu selo e entregou o pergaminho a Renard. — Como posso encontrá-lo se precisar de você? Seu esconderijo, a casa de Katrine, já tinha sido violado. Até ele descobrir o motivo, não podia se arriscar mais. — Será mais seguro eu manter isso em segredo. Posso receber recados através de Jack de Beauchance. — De Beauchance? Ele quase cometeu pecado mortal com uma dama de companhia, em Valenciennes. — O bispo se virou de costas para Renard para olhar para o corredor e observar a menina. Renard pegou uma suculenta laranja do vaso de frutas e a escondeu dentro da camisa, curvou-se para as costas do bispo e saiu.
Quando voltou para a loja, fechou a porta, subiu dois degraus por vez e entregou a linda laranja para Katrine. Ao ver a laranja, Katrine riu de felicidade e logo deu um grito com dor nas costelas. Ela mandou Merkin cozinhar a fruta com mel, saboreou cada pedaço, depois mandou cristalizar a casca com gengibre e guardou para comer mais tarde. Ela não deixou sobrar nada.
CAPÍTULO ONZE
Renard acordou naquela manhã exatamente como fez todos os dias, e estava decidido a partir no dia seguinte. A reunião entre o bispo e Courtrai transcorreu muito bem, e sua próxima missão vinha sendo adiada há muito tempo. Estava na hora de assegurar o apoio do duque de Brabante à causa de Edward. Era desnecessário dizer que Renard estaria, claro, negociando com seu meioirmão. Ainda assim, a tarefa de Edward e a carta do bispo queimavam no seu bolso. A agressão sofrida por Katrine foi um aviso, ele estava convencido disso. Ela se negava a 66
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) falar sobre o assunto, por mais que ele perguntasse. Na certa, sentia-se mais segura quando ele fosse embora, mas não podia partir enquanto não tivesse certeza. Será que ela foi apenas agredida ou aconteceu algo pior? Felizmente, Katrine não se aproximou mais o suficiente para tocá-lo, embora parecesse gostar de ensiná-lo a tecer. Ele gostou de ser elogiado pelo seu progresso no tear. Estava começando a se sentir confortável no tear. O tecido marrom crescia rapidamente sob o movimento dos seus braços. O resultado diário do seu esforço era mensurável, tangível, sem a interferência dos caprichos de reis ou bispos. Porém, a julgar pelos poucos novelos que restavam no cesto, não havia lã suficiente para terminar a peça. Ele se sentou na cama e olhou pela janela do terceiro andar e prometeu a si mesmo que ia embora no dia seguinte. O que queria dizer, hoje. Ela não ia mais se esquivar de suas perguntas. A voz de Katrine era ouvida no alto da escada, fazendo cócegas nos seus ouvidos como nuvem de fumaça. Virando-se para sair do colchão de palha, ele gostou de ouvi-la já de manhã cedo. Até ele compreender o que ela dizia. — Merkin, ajude-me a descer a escada? Escada. Ele agarrou sua roupa e a vestiu com dedos trêmulos como se fosse partir para uma batalha. Por que será que a criada nunca estava por perto quando precisavam dela? Fazia pouco tempo que Katrine havia sofrido aquela agressão violenta, ela não podia nem ficar de pé sozinha, muito menos descer uma escada. Ela cairia. Dessa vez suas costelas se quebrariam... — Merkin, você está aí? O piso de madeira gemia baixinho com os passos de Katrine. Ele deixou os últimos cordões desamarrados e saiu correndo. No topo da escada, ele podia vê-la no andar de baixo, tentando alcançar o primeiro degrau. Ela hesitou, e depois, percebendo que estava perdendo o equilíbrio, segurou-se na parede. — Merkin? Onde você está? Eu preciso de você. Silêncio. Suas pernas fraquejavam, e ela se preparou para descer, braços estendidos, amparando-se na parede. Renard se controlou para não gritar por ela, para não a assustar. Katrine se inclinou para a frente e esticou o pé sobre o vão do primeiro degrau. O coração dele parecia ter parado. Correndo escada abaixo, ele a puxou de volta quando estava a ponto de cair de cabeça lá embaixo. Embalando-a nos braços, encostando os lábios na testa dela, ele a segurou junto ao peito e ao coração acelerado. O cabelo sedoso e o perfume dela o deixaram extasiado, e ele a segurou junto de si. 67
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Solte-me. — Ela tentou se desvencilhar. Por mais que quisesse negar, ele não conseguia evitar que seu corpo reagisse às doces curvas pressionadas contra ele. Os seios envoltos em linho repousavam suavemente sobre o braço dele, e ele logo a soltou achando que estava apertando as costelas machucadas. Ao soltá-la, ele sentiu seus seios roçarem o pulso dele através do tecido. Renard se certificou que ela estava bem firme no chão e se afastou de Katrine e dos sentimentos que ela despertou nele. — Você não deve descer a escada sozinha — disse ele. — Por isso... — Ela fechou os olhos, tentando disfarçar, mas também estava ofegante. — Por isso, eu estava chamando Merkin. A luz da manhã delineava suas formas embaixo da camisola branca. Seu cabelo caía como seda vermelha sobre o tecido fino do linho, como fariam sobre os lençóis que ela compartilharia com um amante algum dia. A cena imaginada o fazia sofrer. — Você a chamou, mas não esperou. — Ele observou os sinais de melhora, como fazia todos os dias. Manchas amarelas agora cobriam o roxo do olho. — Estou com fome — disse ela com um jeito teimoso. Renard havia se esquecido desse detalhe. — Volte para a cama. Eu vou procurar por Merkin. Katrine aceitou o braço dele dessa vez, sentindo que as pernas não estavam mais acostumadas a suportar seu peso. — Obrigada, mas eu o contratei para me arranjar lã. Prefiro que cuide disso. Sempre a lã. Ela só se importava com a tal da lã. — Senhora, eu lhe trarei a lã quando for a hora certa. — Ele puxou as cobertas e a fez se deitar. — Por favor, cuide-se para não se machucar mais, até que eu receba o restante do meu pagamento. — Não preciso da sua ajuda para me deitar. — Precisa da ajuda de alguém — disse ele ao cobri-la. — Posso cuidar de mim mesma. — Não, você não pode. Não posso ir enquanto você não estiver totalmente recuperada. — Esta é mais uma de suas desculpas? Eu estou lhe dando abrigo há dias e não recebi nem um novelo de lã até agora. — Ele achou ter ouvido uma voz de choro em suas palavras. — Já passou bastante tempo nesta casa, e eu já fiquei na cama mais do que suficiente. — Ela jogou as cobertas para o lado e fez menção de se levantar de novo. Ele lhe segurou as duas mãos. — Katrine, precisamos conversar. — Conversar sobre o quê? — Ela soltou as mãos. — Você me deve lã, e eu vou lhe dever 20 libras por saco. Prometeu fornecer a lã apenas para poder ficar na minha casa? 68
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Para esconder a verdade que ela poderia ver nos seus olhos, ele olhou para as próprias mãos vazias. — Katrine, eu preciso saber exatamente o que aconteceu naquela noite. Ela se virou e se encolheu toda. — Não. Ele a segurou pelos ombros e sentiu-a querendo fugir dele. Então ele acariciou seus ombros, como fez no dia em que lhe disse que seu cabelo era lindo. Apesar da resistência, seu corpo parecia menos rígido. Então ele falou em francês. — Quem foi que lhe atacou? Ela deu de ombros. — Houve um desfile. O povo está revoltado e com fome. Pode ter sido qualquer um. Na noite do desfile, quando as festividades saíram do controle e os guardas fingiam não ver nada. Era o cenário perfeito. Para quem? — Ele não levou seu dinheiro. — Isso porque o deixei bem escondido. — Notou alguém do seu lado na rua? Ela fechou os olhos e acertou com a cabeça que sim. — Sabe quem ele era? Seu corpo parecia amarrado, como se quisesse negar aquela visão. Então ela passou a balançar a cabeça para cima e para baixo sem parar. As mãos de Renard desceram dos ombros de Katrine, para pegar seus braços, segurando-a, como se quisesse evitar que ela fugisse. — Pode reconhecer o agressor se o encontrar de novo? Ela continuou balançando a cabeça, como se não pudesse parar. — Ele a... possuiu? Ela ficou quieta. Em seguida, ela o atingiu com o cotovelo nas costelas. — Acha que eu provoquei a agressão? Acha que sou como Eva, culpada pelos pecados dos homens? Ou será que está pensando que não sou mais uma donzela, portanto, você pensa que pode exercitar seus desejos? Ignorando os golpes de Katrine, ele a puxou para si, como fizera na escada, e a segurou como se fosse uma criança. — Nada disso. Só quero poder planejar quanto ele deve sofrer antes de morrer. Ela parou de lutar. — Não — sussurrou ela finalmente. — Ele não me possuiu. Ela ainda é minha. Ele resistiu muito a essa ideia, mas a queria tanto que não podia mais negar isso. Repentinamente, ele a soltou e se afastou para longe do seu alcance. — Bem, então vou renunciar à vingança. Se ele tivesse roubado seu ouro, eu teria 69
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) um motivo para matá-lo. Ela se sentou altiva, como se fosse enfrentar uma luta. — Imagino que devo me considerar uma pessoa de sorte por você não ter me roubado. Continue lutando, ele pensou, querendo que ela ouvisse os pensamentos dele. Se não lutar, vou pegá-la nos meus braços, e vamos nos perder. Renard sentiu raiva por Katrine estar lhe mostrando o quanto da fraqueza da mãe ele tinha herdado. — Terei a minha parte, mas só se você parar de se comportar dessa forma tola. Como vai me pagar se for atacada novamente antes de eu voltar? — Voltar? Como pode voltar se você não foi a lugar nenhum? Quero a minha lã e depois não quero vê-lo mais. Renard se encostou à janela, e os sons de uma cidade estrangeira provocavam os ouvidos dele. Ouviu chamadas para vender lenha. O badalo do sino, a abertura do mercado. Os zumbidos dos mosquitos, fervilhando onde o rio era mais calmo. Vê-la pela última vez. Era por isso que ele não ia embora. Não haveria mais desculpas para ficar depois que lhe entregasse a lã. Sem chance de trocar olhares. Não veria mais seu cabelo de fogo. Não haveria mais satisfação em conseguir um sorriso daquele rosto sempre tão sério. Não tinha mais como negar que queria protegê-la e se vingar de quem a agrediu. Precisava partir antes que perdesse o controle. Agora mesmo, ele quase a beijou. E pior, quase jurou vingá-la, como se fosse seu irmão. Ou marido. Era por isso que precisava saber. Ele chegou a pensar nela como se fosse dele. — Muito em breve, você me verá pela última vez. Partirei amanhã, pela manhã. Os seus olhos não brilhavam mais. — Quanto tempo vai demorar? — Uma semana. Talvez um pouco mais. Ela levantou a cabeça, depois o fitou nos olhos. — E depois? Ela não sabia esconder seus sentimentos. Talvez nem soubesse reconhecê-los. Saudade. Esperança. Ele não podia deixar que ela nutrisse esperanças. — Depois você vai me recompensar com ouro, e eu vou partir. — Ele falou em tom de brincadeira, tentando pensar em um jeito de magoá-la e se proteger. — A não ser que você tenha em mente uma forma mais pessoal de me recompensar. Ele não sabia que ia beijá-la até que seus lábios encontraram os dela. E quando ele se deu conta, já estava deitado na cama por cima dela. Seu corpo foi totalmente dominado pelo desejo, como se fosse um ser à parte. Ele pressionou o corpo contra Katrine, queria beijá-la e muito mais do que isso... Mas um tapa no rosto o trouxe de volta à realidade. — Saia de cima de mim — disse ela com raiva. — Não quero vê-lo novamente a 70
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) menos que esteja com as mãos cheias de lã. Não estou aqui para exercitar sua luxúria. Sinto nojo de você. Renard se afastou rapidamente e tentou esconder as pernas bambas com um sorriso atrevido. A vida toda ele escondeu bem seus sentimentos, não sabia por que agora isso não funcionava. Se ela não tivesse interrompido aquilo... A porta da frente abriu e fechou, e ele ouviu os passos de Merkin entrando em casa. Ele se curvou cerimonioso diante de Katrine. — Farei Merkin subir para lhe servir o café da manhã. — Em seguida, ele se obrigou a sair dali para ficar bem longe dela. Suas palavras e seu beijo tinham destruído o sentimento que havia entre eles. Graças a ele, Katrine estava feliz de vê-lo pelas costas. Depois que fosse embora, ela não sentiria sua falta e não teria esperança de algo que ele não poderia lhe dar. E quanto a ele? Entregaria-lhe a lã, pediria perdão pelos pensamentos lascivos e nunca mais pensaria nela. Ah, sim. Deus havia lhe ensinado o quanto precisava ser humilde para se tornar um bispo. Já tinha descoberto muita coisa sobre sua vida que preferia não saber. Depois de ter conhecido os próprios pecados, seria mais fácil perdoar os pecados alheios.
CAPÍTULO DOZE
Foi melhor assim, Katrine dizia a si mesma cada tez que puxava a lançadeira. O sol forte da tarde batia em cheio, na rua, do lado de fora da sala de tecer. Já fazia seis dias que ele se fora. Não. Apenas cinco. Os dias passavam sem novidades. Com medo de se aventurar na rua, ela não saiu mais de casa. Sua tia Matilda veio lhe visitar. O tio permaneceu num silêncio inquietante. Ela bateu o liço do tear. Seu corpo estava sarando. Sua alma ainda sofria. Sinto nojo de você, disse ela para ele, como se ao dizer isso tornaria verdade. Ela estava envergonhada. Tinha se comportado como uma rameira. Renard apenas lhe deu um beijo, e ela se ofereceu. Por que estava zangada? Na verdade, não estava zangada com Renard, mas consigo mesma. Não só ela se ofereceu para beijá-lo, como gostou. Envolta nos braços dele, ela se esqueceu de que as intenções dele não eram mais dignas do que as de Black Pieter. Por um momento, ela achou que Renard podia querer algo mais do que seu corpo. Isso foi fácil de fazer quando ele jurou se vingar do sujeito que a agrediu e ao embalá-la nos braços, como se fosse uma delicada peça de cristal. Nesses momentos, ela se sentiu feliz. Foi uma sensação que nunca havia sentido antes, mesmo nos seus 71
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) dias mais alegres na tecelagem. A sensação foi tão maravilhosa que ela quase lhe disse isso. Graças à Santa, ela não dissera nada, caso contrário, todas as mentiras teriam sido inúteis. Ela o convenceu de que era responsável pelo negócio, mesmo sendo uma mulher. Se Renard descobrisse que o tio era contra seu trabalho, sua preciosa lã terminaria nas mãos de outra pessoa: A vassoura de Merkin acompanhou o ritmo do tear. — Ele é mais do que um simples segurança, não é, milady? — Senhora — corrigiu ela sem pensar. O que Merkin não sabia, ela provavelmente suspeitava. — Sim, Merkin, ele é sim. — Ele foi atrás de lã, não foi? Katrine parou de tecer e olhou para a garota. — Por que diz isso? — E está com saudade dele, não está? — Chega, Merkin. A menina se apoiou na vassoura, sem se importar com a irritação de Katrine. — Ele é uma raposa esperta, milady. Vai conseguir a lã. — Ela se calou por alguns instantes. — E laranjas também. Eu aposto que vai. Só traga ele de volta em segurança, Katrine rezou, segurando a lançadeira como se fosse a relíquia de um santo. Só traga ele de volta. A noite chegou, e Katrine esperou por ele no seu quarto enquanto ainda havia claridade suficiente. Ela deixou o cabelo solto no ar da noite, espalhado sobre os seios. Tremia de saudades dele. Como não conseguiu dormir, andou pela casa, como se pudesse encontrar um pedaço dele escondido num canto, então finalmente subiu pela escada estreita até o terceiro andar. Ela se ajoelhou na cama vazia, acariciou a lã áspera e sentiu os altos e baixos que seu corpo havia deixado no colchão de palha. Este era seu espaço, seu cheiro. Isso foi o que ele viu, noite após noite, na escuridão e ao amanhecer. Será que pensava nela? Se eu sentar onde ele sentou, ver o que ele viu, saberei o que ele pensa de mim? Katrine nunca precisou confessar pecados de vaidade. Ela sabia que não era bonita. Cabelo feio, pernas curtas, mãos ásperas, quadris estreitos e seios que não se avolumavam como os de uma mulher. Magra como uma camponesa, o tio disse. Mas que diferença isso fazia? A carne era enganosa e pecaminosa, e até mesmo uma mulher feia era uma tentação para os homens. Era melhor se esconder sob panos de lã. Mas Renard disse que seu cabelo era lindo. Segurando os cachos do seu cabelo sob a pouca luz da noite de verão, Katrine tentou ver o cabelo através dos olhos dele. Era liso e não tão vermelho quanto o cobre. Ela deixou os fios caírem por entre seus dedos, como se fossem de seda pura. Por cima da túnica, segurou os seios com as duas mãos, tentando avaliar a forma e o tamanho. Se substituísse suas mãos pelas dele, será que ele os acharia bonitos? 72
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela balançou os braços e ficou surpresa de ver como o trabalho no tear tinha fortalecido seus músculos. Quando ele a viu deitada na cama, será que achou suas formas agradáveis? Ela passou os dedos da mão esquerda sobre o braço direito, mas o toque que sentia não era seu. Quando passou os dedos na parte interna do cotovelo e quase engasgou com a sensação de prazer que sentiu, rapidamente retirou a mão. Em seguida, ela tateou a curva da perna a partir do joelho, foi subindo, e suas pernas se abriram involuntariamente. Querida Santa Catarina, livre-me do pecado de Eva. Mas a santa estava calada. Nenhuma mulher poderia escapar da marca de Eva. No entanto, essa noite, ela queria muito saber o que as mulheres casadas sabiam, o que as fazia sorrir quando pensavam no que só seus maridos podiam ver. Como seria sorrir dessa maneira para Renard? Katrine gemeu e virou-se na cama, escondendo o rosto com os braços e suportando a picada da palha do colchão no seu corpo. Um pedaço de pano, embolado, enfiado no canto onde o telhado encontrava o chão, roçou seus dedos, e ela ficou feliz. Ele tinha deixado alguma coisa para trás. Então ele ia voltar. Sentindo uma sensação de alívio, ela puxou o pano e tentou entender o que era pelo peso e formato. Parecia uma espécie de capa. Ela quis se envolver naquilo, pois era algo que ele tinha tocado. Não haveria nenhum mal em fazer isso, ele nunca saberia. Ela o colocaria de volta, pensou, en quanto sacudia o pedaço de pano que parecia um saco. A capa era de pano escuro e mais quente do que ele precisava agora. Havia mais coisa dentro dela. Uma túnica sobressalente. Um pedaço de tecido vermelho. Ela levou um susto e se encheu de ciúmes, pois podia ser o lenço de uma mulher. Mas então percebeu que era algo bem pior que isso. Era um tapa-olho de seda vermelha.
CAPÍTULO TREZE
Ela olhou horrorizada para aquele pedaço de seda vermelho, mortal como uma gota de sangue na cama rústica, e seus dedos ficaram frios e trêmulos apesar do calor de verão. Inglês. Ele é inglês. Ela só pensava nisso, em primeiro lugar, mas depois seus pensamentos foram bem piores. 73
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ele é pior que um contrabandista. Ele é um espião. Ele não participou do desfile na cidade, com os outros 49 cavaleiros. Ele aproveitou para se esconder pelas sombras e, secretamente, foi ao encontro com lorde de Dronghen. E, desde então, o sujeito se tornou um defensor da aliança com os ingleses. Foi por isso que Renard veio. Para conseguir aliados para a Inglaterra. Tudo fazia sentido agora. Ele veio até ela, uma mulher sozinha, ingênua, falando flamengo bem o suficiente para enganá-la. Ficou com ela, entrando e saindo de casa, há semanas, sem dar explicações. Não foi pela lã. Foi pela guerra. Ele tinha dito a ela que era um enganador, um Renard. O nome era, sem dúvida, tão falso quanto seu portador. Exatamente como na história da raposa, ele havia mentido. Todas as vezes que ela o pressionou, ele a tocou ou a beijou. Como deve ter achado graça por ela ter acreditado que ele se importava com ela. Era como dizia o poema: “Acreditar nele foi tolice. A verdade, agora sei, é duplamente cruel.” Uma brisa suave soprava sobre as mãos de Katrine. O tapa-olho flutuava, vivo. Com cuidado, como se pudesse feri-la, ela pegou no pedaço de seda. Liso, escorregadio, ele fugiu da sua mão. Ela o agarrou e fechou na mão apertada. Engoliu em seco, tentando conter o choro, depois dobrou-se, com um grito de dor, uma dor bem mais profunda do que sentiu nas costelas.
A semana que Renard disse que ficaria fora se transformou em duas. Katrine carregava a seda vermelha com ela para todo canto, escondida, como se fosse um pecado secreto. Uma noite, ela se sentou com Merkin na sala de tecelagem e abriu o livro de contabilidade. Não fez nenhuma anotação. Em vez disso, brincou com o pedaço de seda, como fez várias vezes naquele dia. Ela amassou a seda, como se pudesse destruir a verdade indesejada. No entanto, Katrine sabia que precisava fazer uma escolha. Ela poderia colocar o lenço de seda de volta. Quando Renard voltasse, poderia sorrir para ele, como uma tola, fingir que nunca tinha visto o lenço vermelho e deixar que ele prosseguisse com sua guerra. Ou então ela poderia contar isso ao tio. Se Renard voltasse, ele seria preso e levado ao conde. Ele morreria. Só de pensar nisso, ela já sofria tanto que tinha vontade de gritar, mas não saía nenhum som de dentro dela. Sentada junto à lareira vazia, Merkin brincava com um tufo de lã, puxando, girando 74
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) e torcendo em volta do dedo, como se quisesse transformá-lo num novelo. — Como se enrola um novelo de lã, milady? Absorta em seus pensamentos, Katrine se assustou e deixou cair o tapa-olho sobre o livro de contabilidade, em seguida, ela sorriu, feliz com a distração. — Primeiro você precisa saber se é lã penteada ou fio de lã e se é para urdidura ou trama... De repente, alguém bateu na porta da frente e a interrompeu. Não parecia ser ninguém conhecido, pela maneira violenta de bater. Merkin ficou apavorada. Com dedos trêmulos, Katrine fechou o livro de contabilidade sobre a evidência de culpa. Ela levantou a cabeça, fez cara de corajosa, se encaminhou até a porta e espiou pelas frestas da madeira. Era Ranf quem estava esmurrando a porta, com um punho que parecia maior do que ela se lembrava. Do lado dele, estava seu tio. Finalmente ele veio atrás dela. Ela se agarrou na saia de lã, querendo acalmar seu coração. Não ia conseguir se proteger, mas tinha que proteger Merkin. — Merkin, corra. Esconda-se no galpão. — Abra esta porta, Katrine — gritou seu tio. A criada ficou sem saber o que fazer e olhou para Katrine. — Se eu a deixar sozinha... — Você só vai fazer com que ele fique ainda mais zangado. Ande logo. Merkin desapareceu rapidamente. Katrine se apoiou sobre a porta e esticou o braço para levantar a trava. Renard, ou seja lá quem ele for, não podia ajudá-la agora. Ela abriu um pouco da porta, e seu tio a empurrou e entrou na casa. — Nunca mais me deixe esperando — falou ele com bafo de vinho, respingando saliva no rosto dela. Por Deus, como foi que a mãe dela aguentou? — Eu não sabia que era você. Preciso ser cautelosa — disse ela. Seu tio passou por ela e acenou para Ranf, que começou a vasculhar a casa, procurando alguma coisa. Ou alguém. — Mulher decente não mora sozinha. Soube que você tinha homens aqui. Quantos eram? Katrine tinha visto Ranf vigiando a casa, mas achou que ele estivesse ali por causa dela. Como não pensou que ele se perguntaria o que Renard fazia ali? — Você está enganado. Não tem mais ninguém aqui. Encontrando a sala vazia, Ranf subiu a escada. Katrine ficou alerta e torceu para ele não chegar ao terceiro andar. — Arrume suas coisas — disse o tio. — Você vai voltar para casa. 75
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Obrigada pela preocupação, mas meu lugar é aqui — falou ela, com as mãos agarradas à saia. O tio bateu na parede com a palma da mão. — Não quero ouvir seus argumentos. Você já foi agredida por andar sozinha pelas ruas como uma meretriz. Katrine levou os dedos ao hematoma no olho, que já estava amarelando. Ele repetiu o gesto dela, mas pressionou o suficiente para machucar. Katrine deu um pulo. — O perigo está em toda parte. Tenho certeza de que você sabe disso. — A raiva dela superou o medo. Ela o desafiou a confessar o que e quem a agrediu. Os dedos dele passaram do rosto para os ombros e ficaram ali. — É por isso que você deve ficar comigo, onde posso protegê-la. Ela mordeu a língua. Era proteção contra ele que ela precisava. Havia algo de errado com o olhar dele. Alguma coisa selvagem e desumana. — Prefiro ficar na casa que Giles me deixou. Ele a sacudiu. — Garota estúpida. Você não tem dinheiro nem lã para tecer. Acima, Ranf entrava no quarto dela. Ela rezou para que ele não encontrasse o dinheiro. — Não posso abandonar o trabalho do meu pai. — Ela se virou de costas para ele, mas antes que se afastasse, algo no chão chamou sua atenção. O pedaço de seda vermelha estava jogado embaixo da mesa. Katrine ficou aflita. Ela olhou para o lenço e rezou para ele ficar ali quieto, sem chamar a atenção de ninguém. — Já fui paciente demais com você — disse o tio atrás dela. — Querendo ou não, você vai voltar para casa hoje. Agora. Ela fechou os olhos para não ver o lenço embaixo da mesa. Ele não tinha visto. Se visse, o destino de Renard não estaria mais nas mãos dela. Uma rajada de vento quente balançou sua saia e levou o lenço de seda para a lareira. Katrine se virou para o tio, bloqueando a visão dele. — Preciso ficar aqui — disse ela. Palavras comedidas ditas num tom mais lento que as batidas do seu coração. Ele puxou seu punhal e o balançou no ar. Aquela ameaça a deixou paralisada. O pedaço de pano a deixou apavorada. — Você vem comigo. — Ele a agarrou pelo braço e a puxou até a escada. — Traga a criada também. Onde está ela? O tapa-olho, preso à sua saia, dançava alegremente ao seu lado e foi pousar em cima da bota dele. Katrine engoliu em seco. Ele se inclinou e o pegou pela ponta. 76
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Está negociando seda agora? — Sim. Não. Estou... É só... — Renard mentia com tanta facilidade, e ela não conseguia juntar as palavras certas. Ele começou a deixar que o lenço escorregasse das mãos dele. Em seguida, pegou-o de novo. — Este é um daqueles tapa-olhos que os malditos ingleses usam. — Ele balançou o lenço diante do seu rosto. — Onde foi que você conseguiu isto? — Isto deve ter entrado com o vento. Mais uma mentira para pedir perdão, Santa Catarina. Mas quando chegou a hora de escolher, ela não hesitou. — Então havia um inglês aqui. Por quê? Estava tentando libertar seu pai? — Eu não sabia que o homem era inglês. — Isso, ao menos, não era mentira. — Não me faça de idiota. — Ele balançou o lenço diante do rosto de Katrine. — Até você sabe o que isto significa. Por que deu abrigo para ele? Ela queria mentir, mas era tarde demais. — Por este lugar. Pela lã. — Vai desonrar seu nome por um punhado de lã? — Ele estava irado. Felizmente, ele não sabia de tudo o que ela fizera, então ela o fitou nos olhos. — Ele não estava usando isto quando negociei com ele. O conde devia ficar contente por eu ter tentado burlar o embargo. — Foram os ingleses que o impuseram. Por que ele lesaria o embargo por você? — Eu não sei — respondeu. Ela também tinha se perguntado isso, mas, claro, ele não trouxe lã nenhuma. Apenas prometeu fazê-lo. — Você não tinha dinheiro. Como o pagou? Com o corpo? Ela quase riu, lembrando-se do cuidado que tomou ao negociar suas poucas libras, mas se ela contasse sobre o ouro ao tio, ele a deixaria sem nada. Como demorou a responder, o tio a segurou e a sacudiu até deixá-la tonta. Ela acabou agarrando-se aos braços dele para se equilibrar. — Diga-me. Deitou-se com ele? Os homens sempre estavam desesperados para saber isso. Mas ele não parecia calmo como Renard. Seu tio estava frenético. — Não — respondeu ela. Mas ela se deitou diante dos seus olhos. E seu corpo sentia falta dele. Ranf abaixou a cabeça ao descer a escada. — Olhe só! — Ele balançou seu saco de moedas. — Aqui tem dinheiro suficiente para pagar o resgate de um rei. — Não! Dê-me isso. Ela tentou pegar o saco de moedas, mas o tio pegou primeiro. — Onde conseguiu isto? — Ele abriu o saco e apalpou as moedas. O barulho a deixou doente. 77
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Meu pai deixou para mim. — Ele nunca devia ter confiado esta quantia a você. Você a daria para um inglês sem pensar duas vezes, — O tio balançou o saco de moedas em uma das mãos e o lenço vermelho na outra, depois se virou para Ranf. — Verifique no jardim. Quando Ranf saiu da sala, o tio começou a andar de um lado para o outro. — Lorde de Droghen vem pressionando o Conselho a apoiar Edward. Suspeitamos que alguém está por trás disso, pagando pelos pronunciamentos públicos. Esse deve ser o tal sujeito. Onde está ele? — Ele disse que ia buscar a lã. — Quando ele vai voltar? Ela deu de ombros, tentando dar a entender que não se importava. — Se ele é um espião, por que voltaria? Ele a olhou de cima a baixo. — Ele vai voltar. — Ele guardou o saco de moedas no bolso dele. — Fique aqui até ele voltar. Aliviada, ela não questionou o tio. — Vou precisar das moedas para pagar pela lã. — Acha que vou deixar você dar alguma coisa ao inglês? Diga-lhe que terá que mandar a criada apanhar o dinheiro. Quando ela vier, vou dar um jeito de o sujeito ir para o calabouço do conde. — Ele esfregou o lenço vermelho na sua mão esquerda até a seda rasgar. Pense antes de falar. A vida de Renard depende de você. — Se eu não pagar o sujeito, ele ficará zangado e partirá. Não tenho como forçá-lo a ficar. Ela teve medo de ver o ódio nos olhos dele. — Ele ficará aqui tempo suficiente. E, se não quiser ficar, use seu corpo para segurá-lo. Ao menos, pecará por uma causa justa. — Como pode sugerir uma coisa dessas? — No entanto, ele sugeriu o que ela sonhava em fazer. — Eu me nego a fazer isso. — Você se nega? — Ele se encostou no tear. — Parece que não aprendeu nada com a primeira lição e precisa de outra. — Ele embolou o lenço na mão, depois puxou o punhal e o enterrou no tear, abrindo dois buracos no tecido. — Não! — gritou ela, correndo para o tear. Mas antes que chegasse lá, ele já tinha cortado os fios da urdidura, deixando-os pendurados. Katrine sentia como se fosse ela a ser cortada em vez da lã. O tecido ficou estendido, como um corpo sem vida. Fios ficaram esparramados pelo chão, como sangue. — Faça o que mandei, Katrine, e eu vou pegar o espião com o ouro em uma mão e uma senhora na outra. Depois você poderá confessar todos os detalhes ao padre. Talvez ele a absolva. 78
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ele deixou cair o lenço vermelho no chão, depois o esmagou com a sola da sua bota.
CAPÍTULO CATORZE
Apesar de ter jurado a si mesmo que a esqueceria, Renard pensou diariamente em Katrine, durante os 15 dias que ficou longe. Com a ajuda do ouro do rei, ele convenceu John, Duque de Brabante, a apoiar a causa de Edward, mas, ao sair, Renard duvidou que a lealdade dele fosse muito sincera. — Mando lhe avisar quando o rei estiver pronto — disse Renard ao passarem juntos pelos guardas. Ao se aproximar da carroça de duas rodas, o disfarce que o trouxe em segurança até Brabante, Renard fez uma pausa. Ele e John haviam tomado muitas garrafas de vinho Borgonha, mas ele não conseguiu descobrir mais nada sobre sua mãe depois que chegou. Mesmo assim, ele tinha uma pergunta que queimava em seu peito, ao lado do pano que enfiara em sua túnica. Tomada pela paixão, sua mãe o deixou sem pai, sem posição social, sem sequer um nome. Que tipo de homem teria valido a pena o risco de arruinar duas vidas? Ou três? Ele puxou o pedaço de pano e o jogou para o duque. — Isto lhe parece familiar? Seu meio-irmão deu um passo atrás, olhando para o pedaço de pano. — Deveria? — Alguma vez você a viu usando isto? O duque o fitou. — Ela foi enterrada num pano assim. Levando o tecido do tecelão para toda a eternidade. A ideia o surpreendeu. Será que Giles de Vos seria mais do que um comerciante para ela? Foi por isso que ela deixou um pedaço do tecido para seu filho? — O que sabe sobre o homem que teceu isto? — John era mais velho que Renard. O suficiente para se lembrar. — Nada. Ele respondeu rápido demais. — Conheci a loja dele. Fiquei sabendo que nunca mais fez aquele tecido depois que ela morreu. — Provavelmente ninguém quis pagar tão caro. A dinastia Plantageneta tem o hábito de gastar mais do que tem. Essa foi a mesma explicação que Renard tinha se dado. Quem podia imaginar que 79
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) a filha de um rei se deitaria com o filho de um artesão? Ele estava aliviado por aquilo não ser verdade. Se fosse, Katrine seria sua irmã. — A mãe era levada por suas paixões. Pelas coisas e pelo povo — disse o duque. Disso ele sabia bem. Renard jogou o pedaço de pano no banco e subiu na carroça. Não havia mais nada para descobrir ali. Sob o olhar frio do meio-irmão, ele deixou para trás a dor que sentiu quando criança. John nunca o chamaria de irmão. Já tinha enfrentado muitos irmãos bastardos. Renard era o único que não era filho do velho duque. Ele saiu do castelo, dirigiu-se para o depósito de lã, carregou a carroça, escondendo a lã debaixo de montes de palha e de cebola. Em seguida, embalado pelos cascos dos cavalos, foi sacudindo no banco, junto ao cocheiro, pelas estradas esburacadas. Ao passar pelos campos planos, ele se lembrou de quando era uma criança de 4 anos que perdeu tudo. O céu parecia perto demais do terreno pantanoso, que desaparecia no horizonte turvo, depois se transformava num mar cinza e frio. A duquesa tinha morrido e nunca mais ele teve paz na vida. Foi colocado num navio, no qual se agarrou à mão da babá, num convés que jogava sem parar, olhando para um mar revolto e apavorado de ser engolido por suas ondas negras. Ao fim da viagem, em solo inglês, ele nunca mais enfrentou seu passado. Até hoje. Confrontado com o passado de sua mãe, ele se perguntou se sabia seu segredo afinal. Pela primeira vez, ele se perguntou o motivo de sua mãe não ter se livra do dele logo após seu nascimento. Em vez disso, foi criado como se fosse filho da sua dama de companhia mais chegada. E o visitava todos os dias. Por que ela ia querer se lembrar diariamente do terrível engano que cometera? A menos que tivesse sido mais do que isso. Ele decidiu que não pensaria mais no assunto. Isso era uma fantasia. Assim como eram os sentimentos que tinha por Katrine. Sentimentos que eram apenas um entusiasmo passageiro, fugaz, como o som das rodas da carroça.
Quando ele chegou no portão da cidade, o sol já estava se pondo. O guarda se preparava para jantar e nem se preocupou em fazer inspeção na carroça, apenas acenou para ele. Cansado, empoeirado, cheio de calor e determinado a descarregar o mais rápido possível, Renard parou a carroça nas sombras, perto do jardim, e sorriu ao imaginar o rosto de Katrine quando visse a lã. Merkin chegou na porta e olhou desconfiada para ver quem era, então abriu ao ver que era ele. — Olhe só, garota — disse ele todo animado. Jogando duas laranjas para o alto e depois as pegando de volta. Ele jogou uma delas para Merkin. — Além de laranjas, eu trouxe toda a lã que sua senhora e o pai dela, que Deus o 80
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) tenha, jamais poderiam querer. Merkin fez o sinal da cruz rapidamente. — O pai dela? Eles o mataram na prisão inglesa? — Prisão inglesa? — De repente, tudo ficou claro para ele. O tecelão Giles de Vos estava morto há anos. Se o pai de Katrine estava preso na Inglaterra, ele não era Giles de Vos. — Há nove meses, ela reza todas as noites para seu pai voltar em segurança para casa — contou Merkin, com os olhos cheios de lágrimas. Em seguida, limpou o rosto na manga do vestido. Renard parou para pensar. Katrine dissera que tinha marido vivo e um pai morto. Tudo mentira. Seja quem for seu pai, ele não era o tecelão morto. Ele era um inimigo vivo. — Não diga nada a ela sobre isso. Eu falei demais — disse Renard. Logo ele que sempre pensava antes de falar. — Como poderia saber alguma coisa sobre o pai dela? Estava pensando em Giles de Vos. — Que Deus o tenha — disse Merkin. — Mas ele não era parente de sangue dela, apesar de serem mais chegados do que muitos pais e filhas. Não estou mencionando nomes, você entende. Não eram parentes de sangue. O homem que enganou reis tinha sido enganado por uma simples tecelã e foi tão descuidado que confiou nela? Então quem era seu pai? E por que ela mentiu? — Merkin, quem está aí? Katrine entrou na cozinha, envolta em suas roupas marrons largas e touca creme. Renard a fitou, cheio de saudades e não conseguindo desviar o olhar. Ela parecia mais magra do que quando ele partiu, e os olhos estavam cansados e ainda amarelados. Ele negou para si mesmo que sentia desejo por ela, mas não podia evitar sentir ternura. Uma ternura acompanhada de medo. Não podia confiar nessa mulher. Não sabia nem quem ela era. Ao ver que ela não saía da porta, ele se curvou, fazendo uma reverência para ela. — Senhora, como lhe prometi, aqui está sua lã. Ao se levantar, ele equilibrou a laranja na ponta dos dedos para ela, imaginando que poderia provocar, ao menos, um sorriso. — E sua laranja. — Achei que você não fosse voltar — disse ela, enquanto o fitava. Ele estendeu o braço para lhe entregar a fruta, mas teve o cuidado de não se aproximar muito. — Achei que nunca mais ia vê-lo de novo. Ela falava como se isso fosse importante. Lembre-se de que ela mentiu. Convenientemente, ele se esqueceu das próprias mentiras. — Só porque você não confia em mim não significa que eu jamais cumpra minhas promessas. Ela balançou e, em seguida, segurou a saia da roupa. O gesto o deixou de coração 81
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) apertado, pois, quando precisava de coragem, ela sempre fazia isso. — Só porque manteve sua palavra não significa que posso confiar em você. — Está duvidando que eu tenha trazido a lã? Então venha ver. Demorei quatro dias viajando para trazê-la até aqui. — Ele fez a bobagem de tocá-la, pegou sua mão para levá-la até a carroça. Katrine puxou de volta a mão e agarrou a laranja com as duas mãos. Aliviado, ele se concentrou para não respirar, temendo sentir o cheiro dela. Porque, apesar de tudo o que fez na vida, ele não controlava o próprio corpo quando estava perto dela. Ela o fitou com olhos grandes demais, castanhos demais. — Bem, então, vamos ver se essa lã que deu tanto trabalho para conseguir vale o preço. Ele cruzou os braços para evitar tocá-la. Eu também paguei caro por esta lã, de uma forma que nunca imaginei. — Não importa o que você pense da lã, o preço será o mesmo, mas vai ter uma boa lã cisterciense. Ela deixou a laranja sobre a mesa. — Onde está ela? Deixe-me ver. — Na carroça. Separei cada saca em vinte sacos menores. — Cada saca? — Cada uma das três. Ela levou as duas mãos à boca, para esconder o grito de felicidade. Do lado de fora da casa, o ar quente cheirava à terra molhada e folhas de couve. Um prenúncio de chuva. O cavalo emprestado estava irrequieto, e ele o acalmou com alguns tapinhas e palavras doces, antes de levá-lo para o galpão. Os três formaram uma fila indiana. Renard levantou um saco coberto de palha e o entregou a Merkin, que passou para Katrine, que o colocou dentro da oficina. Katrine logo caiu para trás depois de abrir cada um deles e enfiar as mãos na lã e exultar sobre a colo ração e a qualidade, rindo de ver os sessenta sacos empilhados, o que significava que a Marca da Margarida teria uma nova chance de vida. Renard a observava, cheio de ciúmes daquela lã. Ela havia dito, desde o começo, que faria qualquer coisa para conseguir a lã. Ele amaldiçoou a si mesmo pelo esquecimento. Achou que estava usando Katrine, mas foi ela quem o manipulou direitinho para obter o que queria. Quantas mentiras ela havia tecido? Será que também mentiu sobre sua inocência? Quando o último saco foi colocado no chão da oficina, Katrine agarrou Merkin e saiu girando com ela, numa estranha dança. Em seguida, libertou a menina e girou alegre enquanto Merkin batia palmas. Ele nunca a viu assim tão alegre e, apesar de tudo, se deliciava com o riso dela, ficando feliz por ter proporcionado isso. Pare de pensar nela. Trate de se proteger. Tente descobrir o quanto ela sabe e por que mentiu para você. 82
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Zonza e ofegante, Katrine tropeçou e quase caiu sobre ele. Renard estendeu a mão para ampará-la e, sem querer, a pegou pela cintura, por baixo de toda aquela roupa. Firmando-a, ele a trouxe para perto até que a lã do vestido dela entrasse entre as pernas dele e pressionasse seu corpo. O desejo tomou conta de Renard. O corpo de Katrine balançou suavemente com ele, como se fosse uma bandeira tremulando ao vento. Mentirosa. Sua forma esguia esconde uma vontade de ferro. No entanto, ela o fez querer coisas que, há muito tempo, estavam proibidas para ele. Deslizou o dedo na borda da touca, do queixo até a testa, prolongando-se na mancha clara da contusão, delicado como uma carícia. — Está melhor agora? Ela fechou os olhos, e os cílios enormes faziam sombra sobre o rosto. — Meu olho? Sim, já está bom. Ele fez uma carícia sobre as costelas dela através da roupa e ficou feliz de perceber que ela ainda mantinha uma faixa para se proteger. O toque levou seus dedos a passarem perto dos seios dela. — E aqui? A sua mão tateou as costelas de Katrine. Os olhos enormes dela o questionavam. Antes ele podia jurar que a inocência dela era real. Agora ele achava que ela devia ter mentido sobre tudo, inclusive isso. Ela cobriu sua mão com a dela e apertou até a mão doer. Ele não sabia dizer se era de raiva ou de saudades. — Só dói quando faço movimentos bruscos. — Então, ma petite, devemos mover lentamente. Mãos suaves, mas firmes, a seguraram, pelos quadris, e ele retomou a dança. Ele a fitou nos olhos e admirou o rosto emoldurado pelo cabelo ruivo que teimava em escapar da touca. Ele a imaginou debaixo do seu corpo. Ruborizada. Ofegante. A voz trêmula de Merkin os interrompeu. — Mil... Senhora, quer que eu leve aquele recado antes de me deitar? Katrine respondeu sem desviar os olhos. — Não. Amanhã estará bem. Boa noite, Merkin. Ela não se virou para ver a garota sair da sala. As mãos de Renard ainda estavam colocadas suavemente sobre os quadris dela. O lugar estava impregnado de um cheiro forte de lã pura. Quando ela se deu conta que eles estavam sozinhos, Katrine se afastou. Aliviado, ele andou de um lado para outro diante da lareira vazia, pensando o quanto devia se afastar para escapar do feitiço dela. Era perigosa. Não só pelas mentiras, mas pela tentação que representava. Ele já tinha lutado muito, mas ainda não vencera isso. Enquanto ele circulava pela sala, Katrine andava junto, como se fosse uma flor seguindo o sol. 83
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Dê-me meu dinheiro que eu vou embora — disse ele de repente. Era a única maneira de escapar das garras dela. — Você está cansado da viagem. Precisa se alimentar. — Apoiando a mão delicadamente nas suas costas, ela o encaminhou para a mesa na qual estava esquecida a laranja que ele trouxera. — Sente-se. Vou lhe trazer queijo e cerveja. As suas costas formigavam onde os dedos dela estavam. Seria um sinal de desejo ou de alerta? — Você já tem a sua lã. Fique com seu negócio. — Ele queria partir sem o dinheiro, mas isso só ia provar que ele não era o que parecia. — Para onde você iria esta noite? Já soaram o toque de recolher. O guarda ia desconfiar de você andando por aí. Ele se deixou levar até o banco, sem saber se o perigo maior estava dentro ou fora de casa. No entanto, se não descobrisse o que ela sabia e por que mentiu, ela poderia destruir todos os seus planos. Ao servir uma caneca, ela a encheu demais e acabou entornando a cerveja, que caiu em cascatas sobre as mãos dela. Katrine colocou a bebida na frente de Renard. — Deixe-me preparar um banho para você. Eu lhe devo esse gesto de hospitalidade. — Ela correu, como se pudesse esquecer as palavras se não as falasse rapidamente. — Só por esta noite, você é meu convidado de honra. Sem esperar por uma resposta, ela pegou um saco cheio de ervas e subiu as escadas. Um banho para um convidado cansado é uma cortesia muito comum. Certamente, vou conseguir me controlar. Não havia fogo aceso para iluminar os cantos escuros da sala, e ele deu apenas uma rápida olhada para o tear pouco iluminado. Ele tomou um gole de cerveja, ouvindo o barulho da chaleira que estava no fogo e da banheira de madeira sendo arrastada para perto da lareira, no andar de cima. Renard estava dividido entre medo e desejo. Se ele ficasse mais um pouco, até descobrir alguma coisa... Percebeu a madeira do piso rangendo atrás dele. E como se fosse um sonho, Katrine apareceu sem a armadura da touca. O cabelo solto caía em torno dela, como se fosse um manto de seda. — Venha. — Ela estendeu o braço para ele. — Seu banho te aguarda.
CAPÍTULO QUINZE
Renard olhou para o cabelo vermelho de Katrine, derramando-se sobre a túnica branca. A confiança que ela demonstrou ao soltar o cabelo mexeu com ele. 84
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Será que podia acreditar nela? Toda a dor que ele tinha visto, seus protestos, sua insistência em esconder isso. Seria também uma mentira? Ele hesitou. O sorriso dela desapareceu. Ela deixou cair os braços e olhou para o chão. — Eu não te agrado. Já me disseram que não sou uma mulher atraente. Renard sentiu raiva do pai ausente dela. Se foi ele quem lhe disse isso, era melhor que apodrecesse em uma cadeia inglesa. — Você me agrada demais. Ela balançou a cabeça negativamente e virou para fugir pelas escadas. Ele a segurou pelo braço e a deteve, com um pé na escada, sem olhar para ele. — Olhe para mim, ma petite — disse ele. E assim ela o fez. Dor e desejo, e algo mais misterioso guerreavam no olhar dela. Qualquer coisa que quisesse dizer, ele não sabia mais o que era. Katrine pegou o cabelo nas duas mãos, como se quisesse escondê-lo. A moça tímida que ele tinha visto no tear reapareceu. — Você tinha dito que ele era lindo. Outra mentira. — Eu não menti. Seu cabelo é mesmo lindo. — Ele quis enfiar os dedos nos fios de fogo, sentir seu peso maravilhoso nas mãos e espalhar o cabelo sobre seu corpo nu. — Ainda assim, você não me quer. Mas ele a queria sim. Desesperadamente. Loucamente. Queria devorar seu perfume, seus lábios, língua, orelhas, olhos, dedos, pele. Queria mergulhar dentro do seu segredo, várias vezes seguidas, sem pensar, sem raciocinar, sem controle, só dando e recebendo. Essa imagem foi um choque para ele, como se tivesse mergulhado num rio congelado. Ele tinha passado a, vida toda se defendendo para não se entregar a uma paixão. Agora uma mulher magrinha tinha liberado o dragão que ele guardou tanto tempo dentro de si. Esse sentimento poderia destruí-lo. Mas ele não se cansava de olhar para o cabelo de sol, seus olhos enormes, os cílios espessos e quadris estreitos logo ali, embaixo daquela roupa que ele queria tirar. Só por esta noite. Quando ela alcançasse o prazer, ele faria com que confessasse tudo. Isso era motivo suficiente para ficar. — Eu a quero. — Ele a envolveu nos braços. Sua cabeça ficou sobre o coração dele. Sua respiração queimava a pele dele. A mão esquerda segurava as pregas do vestido nervosamente. Ele pegou sua mão esquerda e beijou dedo por dedo. Katrine ficou ofegante quando os lábios dele tocaram seus dedos. Renard abriu sua mão e percorreu a língua sobre cada linha da palma da sua mão. A sua respiração acelerou. Calmamente, ele deslizou o dedo pela veia azul do seu braço até a parte interna do 85
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) cotovelo, provocando nela um grito descontrolado. Sua reação o fez se sentir poderoso. Katrine pegou a mão dele, virou-a e beijou a palma da mão com a boca fechada. Em seguida, sua língua tímida começou a provocá-lo, como se quisesse que ele gritasse como ela. — Venha — disse ela. — Seu banho o espera. Ela deu o braço a ele, e os dois subiram para o quarto de Katrine. Já era noite, fazia frio, havia uma chaleira de água quente para esquentar a água do banho. Vários lençóis estavam dobrados perto da lareira, para manter a temperatura, e a água da banheira emanava o perfume de alecrim. — Você preparou o quarto com todos os prazeres de uma casa de banho. — Ela ficou ruborizada. — Sua água está esfriando — balbuciou ela. Talvez fosse melhor mesmo ele entrar numa banheira de água fria, pensou ele. Renard ficou firme enquanto ela tirava suas roupas, como se ela fosse a dama do castelo e ele o cavaleiro que havia voltado para casa. Ela suspendeu a túnica dele e a tirou pela cabeça. Os seus dedos cintilavam como fogo sobre a pele dele, emaranhandose nos pelos do peito. Ele fechou os olhos, mas foi pior. Não havia nada para distraí-lo do toque das suas mãos. — Pode deixar, vou me despir sozinho — falou ele, entredentes e afastando as mãos de Katrine. Ela deu um passo atrás. — Quer que eu vá embora? — Pelo contrário. Quero estar perto de você. — Eu quero estar... perto de você também. Renard se virou de costas para ela e tirou a camisa. Atrás dele, sentiu-lhe os dedos percorrerem sua coluna. — Katrine — falou ele com a voz sufocada e virando-se de frente para ela. — O que foi? Está ferido? — Katrine — sussurrou ele. — Você já se deitou com um homem antes? — Não — respondeu ela, como se ele a tivesse esbofeteado. Seria esta mais uma mentira? Ele a fitou nos olhos. E contrariando seu julgamento e sua razão, acreditou nela. Ele devia se manter controlado. Iria tocá-la, excitá-la e deixá-la louca de desejo, depois a levaria a sentir o prazer máximo, ao contrário dele, que permaneceria frio e distante. Ela não poderia enganá-lo, pois ele não ia perder o controle. Mas ela sim, perderia. Então ele a faria confessar suas mentiras. Seria uma vingança apropriada. E quando ele fosse embora, ela ia se arrepender desse momento tanto quanto ele. No entanto, não a deixaria grávida, para criar um bastardo. 86
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) O desejo dele estava quase saindo do controle. Ansioso para colocar a barreira da banheira entre eles, ele tirou a cota de malha de metal e a roupa de baixo, ficando nu e expondo seu desejo evidente. De olhos baixos, ela recuou timidamente, mas ele pôde ver que ela espreitava, curiosa. A noção de estar nu diante de Katrine deu mais um impulso ao desejo dele. Renard entrou na banheira apertada, na qual os joelhos dobrados quase tocavam as orelhas e a água quente mal cobria seus quadris. Folhas de alecrim boiando na água encobriam o corpo dele. Com a segurança da banheira como barreira entre eles, Katrine se aproximou. Ela arregaçou as mangas e começou a lavar o pescoço e os ombros dele. Quando ela passou para a cabeça, ele se esticou para encontrar seus dedos. A sensação da água quente e das mãos de Katrine o deixaram mais relaxado. Mas o desejo permaneceu, controlado, no momento, pelos dedos nos seus ombros e pela respiração nos ouvidos dele. Mas quando a sua mão começou a se aventurar mais para baixo, ele a segurou e a colocou sobre a borda da banheira. — Dê-me uma toalha. Estou pronto para sair do banho. — Mas ainda não terminei de lavá-lo. — Já tirou a poeira da estrada. Isso basta. Ela ergueu a toalha, que serviu de proteção para os dois. Ele se enrolou nela, mas o pano fino se moldou ao corpo dele molhado. Renard olhou para baixo e viu seu desejo delineado na toalha. Katrine o segurou no queixo, virando o rosto dele para ela. — Esta será nossa última noite, Renard. Vamos fazer com que seja a primeira. Deixe-me ser sua Eva. Renard sentiu uma coisa mais forte do que paixão dentro dele, algo que tornava esse sentimento mais profundo, impossível de ignorar. Era tarde demais para negar, tarde demais resistir a essa ternura que ele nunca sentiu com mulher nenhuma. Nunca sentiu por ninguém. Lutar contra isso deixou todos os músculos dele tensos. Ainda não podia tocá-la. O corpo e o espírito dele estavam ansiosos demais. Ele fez um carinho na cabeça de Katrine. — Eu a quero como ao sol, ma petite — disse ele no idioma que se tornou deles. — Eu a quero tanto quanto quero o calor do fogo, mas o fogo é poderoso. E perigoso. Ela o fitou. — Estou pronta para queimar por você. As palavras de Katrine não falavam de amor, mas de fogo do inferno. Ele a puxou para si. A toalha caiu no chão, e o seu vestido ficou colado ao corpo molha do dele. Os dedos de Renard correram enlouquecidos pelo cabelo ruivo, agarrando-o. Ela fechou os olhos e deixou que ele embalasse sua cabeça, virando-se para beijar as mãos dele novamente. Ele a encheu de beijos, da orelha ao pescoço, depois enterrou o rosto no seu cabelo ruivo. O seu cheiro, de cravo e canela, entrava pelas narinas dele. As mãos de Renard desceram pelos seus braços, sentindo o calor da sua pele através da roupa, e ele sabia que estava nu, mas ela não. Ela teve coragem de exibir o cabelo para ele, será que 87
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) teria a mesma coragem de exibir o corpo? Renard a levou até a cama e a colocou de frente, ao capricho das mãos dele, ignorando a parte do corpo que latejava entre as pernas. Seria mais seguro mantê-la em seu colo. Tomando uma mecha do seu cabelo em cada mão, ele descobriu sua nuca e beijou o lugar onde nascia o cabelo mais curto e mais vermelho. A parte de trás do vestido não estava totalmente amarrada, o que provava que ela havia se vestido com pressa. Mas ele não teria pressa. Levaria tempo suficiente para ela ficar sem fôlego e sem saber o que queria. Ele soltou cada laçada, esbarrando as mãos nas suas costas, escorregando por baixo do tecido, brincando com as laterais dos seios. A roupa de lã caiu de seus ombros. Seus seios, pequenos e excitados, pareciam inchar nas mãos dele. Renard fez uma carícia na faixa de pano sobre as costelas e na curva da cintura e do quadril. Ela arqueou, trêmula, com uma pureza ingênua de desejo que ele nunca viu nas mulheres que conheceu na corte. Katrine estava com a cabeça sobre o ombro dele, os lábios entreabertos, carentes. Um beijo agora seria perigoso. Em vez disso, ele passou um dedo sobre seus lábios, provocando sua língua até que ela sugou o dedo dele com a boca. O corpo dele reagiu imediatamente. Com esse mesmo dedo molhado, ele circulou seus mamilos, sentindo-os endurecerem, e a reação do seu corpo lhe disse que ela só pensava naquilo que as mãos deles estavam fazendo. — Está queimando, ma petite! — sussurrou para ela. Katrine se contorceu, de olhos fechados. — Por favor... Eu não sabia... O que... De repente, ele se sentiu um Adão, confrontando- se, pela primeira vez, com uma força irresistível da natureza, forte como o vento, quente como o sol. Pela primeira vez, ele temia que ela fosse mais forte que ele, que a sua paixão superasse seu controle. Não. Ele a deixaria louca. Isso era suficiente. Isso era tudo. Os lábios dele encontraram-lhe a curva do pescoço. Seus ombros e parte das costas eram musculosos, um belo segredo, um contraste com o resto do corpo todo macio e delicado. Ele queria conhecer seus segredos. Todos eles. Os seios estavam duros do desejo que ele despertou nela. Instintivamente, ela os cobriu com o braço e segurou o seio direito com uma das mãos. Ela estremeceu com o toque da própria mão. Ele lhe levou a mão aos lábios dele. — Eva não tem segredos — disse ele. — Conte-me os seus, Katrine. Com o dedo que ela beijou, ele desceu e procurou pelo seu interior doce e escorregou para dentro de um lugar macio, delicado e molhado de desejo. — Abra para mim — pediu ele. E num momento de insensatez, ela o obedeceu, fazendo Renard se sentir o maior dos vilões. Ele brincou com ela, acariciando-a, dando ritmo a ela, tentando decifrá-la com os 88
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) dedos, como fez com os olhos e ouvidos. Mais rápido, mais lento, ele procu rava dominála. Queria que ela se esquecesse do tempo, de onde estava e até de seu nome. Queria que ela sentisse tudo o que ele sempre quis sentir e nunca se permitiu fazê-lo. Katrine lançou os quadris na direção dele, seu corpo procurando o dele, movendose enlouquecida de desejo. — Por favor... Eu quero... Eu não sei... Sua ingenuidade não era falsa. Seu corpo só podia estar falando a verdade. Ele inclinou a cabeça para sentir sua respiração, e empurrava o dedo num mesmo compasso. Seus suspiros se transformaram em gemidos. Quando ele encontrou o ritmo certo, o corpo dele acompanhou. Ela colocou a cabeça no ombro dele, que a beijou tão profundamente quanto queria se afundar no resto do seu corpo. Ele repetiu seus movimentos com os dele, até ela enrijecer e alcançar o êxtase junto a ele. E, por um momento, ele achou que sua alma tinha lhe escapado pelos dedos. O peso da sua cabeça nos ombros dele era gostoso. Ele ficou feliz de ver o sorriso no seu rosto. Ela o fitou, depois entrelaçou seus dedos nos dele. — Eu não... Eu não sabia. Nem eu. De alguma forma, a paixão tinha escapado do seu controle e foi mais aterrorizante do que ele podia imaginar. Muito mais.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Quando ouviu o relinchar do cavalo dele no galpão, achou que tinha acordado de um sonho para se ver no meio de uma batalha. Absorto com o ato sexual, ele negligenciou o perigo que corria, deixando de obrigála a falar a verdade sobre o pai e esquecendo-se de cuidar do cavalo. Ele se levantou da cama e pegou o punhal. — Fique aqui. — Ele olhou para o lindo corpo delgado de Katrine. O cabelo de seda desgrenhado misturava-se aos lençóis amarrotados. No entanto, ele abriu um sorriso de satisfação nos lábios, igual ao dela. Do lado de fora, uma lua crescente se escondia num céu nublado. O cavalo estava irrequieto, como se pressentisse alguma coisa. Renard o acalmou com um afago. O vento espalhava o cheiro de feno e estrume no galpão. Talvez o cavalo tivesse sentido a ameaça de chuva. 89
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Mas, ao pensar nisso, ele percebeu uma coisa diferente. Ele segurou firme no punhal pouco antes que alguém o atingisse no estômago. Os dois rolaram para perto dos cascos do cavalo. O animal relinchou e empinou. Renard sofreu um corte de faca no braço direito. O sujeito era canhoto, pensou ele, golpeando o vulto que se movimentava nas sombras. A pouca luz do luar foi suficiente para ele ver a boca aberta do sujeito, e logo Renard cortou sua garganta e ouviu um grito de dor e de morte. Com o cheiro de sangue, o cavalo bateu as patas na terra. De joelhos, com o braço direito sangrando, Renard procurava pelo outro comparsa no escuro, atento aos barulhos de um homem que não estava só. O galpão foi tomado de um silêncio mortal. Mais um pecado para reparar. Será que havia dispensa para matar um homem que o atacou primeiro? Ele teria que consultar o cânone. Renard segurou o punhal com dificuldade. Com o braço de combate ferido, o punhal tinha pouca utilidade. Agora que os olhos dele tinham se acostumado à escuridão, Renard olhou para o rosto do homem que tinha matado. Era o mesmo que esteve vigiando a casa. O mesmo que o queria morto. Que devia saber quem ele era. Porque Katrine deve ter lhe informado. Apoiando-se no braço esquerdo, ele se levantou e se apoiou no cavalo e o conduziu para fora do galpão, longe do cheiro de sangue. Deixou o cavalo pastando no jardim, limpou as mãos de sangue na grama e cambaleou até a porta dos fundos, tenso. A luxúria o cegou. E este foi o resultado por se esquecer do perigo. Não, pior que isso. Ele ignorou o perigo. Sabendo que estava sendo vigiado, sabendo que Katrine tinha mentido, mesmo assim, ele deixou o desejo dominá-lo. Dentro de casa, ele se encostou à parede e amaldiçoou seu descuido. Katrine apareceu no alto da escada, com o vestido solto sobre o corpo, os laços ainda desfeitos. — Minha Santa Catarina — sussurrou ela, com olhos arregalados. Tonto, ele sentiu seu coração bater dentro da ferida. Ele tateou até o primeiro degrau da escada para se sentar, antes que caísse. Ela se aproximou, visivelmente preocupada. — O que aconteceu? — No galpão. — Cada palavra era um esforço. — Um homem com uma faca. Está morto. O cabelo vermelho, que brilhava como fogo, minutos antes, tinha caído sobre o peito dele. Agora, no entanto, em vez de se apegar a ele, os olhos dela vigiavam as portas da casa, como se tentasse ver através das paredes. — O que está procurando, Katrine? — Está correndo perigo. — Sem fazer perguntas, ela pegou um pano e água para limpar o braço dele, sempre evitando olhá-lo. Enquanto ela enfaixava o braço dele, Renard sufocou um grito de dor pela traição 90
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) dela e pela irresponsabilidade dele. Acreditou na inocência de Katrine e se sentiu lisonjeado em poder possuí-la. Mas, o tempo todo, Katrine queria conduzi-lo à morte. Renard a agarrou pelo braço, sem se importar com o pano encharcado de sangue que ela trazia nas mãos. Arrastando-a com ele, Renard foi até â porta, colocou uma barreira na porta dos fundos, verificou as janelas voltadas para a rua e prestou atenção aos barulhos do lado de fora. E toda vez que ela tropeçava do lado dele, seu peito macio roçava no braço dele. Depois de checar que tudo estava bem fechado, ele se virou para ela. Bem mais alto, ele encostou o punhal na sua garganta, torcendo para que ela não o visse tremer. Os dedos dele ainda tinham o cheiro de Katrine, mais forte que a razão. — Por que disse que corro perigo? — As palavras em flamengo eram frias, como seu humor. O coração de Katrine batia acelerado, e ela apertou os lábios, como se para impedi-los de falar. Ele traçou levemente o punhal da sua garganta até embaixo da curva dos seios. — Não pode mais guardar segredos de mim, Katrine. — Ele passou a lâmina suavemente pelos seios, e seu peito subia e descia tão rápido que ele soube que ela o queria de novo. — Sei de coisas sobre você que ninguém deve saber. O rosto de Katrine ficou pálido. Estava em pânico. Ele a pressionou mais ainda, indiferente aos seus sentimentos. E aos dele também. — Eu a toquei onde você nunca foi tocada, e você gostou. Que segredo pode ser mais terrível que este? Ela se soltou dele. — Sua bola de cristal está lhe enganando, Renard. Você não vê verdade em lugar algum — gritou para ele. E se afastando da tentação do toque dele, protegeu-se com os braços. O vestido tinha caído dos ombros, e ela o puxou para se cobrir. — Você nunca disse a verdade. Talvez não possa dizer a verdade nem para si mesmo. Cauteloso, ele a observou pegar a laranja de cima da mesa e brincar com ela nas mãos. Quando finalmente Katrine ofereceu a laranja para ele, seus olhos eram pura mágoa, exatamente como ele queria. — Agora está na hora de você me revelar os seus segredos, inglês. Inglês. Atônito, ele ficou olhando para a pequena fruta, tentando compreender. — Inglês? — Ele falou devagar. — Por que me chama assim? — Vai negar que seja inglês? — Eu nasci em Brabante. — O que era verdade. Ela fez uma pausa para raciocinar. Talvez isso fosse verdade. Mas Katrine não era idiota. E ela aprendeu a prestar atenção aos pequenos tremores das pálpebras dele. — Uma resposta inteligente, digna de uma raposa, mas isto aqui me conta uma história diferente. — Ela deixou de lado a laranja que tinha nas mãos e puxou o pedaço de seda vermelha que estava escondida dentro do livro de contabilidade. Ela segurou o pano nos dedos. — Você deixou isto para trás. 91
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Andou vasculhando as minhas coisas? — perguntou, irritado por ter se esquecido. — Não foi bem assim — disse, encabulada, por alguma razão que ele não soube decifrar. — Como foi então? — Onde foi que ele deixou isso? Deu atenção demais a ela e acabou sendo descuidado com o resto. — Responda só uma coisa para mim. — Ela balançou a seda vermelha diante do rosto dele. — É seu este lenço? Sim ou não? Calma, paciente, ela sorriu e deixou o lenço balançar no ar. Ela era seu anjo da morte e o destruiu com o que ele mais negava. Por um momento, ele a sentiu tremendo sob os dedos dele e achou que tudo tinha valido a pena. — Sim — respondeu. Ele imaginou que fazer amor com ela a forçaria a dizer a verdade, no entanto, era ele que não podia mais esconder a sua verdade. — Por que está aqui? — perguntou ela desanimada. Ele era dispensável. Mas não podia comprometer o futuro das alianças de Edward. — Você me pediu para responder uma única pergunta. E isso eu já fiz. Ela deixou cair no chão o lenço vermelho, como se não aguentasse mais tocá-lo. Ele o pegou e enfiou dentro da sua túnica, com seu braço direito machucado. Ele ficaria com isso agora. Seria um lembrete para nunca mais confiar em uma mulher. Nem nos seus sentimentos por ela. Ela se ajoelhou junto aos sacos de lã empilhados no canto, acariciando cada um deles, recitando palavras familiares da história de Renard. — “Não há verdade nas mentiras que conta, no entanto, eu fui cativada pelo seu feitiço.” — Mentiras? E quanto às mentiras que você me contou? — Ele a segurou pelos ombros. — Você não tem marido e seu pai não é um tecelão morto. Ele está vivo e numa prisão inglesa. — Ela deu um salto. — Tenha cuidado quando exigir a verdade dos outros, senhora. Ela se levantou e ficou longe do alcance dele. — Você ouviu o que queria ouvir. — Quem é ele? Quem é seu pai? — Sir Denys de Gravere. Era um nobre então. Pior ainda. — E qual foi o crime que cometeu contra Edward? — Nenhum! Ele estava em Londres para negociar o embarque da nossa lã. Será que podia acreditar nisso? — Por que você mentiu então? — Se soubesse disso, você teria trazido minha lã? Ele não tinha resposta. Mas isso parecia ser verdade. A lã era tudo o que ela valorizava na vida. Ele olhou para onde o tear estava e lamentou porque não teria mais 92
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) aqueles momentos de cumplicidade. Mas ao olhar para o tear, ele viu algo errado. Fios soltos pendiam dele e caíam pelo chão. Katrine sempre cuidou muito bem do tear. Ele a pegou pelo cabelo, forçando-a a olhar para ele. — Katrine, o que foi...? Renard foi interrompido por uma batida insistente na porta da frente. — Katrine. Abra esta porta. Você o prendeu aí? Tarde demais. Traído. Enganado. Encarcerado com uma mulher, como se fosse um escudo humano. — Você bancou a meretriz para me segurar aqui. Ela balançou a cabeça negativamente, ainda presa nos dedos dele. Os olhos dela estavam tão tristes que ele ficou aliviado quando ela os fechou. Renard a pegou e a beijou, cheio de ardor, ignorando a dor da traição. — Esta é a nossa verdade, Katrine. A verdade do corpo. Nada mais. Ela se afastou, apavorada, olhando para a porta. — Espere um minuto, tio. Tio. A casa estava sendo vigiada há semanas. Ela o enganou desde o primeiro dia. Katrine falou baixinho e rápido para ele: — Vá para o andar de cima. Rápido. Saia pela janela e desça pela cerejeira. Vou tentar mantê-lo aqui pelo maior tempo possível. — Por quê? Para que eu seja preso pelos homens que esperam do lado de fora da casa? Ele bateu novamente na porta. Ela ajeitou o vestido solto no corpo. — Já estou indo. A raiva deu forças a Renard para subir as escadas. E ele esperava ter energia para se agarrar aos galhos da árvore. — Olá, tio. — Enquanto subia ao último andar, ele a ouviu dizer. — O que veio fazer aqui a esta hora da noite?
Quando Katrine abriu a porta, uma rajada de vento levantou seu cabelo ruivo e esfriou seu rosto, que queimava. Com as pernas bambas, ela se segurou no portal barrando a entrada do tio e fazendo hora para Renard conseguir escapar. Estava chovendo lá fora e o tio tinha se molhado todo. Ele empurrou a porta com força e sacudiu a água do corpo. — Onde está ele? — esbravejou, agarrando seu braço e respingando chuva na sua lã. — O que estava fazendo? Por que me deixou esperando aqui na chuva? Katrine se enganou achando que o tio esperaria ser chamado. Ele não acreditou 93
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) que ela poderia trair Renard. Nisso ele estava certo. Katrine sentiu que a sala exalava um odor de sexo mais acentuado do que o cheiro forte da lã. Claro que meu tio vai perceber, ou melhor, vai sentir o cheiro do meu pecado. Mas, mesmo enquanto pensava, ela não poderia chamar de pecado aquele ato de amor. Ela tentou ouvir algum barulho de Renard. Do lado de fora, homens pisoteavam seu jardim, gritando uns para os outros e capturando o cavalo que relinchava. Do lado de dentro, seu tio procurava em todos os cantos do andar. Acordada no meio da noite, Merkin apareceu assustada. — Deixe-a em paz. Como pode ver, a criada estava dormindo. Uma gota de chuva salpicou na sua saia de lã branca, em cima de uma gota de sangue de Renard. — Onde ele está? Ranf mandou Will me avisar. Eu sei que ele está aqui. — Ele a agarrou pelo braço, profanando a pele que Renard tinha tocado. — Olhe só para você — disse ele. — Está praticamente sem roupa. Ela puxou o vestido para se cobrir, saindo de perto dele. — Eu lhe disse, estávamos deitados. — Você se deitou com ele! — vociferou seu tio. Ele a agarrou pelo cabelo, puxando sua cabeça para trás. Ela riu. — Não foi isso que você me mandou fazer? — E lá que ele está! Ainda está na sua cama! — Ele correu para subir a escada. O rosto dela queimava. Bastava ele ver os lençóis amarrotados e já teria certeza, tão claramente quanto se tivesse visto eles dois se amarem. — Não, espere... — ela o chamou de volta. Mas ele não veio. Será que Renard conseguiu fugir? Santa Catarina, por favor, deixe-o ir em paz. Mas nenhuma virgem entenderia a sensação que cegava as pessoas, o vislumbre do paraíso, o prazer de pertencer a alguém, nem a desolação do desprezo dele. Ela queria apenas uma noite. Katrine devia ter se lembrado. Eva foi expulsa do paraíso por causa de uma única experiência. Quando o tio desceu de mãos vazias, ela respirou aliviada. Um dos homens chamou lá de fora. — Ranf está morto. Ela sentiu um instante de paz. Renard tinha se vingado por ela, afinal. Quão dolorosa você tornou a morte dele? — O contrabandista, provavelmente, encontrou Ranf antes de entrar em casa. Deve tê-lo matado e depois fugido — disse ela. — Portanto, ele nunca esteve dentro de casa. 94
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Então quem foi que trouxe essa lã fedorenta? Não, ela não sabia mentir. — Eu devia ter sabido — resmungou o tio, dando um murro no tear já danificado. — Não se pode confiar em você quando o assunto é homem. Pegue suas coisas. Vai voltar para casa. Ela saiu com pouco mais do que tinha trazido. O espelho. O tríptico. E um coração mais vazio do que suas mãos. Sem largar o braço de Katrine nem por um minuto, o barão a levou de volta para a casa dele, debaixo de chuva. Mas Merkin, que conseguiu se desvencilhar das garras dos homens dele, desapareceu pelas ruas escuras, pois preferia sentir frio e fome a se sujeitar à vingança do barão. Katrine sentiu inveja dela.
CAPÍTULO DEZESSETE
A ferida no braço de Renard ainda doía no ambiente úmido da casa de banho. Ele esperava ouvir uma mudança na voz do companheiro que indicasse que o burguês estava pronto para dizer “sim”. Mas não ouviu.' Jacob van Artevelde, sinistro, frio, grandalhão e bem articulado, ficou firme. — Se eu fizer o que você pede, minha Catherine pode ficar sem marido. O coração de Renard ficou apertado. Já tinham se passado algumas semanas desde que ele viu Katrine pela última vez, mas foi pego desprevenido ao ouvir o nome dela. A mulher de van Artevelde também era Catherine. — Ela já perdeu o pai — continuou ele. Renard percebeu o tom de acusação. Mas ele o mereceu. O sogro de van Artevelde, lorde de Dronghen, o homem que Renard havia convencido a apoiar Edward, foi morto pelo conde, acusado de “relações desleais com enviados do rei da Inglaterra”. Pela milésima vez, Renard se repreendeu por isso. Cego de desejo por Katrine, ele foi relapso com a própria segurança e com a dos seus aliados. Ele conseguiu escapar, mas lorde de Dronghen foi preso e morto. Desde então, as cercanias do ducado se juntaram em torno da coligação de Edward e foram recompensados com livre fluxo de lã. Somente a região de Flandres recusou apoio. Tudo porque Renard foi acreditar numa mulher desleal. Já que a diplomacia fracassou, o bispo cruzou o canal e voltou com seus 49 cavaleiros, arrastando seus lenços de seda vermelha. Renard se recusou a voltar. Sozinho e bem disfarçado, ele continuou a trabalhar em segredo, tentando cumprir 95
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) sua missão. Agora, Jacob van Artevelde era a última esperança de Renard. Ele não o culpava de ser tão resistente. Enfrentar o conde diretamente, exigindo fidelidade a Edward, poderia levá-lo a ter o mesmo destino de Dronghen. Mas talvez houvesse uma outra saída. Precisava arriscar. — Se Flandres permanecer neutra, em vez de se declarar aliada de Philip, talvez o rei suspenda o embargo. — Pode me garantir que o rei Edward vai fazer isso? — Van Artevelde se encheu de esperança. Ele não podia. Preso em Flandres, ele só podia adivinhar o que seu volúvel rei poderia fazer. A neutralidade poderia ameaçar a coligação que custou tempo e dinheiro para construir. Mas neutralidade era melhor que oposição. Ele respirou fundo e o fitou nos olhos. — A neutralidade de Flandres vai deixar Philip de mãos atadas. Você pode me assegurar um acordo no Conselho? — O conde pode regressar ao seu castelo — disse van Artevelde. — Seus servos vão trabalhar a terra, e ele e a família terão o que comer. Mas sem o sangue da lã inglesa nas veias, a cidade morre. O Conselho sabe disso. Seus olhos diziam que ele estava decidido. Renard saiu primeiro. Ele pegou uma toalha com uma loura peituda e ficou feliz por ela não ter despertado ne nhum sentimento nele. A loucura que chegou a sentir por Katrine tinha acabado. Só em sonhos, ele sentia isso agora, quando podia voltar a imaginar Katrine tremendo sob suas mãos, ouvi-la gemendo e ver seu cabelo ruivo colado ao braço dele. Ela o perseguia, como um espírito do mal que vinha perturbá-lo durante o sono e lhe roubava a alma. Ele sempre acordava para a realidade e para a traição dela. Achar que a paixão de Katrine tinha sido genuína foi uma grande fantasia. Ele se iludiu pensando que ela fingiu aquilo tudo só para escapar. Foi tudo um sonho, como o de ter nascido do amor e não da luxúria. A realidade era que Katrine mentiu desde o início. A presença daqueles homens na porta da sua casa também era uma realidade. A realidade alimentou seu ódio. Foi a única coisa que aliviou sua dor.
O verão foi dando espaço para o outono, e noite após noite, Renard aparecia em seus sonhos. Katrine acordava cheia de calores e inquietações, sua pele formigando, como se ele tivesse acabado de tocá-la. Acordada, ela se lembrava da raiva demonstrada no ultimo beijo dele. Eu não lhe disse. Precisa acreditar em mim. Eu jamais quis lhe magoar. Ela queria apenas uma noite. Pela manhã, ela havia planejado mandar Merkin avisar seu tio que, ao chegar lá, não encontraria mais Renard. No entanto, Renard quase foi capturado, lorde de Dronghen foi morto, e agora ela vivia como prisioneira na casa do tio. 96
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Porém ela teve sua única noite. Se uma noite apenas não lhe ensinou tudo, serviu para lhe ensinar muita coisa. Era difícil lembrar o que ela esperava há algumas semanas, quando era curiosa como uma criança. Os risos das damas e de seus pretendentes depois de fazerem amor pareciam atraentes demais. Ela não esperava que a paz fosse alcançada sem sofrimento. E nem que essa frágil relação fosse firme como uma cota de malha. Não se arrependia daquela noite. Apenas lamentou que tivesse terminado. Como sabia que ela havia estado com um homem, seu tio a manteve enclausurada, pois temia que ela fizesse aquilo de novo com qualquer outro. Ele a manteve presa em casa, sem poder sair desacompanhada. Presa lá dentro, ela tomou o cuidado de ficar sempre perto da tia, jamais sozinha com ele. Os olhos do tio pareciam de um louco. Ela queria rezar, mas imaginava que Santa Catarina não quisesse ouvir falar de Renard. Assim, ela rezou pela libertação do pai e pela sua liberdade. O Dia de Todos os Santos passou, mas nem ela nem o pai foram libertados. Então, finalmente, ela se concentrou naquilo que sempre a ajudou. O trabalho. *** No início do outono, Katrine estava diante da casa da High Street Gate, junto a dois criados do tio. Ele finalmente cedeu depois que ela contou que os sacos de lã guardados na tecelagem poderiam se transformar em inúmeros sacos de ouro. Sendo assim, ela concordou com todas as condições do tio, dos seguranças e tudo mais, para tocar na lã de novo. Porém, quando ela abriu a porta, a casa tão familiar estava diferente. Ele estava em toda parte. Havia se sentado no tear. Foi ele quem empilhou os sacos de lã no canto da sala. Ele dançou com ela. Deixando os seguranças, Katrine subiu a escada e parou diante do quarto dela. A cama ainda estava com os lençóis em desalinho, embolados em desordem enlevada. Ao ver a cena, sentiu seus seios enrijecerem e mel fluir entre as pernas. Ela engoliu em seco, mas sentiu seu cheiro nos dedos dele. Segurou-se no portal da porta, pois suas pernas ficaram bambas. Katrine reagiu, caminhou até a cama, puxou os lençóis e os jogou no chão. Um discreto perfume de sexo emanou da pilha de tecido no chão. Ela caiu de joelhos, agarrou os lençóis e os levou aos lábios, para abafar seu choro.
Uma garoa fria pairava no ar, mas a raiva de Renard o deixava aquecido. Pela 97
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) centésima vez, ele se perguntou se ela ainda estaria em High Gate Street e o que leria feito da lã. Ele trouxe lã de boa qualidade. Seria um prazer de tecer. Ele se forçou a andar na direção oposta. Van Artevelde estava pronto para fazer uma declaração pública assim que Renard conseguisse juntar um grande número de pessoas. E ele devia fazê-lo sem chamar a atenção do conde. Ao passar por um beco perto do canal, ele ouviu alguém sussurrando insistentemente. — Você. Você aí. Desconfiado, ele olhou em volta. — Renard. Ele ficou apavorado. Quem sabia seu nome verdadeiro? Será que o conde o descobriu? Do beco escuro, saiu uma figura olhando para ele. Merkin. Ele desceu para o beco, perto dela. — Quieta, não sou Renard agora. Ela o examinou e fez uma cara feia. — E também não se parece com ele. Ela estava bem diferente da antiga Merkin. Os sapatos de madeira estavam cheios de panos para aquecê-la. O cabelo cacheado estava desgrenhado. O rosto de sardas se misturava com sujeira. — O que aconteceu? Onde está sua senhora? — Ela ainda está trancada na casa daquele lunático. Eu consegui fugir. Prefiro a rua a ficar na casa dele. — Ele quem? — O tio dela, é claro. Se eu voltar para aquela casa, ele me matará. O sotaque de Merkin estava mais carregado agora do que antes, e ele encontrava dificuldade de compreendê-la. Deve ter entendido mal. O sujeito não podia ter trancado a própria sobrinha. Ele ainda se lembrava das palavras doces de Katrine ao recebê-lo em casa. Mas ele não queria saber. Katrine podia estar morta que não se importaria, exceto que sua morte o impediria de se vingar dela. — Como está fazendo para viver então? — O mesmo que você, pelo visto. A barba e as roupas rasgadas faziam parte do disfarce dele. E ele não pôde descansar na noite anterior. — Tem sido difícil. — Sem lã, nada de dinheiro. Sem dinheiro, nada de comida. Sem comida, nem o conde consegue viver. — Ela puxou o xale esfarrapado para se cobrir. — Apesar de que os ricos também estão de barriga vazia hoje. Será que Katrine estava passando fome e frio? Ele ficou preocupado. 98
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Você nos arranjou lã antes. Será que não consegue trazer mais? Sem o sangue da lã, a cidade morre. — Agora não, mas há algo que você pode fazer. Espalhe a notícia para todos que encontrar, então poderá ter comida antes do Natal — sussurrou ele no ouvido dela.
Poucos dias depois, Katrine olhou pela janela e viu a rua cheia de gente caminhando na mesma direção. Tintureiros vindos de seus poços fedorentos pelo rio Schedt, tecelões largando seus teares e fiandeiras de mãos vazias. — O que aconteceu? — gritou ela. — Aonde vocês estão indo? Ninguém parou para responder, mas ela ouviu uma voz flutuando no vento. — Para a abadia. — Van Artevelde vai falar. — Ele tem uma solução. Correndo para fora de casa, tão rápida que os guardas nem viram, Katrine logo estava no meio do povo, sem, ao menos, saber o motivo. — Milady! Aqui. Merkin acenou para ela, no meio da multidão. Quando se encontraram, Katrine a abraçou e franziu o nariz com o cheiro que a menina exalava. — Onde você esteve? Como está sobrevivendo? A vida tinha cavado dois buracos nas bochechas de Merkin. — Não pude ficar com você, milady. Ele teria me surrado. — Eu sei disso. — Katrine segurou a mão da menina e a apertou. — O que está acontecendo, Merkin? — Jacob van Artevelde tem um plano para nos trazer lã. Katrine mal podia acreditar. A família van Artevelde, fabricantes de tecidos como Giles, moravam num casarão algumas ruas abaixo. Que interesses poderiam ter em comum com essa massa de gente? Elas se deixaram ser levadas pela multidão. Quando cruzaram o rio, parecia que a cidade inteira estava do lado de fora da abadia, mas isso não era um evento espontâneo. Alguém tinha construído um palanque de madeira. Van Artevelde, um homem alto, de ombros largos, subiu no palanque e apoiou-se na grade de proteção, como se fosse um púlpito. Ele parecia um camponês, com seu nariz grande, olhos fundos no rosto, sobrancelhas espessas e mãos grandes. Mas seu jeito calmo lhe dava a dignidade de um nobre. Como foi mesmo que Giles se referiu a ele? Forte para suportar, perigoso para atravessar. — Meu nome é Jacob van Artevelde — começou. — Estou aqui falando com vocês como cidadão. A multidão vibrou em aprovação. A palavra “tidar dão” era sagrada em Ghent. A 99
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Torre do Sino guardava os documentos que garantiam a liberdade deles. — Estamos hoje entre dois gigantes que querem nos forçar lealdade às suas necessidades, em vez da nossa própria. Primeiro, ele falou de Philip de Valois, contando histórias sobre batalhas e traições antigas. Katrine conhecia bem essas histórias. A França não era amiga do povo de Ghent. — E agora, quando estamos passando necessidades, por acaso Philip mandou alimentos para matar nossa fome? Ao lado dela, Merkin respondeu. — Não. Atrás delas duas, alguém abafou o choro de um bebê. — E o que foi que Edward de Plantagenete ofereceu? Por acaso, ele nos enviou lã, que é o sangue da nossa vida? — Não! — gritou a multidão. — Nossos teares estão parados. Nossas crianças estão com fome, pois o conde persiste em ser leal a Philip, enquanto não podemos viver sem a lã de Edward. A multidão vibrou novamente. — Ambos querem nossa lealdade. Qual devemos escolher? Fidelidade ao rei de Renard. Katrine se viu pensando nessa estranha possibilidade. Que diferença faria qual dos primos se sentasse no trono, contanto que eles vivessem em paz? — Philip ou Edward. Qualquer uma das escolhas significa sofrimento. Mas nós temos outra escolha. O vento frio chicoteava através do manto de Katrine, soprando para longe as palavras dele. Ela virou o ouvido em direção ao vento frio para tentar escutar melhor. — Vamos nos preocupar com as nossas necessidades. Deixe que Philip e Edward resolvam sua rivalidade enquanto nós ficamos neutros. Assim, a lã e o vinho voltarão a frequentar nossas casas. Batendo palmas com o povo, Katrine se sentiu aliviada. Será que poderia ser assim tão fácil? Um homem alto se juntou a van Artevelde no palanque. Ela não via seu rosto, mas conhecia bem aquele jeito de andar, o porte elegante e o cabelo castanho. Agora ela já sabia o motivo de Renard ter vindo para Ghent.
CAPÍTULO DEZOITO
A convocação chegou à tarde para Katrine, logo depois do meio-dia. 100
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Você tem que vir conosco — disse um dos três soldados que vieram até sua loja. Ninguém lhe deu uma razão para isso. Nem tempo para trocar de roupa. A saia marrom não era um traje apropriado para ela se apresentar a Jacob van Artevelde, o novo governante de Ghent. Ela não podia perguntar se veria Renard. Ele ainda estava na cidade. Ela ouviu dizer também que, quando o rei Edward fosse embora, Renard ficaria na cidade, como seu representante. Katrine abraçou Merkin e saiu com os homens para a caminhada pelos poucos quarteirões até o conjunto de casa da família van Artevelde e sede do governo. Três guardas. Por que tanta gente? As ruas estavam mais seguras agora. A cidade tinha mudado bastante desde aquele discurso dramático de van Artevelde. Assim que Edward permitiu o comércio da lã, a neutralidade se transformou em aliança. Edward veio para a cidade e foi reconhecido como rei da França, forçando o conde e seus aliados a fugirem tão rapidamente que seu tio a deixou para trás. A vida de Katrine estava perfeita na sua loja, contanto que não pensasse no pai. Nem em Renard. Na casa de van Artevelde, um secretário, primo de van Artevelde pela semelhança, os mandou subir imediatamente. Ela sentiu um calafrio ao subir. O que será que ela fez para chamar a atenção do homem? No andar de cima, espessas tapeçarias cobriam as paredes de pedra e deixavam o ambiente mais silencioso. O som de um alaúde era ouvido pelo corredor, seguida da risada de uma mulher, um estranho contraste com a agitação governamental que havia no andar de baixo. Em um canto do andar de cima, eles pararam diante de uma escada encostada num buraco no teto, uma entrada para o quarto da casa na torre. — Pode subir. — O guarda apontou. — Por quê? Por que estou aqui? Ele sacudiu a cabeça e fez sinal para ela subir. Ela protestou, mas os guardas só estavam cumprindo ordens. Ela começou a subir a escada, apavorada com o que a esperava lá em cima. A meio caminho, a escada balançou com o peso de outra pessoa. — Pare — disse ela. — A escada não vai aguentar duas pessoas. — Vai, sim. A voz fez o seu coração disparar. Renard. Os braços dele estavam firmes dos dois lados da escada, cercando-a, deixando-a vulnerável e protegida do resto do mundo. Era uma contradição que ela não queria se preocupar em esclarecer. Olhou para baixo. Ele estava tão perto que, se quisesse, poderia abraçá-la e acariciá-la até ela se perder novamente. Ela subiu mais uns degraus, tentando ficar longe dele, achando que era a insegurança da escada que a estava deixando nervosa. Ao chegar no topo da 101
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) escada, ela entrou rapidamente no quarto. Mas quando ela se virou, ele já estava junto a ela. Katrine secou as mãos úmidas na saia e engoliu em seco. Aqueles olhos azuis, que ela se lembrava bem, a fitaram por um bom tempo. — É por isso que estou aqui? Será que ele queria me ver tanto quanto eu queria vê-lo? Ninguém disse nada. — Achei que tinha vindo ver van Artevelde — disse ela. — Fui eu que a convoquei. Apenas isso. Ela começou a respirar mais aliviada. Apesar de saber que ele ainda estava na cidade, Katrine não o viu depois do discurso na abadia. Ele linha se tornado mais sonho do que realidade para ela. Cada noite ela explicava: eu não pretendia deixar que eles o levassem. Nos seus sonhos, ele entendia e olhava para ela com carinho. Agora ela não via carinho no semblante dele. O jeito cordial não escondia a raiva de Renard. Os olhos frios se abriam e fechavam lentamente. — Você me entregou ao conde — disse ele finalmente. — Isso não é verdade! Ele ainda me odeia. Como podia esperar que fosse diferente? — Quer me convencer que o barão apareceu por acaso naquela hora? — Não mandei chamá-lo. Eu mandei você fugir. — Mandou ele fugir depois de tanto prazer que nem conseguia falar direito. — Lorde de Dronghen já não teve tanta sorte. Ela percebeu a tristeza na voz dele e ficou sem jeito. — Não tive culpa pela morte dele. — Como posso acreditar nisso? Você mentiu sobre tudo. Até a respeito do seu pai. — Como se isso fosse um insulto. — Não devia explicações sobre a origem da minha família a um desconhecido, um contrabandista. Eu não lhe devia nada, exceto as 60 libras de ouro. — Que você nunca me pagou. Aquilo parecia ter sido um soco no estômago. Ela nunca pagou porque não pensou em dinheiro quando ele a tocou. Com dedos atrapalhados, ela abriu a mão para pegar as moedas que guardava na cintura. Sem se preocupar com o peso delas, atirou-as no rosto dele. Renard não vacilou quando uma delas lhe atingiu a testa. O resto se espalhou pelo chão, exceto por uma, que caiu pela escada e pousou no andar de baixo. — Eu jamais conspirei contra seu precioso rei. — E também não terá a oportunidade de fazê-lo mais. Vou mantê-la aqui, onde não poderá mandar informações para seu tio e o conde no exílio. Aqui. Onde ela poderia vê-lo de novo. 102
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Mas eu não posso largar meu trabalho. — Você será escoltada diariamente até a loja e de volta para cá. Merkin tem permissão para atendê-la. — Eu cuido de um negócio de tecelagem. Não sei de nenhum segredo militar e não os revelaria se soubesse. — Que motivos teria seu tio para deixá-la para trás a não ser para espionar? O tio a tinha deixado porque ela se escondeu dele, não suportava mais aquele olhar faminto, como se visse nela uma prostituta. Não foi à toa que Renard também a viu assim. — Para cuidar dos negócios, como sempre fiz. Deixe-me falar com van Artevelde, ele conhece meu pai. — Van Artevelde não manda sozinho. Eu estou aqui representando os interesses do rei. Ela olhou em volta. O quarto da torre foi feito para esconder uma família quando a casa fosse atacada. Poderia ser o céu. Ou uma prisão. — Mas estou falando a verdade. — Apenas o seu corpo falou a verdade. Seu corpo foi sincero. Mas não pode ter sido apenas ela. Katrine respirou calmamente, então falou em francês bem claro: — Seu corpo foi a única parte sua que não pôde mentir. Ele não se mexeu, mas cada músculo se enrijeceu. Ele se lembrou daquele dia. E não queria lembrar. Katrine ficou surpresa de ver como ele ficou perturbado. Então ele pegou suas mãos e, falando em francês, beijou cada dedo seu lentamente. — É verdade ou mentira? Ele mordiscou a palma da sua mão, depois seguiu até o pulso, que batia forte. Minha Santa Catarina, livrai-me da tentação. A santa não respondeu. O calor que tomou conta do seu corpo não podia ter vindo de Eva. — E isto? — sussurrou ele com lábios perto dela. — Que verdade dizem? O beijo dele era doce e sedutor, e ela se abriu toda para ele. Não satisfeito com seus lábios, ele tocou seu rosto, deslizou sobre a testa, orelha e pescoço. Ela respondia com carícias e uma combinação de vulnerabilidade e segurança que só experimentou com ele. E como se seus sonhos se tornassem realidade, ele a beijou novamente. Delirante, ela brincou com a língua dele e ouviu cada palavra, mas só foi entender o significado no final. — A verdade é que você se entregaria a qualquer homem. Todo o desejo ardente que ela sentia se evaporou. Ela se afastou repentinamente dos braços, dos lábios e dos dedos dele, longe de tudo o que poderia usar para seduzi-la. Mais uma vez, ela confiou nele e foi pisada. — Isso não é verdade. 103
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Mas e se fosse verdade? Seu tio, a igreja, todos disseram a mesma coisa. As mulheres eram criaturas devassas, fracas. Renard sabia da sua insegurança e a usou contra ela. Por que se permitiu sonhar que era digna do amor dele? — Sei bem do que é capaz o ardor de uma mulher. Sei o que vai fazer com isso. — O quê? — Katrine tinha medo da resposta dele. — Poderá abandonar sua vida pelo prazer de um simples momento. Ela não podia protestar, pois havia feito exatamente isso. Mas Katrine percebeu que Renard não estava olhando para ela. De olhos fechados, ele parecia to mado de uma agonia antiga e profunda. Quem foi essa mulher que lhe causou tanta dor? — E essa paixão, o que ela faz a você? — perguntou ela baixinho, sem querer perturbar a memória dele. — Nada. Não me faz nada. — Seu corpo não pode mentir sobre isso. Mas o passado tinha ficado para trás, e ele estava no quarto com ela novamente. — Ah, você tem experiência com um corpo masculino. — Apenas o seu. Ela viu nos olhos dele como Renard queria acreditar e sua luta para negar isso. — Então você tem muito o que esperar — disse ele. — Sentirá o mesmo pelo próximo homem. — E você pela próxima mulher? — Já lhe disse, eu não sinto nada. — Quem é que está mentindo agora? — Ele sentia uma coisa que não queria sentir. Por ela. — Vejo algo mais do que isso em seus olhos. — Você vê o que quer ver. — Ele se virou abruptamente e desceu a escada. Apressando-se para catar as moedas espalhadas pelo chão, Katrine atirou-as sobre ele. — Não se esqueça das suas 30 moedas de prata. Ele puxou a escada e a deixou presa lá no alto.
Ele foi um tolo de querer vê-la novamente. Por um primeiro momento, só conseguiu olhar para ela. Os seus cílios eram cheios, como ele se lembrava, o cabelo, como tudo mais, cuidadosamente escondido, no entanto, ele quase a possuiu, apesar da sua traição. Ele cerrou os punhos ao descer a escada. Mesmo depois de tanto tempo negando isso, ele ainda sofria com a fraqueza de sua mãe. Como uma imagem refletida no espelho, a fraqueza dela vivia dentro dele, mesmo que não pudesse vê-la. Não importava quantas vezes a derrotava, ela nunca desaparecia. Ele disse que era culpa dela. Talvez essa fosse a maior mentira de todas. 104
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ele lavou a emoção do rosto e foi se despedir do seu rei.
— Um desenho esplêndido, não acha? — perguntou Edward. O quarto estava quase vazio, as malas estavam prontas para a viagem de volta para a Inglaterra. Da próxima vez que cruzasse o canal, seria à frente do exército, indo para Paris. As malas tinham sido enfeitadas com o brasão das armas do novo rei da França: a flor de lis em ouro sobre azul, da França, com os leões dourados da Inglaterra. — Um desenho magistral, vossa majestade — disse Renard. Edward examinou os enfeites dourados sobre o campo azul, a tinta ainda estava secando. — Ele precisa melhorar os lírios. Renard deixou Edward admirar um pouco mais o brasão antes de falar. — Majestade, quando tiver voltado para a Inglaterra, sugiro que solte os prisioneiros flamengos. Seria bom para reforçar nossa aliança. Edward inclinou a cabeça para o lado e abriu um sorriso travesso para Renard. — Como é mesmo o nome dele? — Quem? — O pai da sua namorada tecelã. — O que quer dizer? — Não conheço nenhum outro prisioneiro flamengo que possa lhe interessar. Renard sentiu o rosto ficar ruborizado. — Sir Denys de Gravere — disse ele, como se fosse um completo estranho para si. — Mas não foi por isso que sugeri. — Claro que não — disse Edward sorrindo. — Mas você a trouxe para cá para ficar perto de você. A ideia de passar uma única noite com ela passou pela sua mente, como acontecia nos seus sonhos. Olhos fechados. Lábios abertos para ele. Lembre-se: ela só usou o corpo para tentá-lo. — Eu a trouxe para cá para proteger seus interesses, majestade. Agora que estamos elaborando planos de guerra, ela pode ser perigosa. — Ah, sim. Como você disse. — Edward se virou de costas e passou a acariciar a mala, em volta do brasão de flor de lis è leões. — Dieu e Mon Droit. Deus é Meu Direito. Um bom lema, não é mesmo? — Muito apropriado, majestade. De repente, o humor de Edward mudou. — Cuide da minha mulher, Renard. — Mesmo depois de 12 anos, ele ainda era feliz no casamento. Renard duvidava que pudesse encontrar satisfação semelhante na Igreja. — Claro. Edward o pegou pelos ombros e o fitou nos olhos. 105
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Acho que meu filho vai esperar eu voltar para nascer, mas se isso não acontecer... Por estar esperando um filho de Edward, a rainha Philippa não aguentaria fazer uma viagem dessas pelo canal. Ao menos, esta era a razão de ela ter permanecido como hóspede dos aliados de Edward. Ela foi acomodada em um conjunto de salas no andar superior de van Artevelde. — Tudo ficará bem, majestade. — Talvez ela apreciasse conversar com a sua tecelã. — Ela não é minha tecelã, e acho difícil elas terem algum assunto em comum. — Philippa quer se informar mais sobre tecelagem. Ela não entende por que não fabricamos um tecido assim, de boa qualidade, na Inglaterra. Renard havia salvado a região de Flandres para o rei, apesar da sua traição. Não podia permitir que ela interferisse na próxima guerra. — Majestade, não creio que a rainha e uma espiã... — Tem certeza de que ela espionou? Será? Mas não podia ser diferente. Se Katrine estivesse dizendo a verdade, se fosse inocente, ele não teria mais motivo para resistir a ela. — Estou convencido disso. — Que mal pode haver nisso? Philippa sabe guardar segredos de Estado. — Jamais poderia sugerir o contrário, majestade. — Como seria confiar tanto em uma mulher assim, pensou Renard com inveja. — Além do mais, em breve, ela não poderá sair de casa. Um rosto novo vai divertila enquanto estou fora. Ele suspirou. O desejo de um rei era uma ordem. — Como quiser, majestade. — Pena que você vai ficar aqui, Renard. Gosto de cruzar o canal com você. Tem o mesmo problema que eu de enjoar no mar. — Quem ficaria de olho no bispo de Clare se eu fosse com vossa majestade? — Van Artevelde, Renard e Clare formariam um triunvirato para governar até a volta de Edward. Renard torcia que isso não demorasse muito. Compartilhar o poder com Clare seria uma missão espinhosa. — Já mandei ele escrever para o papa. Você deve se tornar bispo dentro de um ano. — Sinto-me honrado, majestade. — Renard fitou os olhos azuis do rei, iguais aos seus. — Antes de partir, permita-me fazer um brinde ao legítimo rei da França. O rei inclinou a cabeça, mas não pôde esconder seu sorriso. — E ao seu representante em Flandres. As palavras mexeram com Renard. Este era o primeiro passo. Ele tinha conquistado essa posição, esse poder, na corte de Edward. E, em breve, ele teria um anel de bispo para acompanhá-lo. Nada deveria interferir nisso. Principalmente uma pequena tecelã de olhos grandes. 106
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CAPÍTULO DEZENOVE
Renard e Katrine estavam esperando na entrada dos aposentos da rainha, nenhum dos dois queria estar ali. Aparentemente, sua majestade tinha outros planos. Katrine alisou a túnica marrom com dedos nervosos. Não importava que a lã de Flandres fosse a melhor de todas. Sentia-se como um peixe fora d’água. Sempre se sentia mais à vontade no meio dos teares do que no mundo da nobreza. Katrine não sabia que assunto conversar com a rainha. Renard estava ali para observar cada gesto seu, pronto para censurá-la se ouvisse qualquer palavra suspeita. A conversa mais inocente poderia ser mal interpretada. Os aposentos da rainha estavam repletos de luxos recolhidos do resto da casa. Tapeçarias nas quatro paredes e lindos lençóis bordados sobre a cama. As taças de vinho, em vez de serem de estanho, eram de prata. O tabuleiro de xadrez esperava os jogadores retomarem o jogo. Duas mulheres riam ao lado de um cavaleiro de cabelo encaracolado, usando um tapa-olho de seda vermelho, que brincava com duas bolas. No meio do quarto, cercada de travesseiros de penas, em uma cama alta, estava a rainha, mãe de quatro filhos. Katrine arregalou os olhos. Ela não tinha noção que a rainha estivesse tão perto de ter seu filho. Os vestidos de brocado que usava em cerimônias públicas tinham escondido bem sua barriga. Colocadas sobre a cama, estavam as melhores lãs e rendas de Ghent, incluindo um tecido índigo da Marca da Margarida. — Renard, entre — disse a rainha, acenando para ele, com mãos cobertas de joias. — Que prazer vê-lo. Uma das damas de companhia olhou para ele como se também sentisse prazer em vê-lo. Com interesse profissional, Katrine reparou que a lã da sua roupa era de qualidade inferior, o que poderia passar despercebido para a maioria das pessoas, por causa de sua coloração vermelha berrante. Renard curvou-se diante da rainha com graça e intimidade na medida certa. — Estou sempre pronto a servir o rei e vossa alteza — disse ele no francês usado na corte. — Permita-me lhe apresentar lady Catherine de Gravere, ou lady Katrine, como ela prefere ser chamada. — Ele tinha concordado que não mencionaria sua admiração pela França. — Ela está aqui para lhe responder sobre os tecidos que fabrica. Katrine sentiu suas bochechas ficarem quentes quando o ouviu falar no idioma que só tinham compartilhado na intimidade. Sua sensação era de ter sido descoberta nua num quarto cheio de estranhos, enquanto Renard sorria. 107
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela flexionou os joelhos numa reverência. Será que ele não sente nada por ela? Katrine olhou para a rainha, que lhe abriu um sorriso acolhedor. — Ah, finalmente. Pedi a Renard mais de uma vez que trouxesse você até aqui. Lady Katrine, estas são lady Elizabeth e lady Johanna. Lady Elizabeth, de azul, era mais alta e magra, com mãos finas e brancas, que despertaram a inveja de Katrine por um momento. O sorriso largo exibia dois dentes da frente com pouco espaço entre eles. A loura, lady Johanna, de vermelho, não mostrava os dentes quando sorria, provavelmente para não rachar a pasta branca que encobria as marcas de varíola no rosto. Katrine sorriu para ela. — E este rapazola é Sir Jack de Beauchance — disse a rainha. Ao se virar para cumprimentá-lo, Katrine levou um susto. Era o mesmo cavaleiro que tinha lhe jogado um beijo na noite que ela foi agredida. Ele levou um dedo aos lábios. — Ele leva seus votos de silêncio muito a sério — afirmou lady Elizabeth. — Fizemos uma aposta que ninguém vai conseguir fazê-lo falar até que volte de uma batalha. Jack piscou para ela ao se curvar sobre a mão de Katrine. Ao seu lado, Renard logo se aproximou. — Cuide-se, Sir Jack — disse lady Elizabeth. — Não está vendo que ela é uma mulher casada? Katrine recolheu a mão e segurou a touca. — Sinto muito, acho que minha touca a confundiu, lady Elizabeth. Eu uso a touca como forma de me proteger na rua. Não tenho marido. — Que pena — falou Johanna. — Pois apenas as mulheres casadas merecem a verdadeira devoção cavalheiresca. Ou talvez você finja ser casada, assim estará livre para aceitar as atenções de algum cavaleiro, lady Katrine. — De jeito nenhum! — Katrine ficou ruborizada, só de pensar no que ela e Renard tinham feito. Ela olhou para o rosto impassível dele. Mas estava ali para falar sobre lã, não sobre amor. Como podiam brincar assim com uma coisa tão séria? Lady Johanna sorriu. — Talvez lady Katrine não esteja familiarizada com as leis do sistema cavalheiresco. Eu soube, lady Katrine, que você trabalha com comércio. Katrine escondeu os dedos cheios de calos. Ela sabia negociar com tecelãs e fiandeiras, mas podia trocar farpas com damas da corte. — A família de lady Johanna cria ovelhas em suas terras e depois vende a lã para os fabricantes de tecidos — informou Renard. — Isso significa que sua família também trabalha com comércio, lady Johanna? Para não rir, Katrine olhou para o chão e simulou uma tosse. Lady Elizabeth não foi tão sutil e riu abertamente. — Então temos muito em comum — disse a rainha. — Lady Johanna cria ovelhas. Lady Katrine fabrica lindos tecidos. Lady Elizabeth e eu adoramos usá-los. Temos sorte de você poder se afastar do seu trabalho tão importante para estar aqui conosco. 108
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) A rainha sorriu. — Meu pai teve participação em uma fábrica de lã por muitos anos. Gostaria que a Inglaterra tivesse fabricantes tão talentosos. Edward me deixou dinheiro para gastar. Como pode ver, encontrei muitas maneiras de gastá-lo. — Este é de nossa fabricação, com a Marca da Margarida. — Katrine passou a mão sobre o tecido índigo. — Este é o nosso tecido. — Ele ficaria bem em você, Renard. Katrine fixou o olhar na rainha. — Temos sorte, majestade, quando conseguimos lã inglesa. A qualidade do tecido depende da lã, em primeiro lugar. — Se não me engano, você disse que a lã cisterciense é a melhor, lady Katrine. — A voz de Renard estava muito diferente do dia em que ele trouxe a lã para ela. E Katrine se perguntou por que tinha feito aquilo. Só podia prejudicar a sua causa. — Deixe-nos ter uma conversa de mulheres. — A rainha acenou para Renard e Jack. — Quero aprender algumas coisas na área da tecelagem. — Majestade, eu creio que será mais prudente que eu fique — hesitou Renard. — É muita gentileza sua — respondeu ela. — Mas tenho certeza de que Edward tinha coisas mais importantes em mente quando o escolheu como seu representante. Renard se curvou diante da rainha e se virou lentamente. — Limite-se a falar apenas sobre tecidos — murmurou para Katrine antes de sair. O olhar de Johanna seguiu os dois homens até eles saírem da sala, enquanto as mulheres se sentavam pára bordar. — Você não tem nenhum bordado para fazer, lady Katrine? — Lady Elizabeth tentava ser gentil. Bordado, ora essa. Elas ficariam horrorizadas se ela trouxesse para ali um monte de lã para ser penteada. Isso, ao menos, seria produtivo. — Tenho pouco tempo para bordar. — Ela evitou falar que fazia o trabalho do pai desde que ele definhava em uma prisão inglesa. A rainha se acomodou na sua cama como uma galinha em seu ninho e virou-se para Katrine. — Você já está bem familiarizada com nosso querido amigo Renard? — Não o conheço muito bem. — Ela não sabia se isso era verdade ou mentira. — Ninguém o conhece muito bem, exceto o rei e Jack — afirmou lady Elizabeth. — Ele tem sido um bom companheiro para o meu Edward desde jovens. Nós devemos a ele muito por sua lealdade. — A rainha parecia estar lhe avisando. — Ah, sim, majestade, mas ele é tão triste e misterioso — disse lady Johanna, com os olhos brilhando. — Ele fala flamengo muito bem para um inglês — falou Katrine, imaginando se poderia ouvir uma explicação para isso. — É mesmo? — perguntou lady Johanna. — E a maneira como olha para você... — comentou lady Elizabeth. — Minha mãe conheceu o primeiro rei Edward quando era garota. Ela disse que ele tinha o mesmo jeito 109
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) de olhar. O silêncio tomou conta da sala. A rainha tossiu. — Que observação interessante. Então conte-nos uma coisa de cada vez, lady Katrine. O que acontece com a nossa lã depois que ela chega para você. Ninguém mais falou de Renard.
Mais tarde, quando a rainha se cansou de falar sobre os detalhes de fios e tramas, as ladies Johanna e Elizabeth assumiram os rumos da conversa. Katrine logo entendeu que as moças estavam ali para divertir a rainha e evitar que pensasse na ameaça que representava a guerra. Enquanto o rei Edward ainda reunia seus homens, rei Philip já estava em campo. Renard não precisava se preocupar com segredos militares. As ladies Elizabeth e Johanna tinham apenas um assunto: amor. Elas cantavam, falavam, riam e mexericavam sobre o assunto. No mundo cavalheiresco delas, a mulher não era uma Eva pecadora, mas uma pessoa erguida a um pedestal inatingível, reverenciada e respeitada. É claro que um cavaleiro jamais esperaria nada mais do que um beijo casto de sua lady. Talvez, se ela bancasse mais a lady e menos a tecelã, aprenderia a forma de amar do jeito da corte. Jack do cabelo encaracolado tinha piscado para ela. Será que um beijo dele a faria esquecer Renard? Vai sentir o mesmo pelo próximo homem, Renard tinha dito. Se isso fosse verdade, se essa saudade incontrolável pudesse ser transferida para outro homem, seria um alívio. Como seria maravilhoso se os sentimentos que seu tio chamava de vergonhosos fossem um simples jogo, que pudesse ser jogado com qualquer homem, com diversos parceiros. Estava na hora de descobrir isso.
A chance dela veio uma semana depois. O fim do inverno foi ameno, e um vento quente da primavera aquecia a terra. Após o jantar, ela saiu para passear pelo jardim, atrás da casa, e Sir Jack se juntou a ela sorridente, mas calado. Ela tentou abrir um sorriso malicioso, como tinha visto lady Johanna fazer. Com um sorriso travesso, ele se apoiou em um joelho, impedindo a passagem dela, e segurou a mão de Katrine. — Por favor, senhor — disse ela receosa. — Deixe-me passar. Ele levou a mão dela aos seus lábios. Katrine ficou insegura. Lady Johanna estava certa. Ela não tinha jeito para praticar o jogo do amor. A veemência de Renard combinava mais com ela. Mas a admiração de Jack podia ser dedicada a qualquer moça. O toque de Jack não lhe passava nenhuma excitação. 110
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Senhor, sei que não pode falar, mas me deixe ir. Sua expressão de decepção a fez sorrir. Ainda segurando a mão dela com sua mão esquerda, ele gesticulou com a direita, como se recebesse uma punhalada no coração. Katrine teve que rir. O charme infantil de Jack era um alívio comparado a Renard, com seu jeito intenso, mas não despertou nenhuma emoção nela. — Solte a minha mão, e vou lhe aplaudir, senhor. Você é mudo, mas se expressa melhor que aqueles que falam. Eu lhe darei uma pequena recompensa então. Vá importunar alguma jovem que esteja interessada. Ela se curvou, pensando em lhe beijar a testa, mas ele se levantou, envolveu-a nos seus braços e a beijou. Katrine ficou tensa nos seus braços, sentiu o vento frio no rosto, os seus lábios finos, e lembrou-se do som do alaúde de lady Elizabeth interpretando uma música que falava do amor perdido. Estava ciente de todas essas coisas fora do corpo dela. E nada dentro dele. O coração não disparou. Não sentiu que eles dois se pertenciam um ao outro. Renard estava enganado. Não sentirei a mesma coisa com outro homem. Com nenhum outro homem. E a constatação foi ainda pior. No momento seguinte, os braços de Jack sumiram, e ela caiu para trás, no muro do jardim. Renard segurava o pretendente dela pelas roupas. — Eu o avisei. Katrine se afastou do muro e limpou a terra da roupa. — Ele não vai responder enquanto estiver usando o tapa-olho. — Que estranho. O mesmo lenço de seda vermelho que condenou Renard, mas ela nunca o viu usar. — Devia usar o seu e deter seu tom acusador. — Isso é uma brincadeira infantil — resmungou Renard. — Estava só praticando — disse Jack. — Você está falando! — falou ela irritada. — O que estava praticando? — Seduzir moças. — Moças? Não era eu em especial? Jack olhou para Renard antes de responder. — Não, pois tenho amor à vida. Renard o mandou voltar para dentro. — Pratique com lady Johanna. Se o pegar perto de Katrine novamente... — Já sei, já sei. — Jack sorriu. — Tenha piedade dele, lady Katrine. Tenha piedade. Como se Renard se importasse que Jack a beijasse. Renard amarrou a cara para ela logo que Jack saiu. — Está tentando arrancar segredos de Jack? — Não seja tolo. Ele só queria ver se podia ganhar um beijo sem dizer uma só 111
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) palavra. — E você o beijou. — Isto não era uma pergunta, era uma acusação. — E por que não? Outras moças o fazem. E você me garantiu que eu sentiria o mesmo com outros homens. Além do mais, ele me fez rir. — Então talvez eu deva bancar o bobo da corte. Ela sentiu medo de ter alguma esperança com a reação dele. Seria ciúme? — Talvez você deva começar a cortejar alguém, com ou sem palavras — disse ela, mas logo se arrependeu, pois podia parecer um convite. Ele não precisava que ninguém o lembrasse de como era fácil para ela se entregar aos braços dele. Renard ficou ali, apoiando-se no muro do jardim. A terra era irregular sob seus pés e o muro, cheio de umidade. — Cortejar? — repetiu. — Se eu estivesse cortejando você sem palavras, eu não a faria rir. — Ele a segurou pelo queixo e virou seu rosto para ele. — Faria com que me desejasse ardentemente. Ele passou a mão sobre o seio esquerdo dela, coberto pela lã fina. Instintivamente, ela empurrou os quadris contra ele. — Se eu fosse cortejar sem palavras... — Sua voz começou a ficar rouca. Ele parecia tão indefeso quanto ela ao sentimento. Ele traçou a orelha dela com sua língua, delicadamente. E todo o calor que ela não sentiu com Jack surgiu dentro dela agora, como se fosse fumaça de carvão em brasa. Ele pressionou seu joelho entre as pernas dela e o suspendeu, até ela ficar montada nele. Katrine beijou seu nariz, sua orelha, com ânsia de provar cada pedaço dele. As mãos estavam no cabelo dela, nas costas e suspendendo-a, para ficar sobre sua coxa. Ela acariciou suas costas e tentou se segurar ao sentir que escorregava. Isso era o que sentia por ele, só por ele. De repente, ela ficou fria, ofegante, carente. E desejando-o ansiosamente, como ele disse que a queria. — Vê, milady — falou ele devagar. — Você é tão vulnerável à tentação quanto o resto das mulheres. Tola. Ela foi tola de achar que poderia jogar com esses sentimentos que os unia. As palavras de Renard a deixaram apavorada. Ele estava certo, mas não exatamente como afirmou. Ele a viu apenas como mais um fruto gostoso. Mas ela estava se perdendo para alguém que a odiava, que a deixaria e acharia graça do amor dela por ele. Renard não deve saber. Não devia deixar que ele notasse a fraqueza dela. — Você é muito narcisista. — Ela resolveu falar logo, antes que as lágrimas a sufocassem. — Tinha razão. Eu não sinto por você nada mais do que sentiria por outro homem qualquer. Seu rosto podia mentir, mas seu corpo não. Podia dizer que nada sentia, mas era mentira. Disso Katrine tinha certeza agora. Ele agarrou o queixo dela, sem deixar ela se virar. — Seus olhos são duas bolas de cristal, Katrine. E eles dizem que você me deseja. 112
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — A verdade é que você me deseja tanto quanto eu o quero, e nosso desejo vai além da carne. Esta é a verdade que você não quer enfrentar, Renard. E nem eu, pois meu desejo vai até a minha alma. Trêmula, ela se soltou e correu para dentro da casa, sem olhar para trás.
CAPÍTULO VINTE
Renard estava silencioso no dia seguinte quando foi levá-la à loja, retardando seu passo para acompanhar o andar balanceado dela. O desejo vai além da carne. Ela havia dito isso, mas ele negou. A raiva que ele sentiu quando a viu com Jack ainda não tinha passado. Ele a queria, verdade, mas era apenas a carne. E isso podia ser controlado. Ele só a acompanhou para ter certeza de que ela não ia passar nenhum segredo aos franceses. No entanto, quando ela abriu a porta da loja, o lugar estava cheio de lembranças. Pão e queijo em frente à lareira. Dançando com ela em seus braços. Sentindo-a estremecer sob seus dedos. Essa é a verdade que você não pode enfrentar. Ele não podia deixar que o corpo dela o distraísse. Ela só queria tapeá-lo, para passar informações aos franceses. Isso ele não podia permitir. Ele ia vigiá-la o tempo todo. No entanto, agora que o negócio estava normalizado, as oportunidades dela eram inúmeras. O que antes se resumia a uma mulher e um tear, agora tinha se tomado um império. Aprendizes, fiandeiras, tecelões, artesões, pisoeiros e tintureiros iam e vinham. Ela mal podia controlá-los. Qualquer um deles podia levar uma mensagem. Só por isso, ele ficava sempre perto dela. Não era por querer saber tudo sobre ela. Estava tão perto que podia ouvir uma mulher de rosto redondo, cabeça descoberta e segurando uma cesta cumprimentar alguém com um alegre bom-dia no balcão de frente para a rua. — Já enrolamos sua lã em vários novelos — disse ela, erguendo a cesta e colocando-a sobre o balcão. — Estou aqui para receber. — Quem é ela? — sussurrou ele no ouvido de Katrine, tentando não sentir o seu cheiro para não confundir sua mente. — Uma fiandeira. A mais velha das irmãs de Coster — respondeu ela. — Elas fazem um bom trabalho, mas são um pouco preguiçosas. — Katrine se levantou para atender à mulher. — Bom dia, Mergriet. Mas eu lhe vendi lã suficiente para fazer mais uns cinco novelos. Onde estão eles? 113
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Bem, uma das minhas irmãs teve dor de barriga e a outra irmã cortou o dedo. — Que pena — disse Katrine. — Por que não volta amanhã com todos os 25 novelos e eu lhe pago tudo junto? Aguarde um momento que eu vou lhe dar um remédio para a barriga da sua irmã. Renard foi atrás dela. — O que vai dar para ela? — perguntou. — Ópio e hortelã. Parece uma mensagem secreta para Philip de Valois? As três irmãs juntas não conhecem nem dez palavras em francês. Em seguida, veio o tintureiro, com sua pilha de tecidos. Só porque Katrine examinou cuidadosamente cada peça foi que ela encontrou dois parafusos no meio das dobras do tecido. Ela calculava quanto ia pagar ao sujeito enquanto Renard revirava o tecido para ver se não havia algum bilhete escondido ali. Depois, um rapaz jovem bateu na porta, sorriu para Merkin e chamou por Katrine. — Milady, preciso falar sobre uma peça de artesão. O velho Jan disse... — Quem é este? — perguntou Renard rispidamente. — Este jovem é Jan, um aprendiz de tecelão. Bom dia, Jan — disse ela com doçura. — Merkin vai lhe dar uma cerveja e depois nós discutimos isso. O trabalho dela era tão complexo quanto comandar um exército em campo de batalha, e ela o executava com energia e habilidade. Ela sabia ser, ao mesmo tempo, paciente, firme, teimosa e flexível, e enquanto trabalhava, algo sobre ela parecia brilhar. Assim como ele seria capaz de ignorá-la no meio de uma batalha, ela mal lhe deu atenção enquanto se concentrava nas lãs e nos tecidos. Ele não se importava que ela o ignorava, claro. Mas precisava saber de tudo o que ela fazia, para ter certeza de que não fazia contato com o inimigo.
No fim do dia, quando a loja voltou a ficar quieta de novo, ele foi atrás dela para olhar o livro de contabilidade. Ela jogou sua pena, sujando o livro de tinta e gritou com ele. — Olhe aqui! — Ela balançou o livro perto do seu nariz. — Esta é a conta do que comprei e vendi hoje. Nada mais. Não existem mensagens secretas. Agora pare de se meter e me deixe dirigir meu negócio. Ele amarrou a cara. — Não quando você representa uma ameaça à paz do rei. — Estou lisonjeada em saber que a Marca da Margarida seja fundamental à coroa do rei. — A mulher que já tinha tremido nas mãos dele voltava a ser uma guerreira, com olhos brilhando de raiva. — Se o que eu faço é tão importante assim, saia do meu caminho. — Tenho que me certificar de que o que você faz é trabalho e não traição. — Não tenho tempo para traição! Já havia trabalho bastante quando meu pai, Giles e eu trabalhávamos juntos. Agora tenho que fazer tudo sozinha, e você fica questionando cada movimento meu. Não tenho tempo para responder às suas perguntas vinte vezes por dia. Se você insiste em ficar aqui, ao menos fique longe de mim. 114
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Depois da explosão dela, ele se afastou e colidiu com o tear há muito abandonado. Distraído com tanta movimentação, ele mal olhou para o tear. Agora ele ficava coberto por um pano, e ele viu que ainda havia fios de lã pendurados nele, apanhando poeira. Renard pensou em perguntar por ele pouco antes do tio dela chegar, meses atrás. Ele jogou para trás o pano que encobria o tear. Alguém havia cortado a urdidura. Ao ver aquilo, ele sentiu como se uma faca entrasse na sua barriga. Passou o dedo sobre o tecido e notou a diferença entre a sua trama e á dela. — Você jamais destruiria um trabalho seu. Será que desprezou tanto assim o meu trabalho que quis destruí-lo? — Claro que não. Eu não fiz isso. — Ele viu a dor nos olhos dela. — Quem fez? — Não vai acreditar se lhe contar. — Como sabe? — Ele sempre sabia quando um oponente dizia a verdade, mas nunca sabia, ao certo, quando era ela. Seria porque ela dizia verdades que ele não queria escutar? Ou porque inventava mentiras que ele queria acreditar? — Porque você tem questionado cada verdade que eu digo — Falou ela calmamente. Deve ter sido a voz, os olhos dela ou o seu desejo. Ele não tinha certeza. Mas, dessa vez, algo o fez confiar. — Conte-me. Eu vou acreditar em você. Ela o fitou por um bom tempo antes de falar. — Meu tio. O homem que Merkin tinha chamado de louco. — Quando? Por quê? — Naquela noite. Para me forçar a fazer o que ele queria. — A voz dela estava cheia de repugnância, medo e nojo. Ela despreza o tio. Como não notei isso? O que mais eu não percebi? — E o que ele queria que você fizesse? — Ele disse para eu lhe oferecer meu corpo para que você ficasse aqui até ele chegar. Renard sentiu muita raiva. A paixão que o segurou foi ainda mais falsa do que ele pensava. Não, não foi nem ideia dela, foi do tio. — E assim você fez. — Não por causa dele, por isso, me envergonho. — Katrine se virou de costas para ele. — Eu o fiz por desejá-lo. Eu o queria tanto que arriscaria minha alma. Ele engoliu em seco, sem palavras. Estava surpreso de ver como ela aceitava o desejo que ele sempre desprezou. Como seria assumi-lo em vez de detestá-lo? — Acredito em você — disse ele, embora não quisesse, pois isso significava ter que encarar o que ele mais temia. 115
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) O desejo vai além da carne. Vale a pena arriscar tudo. Katrine se virou de frente novamente, segurando as lágrimas. — Ele disse que era para eu avisar quando você chegasse. Eu não fiz isso. — Mas... — desistiu ele. Ele ouviu Katrine mandar Merkin se deitar. Então ele se enganou com ela? — Então como foi que seu tio soube? — Ele não confiava em mim, por isso, tinha dois homens vigiando a casa. Quando você chegou, um deles foi avisar meu tio. O outro, você matou. — Ela sorriu melancólica. — E aquele foi o sujeito que me agrediu na rua, portanto, você se vingou dele por mim, afinal. — Seu tio mandou baterem em você? — Ele balançou a cabeça, tentando assimilar tudo aquilo. — E eu achei que você estava na liga com ele. — Achou que eu queria vê-lo morto? Como deve me odiar. — Não a odeio — disse ele baixinho. — Nunca odiei você. Mas como podia confiar em você? Eu tinha acabado de descobrir que mentiu sobre o seu pai. — Porque não confiava em você, assim como você não confiava em mim. Ele ficou sem resposta. Katrine tinha razão de não confiar. Ela se juntou a ele perto do tear e acariciou o tecido destruído. — Mas não foi uma grande mentira eu dizer que era filha de Giles. Ele foi um segundo pai para mim. Eu já lhe contei? Esta foi a última peça que ele fez. — Pensei que fosse sua. — Só uma parte dela. Esta é uma peça da casa. Foi por isso que eu tive coragem de mexer nela depois que ele morreu. — Peça da casa? — Não pode ser vendida, só pode ser usada aqui, porque não foi tecida conforme os regulamentos da corporação. Giles estava sempre fazendo experiências. — Ela alisou o tecido. — Vê a diferença na trama? A minha começa aqui. Ele acompanhou os dedos dela e encontrou seu ponto. — Seu ponto é mais uniforme, porém o meu é mais apertado. — Eu não tenho a força que Giles tinha — disse ela suspirando. — Foi Giles quem a ensinou a tecer? Ele nunca se preocupou em entendê-la. Ela balançou a cabeça. — Ele me colocava no colo e me ensinava a enfiar o fio e quanto devia apertá-lo. Ele me ensinou, mesmo sendo uma menina, que jamais poderia me juntar à corporação. — E quanto aos filhos dele? — Ele não tinha filhos. Por isso, deixou sua parte para mim. Renard sentiu pena do homem. Um homem sem filho. E ele era um filho sem pai. — Sua peça merece um enterro decente. — Ele sacou o punhal e olhou para ela esperando seu aval. — Vamos cortar esta parte e deixar que ela descanse em paz. 116
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela consentiu. Ele cortou o tecido. Sem dizer nada, eles recolheram o tecido, segurando nas duas extremidades, e o dobraram. Foi então que perceberam como estavam próximos um do outro, a ponto de Renard poder ouvir o coração dela bater. Os dedos dela encostaram nos seus ao dobrar o tecido. Entregou a ela o tecido, e Katrine o colocou sobre o banco do tear. — Katrine, deixe-me tecer uma peça nova — disse ele, mesmo sem saber por que queria fazer isso. Alguma parte das suas mãos, seus ombros, suas pernas o puxavam para o tear. — Acho que você tem mais coisas a me ensinar. Ela hesitou, e Renard torceu para ela não perguntar por que ele queria aprender. Ele não saberia o que dizer. — Está bem — concordou ela. — Mas não vou gastar minha melhor lã com você. — Eu não arrisquei meu pescoço e a ira do rei para vê-la ser desperdiçada com um novato. Tem alguma sobra de lã francesa? — Tenho, sim. — Ela sorriu. — Mutile isso ao seu bel-prazer. Ele riu do jeito dela falar; em seguida, Renard a levantou e a girou no ar, ainda rindo. Qual foi a última vez que ele riu? Quando pararam a touca dela estava torta, e o cabelo ruivo livre e solto. E o seu coração experimentou um momento de alegria ao lado dela. Como ele pôde acreditar que ela fosse uma espiã?
Certa noite, alguns dias depois, com a permissão da rainha Philippa, Katrine se retirou dos aposentos reais antes que lady Elizabeth desse início à sua tola apresentação noturna. Katrine criou o hábito de juntar-se a elas todas as noites, para desfrutar da companhia feminina. Ocupado com o conselho de guerra, Renard não tinha saído do quarto essa noite. Eles estavam convivendo em relativa paz, e a proximidade que compartilharam no tear encheu Katrine de esperanças. Distraída quando deu um bocejo, ela colidiu com o bispo de Clare, em um corredor comprido. Ele a segurou pelo braço para firmá-la, mas demorou tempo demais. — Boa noite, lady Katrine. Reparei que conversava sobre pecado mortal com as damas de companhia da rainha de novo. A vela que carregava emitia um brilho fraco, mas a pouca luz não refletia o olhar de um homem de Deus. Ela deu um passo para trás. — Acho que estavam apenas me divertindo com lady Elizabeth, tocando seu alaúde. — Apesar dos insultos do tio e a desaprovação da Igreja, ela não pensava mais que suas brincadeiras fossem pecado. — Por mais que ela pratique, a melodia parece ser sempre a mesma. Ela fez menção de sair, mas ele bloqueou a passagem dela. — Está mais do que na hora de você confessar seus pecados. Assustada, ela se perguntou o que ele podia saber. Suas palavras faziam-na voltar a se sentir culpada, deixando-a insegura. 117
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Katrine não tinha nem feito a confissão anual, com medo de contar a noite que passou com Renard. Segundo o padre, Deus exigia arrependimento sincero. E ela não sentia nenhum. — Eu me confesso na Igreja, excelência. Ele se aproximou de Katrine e, com a mão gelada, a segurou pelo braço. — Talvez você esteja pensando em pecado neste momento. — A respiração dele estava perto demais. — Venha comigo. Confesse seus pecados agora. Ela tentou ficar calma. Seu tio tinha lhe dito que um padre gostaria de ouvir sua confissão. Era isso que ele queria dizer? Sem esperar pela resposta, ele a empurrou para um canto escuro. — Você se veste como mulher casada. Você também deve fazer o que as mulheres casadas fazem — sussurrava ele na orelha dela. — Já vi você sorrindo para Renard. Você o deixa beijá-la. Você o deixa tocá-la? Diga-me. Mostre-me. Mostre-me o que faz com ele. O bispo passou a mão no seio dela e pressionou sua boca na dela. Katrine tentou se livrar do bispo, mas ele não saía do lugar. Desesperada, ela segurou a vela junto ao rosto do bispo. Ele deu um grito e a soltou. Agarrada à vela, como se fosse um talismã, ela voltou para o corredor vazio. Como ela pôde provocar um homem de Deus com tais pensamentos? Será que ela exalava luxúria só de caminhar por um corredor? Não. Enquanto ele estava mais afastado, longe da vela e esfregava o rosto, ela pôde entender que o bispo via a tentação de Eva em todas as mulheres e achava que os pecados delas justificavam os próprios pecados. — Eu vou para o meu quarto agora, sua excelência — disse ela, com um nó na garganta. — Vou fingir que não o vi esta noite. — Ninguém devia saber. Nem Renard. — Se você se aproximar de mim assim novamente, eu vou confessar isto. Vou confessar isto e citar seu nome na Igreja de Saint James, no dia seguinte. Os olhos dele ardiam de raiva. — Vai se arrepender de ter me ameaçado. — Só lamento ser obrigada a fazê-lo. — Ela passou rapidamente por ele, rezando para que não a tocasse mais. Entretanto, as suas insinuações eram uma lembrança austera. As moças cantavam sobre o amor, mas era amor do espírito, não da carne. O mundo dela não era mais privado, como o foi quando Renard dormia sob o teto dela. Se passasse muito perto de Renard, se alguém a visse sorrir e percebesse, não teriam dúvida de que ela havia pecado. Como uma nobre que trabalhava, ela vivia no limite da respeitabilidade. Qualquer pessoa poderia acusá-la de um comportamento indecoroso. Ela precisava tomar muito cuidado.
Alguns dias depois, Renard deixou um pouco de lado suas responsabilidades e retomou suas aulas no quarto banhado pelo sol da manhã. Katrine abriu todas as janelas, deixando entrar um vento, com cheiro de mato, que balançava, os fios ainda pendurados no tear. 118
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) No lugar da intimidade das noites que passaram juntos, essas lições seriam praticadas à luz do dia e testemunhada por fiandeiras, tecelões e tintureiros. Mais uma razão para manter sua atenção no tear. Em breve, ele seria um mestre. — Em primeiro lugar, retire todos os fios velhos — começou Katrine. Sua voz firme e doce, como seu corpo, o deixava perturbado. Ela pegou o fio do novelo no tear e o segurou. Ele tentou acompanhar suas mãos ágeis e acabou raspando os dedos numa lasca da madeira e praguejou baixinho. — Como você pôde acabar de ver, a próxima tarefa é lixar e passar cera na madeira novamente, sem deixar de inspecionar tudo. O pequeno tear, de repente, parecia uma coleção interminável de pedaços e peças. — Esta tarefa é para me humilhar? Katrine olhou para ele como se fosse um louco. — Acha humilhante verificar se seu cavalo de batalha está sendo bem-cuidado? — Claro que não. — Por acaso, você não passa suas mãos pelas pernas dele e inspeciona os cascos? — Ela nem esperou por uma resposta. — Então você vai inspecionar sua espa da? E se for preciso, não vai tratar de repará-los? Ele fez um sinal com a mão, se rendendo. Ele havia aprendido essas coisas quando era escudeiro. Para aprender a tecelagem, ele teria que começar do nível mais baixo. — “Um chevalier que monta o tear deve conhecer tão bem suas ferramentas quanto o chevalier conhece as armas do campo de batalha.” — Ela sorriu. — Foi Giles quem disse isso. Sem graça, ele pegou nos fios soltos, determinado a conhecer o tear tanto quanto ela. Assim como ele queria conhecê-la intimamente também.
Mas o tear era muito complicado, e a limpeza era entediante. Por volta do meio-dia, ele mal tinha limpado os quatro pés. O quadro, os pedais e as laterais ainda aguardavam. Ele se levantou e jogou o pano no chão, chateado. O jovem Jan, que conversava com Merkin, o fitou. — Não é assim tão fácil, não é mesmo? Renard resmungou alguma resposta e voltou para o tear. Ele não ia permitir que um garoto o superasse. Katrine e mais um batalhão de homens na cidade tinham dominado o trabalho. Ele não ia desistir. Aos poucos, depois de se concentrar, ele foi esfregando, inspecionando e memorizando cada centímetro do tear. Isso o intrigou de um jeito como nunca ficou trabalhando no escritório do bispo. À medida que progredia no tear, ele checava para ver se Katrine estava olhando, querendo que ela sorrisse. Mas ela só acenava, não dizia nada. Somente no fim do dia, quando os dois estavam sozinhos, foi que ela veio inspecionar o trabalho dele. Ela alisou o tear, e ele ficou na expectativa, sem saber se ela 119
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) encontraria uma borda áspera ou alguma lasca na madeira. Os dedos escaparam ilesos da inspeção. Ele ficou todo orgulhoso. — E agora como faço para colocar o fio no tear? Ela o entregou uma cesta de lã lavada e um pente de madeira. — A próxima coisa a fazer é pentear a lã. Ele olhou para o monte de lã. — Mas esse não é o trabalho das irmãs fiandeiras? — Sim, mas “o tecelão que não conhece seu ofício, será enganado na hora de negociá-lo”. Ele pegou a cesta de lã e suspirou. — Giles disse isso também? Katrine sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Ele viu uma pá quadrada com dentes de metal, devia ser um instrumento de tortura. — E quanto a isto? — Ele balançou a cabeça. — Não seria mais fácil cardar em vez de pentear? — Claro que sim, mas isso quebra as fibras. Você pode cardar a trama, mas não os fios da urdidura. Depois disso, ele enfiou as mãos na lã. A sensação nos dedos era suave, macia e familiar. — Que lã é esta? Ela foi até a outra pilha de tecidos, sem responder. Renard sentiu um formigamento subir pelos braços. — Deixe-me ver se consigo adivinhar, pois como poderei ser um tecelão se não sei distinguir meu material? Ela fez uma pausa antes de levantar uma pilha de tecidos tingidos de vermelho e conteve o riso. — Vamos ver — começou ele. — É muito macio, Mas muito forte. Ela soltou um risinho. — Algo macio, forte é emaranhado — disse ele. — No entanto, vai desembaraçar lindamente ao meu toque. Ela ficou ruborizada. — É lã cisterciense — falou ele num sussurro. — Você aprende muito rápido. Ele pigarreou, feliz por estarem sozinhos naquele momento. — Então mostre-me como transformar esta pilha emaranhada em fios obedientes. Ela se virou para ele e ficou tão perto que a saia esbarrou no tornozelo dele. — Segure a lançadeira assim. — Suas mãos pequenas tocaram nas dele. O seio quase roçou no braço dele. 120
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard deslizou a lançadeira pela nuvem suave, com uma das mãos trêmula. Ele podia fazer o tear galopar, mas era desajeitado com a lançadeira. Ou era a proximidade de Katrine que o deixava inseguro? — Suavemente — pediu ela. — Se você partir os fios, vou lhe dar lã francesa para trabalhar. Renard resmungou e continuou em silêncio, tentando encontrar um ritmo. Olhando para a lançadeira que tinha em mãos, ele se perguntou como seria passá-la pelo cabelo de Katrine. E foi tornando a mão cada vez mais suave. — Assim está bem melhor — disse ela. — Estou me imaginando penteando seu cabelo em vez da lã. Ela ficou corada com o comentário e logo olhou em volta para ver se havia alguém ali. — Fique quieto, do contrário, não lhe darei mais aulas. Ele sorriu. As palavras eram duras, mas a voz parecia macia, como a lã cisterciense.
CAPÍTULO VINTE E UM
Nas semanas seguintes, Renard parecia confiar cada vez mais em Katrine, porém a via cada vez menos. Ele já não a acompanhava até o trabalho todos os dias, mas sempre que podia, vinha para ter aulas de tear. Até a escada que dava acesso à torre, na qual ela ficava, estava liberada. No entanto, algumas questões ainda a incomodavam. Tentando apaziguar seu coração, Katrine parou na Igreja um dia, no caminho para o trabalho. Ela não queria confessar sua libertinagem a um padre, então ajoelhou-se na pedra fria para rezar. Eu o quero, ela havia dito, incapaz de mentir para ele. E como passava todos os dias do lado de Renard, cada vez o queria mais. Agora não só seu corpo doía por ele em sonhos. Ela o desejava por perto durante o dia. Queria sentir o toque dele que expressava o amor por ela tão claramente quanto as palavras. Ninguém mais se importava com ela, uma comerciante ruiva. Mas, apesar de tudo, ela ainda acreditava que ele se importava. Queria acreditar nos sentimentos dele, mas o encontro com o bispo era uma dolorosa lembrança. Luxúria era um pecado, uma tentação do diabo que não era confiável. Ela procurou pelas imagens na igreja, tentando saber qual delas ouviria seu coração. Os santos ofereciam pouco conforto. Eram esculpidos na imagem dos humanos, mas não tinham sentimentos humanos. Estavam ali para julgar, não para consolar. Reparou que todas eram mulheres. E todas, até a mãe de Deus, eram virgens. Todas elas, como a Santa Catarina, não só nunca pecaram como nunca se sentiram 121
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) tentadas. Exceto por Eva. Ela olhou pela janela de vidro colorido. A luz brilhava pelo céu azul e pelo verde sobrenatural do Jardim do Éden. Do lado esquerdo da árvore, estava Adão. Do lado direito, Eva. Eva, que não era santa, pagou caro pela perda do paraíso. Ela não tinha nenhuma influência junto a Deus, mas ao menos podia entender a fraqueza de uma mulher. Na mudança de luz, uma cobra parecia subir pela Arvore do Conhecimento e oferecer uma maçã a Eva. Naquele momento, assustada, mas curiosa, Eva ainda podia dizer não. Katrine sabia dizer quando foi aquele momento. No alto da escada, de cabelo solto, lábios secos, agarrada à sua lã branca, soube que se estendesse a mão para Renard, ela não poderia mais recuar. Nesse momento, uma nuvem bloqueou o sol, e ondas de luz entraram através da janela colorida. O azul cobalto na pedra do chão brilhava num tom mais escu ro, como os olhos de Renard. Seria ela uma pecadora? Ou algo pior? No silêncio que se seguiu, surgiu uma ideia surpreendente na sua mente. O que teria acontecido se Eva tivesse dito não? Adão e Eva teriam ficado sozinhos para sempre, um de cada lado da árvore? Por ignorância, ficariam separados para a eternidade. Foi o conhecimento que os reuniu. O conhecimento respondeu que “sim” ao mistério. O conhecimento significava a união das duas partes do universo. Como podia esse conhecimento ser vergonhoso? Ainda de joelhos, com a cabeça enterrada entre as mãos, ela olhou para os dois lados, para ter certeza que ninguém estava tão perto para ouvir seu pensamento herege. Mas ao se levantar e fazer o sinal da cruz, a ideia foi se transformando em convicção. A união carnal abriu uma janela espiritual. Renard tocou seu corpo, mas atingiu sua alma. Era um desejo que ia além da carne. Nisso eles já estavam juntos. Ela saiu da igreja cambaleando para a luz suave, agradecida a Eva pela sua sabedoria. Homem e mulher pertenciam um ao outro. Assim com ela e Renard. Se tivesse paciência, com o tempo, ele viria para ela. Tempo que parecia uma eternidade.
Já estava escurecendo, e Renard não via mais seus pontos nas sombras, então ele passou a observar Katrine, que estava debruçada sobre os livros de contabilidade. Durante as últimas semanas, a paciência que Renard aprendeu a ter para negociar foi usada no seu trabalho no tear. Assim como ele tinha aprendido a escutar o silêncio e a hesitação do adversário, ele aprendeu a medir a folga dos fios, a saber quando puxar e quando soltar a mão. Às vezes, ele deixava de lado seus outros deveres, mas não questionava se era para estar ao lado dela ou do tear. Até agora, não tinha visto nada que pudesse confirmar que ela estava espionando. Aos poucos, ele foi parando de vigiá-la. 122
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Hoje era a primeira vez, depois de semanas, que ficavam sozinhos. Seria mais seguro se manter longe da tentação. Seria mais seguro falar somente sobre lã e trabalho. Não queria enfrentar as questões ainda pendentes entre os dois. Mas quando os olhos dele encontraram os dela, Renard logo se esqueceu que havia uma mitra episcopal esperando por ele na Inglaterra. Era mais fácil viver esse momento e esperar pelo sorriso de Katrine. Agora ela não parecia sorrir. Estava de pé desde muito cedo, e o cansaço já pesava sobre ela. Ele se levantou e se esticou, depois ficou em pé, atrás de Katrine, com as mãos sobre os ombros dela. Katrine se endireitou rapidamente e já ia censurá-lo. Ele a silenciou e, segurando-a contra si, começou a massageá-la. Renard podia sentir o calor do corpo dela através da túnica, e o cheiro de alecrim atiçou suas lembranças. — Você precisa descansar. — Só mais um pouquinho... — Nada disso. Nenhum de nós comeu desde o meio-dia. Existem regulamentos na corporação que proíbem tais condições de trabalho, segundo eu soube. — É verdade, mas você não é um associado. — Ela se encostou nele. — Feche seu livro. Nós vamos voltar para a casa de van Artevelde e torcer para que alguém tenha deixado sobrar alguma comida do jantar. Katrine cedeu, não podia mais lutar contra o cansaço. Renard tinha uma incrível noção de retidão e de inevitabilidade com ela sob suas mãos. Na última vez em que ele a tocou assim, retirou sua touca. Talvez isso seja porque você é o diabo. Então talvez isso signifique que você me pertence. Alguém bateu na porta de madeira, interrompendo seus pensamentos. — Lady Katrine. Lady Katrine. A rainha... Imediatamente, Renard tirou as mãos dos ombros dela, como se queimassem. Não havia lugar para uma tecelã ruiva ao lado de um bispo. Seria impossível ficar com ela sem destruir tudo o que ele havia construído até agora. Ele abriu a porta tão de repente que o mensageiro tropeçou para dentro da sala, sem interromper o que dizia. — Ela está chamando por você — disse ele. — O bebê está chegando... Katrine agarrou a capa, apagou a vela e perguntou ao mensageiro: — Já chamaram a parteira? Fale-me sobre o estado da rainha. As dores estão muito fortes? Qual a frequência? O rapaz a fitou confuso. — Não sei, milady, só me disseram para vir chamá-la rapidamente. Os dois seguiram o mensageiro pelas ruas escuras. Cuide da minha mulher, disse Edward. Agora ele entendia bem melhor o que isso significava. 123
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — O que você entende sobre partos, Katrine? Katrine agarrou sua mão. — Não tanto quanto uma parteira. Van Artevelde os cumprimentou na porta. A casa estava cheia de velas espalhadas, para indicar o caminho para a parteira. — A parteira já chegou? — perguntou Katrine. Ele balançou a cabeça, informando que não. Katrine tirou a capa, e um dos criados a pegou para guardar. — Fique de prontidão — disse ela ao líder mais poderoso de Ghent e subiu as escadas correndo. Renard foi atrás dela, estranhando sua atitude de assumir o comando. O breve momento de intimidade que tinham compartilhado desapareceu. Ao chegar na porta do quarto da rainha, ela parou. — Se você ficar — disse ela baixinho, sem se virar para ele. — Eu posso, isto é, a rainha pode precisar de você. Em seguida, ela entrou para o quarto sem que ele pudesse dizer que sim. E não foi a promessa a Edward que o fez ficar.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
Renard permaneceu fora do quarto, andando de um lado para outro, ouvindo muito pouco e vendo menos ainda. Ele ouviu a voz da rainha, amável, mas cheia de sofrimento. — Ah, você veio, minha querida. Desculpe incomodá-la assim tão tarde. Um gemido de mulher abafado ecoou pelas paredes de pedra cobertas de tapeçarias. Naquele momento, Renard pensou na sua mãe e desejou que ela não tivesse ficado sozinha na hora de parir. Ele estranhou esse pensamento e encostou-se na parede, tentando entender aquilo. Ela deve ter ficado sozinha para dar à luz, em vez de cercada por suas damas de companhia. Pelo fato de a mãe gerar uma criança, tantos meses depois da morte do duque, todos saberiam que não era filho dele, mas fruto da luxúria. E se tivesse sido diferente? E se ele tivesse sido gerado com amor? Agora ele podia imaginar essa possibilidade. Jamais tinha cogitado isso antes. 124
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Renard? — Katrine o chamava da porta, com olhos cansados. Ele a puxou para seus braços, querendo protegê-la contra qualquer sofrimento. — E a parteira? — disse ela junto ao seu peito. — Ela já chegou? — Eu não a vi. — Então chame um padre. — A rainha está morrendo? — Ela precisa de conforto espiritual. Gostaria que o rei pudesse estar aqui. Sozinha. Sua mãe deve ter ficado muito sozinha. — Lady Katrine, a rainha a chama. — Lady Johanna estava na porta e se espantou de ver Katrine nos braços de Renard. E emendou, zombando: — Se você tiver tempo. Katrine se soltou dos braços de Renard, como se tivesse sido apanhada em flagrante. — Claro. — Sentia-se tão cansada que parecia não saber onde estava. Ele a deixou ir, lutando contra o impulso de beijá-la. Encontrar o bispo foi mais difícil do ele podia imaginar. Apesar da agitação em torno da rainha, a maior parte das pessoas da casa ainda dormia. Eles lotavam camas e todos os cantos do lugar. Nem mesmo o bispo, em toda sua importância, tinha um quarto privativo. Mas ao procurar por ele, entre as camas espalhadas, nenhuma tinha o corpo do bispo. Ao entrar na cozinha, Renard se lembrou que nem ele nem Katrine tinham comido. Então ele pegou um pedaço de pão e parou para procurar por queijo quando ouviu uns gemidos. Na alcova, ao lado da lareira, viu o bispo nu como Adão, e seu traseiro magro de fora, possuindo uma mulher que se agitava desesperadamente. A mulher que se debatia, apavorada, era Merkin. Tomado de uma raiva visceral, Renard puxou o homem dali, disposto a enfiar um punhal no coração daquele hipócrita. Ofegante, o bispo soltou Merkin, como se ela fosse uma casca de laranja. Ela fechou os olhos e ficou toda encolhida de vergonha, bem dife rente daquela menina corajosa que Renard conhecia. O bispo amarrou seu robe calmamente. — Gostaria de experimentá-la, Renard? Ou você já experimentou as delícias dela assim como as da tecelã? Todo seu treinamento de autocontrole desapareceu. Renard deu um soco no estômago do bispo. O homem se dobrou, gemendo enquanto Merkin saía correndo e desaparecia no corredor. Renard respirou fundo, sem se arrepender de ter liberado suas emoções. Estava se sentindo de alma lavada. Clare cambaleou até se apoiar na parede com as mãos sobre o estômago. — Seu bastardo — xingou ele. — Assim como posso fazer de você um bispo, também posso destruí-lo. Renard se endireitou. Ele não tinha pensado nessa possibilidade quando acertou o bispo. E agora só o estado da rainha o impediu de agredir mais uma vez aquele homem. — Chegou a hora da rainha Philippa — comunicou ele. — Ela manifestou o desejo 125
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) de receber apoio espiritual. Que Deus nos ajude, mas você, oficialmente, está habilitado a fazê-lo. — Ele pegou o pedaço de pão que havia caído no chão. — Vou avisá-la que você está indo. — Partos... — resmungou o bispo, balançando a cabeça. — É Deus castigando as mulheres pelos pecados de Eva. Renard recuou, como se o homem fosse uma cobra. — Mais uma coisa, sua excelência — disse ele, visivelmente enojado. — Se tentar atrapalhar minha nomeação, serei forçado a explicar este incidente à sua Santidade. Logo depois de comunicá-la ao rei. No caminho de volta aos aposentos da rainha, ele tentou controlar sua raiva. Porém cada vez ficava mais difícil de controlar suas emoções. Se os líderes eram os primeiros a desrespeitar os mandamentos, não admira que tão poucos mortais os obedecessem. Mais uma vez, ele jurou para si mesmo que nunca faria isso. Ele já estava cansado de mentiras. Ele fez uma pausa para recuperar o controle antes de entrar nos aposentos da rainha. A movimentação em volta da rainha tinha acalmado, e Katrine murmurava palavras de conforto. Então começaram a chegar os presentes, em nome da sua beleza, da sua sabedoria e da maneira justa de reinar. Mas ao examinar seus tesouros, a rainha viu que Renard não tinha lhe dado nada. Então ela lhe perguntou o motivo. As palavras eram de Renard. E a voz era de Katrine. Renard nunca teve certeza de que ela o tinha ouvido, sempre tão alheia, imóvel na cama, enquanto ele tentava convencê-la a voltar para este mundo. E agora ela recriou aquele momento de conforto. Mas a rainha não tinha visto nenhum presente vindo de Renard. Então ela o questionou: — Você não vai me homenagear? — perguntou. — Ora, minha rainha, eu lhe enviei um presente que não tem preço. Algo que pode colocar as maravilhas do mundo nas suas mãos e lhe dar infinitos poderes — respondeu ele. O bispo, que vinha andando com dificuldade, passou por ele sem dizer nada e entrou no quarto da rainha. — Majestade, eu estava ajoelhado com as minhas orações. Vim assim que soube. Katrine veio para o corredor, visivelmente cansada, sem a touca. Uma trança ruiva passeava sobre o seio dela. Renard resolveu não dizer nada sobre Merkin, não queria chatear Katrine ainda mais. Em vez disso, ele acenou com o pão para ela. — Eu não consegui achar queijo. — Pão está ótimo. Estou com tanta fome que até a rainha ouviu minha barriga roncar. Ele partiu um pedaço do pão e lhe deu. Ela esticou o braço para pegá-lo, depois 126
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) hesitou ao tocar na mão dele, tímida, como da primeira vez em que eles compartilharam o pão. — Você se lembrou da história — disse ele. Ela corou, e ele soube que ela se lembrava de muito mais, lembrava de ele ter visto todo seu corpo e de tudo o que houve depois disso. — Eu nunca soube do fim da história. Onde eles encontraram o globo de cristal que lhe mostraria toda a verdade? A raposa mentiu. E tudo que eu lhe disse foi mentira.. E era uma mentira deixar que ela tivesse esperança, que os dois tivessem esperança. — Katrine... Mas a voz da rainha o impediu de continuar. — Lady Katrine — chamou ela, com uma voz fraca de quem sofre de dor. Katrine se levantou e correu para dentro do quarto. A agitação aumentou: Lady Elizabeth saiu do quarto e logo voltou cheia de toalhas. Alguém gemeu. Ele ouviu palavras em flamengo, que deviam ser da parteira. O bispo zumbia em latim. Mas a voz que ele ouvia mais clara era de Katrine, Uma voz que acalmava e confortava. Devia estar segurando a mão da rainha, acariciando sua testa. Renard sentiu um grande orgulho dela, uma mulher que nunca teve filhos. De alguma forma, ela havia encontrado as palavras certas e o toque certo para o conforto da rainha. No entanto, ele não estava nada confortável. Os pecados do bispo, os olhos assustados de Merkin e as dúvidas sobre o próprio nascimento geravam sentimentos tão confusos quanto um barco desgovernado no meio de uma tempestade. De repente, um grito forte cortou aquela noite fresca de março. Alguns minutos depois, Katrine apareceu com as tranças desfeitas, caindo pelas costas. Ela parecia cansada, mas sorria e carregava um pequeno volume nos braços. — Achei que você gostaria de conhecer o novo príncipe — sussurrou ela. Seu peito se encheu de emoção. — O rei ficará feliz. — Ele não conseguia desviar os olhos do semblante triunfante dela. Sem dizer nada, os dois se aproximaram, e ele levantou os braços. Katrine passou o bebê para ele segurar. Suas emoções tumultuadas agora se aquietaram. Ele queria isso, Renard a queria e queria um filho deles. De um certo modo, ele jamais quis a posição de bispo. Em muitas maneiras, jamais se permitiu querer nada. Ela olhou para o bebê nos braços de Renard e acariciou suas bochechas vermelhas. — Estou tão cansada que talvez não consiga subir a escada do meu quarto. Se Merkin não estiver dormindo, vou pedi-la que ajude a me despir. Ao citar o nome de Merkin, ele se lembrou do ocorrido. Katrine tinha que saber agora. — Katrine, se você puder deixar a rainha, Merkin precisa de você. 127
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela pegou de volta o bebê, abraçou-o e instintivamente passou a sacudi-lo. — Como assim, ela não está dormindo? — Quando descobri o bispo de Clare, ele estava... com Merkin. — Com ela? Quer dizer...? Ele fez um aceno com a cabeça. Com um choro, ela se virou e entrou no quarto para deixar o bebê, em seguida, ela correu em direção à escada. Ele a deixou ir. Um homem tinha pouco a oferecer num momento como esse.
Katrine, aflita, procurou por Merkin na sua cama na cozinha, no jardim e nos quartos do sótão. Havia poucos lugares escondidos na casa de van Artevelde, e Katrine foi a todos eles. Finalmente, com as pernas trêmulas, ela subiu os degraus da escada que levava à torre. Só em grande desespero Merkin subiria essa escada, mas ela já havia procurado em toda parte. Os sinos da igreja de St. John soaram, e ela fitou a janela, surpresa porque não tinha fechado os olhos nas últimas 24 horas. O amanhecer ainda estava com as cores azuis invernais, mas o sol nascia alaranjado. Ela sentiu o cheiro forte da primavera, o movimento das águas e os barcos abastecidos. A cidade estava livre dos meses recentes de fome e sem lã, para receber a nova estação de braços abertos. Uma nova vida. Katrine sentia dor nos ossos. Queria muito descansar. Mas ela se deu conta de que queria descansar nos braços de Renard. Mesmo sendo o parto um assunto de mulheres, ele ficou lá, a noite toda esperando. Ela queria isso, saber que ele estaria ali amanhã, depois de amanhã e para sempre. Com a mão sobre o ventre, Katrine se acariciou, imaginando que poderia pôr uma criança nos braços de Renard. O filho deles. Katrine saiu da janela, sacudiu a cabeça para se livrar de tais pensamentos e sentiu suas tranças roçarem os seios livremente. Quando foi que ela perdeu a touca? Precisava encontrar Merkin. E se o bispo a tivesse engravidado? — Milady? Os cachos de Merkin apareceram na beira da cama. Os olhos cheios de dor. Katrine correu para abraçar a menina e disse palavras de consolo enquanto ela cho rava copiosamente. Como poderia o mesmo ato trazer tanta alegria à rainha e provocar tanta agonia? Não era a mesma coisa, ela ouviu Eva responder. Um deles era um ato de amor. Katrine se sentiu mais velha e sábia do que queria ser ao ter Merkin soluçando nos seus braços. — Preciso lhe contar... — Merkin sufocou em lágrimas. — O bispo, Renard... 128
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Shhhh — respondeu Katrine. — Eu sei. Eu já sei. — Você vai me demitir. — Parecia mais um choro. Katrine se afastou para olhar as lágrimas da menina. — Não vou fazer isso. Eu prometo. — O que devo fazer? — Merkin soluçou e secou as lágrimas na manga do vestido. — Não vou conseguir encarar as pessoas. Todos vão saber. — Ninguém mais vai saber — garantiu-lhe Katrine. — Não vamos contar isso a ninguém. — Contar não iria mudar nada. Se acusassem o bispo, ele diria que Merkin tinha culpa de tudo. Com olhos arregalados, Merkin esticou os braços para a frente, para procurar por manchas rochas. — Não vai aparecer? O corpo de Katrine queimava com a lembrança de Renard lhe tocando. — É difícil de acreditar, mas existem coisas que mudam sua vida completamente sem deixar sinais visíveis. — Mas eu terei que me confessar, não é mesmo? — Não — respondeu ela de pronto, pensando nos próprios pecados. — Foi o bispo que pecou, não você. — Mas Merkin precisava de um futuro. E de esperança. — Amanhã, você vai começar a trabalhar com a roca. Terá uma profissão, como as irmãs Coster, para poder começar a vida com algum aprendiz jovem e inteligente. — Ela e Jan vinham se vendo ultimamente. Talvez fosse o momento. Merkin sorriu e corou, depois franziu a testa. — Será que o bispo não vai me condenar? — O bispo disse que estava rezando. — Katrine envolveu Merkin nos braços novamente. — E quem vai contestar a palavra do bispo? Nem um rei faria isso! Katrine embalou Merkin nos braços, e as duas acabaram dormindo, cansadas demais para deixar que os barulhos da rotina da casa interferissem no sono delas. Mais tarde, num estado meio acordada e meio dormindo, ela viu Renard vestindo ainda a mesma roupa da véspera. — O que está fazendo aqui? — perguntou ela. — Não podia ficar mais tempo longe de você.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Katrine lutou para-se sentar na cama, já totalmente desperta, ainda sem saber o que trouxera Renard até sua cama. 129
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Que horas são? Onde está Merkin? Ele tirou uma mecha de cabelo da testa dela. — Já passa do meio-dia. E Merkin foi comer alguma coisa. — E a rainha? — Está descansando. — Então ele levou um dedo aos lábios dela antes que continuasse a perguntar. — E a loja pode ficar fechada por um dia. — Delicadamente, ele a empurrou contra os travesseiros novamente. — Eu puxei a escada para cima, ma petite. Não existe mais ninguém em nosso mundo. Ela passou um dedo sobre suas sobrancelhas e pálpebras, tentando ler seus pensamentos pelo toque. Será que finalmente ele tinha vindo para ficar com ela? — O que está vendo na sua bola de cristal, Renard? — Você. Ela ficou sem palavras. — Certa vez, você disse que éramos Adão e Eva na sua última noite — lembrou ele. — Em vez de última, pode ser a nossa primeira noite? Ela quis dizer logo que sim, mas lhe faltou fôlego para dizê-lo. Ele se deitou do lado dela e apoiou a cabeça de Katrine no seu braço, enquanto apalpou o ventre dela, como se fosse sagrado. Ele a adorava com as mãos, acariciando-a por cima da roupa de lã, deixando as veias dela em brasa. Ela o acariciava também com dedos impacientes, tentando redescobrir cada centímetro que se lembrava dele. — Deixe-me sentir você, por favor. Ele tirou a túnica e a camisa e a deixou tocar os ombros, os músculos do braço, que agora estavam mais fortes por causa do tear além da espada. Os dedos dela acompanhavam o olhar, estava pronta para alcançar o que mais queria. Encantada, ela o viu se soltar ao toque dela. — Estou lhe agradando? — quis saber ela. Ele se limitou a gemer. Ela enroscou os dedos nos pelos encaracolados do peito dele, adorando tocá-los. Renard abriu um dos olhos. — Cisterciense? — perguntou sorrindo. — Melhor — respondeu ela e o beijou no peito. — É da mais fina lã de merinos. Ele a segurou, como se pudessem se fundir um no outro. Com o rosto enterrado no pescoço dele, ela o beijava e o provava. Renard esfregava os lábios pelo seu cabelo. — Vire de costas — pediu ele. Um vento frio e dedos quentes percorreram suas costas. Ela encolheu os ombros, deixando que o vestido caísse, deixando os seios à mostra. De repente, ela ficou envergonhada e cruzou os braços para se esconder. Renard começou, então, a beijá-la na nuca, nos ombros e até nos ouvidos. 130
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Trazendo-a para junto dele, Renard segurou um seio em cada mão. A sensação, como o melhor dos vinhos, fluía diretamente pela sua pele. As mãos quentes nos seus seios a deixavam cada vez mais ofegante, até que ela se afastou, querendo vê-lo de frente, tremendo ao sentir os olhos dele quentes e carinhosos, como seus dedos foram. Na primeira vez que ele a tocou, ela esperou insegura. Agora ela o acariciou loucamente, nos braços, no peito, na barriga, nas costas, no cabelo cacheado, nos ombros, na ferida do braço e no galo na cabeça. Ela ficou ofegante e ansiosa para tocá-lo por todo o corpo. Debaixo da saia embolada, ela abriu as pernas para ele. Renard percebeu o movimento e a ajudou a se livrar das roupas e as jogou no chão. As roupas dele também foram parar no chão. Renard a deitou cuidadosamente e se colocou por cima dela. Katrine abriu as pernas, e os quadris se elevaram para encontrá-lo. Ela estendeu a mão para ele, forte e firme, como um punhal. Ele pulou em sua mão. Ela o queria, mas a sensação era muito nova, muito boa, e Katrine ficou tateando sobre seu eixo e emaranhando-se nos cachos em sua base. Cada movimento lhe dava arrepios pelo corpo todo, Ela se deleitava com a vida que ele trouxe para seu corpo. Renard fazia os mesmos movimentos que Katrine fazia, levando-a ao delírio. Ela estava sentindo-se pronta para se entregar a ele. Katrine o queria demais. Queria tudo. Ele a pegou pelo queixo, para obrigá-la a olhá-lo. — Desta vez, não vamos recuar — falou ele com voz rouca. Ela se entregou a ele pelo olhar. — Seja meu Adão. Abrindo as pernas, ela o segurou dentro de si e teve a sensação de união, balançando os dois corpos numa sincronia perfeita. Cada empurrão era como se estivesse tecendo no tear. Empurrando, puxando e batendo até seu mundo se resumir a ele e àquele sentimento maravilhoso. E quando ela sentiu que ia explodir, pressionou a boca contra o pescoço dele para abafar o som. Ela não sabia como poderia agradecer a Eva. Acomodada nos braços dele, Katrine sentiu que ele fazia parte dela, como a trama de um tecido bem-feito, na qual os fios se misturavam e não podiam mais ser separados. Katrine só se deu conta do tempo que estavam abraçados quando Renard se mexeu. Impregnada do seu cheiro e do seu calor, o mundo dela tinha ficado restrito àquela cama e às paredes de pedras. Com a boca colada no cabelo dela, Renard murmurou algumas palavras. Ela afastou e recostou a cabeça para poder ver seus olhos. — O que você disse? — Quero pentear seu cabelo, como você me ensinou a pentear a lã. Ela não queria pensar em lãs e tecidos. — Eu teria que encontrar um pente — disse ela, enterrando o rosto na sua axila. — E estou confortável demais aqui para me levantar. — Não seja por isso — falou ele alegremente. — Continue confortável em meus 131
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) braços que eu vou levá-la até o pente. — Ele se levantou e a colocou no colo. Com os braços em torno do pescoço de Renard, ela se sentia leve, linda e feliz. Homem nenhum jamais vai querê-la, seu tio havia dito. Mas aquele ali, aquele homem maravilhoso queria. — Ali — disse ela. — No baú. Bastou dar dois passos para alcançarem o baú, e ele estava feliz como ela nunca viu, até desviar o olhar para a grande mala. Renard ficou extremamente sério de repente, olhando para o pente e o pequeno espelho de prata. — O que foi? — ela quis saber. — O que está vendo? — O espelho. — Ao falar isso, Katrine notou que estava trêmulo. — Onde conseguiu isto? — Foi Giles que me deu. Por quê? Renard a colocou no chão, delicadamente, mas sem dar muita atenção a ela. — E onde ele o conseguiu? — Ele olhava fixamente para o espelho. — Ele sempre teve este espelho — contou ela, pegando o espelho e colocando-o na palma da mão dela. — Ele costumava segurá-lo na minha frente, para me mostrar “como Katrine é especial”. Ela suspendeu o espelho, como se ainda fosse uma criança, sem nada a temer. O espelho refletiu a imagem de uma mulher bem- amada e contente, como nunca tinha se sentido. — Olhe — brincou ela, virando o espelho para ele, tentando fazê-lo sorrir de novo. — Viu? Renard também é especial. Mas o espelho não refletiu nenhum sorriso. Apenas sua figura de costas. Quando ela o fitou novamente, Renard segurava o punhal de prata, como se fosse uma espada. O coração de Katrine começou a bater forte, e ela achou que ele tivesse enlouquecido, que poderia querer matá-la por seu pecado. Em vez disso, ele tirou o espelho das mãos dela e o colocou sobre o baú, e em seguida, pôs o punhal do lado. O cabo do punhal era de prata trabalhada com uma margarida de quatro pétalas. Com o dedo sobre o punhal, ela traçou o desenho, como fazia no espelho. O trabalho na prata era exatamente igual nas duas peças. — O que significa isso? — Estas peças formam um conjunto. Isto foi um presente de casamento de Edward, o rei da Inglaterra, avô do atual rei, para sua filha, Margaret Plantagenete, quando se casou com o duque de Brabante, Katrine não compreendeu direito, pois ele falou em francês. — Mas por que você está com o punhal? — Porque Margaret foi minha mãe. Ela logo entendeu que, por ser filho de Margaret, ele era primo do rei Edward. 132
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Então você é filho do falecido duque de Brabante e irmão do duque John. — Ao afirmar isso, ela sabia que não podia ser verdade. — Quando eu nasci, minha mãe já estava viúva há um ano — contou ele com profunda tristeza. Não podia ser filho do duque. Mas de quem era então? Katrine se aproximou de Renard e entrelaçou seus dedos aos dela. Escolheu com cuidado as palavras. — Mas por que Giles tinha com ele um objeto que foi um presente de casamento da duquesa? E você, por que o tem? — Porque ele foi amante dela. E também meu pai.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
Katrine olhou para o punhal e para o espelho. — Sua mãe deu este espelho para Giles. O espelho tinha gravado, em alto relevo, a margarida de quatro pétalas. A mesma na qual Giles se inspirou para dar nome à marca dos seus tecidos. — Margarida — sussurrou ela, tentando entender. — Ele deu este nome para a marca por causa dela. Para a mãe de Renard, que amou um tecelão e lhe deu um filho. Se alguém soubesse disso, seria um escândalo, e ela teria sido banida da corte para sempre. Nesse momento, Katrine começou a sentir frio e percebeu que ainda estava nua. Suas roupas estavam longe do seu alcance, e ela precisava delas para se pro teger do frio. Do frio que emanava dos olhos de Renard. As pernas dela tremiam, e ele não voltou a olhar para ela, só tinha olhos para o conjunto de prata, como se esperasse que eles falassem. Katrine pegou o manto e o vestiu por cima da pele nua, em seguida, encarou Renard. Nesse momento, ele se parecia muito com Giles, a não ser pela altura e pelos olhos azuis, iguais ao seu primo real. O cabelo cacheado castanho era bem familiar, Suas mãos compridas, fortes, eram iguais às de Giles. Ele tocava no punhal e no espelho, como se quisesse que eles desaparecessem. — Sua mãe deve ter amado muito Giles. — Ela sentiu uma afinidade imediata com essa mulher, que também amou quando não deveria. Surpreso, ele franziu a testa. — Ela deveria ter controlado seu desejo. A voz de Renard era fria, como a prata do punhal, e toda a alegria que ele 133
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) demonstrou depois de fazerem amor tinha desaparecido. — E se meu ventre carregar um filho seu, vai me culpar também? — Vou culpar a mim mesmo — disse ele, com olhos que queimavam, como o fogo do inferno. Ela queria envolvê-lo com os braços e com as pernas, enchê-lo de amor, mas ele estava muito chocado. Em vez disso, ela pegou sua mão e esfregou entre as dela, como se o atrito fosse reacender o fogo. Ele permaneceu em silêncio. — Você não pode se culpar — disse ela. — E não pode culpar sua mãe. Ela continuou segurando sua mão, traçando as linhas desenhadas na palma e tentando segurar essa última ligação entre eles, mas Renard se afastou. Katrine ficou em pânico. Ele precisava acreditar no que tinham acabado de viver para se perdoar. E a ela. — Acho que o amor era a verdade deles — falou ela, num sussurro que era quase uma carícia. — Assim como é a nossa verdade também. Batendo os dentes como se estivesse debaixo de neve, ela o abraçou, querendo comovê-lo, já que as palavras não surtiram efeito. Mas nem os olhos, nem os lábios, nem os braços responderam. Depois, gemendo como um animal ferido, ele a puxou para si, beijou-a com tanta volúpia, como se fizesse amor com ela. E ela o beijou também, como se não houvesse amanhã, e quis aproveitar o máximo que podia dele.
Quando os sinos da tarde soaram, a luz do sol poente e das velas tremeluzindo brigavam para combater o escuro da sala de van Artevelde, mas Renard olhava para os rostos dos homens ali reunidos, para o conselho de guerra, e se sentia perdido. Como Renard temia, ele era igual à sua mãe. Depois de lutar a vida toda para não ser fraco, tinha fracassado, como um escudeiro no seu primeiro torneio. Talvez tenha sido por causa do cansaço, depois de passar uma noite inteira sem dormir ou uma tentativa de esquecer a triste cena que viu do bispo com Merkin. Ou foi a imagem de Katrine com um bebê no colo, fazendo com que ele acreditasse que poderia ter uma vida igual a todos os outros. Qualquer que fosse a desculpa, a paixão que ele sempre temeu acabou destruindo uma vida inteira de controle. E a loucura que tomou conta do seu corpo ainda o dominava. Não podia pensar em redenção. A melhor lembrança disso, no momento, era o pai que nunca tinha conhecido. E a perda irrevogável do direito à sucessão do trono. Mas, apesar de tudo, ele estava com uma sensação de acerto. Sem saber, encontrou uma ligação entre ele e o pai. Todo esse tempo, viveu na casa que foi do pai, aprendeu o trabalho dele. Sentiu uma ardência nos olhos. Seriam lágrimas? Renard não sabia o que era. Ele havia encontrado o pai depois de tantos anos. Certamente, isso era motivo de alegria. Mas qual era a verdade por trás daquela descoberta: espelho e punhal juntos 134
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) novamente. Será que a duquesa o presenteou com o espelho para alegrá-lo ou para garantir seu silêncio? No entanto, ele teria feito amor com Katrine mais uma vez se não tivesse sido chamado para participar do conselho de guerra. Suas mãos doíam com a lembrança dos dedos dela. O cheiro dela ainda estava impregnado nas suas mãos e quando falava, ele sentia os lábios nos seus novamente. Todo o tempo que passou ao lado dela o deixou mais em dúvida se deveria se tornar bispo. Ele não conseguiu nem manter os votos que fez a si mesmo. Ele fechou a mão em punho, como se quisesse segurar o anel de bispo que estava quase ao seu alcance. Conquiste Flandres para mim, e eu farei de você um bispo. Um bispo que não precisa se curvar diante de um rei. Um bispo que será forte para resistir à tentação. Se não pudesse ser tudo isso, o que seria do filho bastardo do tecelão? Nada. Não teria nada a oferecer a Katrine. Nem terras, nem títulos e nem uma vida. Renard tentou se concentrar na reunião. Olhou ao redor da mesa, ponderando adversários e aliados. A guerra entre Philip e Edward estava próxima. O motivo dessa reunião era para avaliar a situação. Isso estava começando a ficar assustador. — Rei Philip já tem 10 mil homens. Nós só reunimos metade disso até agora. Ignorando o resto da mesa, Artevelde se dirigiu a Renard. A noite de primavera estava fria demais para provocar o suor que escorria na testa dele. O sujeito acreditou em Renard e entregou o futuro de Flandres nas mãos do rei Edward, agora ausente. Renard tinha que responder por isso. — As tropas de Philip queimaram o feudo do irmão da rainha — disse Artevelde. — Destruíram tudo, a aldeia, o castelo, os campos e até a abadia. As irmãs escaparam por pouco das chamas. Agora eles estão vindo para cá. — Ele estava suplicando. — Precisamos das tropas do rei Edward. Renard fitou o sujeito nos olhos, escondendo seu desconforto com a demora de Edward. — Devemos reunir um exército de homens, cavalos, equipamento e barcos para atravessar o canal — falou ele com voz firme. — Isso demanda tempo. — Não temos tempo — retrucou Artevelde. — Os homens de Philip estão ao sul da cidade. Se qualquer dos castelos entre nós cair, eles podem avançar até os portões de Ghent. Renard se virou para o irmão da rainha, um veterano de muitas batalhas. — Os seus outros castelos estão preparados para fazer a defesa? — Todos, com exceção de Douvre. O súdito ainda não se aliou a Edward. Não estou certo da sua lealdade. O silêncio tomou conta da mesa. Quantos ali podiam confiar em todos os súditos? Mas eles não podiam abrir mão de ninguém para se defender de Philip. — Leve as tropas e tente convencê-los. Mantenha-os longe de Ghent até Edward voltar. Ele rezou para que isso não demorasse. Mas enquanto rezava, ele pensava em Katrine. Ela já sabia do seu pior segredo e ainda assim o aceitava. 135
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Não. Não era o pior. O pior era que não contou que se tomaria um bispo. E a não ser que ele tivesse algo mais a lhe oferecer, ele devia esquecer os sonhos de ter um filho. Renard não devia tocá-la novamente.
Ele não a tocou mais. E ela não conseguia lhe perguntar o motivo disso. Quando ele vinha até a loja, o que era raro, ele se refugiava no tear, trabalhando, como se o próprio Giles guiasse seus braços. Ele quase não falava e não olhava para ela, e mesmo quando olhava, ela não sabia se ele a via. No início, ela achou que ele estava lutando com seus demônios internos. A vergonha da mãe. A descoberta recente do pai. Como foi que aguentou guardar esse segredo por tanto tempo? Então ela tentou lhe dizer, quando surgia uma oportunidade, o quanto Giles era maravilhoso e como sua mãe foi corajosa, mas ele se esquivava mesmo quando ela lhe apertava a mão e pressionava o rosto no seu ombro, quando Merkin e Jan estavam distraídos um com o outro. Com o tempo, ela parou de falar de Giles e Margaret. E ele não a tocou mais. Depois, ela chegou à conclusão de que era por causa da guerra. As reuniões do Conselho entravam pela noite. Exércitos marchavam. O rei, que era primo de Renard, tinha deixado a defesa de Flandres nas mãos dele. Uma honra, mas uma grande responsabilidade. Ele devia ter muitos problemas. Assim, ela ficava acordada esperando que a reunião terminasse, olhando para a escada encostada na entrada do quarto da torre. Ele não veio. Até que ela entendeu o que sabia o tempo todo. Não era por causa dos pais, nem pela guerra ou qualquer outra desculpa. Ela era o problema. Katrine havia pedido por uma noite no paraíso, mas quando ele finalmente veio, ela já o queria pela vida toda. Uma vida na qual ele não podia olhar para a cor do cabelo dela, para as mãos ásperas, os desejos mundanos demais e ainda amá-la. Como ela foi tola. Depois que ele a viu, louca de desejo, deve ter ficado horrorizado. Mas ela não ia aceitar isso. O amor era real nos olhos dele. Até que ele se deparou com o espelho, então tudo mudou. E sem explicação. Então o tempo foi passando, chegou a primavera, e ela se consolou ensinando Merkin a pentear, cardar e tecer. No início, as irmãs Coster ficaram desconfiadas, mas depois começaram a ajudar no treinamento de Merkin. Katrine ficou muito feliz quando, certo dia, elas levaram Merkin à casa delas para conhecer a roca. Ao menos, Merkin tinha 136
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) um futuro. Também tinha esperança.
E Katrine, apesar de tudo, ainda alimentava uma esperança dentro dela. Num dia de primavera, já tarde, Renard entrou na loja sem dizer nada e sentou-se diante do tear para trabalhar num tecido que, há muito tempo, estava abandonado. Katrine deixou de lado seus afazeres e começou a falar para si e para ele: — Vendi vários metros de tecido hoje. Acho que foi o sol que deixou as pessoas dispostas a comprar. Ele balançou a cabeça, mas não disse nada. Novas rugas surgiram em seus olhos cansados. Katrine não resistiu e tocou seu rosto, sentindo a barba áspera do fim do dia. Renard se esquivou. Delicadamente, ela passou a massagear seus ombros, trabalhando seus músculos rígidos. — Alguma coisa está perturbando você. — Ce nest rien — murmurou ele, sem olhar para ela. — Você diz que não é nada, mas minha bola de cristal me diz o contrário. — Você me interpreta bem. Porque você me permitiu isso, pensou ela, assustada em constatar que era verdade. Ele que não deixava que ninguém visse além da máscara, tinha se revelado para ela. E por amá-lo o bastante para entender o que você me deixa ver. Ele tirou os dedos dela dos seus ombros, segurou-os por alguns segundos junto aos seus lábios, depois os soltou. — Espero nunca ter que lhe enfrentar numa mesa de negociações. Ela passou os dois braços em torno do pescoço dele e disse baixinho no seu ouvido: — Você já me enfrentou. Consegui comprar lã por 20 libras o saco. Um som semelhante a uma risada ecoou no seu peito. Os sinos da tarde soaram. Ela ficou ali, mesmo sabendo que devia recolher os tecidos que não foram vendidos e fechar as janelas. Mas Katrine não queria fazer nada disso, só queria saborear esse primeiro momento de intimidade que eles tiveram em muitas semanas. — Você está preocupado e cansado — afirmou ela. Vencido, ele deitou a cabeça nos ombros dela. — Estou preocupado, sim. E também cansado. — Ele soltou um suspiro. Em seguida, começou a falar, como se não pudesse mais se conter. — Existem milhares de tropas francesas vindo na nossa direção. Somos apenas a metade deles em número. O castelo mais próximo da rota deles é o Douvre, cujo súdito não é nada confiável. Os aliados estão nervosos com a demora de Edward em voltar, e eu não posso lhes garantir nada. Ele se virou para encará-la. 137
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Então quantos problemas mais você quer compartilhar? Aquela demonstração de confiança a deixou numa alegria indescritível. — Quantos existirem. O problema era a guerra, então. Não era eu. Agora, com toda certeza, ele falaria do futuro deles. Mas não. Ele fechou os olhos, e aquele momento mágico se desfez. — Devemos ir. Em silêncio, ela recolheu os tecidos e fechou as janelas, pedindo a Eva que lhe fizesse ter paciência. Quando a guerra terminasse, aí então ele falaria do futuro deles.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Katrine estava bem no fundo da Igreja, entre os tintureiros, os pisoeiros e as fiandeiras de Ghent, numa manhã gloriosa de verão, quando o bispo de Clare rea lizava o batizado do pequeno príncipe John, da rainha Philippa. A multidão que enchia a igreja aproveitava a diversão. O exército francês estava a poucos dias dos portões da cidade. Renard escoltava a rainha com elegância. De longe, Katrine acariciava suas costas com os olhos, desejando que ela e Renard pudessem renascer e serem rebatizados em outro tempo e outro lugar. Um lugar sem preocupações e sem guerra. Merkin, ao lado de Mergriet de Coster, acenava para ela. Katrine acenou de volta, satisfeita. Mesmo estando ali, com o bispo no altar, ela conseguia sorrir. A menina e Jan estavam sempre perto um do outro. Em breve, tinha certeza, eles estariam juntos. Ao menos para eles, haveria felicidade. Todos os olhos se voltaram para o altar, no qual o bispo fazia o sinal da cruz, com água benta, na careca redonda do bebê e o livrava dos pecados de Adão. De repente, alguém a segurou com força pelo braço. Assustada, ela se virou e deu de cara com seu tio, os olhos vermelhos fixos nos dela. — Tio — falou ela baixinho, tentando se soltar da sua mão. — Que loucura é esta de aparecer por aqui e andar no meio do povo de Ghent? — Ele tinha fugido da cidade para lutar com os homens do rei Philip contra os cidadãos de Ghent. Se alguém o reconhecesse, ele seria preso. No entanto, a multidão estava distraída com a cerimônia, e ele estava irreconhecível embaixo de uma capa com capuz. — Ora, eu vim falar com você, Mary — sussurrou ele. E logo a puxou dali. Ele está me confundindo com minha mãe. Será que enlouqueceu? No entanto, ela não gritou. Mesmo depois de tudo o que ele fez, ela não tinha coragem de condenar à morte o irmão do pai dela. Seguramente, se conversasse com 138
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) calma, ele iria embora. Ou então, quando fossem lá fora, ela poderia correr. Em vez de sair da catedral, ele a puxou para a cripta de baixo, onde estavam enterrados os bispos de Flandres. Nenhum som penetrava a sala de pedra. Agora, se ela gritasse, ninguém a ouviria. Um candelabro tremeluzia sobre um afresco de St. John, segurando um cálice e com uma serpente do lado. A cobra parecia se contorcer com aquela luz fraca. Seu tio a imprensou contra um pilar de pedra. Ela fez uma careta diante do cheiro de vinho velho que ele exalava e tentou ver seus olhos, apesar da pouca luz. — Por favor, tio. Sou eu, Katrine. Estamos na casa de Deus. — E Deus vai lhe punir por quebrar o juramento de nossa família de servir ao rei Philip. Respirando pausadamente, ela dobrou os dedos frios e tentou raciocinar. Pelo menos, ele parecia saber quem ela era. Katrine achou que tinha se livrado do tio quando ele deixou a cidade. Agora, ao vêlo de novo, ela se lembrou de como vivia apavorada. — Ghent reconhece o rei Edward como o legítimo rei da França diante de Deus. — Heresia. Ela não ia discutir. Ele não queria ouvi-la. — Mas você pode se redimir — disse ele, chegando mais perto. Ela encostou o corpo bem junto à pilastra, o mais longe possível dele. — Quais são os planos dele? Quantos homens são? Quando eles vêm? Fale-me tudo que sabe. Nunca. A sua lealdade estava definida. Antigamente, ela não se importava com reis, mas agora Katrine tinha se afeiçoado à família de um rei. Pela rainha Philippa, que a chamava de compatriota. E pelo bebê, John, escorregadio desde que nasceu. E por Renard. Seu tio achava que ela era uma mulher burra. Ia aproveitar isso. — Sou uma mulher, não sei nada sobre guerra. — Mas você está morando na mesma casa dos líderes deles. Deite-se com um deles. Você já fez isso antes. Faça de novo agora e poderá descobrir tudo o que eu preciso saber. — Não. — Ela tentou se desvencilhar dele, mas o tio a segurava com muita força. Felizmente, ele não sabia que ela ainda dormia sob o mesmo teto de Renard. — Faça como estou mandando, caso contrário, eu direi a eles que você os traiu. — Com quem vai falar? Você é um traidor que está exilado. Ele zombou dela, como se fosse, de fato, uma mulher idiota. — Eu não preciso aparecer para que o recado chegue nas mãos certas. — Ninguém vai acreditar em você. — Vão acreditar quando souberem que você já fez isso antes. Quando enganou o inglês. Katrine ficou gelada. Renard agora sabia que ela era inocente. Mas será que ainda 139
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) acreditaria nela se mais alguém a acusasse de traição? — Decida agora. Ela balançou a cabeça. O pouco que ela soube por Renard, sobre castelos e homens marchando, não tinham nenhum valor para o tio. E ela não diria nada sobre isso. — Não. Não vou fazer isso. Ela achou que, naquele momento, ele a mataria, mas, em vez disso, ele fez uma expressão de malícia. — Você fez sua escolha. Deus vai lhe castigar. Em seguida, ele se virou e saiu, deixando-a sozinha. Katrine ficou alguns minutos ali, no chão gelado, esperando que seu coração se aquietasse, olhando para as gotas de cera que caíam sobre a vela. Pronto, acabou. Ou será que não? E se ele a acusasse de espionagem? Renard achava que ela era uma espiã. Se contasse a ele que tinha visto o tio, será que desconfiaria da sua lealdade de novo? Não. Não podia. Ele tinha sido honesto com ela, compartilhou as preocupações com ela. Já a deixava ir e vir sem escoltas. Agora sabia que podia confiar em Katrine. Ela se levantou e começou a subir as escadas. Katrine decidiu contar tudo a Renard. Ele saberia o que fazer.
Katrine se juntou à multidão que formava uma fila para entrar na casa de van Artevelde, para os cumprimentos após o batizado. Ela levaria alguns minutos para falar com a rainha e depois daria um jeito de se afastar para conversar com Renard. A rainha Philippa, resplandecente num vestido de veludo azul debruado de pérola, recebia cada convidado com graça e educação. Quando Katrine se colocou diante da rainha, ela sentiu a mão quente de Renard no seu braço, para conduzi-la. A rainha Philippa envolveu sua mão. — Ah, minha querida eu não sei como teria passado aquela noite sem você do meu lado. — Fico feliz por poder servi-la, majestade — disse Katrine sorrindo. Atrás da rainha, estava lady Johanna, com o bebê John no colo. A rainha fez um carinho no rosto dele. — Ele vai se chamar John de Ghent. Farei com que ele saiba que seu nome foi uma homenagem à amiga fiel que ficou ao meu lado na hora do nascimento dele. A rainha se virou para Renard. — Renard, devemos este dia alegre em grande parte a você. — Ela segurou sua mão è, em seguida, ficou na ponta dos pés para lhe falar no ouvido. — Tive notícias de Edward ontem. Ele disse que vai anunciar sua nomeação como bispo de Norwich antes do Natal. Katrine ficou muda. Imóvel. Renard, o mentiroso, enganou-a mais uma vez. 140
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Ela não ia poder confiar nele. Não poderia mais lhe contar o segredo, já que ele tinha escondido dela algo tão maior que a fez perder todas as esperanças. Katrine evitou olhar para ele. Achou que podia confiar em Renard, mas se enganou mais uma vez. Enganou-se imaginando que ele a quisesse como sua mulher. Quando ele só queria a mesma coisa que o bispo. E ela, estupidamente, se entregou a ele com prazer. Ela olhou para as mãos dele, aquelas que a tinham tocado intimamente. Mãos que segurariam a hóstia sagrada que depois se transformaria no corpo de Cristo. Um homem que não seria melhor que o bispo de Clare. Katrine ouviu Renard falar com a rainha: — Preciso falar sobre um assunto com o rei, assim que ele chegar, majestade. Katrine sabia que devia se afastar de Renard, como se ele não significasse nada para ela, mas como a esposa de Ló, Katrine ficou como uma estátua de sal, olhando para o que tinha perdido. A rainha olhou para Katrine, ainda do lado dela. — Devo dizer, Renard, que a cada dia você menos se parece com um bispo. A raiva tomou conta de Katrine. Raiva porque ele a possuiu sem nunca ter lhe contado nada sobre isso. Raiva de si mesma por ter permitido e por ter tido esperança de algo mais. Raiva que cauterizava sua dor e derretia sua língua gelada. — O rei vai fazer de Renard um bispo? Mas eu pensei que apenas o papa pudesse fazer isso. Renard a fuzilou com os olhos. — Claro que o papa precisa confirmar esta escolha — disse a rainha. — Mas uma recomendação do rei tem um peso grande. Katrine perdeu o equilíbrio e quase caiu, mas sentiu o braço de Renard a segurando. — Na pressa de parabenizá-la, lady Katrine não comeu hoje, majestade. — Ele se curvou diante da rainha. — Com sua permissão. Renard a pegou pelos ombros e a conduziu para a torre, em vez da cozinha. — Esta é uma conversa para se ter num lugar discreto. Ela se soltou dele. — Por que precisamos de um lugar discreto quando você vai receber congratulações para um cargo tão público? — perguntou ela, ironizando. — Isso merece uma comemoração em praça pública! — Esqueceu de você. — Não, parece que foi você quem esqueceu. Embora não seja uma coisa pequena, não sei como se esqueceu. Talvez só tenha esquecido de me contar. — Ela subia cada degrau da escada como se fosse uma lembrança que devia esquecer. Ele a seguia tão perto que o cheiro dele a tocava. Ao chegar lá em cima, ela vacilou ao ver a cama em desalinho. Ele colocou a mão no seu ombro, e ela a tirou, furiosa. — Não me toque. 141
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard a fitou com um olhar penetrante. — Eu já lhe toco só com o olhar. O olhar dele queimava seus seios e aquecia seu sangue. Suas mãos ansiavam pela pele macia dele. Katrine reprimiu o desejo. Ela confiou nele, e Renard a decepcionou. Katrine estava envergonhada, por achar que fosse digna do amor dele. E ela se odiava por isso, por ter criado fantasias lindas a respeito deles dois. Ah, Eva, foi assim que você se sentiu quando foi expulsa do Paraíso? — Palavras inadequadas para alguém que vai se transformar num bispo. No entanto, eu devo discordar da rainha. Acho que você está se parecendo cada dia mais com um bispo. Com o bispo de Clare, por exemplo. As palavras de Katrine cortavam o coração dele, mas ela não desistiu. — Parece que os bispos ingleses têm, entre as suas tarefas, a obrigação de ter conhecimento carnal das mulheres flamengas. — Não é o que acontece entre nós. — Você diz isso agora. Não, você tem razão. Eu fui a única que falei da verdade do amor. — Ela falava com dificuldade. — O que nós fizemos foi apenas praticar o coito selvagem dos animais. — Isso não é verdade — disse ele, se aproximando de Katrine. — Verdade? — Ela riu, num tom de deboche. — Está tarde demais para a verdade, meu amigo Renard. Perguntei-lhe muitas vezes por isso. — Ela o deteve só com o olhar. — Nós não temos uma verdade. Ela estava ficando ofegante, e a vontade de chorar era grande. Devia falar rapidamente, caso contrário, as palavras não sairiam mais. Ela queria feri-lo, queria que ele sofresse tanto quanto ela. Queria que Renard se arrependesse de ter compartilhado os segredos dele com ela, da mesma maneira que Katrine se arrependia de ter se entregado a ele. — Como filho bastardo, você deve se sentir honrado em se tornar bispo. Sua mãe ficaria feliz em ver que não interferiu em nada se deitar com um tecelão. Depois disso, ele perdeu o controle. Vergonha, raiva, culpa e uma centena de outras emoções que ele nem sabia definir brotaram em seu peito. Agora nenhum treinamento adiantaria de nada. Ele gritou como um animal selvagem. E pulou na direção de Katrine. Ela correu, mas não o suficiente. Os dois caíram sobre a cama, o seu cabelo se espalhou sobre os lençóis, como sangue. Ele lhe envolveu as costelas com braços fortes. A respiração dele ofegante, no seu ouvido. Katrine engoliu em seco, sentindo o punhal dele na sua garganta e, por um momento, não sabia se ele pretendia matá-la ou amá-la. E ela não suportaria se soubesse que ele a amava. — Agora que você já me mostrou tão bem como pecar, por favor, diga-me qual a penitência que me cabe.
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CAPÍTULO VINTE E SEIS
Não foram as palavras de Katrine que mexeram com Renard, mas a sensação do seu cabelo sobre a mão dele. E sobre a lâmina afiada do punhal dele na sua garganta. Eles estavam abraçados, como num gesto de amor. O peito de Katrine subia e descia calmamente, como se a segurasse dormindo. Como se ela não tivesse medo da morte. E nem medo dele. Renard sentia medo. Katrine o pressionou demais, deixando que a emoção superasse a razão, o que levou a agir como um louco. Ele poderia tê-la matado. Renard se parecia menos com um bispo, pois ela o fez mais homem. Fraco. Mortal. Um pecador glorioso que tinha usado os pecados da carne para socorrer a alma. Mais profundo que a carne. Esta é a nossa verdade. E trouxe a dor insuportável que ele sempre temeu. Trêmulo, ele levantou a cabeça do seu cheiro doce e inebriante. Ele confiou a Katrine o segredo mais íntimo, e ela lhe jogou isso na cara. E, mesmo assim, a pele embaixo da sua orelha era doce e macia, e Renard queria beijá-la ali, onde o ritmo do seu coração batia forte. Lentamente, ele foi aliviando a pressão do punhal na sua garganta. Mas a lâmina passou pelas dobras da touca e cortou um pedaço da lã macia e branca. — A lã... Eu não podia... Eu sinto muito — disse ele, com a voz trêmula. Ela se levantou e o deixou deitado sobre os lençóis de linho. Ao chegar na beirada da cama, ele se virou. Renard custou a se levantar, se encheu de coragem para encarála. Os seus olhos enormes, escuros, estavam cheios de lágrimas. Sentindo-se repugnante. Essa emoção eles poderiam compartilhar. — Qual de nós pecou mais? — Katrine tentou segurar as lágrimas, mas elas desceram assim mesmo. — Foi você por quebrar os votos de celibato antes mesmo de fazê-los? — Mais uma vez, ela estava sendo cruel, com os dois. — Ou talvez meu pecado tenha sido pior, por tentá-lo além da resistência de um bispo. Tarde demais. Era tarde demais para explicar que ele planejara pedir a Edward para liberá-lo dos votos. Renard, que já havia negociado com reis, não tinha argumentos para ela. Ele agarrou o cabo de prata do punhal e sentiu o relevo da flor na mão dele. Queria abraçar Katrine, mas tinha perdido o direito. Como pôde pensar em se casar, como se fosse um homem comum? Ele não era digno de ser bispo nem marido. Katrine se levantou da cama, andou pelo quarto redondo, arrastando lã no seu 143
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) rastro. — Talvez tenha sido o meu cabelo que o tentou demais. Eu tentei mantê-lo coberto, você se lembra disso? — Ela pigarreou, tentando não chorar. — E qual será a penitência que devo pagar por ter seduzido um religioso? Será que o bispo de Clare vai ouvir minha confissão e estabelecer meu castigo? Ou quem sabe ele vai querer experimentar para poder julgar melhor. — Pare com isso. — Ele falou e lançou o punhal ao mesmo tempo. O punhal bateu na parede de pedra e caiu no chão, amassado. Ele se levantou da cama. — Não é você que tem que pagar penitência. Renard sentiu um frio no estômago, como sentiu quando olhou para o lado do barco que o levava para longe de casa, por um mar gelado. Navegar por aquelas águas significava esquecer, não ter mais esperança nem alívio. Ele não chamava isso de medo, pois medo ele tinha da morte do corpo. Esse sentimento, essa visão do mundo sem ela, seria a morte da alma. — Se a penitência não é minha, de quem é? Sua? Que penitência você vai pagar? — perguntou ela. — Minha penitência será viver num mundo infernal sem você, sabendo o que estou perdendo. Ele apanhou o punhal do chão e foi embora, mergulhando nas águas turvas do mundo sem Katrine.
Depois de descer a escada, Renard encostou-se na parede para firmar o passo, mas em vez da parede de pedra, ele agarrou uma tapeçaria e a rasgou. Mais uma coisa que ele destruía esta noite. — Onde está van Artevelde? — A tapeçaria caiu no chão quando o jovem escudeiro o encontrou. Renard o segurou pelos ombros. — Controle-se, rapaz. O que está acontecendo? — O castelo de Douvre caiu. — Ele entregou um pergaminho selado para Renard. Douvre. O irmão da rainha não confiava na lealdade desse súdito. A cera do pergaminho não tinha carimbo. Ele examinou bem as linhas do comunicado. O vassalo tinha saído, rapidamente, sem deixar rastro, provavelmente com o bolso cheio de moedas de ouro. A essa hora da madrugada, as muralhas estavam desertas, Os homens de Philip simplesmente avançaram. Quem poderia saber? Quem, exceto pelo Conselho, sabia das fraquezas em nossas defesas? Ele leu a última linha com um calafrio. “O seu traidor tem a forma de uma mulher. Uma mulher cuja família permanece na corte de Philip.” Sem assinatura. — Quem lhe deu isto, rapaz? 144
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Os olhos azuis do rapaz estavam bem assustados. — Eu não sei, meu lorde. Um homem. Presumo que tenha vindo de Douvre. Ele me disse para vir até aqui o mais rápido possível. Uma certeza terrível se abateu sobre ele. Katrine. Katrine sabia, pois ele lhe contou. Ele tinha confiado nela. Deixou que Katrine andasse livremente de um lado para o outro. Contou os segredos para ela. E ela os traiu. Agora a fraqueza dele criou mais do que um inferno particular. A fraqueza dele ameaçava o rei.
CAPÍTULO VINTE E SETE
— Renard, como pode acusá-la disso? — Jack estava diante da lareira. Ele vinha atormentando Renard desde a hora do jantar. Renard deixou o lenço amassado de seda vermelho amarrado ao dedo, para se lembrar da traição de Katrine e da sua ingenuidade. Depois de levar a carta ao Conselho de Guerra, ele a confinou na torre, tirou a escada de acesso e colocou guardas para vigiála. Sem a escada, Katrine não podia deixar a torre. Com os guardas lá, ele não ficaria tentado a subir na torre e se arriscar a acreditar nela de novo. — O rei Edward vai atravessar o canal dentro de 15 dias. — Os aliados e seus poucos homens estavam hostilizando os franceses no campo, retardando o avanço das tropas. — Nem mais um segredo pode escapar para os inimigos. Jack estava indignado. — Achar que Katrine o seduziu para tirar segredos de guerra de você é o mesmo que dizer que ela o enfeitiçou para você ter vontade de beijá-la. — Talvez ela tenha feito isso mesmo. — Ele só revelou sua culpa para Jack. — Ela mentiu para mim. Jack balançou a cabeça. — E você mentiu para ela. — Eu tive que mentir. No entanto, ele havia merecido cada palavra amarga que ela lhe endereçou. Quando mentiu dizendo ser um contrabandista, ele serviu ao seu rei. Quando mentiu sobre seus planos de se tornar um bispo, ele serviu a si mesmo. Qual das duas mentiras tinha sido pior, afinal? — Você se recusa a enxergar a verdade, meu amigo. Por que motivo Katrine deveria confiar em você? — Por nenhuma razão. 145
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Mas Jack estava certo. Katrine não o enfeitiçara. Foi sua própria fraqueza que o traiu. Ele tinha deixado ela entrar e sair livremente, e este foi o resultado. E mesmo depois disso tudo, ele ainda queria confiar nela. Queria provar a inocência dela, mesmo com tantas provas contra Katrine. O bispo de Clare entrou, de repente, na sala. — Precisamos conversar — disse ele a Renard, sem dar a menor atenção a Jack. Jack fez uma reverência exagerada, mas bateu a porta com força ao sair. Renard saiu da cadeira forçado. Sua reverência foi dura, e ele nem fingiu beijar o anel do bispo. — Vossa excelência. Renard, de pé junto à lareira, assistia ao bispo andar de um lado para o outro, com as vestes embolando nas pernas. Tanta agitação não era normal nele. — Quero falar sobre a questão da moça da família Gravere. Desde que Flandres reconheceu o rei Edward como legítimo rei da França, nós somos responsáveis pela manutenção da justiça. — Sim — concordou Renard, sem jeito. Embolando suas vestes em volta dos quadris magros, para servir de almofada para a cadeira, o bispo esticou as pernas na direção da lareira. Ele não convidou Renard a se sentar. — Já consultei van Artevelde. Vamos formar um corpo de jurados para julgar a mulher. — A justiça inglesa nomeia um júri. — Nós não estamos na Inglaterra. — O bispo escolhia uma tâmara na tigela do lado da cadeira. — Van Artevelde vai representar Flandres. Eu representarei a Igreja. — Pegando uma tâmara, ele olhou sério para Renard. — Você vai representar o rei. — Qual é a acusação? — Espionar para os franceses, é claro. — Temos apenas uma acusação anônima. — Vai apoiar uma traidora? — Estou considerando as implicações de tal julgamento. — Enquanto ele a mantivesse na torre, ela não poderia causar nenhum problema. — Ela é uma cidadã desta cidade. Uma condenação apressada pode fazer com que o povo fique contra o rei. — Eu duvido. O jovem escudeiro já foi localizado, sabia? — O bispo examinou a tâmara pegajosa, na dúvida se devia comê-la. — Ele foi enforcado. — Os lábios finos do bispo quase desapareceram quando ele sorriu. — E esquartejado. Renard fechou os olhos e imaginou Katrine pendurada na corda. Ele abriu os olhos rapidamente. — Muito conveniente. Ele não vai poder revelar quem o ajudou. — Ah, mas nós já sabemos, não é mesmo? — O bispo acenou com a mão que segurava a tâmara, com dois dedos. Como um gato, o sujeito brincava com a fruta antes de comê-la. Ele tinha olhos de gato também, pensou Renard. Olhos amendoados e amarelados 146
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) do gato que está pronto para atacar. — Sabemos? — Você desconfiava dela desde o início. Você era responsável por Katrine. Como ela pôde conseguir essa informação e a repassar bem debaixo do seu nariz? A suspeita do bispo o deixou apavorado. — Eu não sei. Como se fosse uma mulher, o bispo levantou uma das mãos para admirar a pedra de safira do seu anel à luz da lareira. — Eu ficaria muito contrariado de ter que revogar o pedido que fiz ao Santo Padre. Renard estava enojado com aquele sujeito. E se controlou para não avançar naquele hipócrita. Precisava manter sua culpa em segredo. Antes ele teria ficado feliz de poder abrir mão do bispado. Agora era só o que lhe restava. E só o que poderia oferecer ao seu rei. — E se as evidências contra ela não forem suficientes para condená-la? — Mas não existem dúvidas quanto a isso, não é mesmo? — Ele jogou a tâmara dentro da boca e a mastigou com prazer. Ele não sabia. Será que ela era a mesma mulher que ele teve nos braços? Aquela que Renard podia amar e confiar? Ou será que foi Katrine quem chamou o tio para prendê-lo? Será que ela mentiu sobre aquela noite também? Renard não podia permitir que ela ficasse à mercê do preconceito do bispo nem deixar seu rei desprotegido. — Marque a data para o julgamento dela.
Com um incrível sentido de desapego, Katrine assistia a Merkin chorar enquanto penteava seu cabelo. Mesmo chorando, as mãos de Merkin agiam com delicadeza ao pentear o cabelo, como não eram quando ela trabalhava com a lã. Solto, o cabelo ruivo caía sobre seus ombros e costas. Hoje era o dia do julgamento de Katrine. Ela não usaria touca. Depois que foi acusada de traição, durante várias semanas, os guardas a vigiaram. Ela concluiu que seu tio tinha enviado a carta, como ele havia ameaçado fazer. Ela soube que o rei Edward tinha desembarcado em terra, triunfante, depois de destruir a maior parte da frota francesa. Ele estava com um ferimento na perna, e por isso, a rainha e suas damas de companhia foram até o litoral para cuidar dele. Será que a rainha também achava que ela era culpada? Katrine não sabia. Ela não tinha visto ninguém. Nem Renard. E por que esperaria vê-lo? Ela havia mandado que ele saísse do seu quarto, da sua vida, com as palavras mais cruéis possíveis. Katrine usara o segredo mais íntimo dele para magoá-lo. Renard nunca se esqueceria disso. 147
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Jamais acreditaria que ela ainda o amava. Ela ouviu um barulho na escada. A hora tinha chegado. Ela abraçou Merkin, se levantou e alisou o vestido com a mão. O pano cru, sem tinta, apresentava as variações de cada fio da lã que vinha da pele da ovelha. Sem a touca, o cabelo solto pesava nas costas, fazendo-a andar de cabeça erguida, mesmo sem querer. Acompanhada por guardas, ela caminhou até a Sala do Conselho na Câmara. Uma multidão se aglomerava para vê-la. Ouvindo palavras de apoio ao passar, ela se sentia como Santa Catarina, diante de cinquenta professores pagãos na antiga Alexandria. E a santa converteu todos eles. Mas Santa Catarina era virgem. Katrine havia perdido o direito de receber a ajuda de Deus. Katrine se encaminhou até o estrado, levantou a cabeça e encarou os juizes. — Senhores, foram vocês que me chamaram aqui. De quê me acusam? Diante dela, estavam seus três juizes: van Artevelde, o bispo e Renard. Van Artevelde estava afundado na sua cadeira, mão no queixo e cenho franzido. Apesar da expressão séria, ele lhe abriu um sorriso amigo. Ele conhecia o pai dela, então devia apoiá-la. No centro, rosnando, o bispo a olhava como se ela fosse um presente especial que queria devorar. Katrine o rejeitou. Ele teria sua vingança. O destino dela estava nas mãos de Renard. O rosto de Renard mostrava-se impassível, nem piscava. Katrine reconheceu a paixão que ele escondeu por tanto tempo. Reconheceu, libertou e amou a paixão. Para Renard, isso foi seu verdadeiro crime. O bispo falou primeiro. — Lady Katrine de Gravere, você está sendo acusada de trair o rei Edward, o legítimo rei da França e senhor feudal da região de Flandres. A pena para este crime é a morte. Katrine sentiu a cabeça leve e os dedos dormentes, mas lutou para se manter de pé. — O que acham que eu fiz? O bispo passou a recitar as acusações num ritmo monótono, adequado à massa. — Você possuía a informação de que o súdito de Douvre era desleal. Passou essa informação para as tropas de Philip, que o tornou contra seu legítimo soberano. Imediatamente seus olhos procuraram os de Renard. Só Renard sabia que ele havia contado isso a ela. — Quem me acusa? Katrine fitou Renard por um bom tempo. Havia um brilho nos olhos dele, de amor, de vingança ou dúvida. — Temos uma carta que diz que o traidor é uma mulher. — Quem enviou essa carta? 148
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Isso não tem importância — disse o bispo. — E o que o escudeiro disse? — O escudeiro está morto — respondeu Renard. — E por que acha que a mulher a que ele se refere sou eu? O bispo sorriu antes de responder. — Seu tio está do lado de Philip. Sua posição com os convidados da realeza lhe dá acesso às informações. Você conversa com estranhos todos os dias na sua loja, além de circular livremente de uma forma indecorosa para uma nobre. Você teve oportunidades que nenhuma mulher decente teve. — No entanto, nossa única prova é uma carta anônima — emendou Renard. — Talvez eu deva pedir sua ajuda neste ponto — ironizou o bispo, dirigindo-se a Renard. Katrine o observou, tentando decifrar suas emoções, mas ele estava calado e não reagiu. Renard parecia tão quieto que ela não sabia se era ele ou o tio dela que queria vêla condenada à morte. — Será que vão me condenar sem, ao menos, me ouvir? — Por favor, lady Katrine. — A voz de Artevelde ainda mantinha um tom de bondade. — Queremos ouvir o que tem a dizer. Imediatamente, a multidão reagiu positivamente. Katrine estranhava o peso do cabelo nas costas. Ela levantou o rosto. O único julgamento que lhe interessava agora era o de Renard. Katrine tinha esperança de que ele a ouvisse e que perdoasse a dor que lhe causara, só isso lhe importava. — Eu sou inocente — começou ela calmamente. As mãos eram mantidas por entre as pregas do seu manto. Em algum lugar na multidão, Merkin chorava. — O bispo me acusa porque eu caminho de cabeça erguida. Porque eu fabrico tecidos com a etiqueta da Marca da Margarida como faria um homem. Isso é verdade, mas não é traição. Agora ela estava pensando com clareza. Em toda a sua vida fora condenada por ser o que era. Ela decidiu não fugir mais. O tempo que passou ao lado de Renard a ensinou isso. Se fosse condenada, que fosse pela verdade. — Saibam que o negócio está em minhas mãos porque meu pai não tinha um irmão em que pudesse confiar e porque, até hoje, ele está numa prisão na Inglaterra. — As palavras saíam com facilidade agora. Atrás dela, a multidão comentava os tempos difíceis que viveram quando os ingleses eram inimigos e não aliados. — Então você tem bons motivos para odiar o rei — argumentou o bispo. — E de tramar contra ele. — Pelo contrário. Eu queria ganhar a simpatia do povo inglês, para que o rei atendesse a meu pedido de libertar meu pai. Jamais poria em perigo a vida dele por tão pouco. Mas meu tio entrou na cidade, disfarçado, no dia do batizado do príncipe e... 149
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) O bispo não deixou que ela terminasse. — Isso é impossível! Esse homem seria louco se fizesse isso. — Mesmo que seja — continuou ela. — Ele me pediu para espionar para ele. E eu me recusei. A voz de van Artevelde estava calma, mas ele parecia confuso: — Mesmo que acreditemos em você, temos uma carta que diz que uma mulher, cuja família luta ao lado de Philip, tramou para a queda do castelo. Quem teria mandado isso se não fosse verdade? — Meu tio faria isso. Quando eu me recusei a ajudá-lo, ele me ameaçou dizendo que enviaria uma carta anônima. — E porque nunca mencionou isto? — perguntou logo Renard. — Tive medo que não acreditassem em mim. O silêncio dos jurados mostrava que ela estava com a razão. — Ele era parente seu. Não seria fácil recusar um favor — disse Artevelde. — Mas eu tinha que fazer isso. — A partir desse momento, ela passou a falar apenas para Renard. — Eu passei a conhecer melhor os ingleses. Eu segurei um bebê real nos braços na hora em que ele nasceu. Renard piscou para ela, e isso lhe deu forças. Ele brilhava na sua frente, mesmo fora de foco, por causa de suas lágrimas. Ela se esforçou para continuar falando, mesmo sentindo um nó na garganta. — Entre os ingleses, existem alguns que amo. Eu não poderia jamais traí-los.
CAPÍTULO VINTE E OITO
Renard enterrava os dedos nos braços da cadeira ao ver as lágrimas escorrendo pelo rosto de Katrine. Ela era suficientemente corajosa para se expor, deixar vir à tona seus sentimentos. Esta sempre foi a fraqueza dela e o que ele mais gostava nela. Sentiu um profundo amor por Katrine e teve que se conter para não sair correndo para abraçá-la. A visão do cabelo solto, na frente de gente estranha, era como relevar uma intimidade, como uma carta de amor lida numa esquina. Ele devia ser o único a ter o direito de ver o cabelo dela. — Essa é uma história interessante, lady Katrine. — A lamentação do bispo agredia os ouvidos de Renard. — Mas difícil de acreditar à luz dos fatos. Diante de uma sala cheia de inimigos, ela limpou o rosto na manga do vestido, depois endireitou a roupa. — Fatos, bispo? — Sua voz estava mais forte do que ela imaginava. — Só ouvi falarem de uma carta anônima. 150
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard começou a suar frio. Ele se apoiava com tanta força no braço da cadeira que acabou ferindo o cotovelo. Discretamente, ele se mexeu e colocou a outra mão sobre o braço ferido. Tinha que manter seu suor em segredo. Tudo sobre ele devia permanecer em segredo. Quem era a verdadeira Katrine? Ele esteve sempre com ela no tear, nas ruas e até no quarto dela. Se quisesse traí-lo, certamente teria notado. Mas ela já não o traiu antes, mesmo tendo alimentado, seduzido e mantido ele ao seu lado? Ela ainda podia ouvir as pancadas na porta da frente, naquela noite. Ela culpou o tio naquela época. E Merkin tinha se referido a ele como um lunático. Seria isso mesmo? — E quanto ao que aconteceu no verão passado? — ele a interpelou, misturando sentimentos de dever e dúvida. — Você não traiu as negociações de paz quando quase capturou um negociador inglês? Aquela acusação ecoou estranhamente na multidão calada e chocada. Van Artevelde fez uma careta e permaneceu em silêncio, seus grandes olhos escuros estudavam a situação. Por outro lado, o bispo quase pulou de alegria. — Ora, ora, lady Katrine, parece que esta não foi a sua primeira traição ab rei. — Ele falou para Katrine, mas olhou para Renard. Ele passou a língua nos lábios, como se previsse uma situação. — Na verdade, parece que já usou seus atributos femininos para prender os servidores do rei. Fale-nos sobre esse novo delito. Depois de alguns segundos para se recompor, Katrine levantou a cabeça, jogou o cabelo para trás, sem culpa, sem vergonha e sem ar de surpresa. Ela o encarou, como se soubesse, desde o início, que ele seria sua salvação ou sua morte. — Renard fez a acusação, deixe que ele fale. Parece que ele não consegue manter seu punhal longe da minha garganta. Paixão, culpa, tudo o que ele não queria sentir desabou sobre sua cabeça. O bispo olhava de Renard para Katrine. E sua voz diminuiu para um sussurro, como se estivesse num confessionário ouvindo uma revelação. — Ou talvez, lady Katrine, você não seja a traidora. O traidor pode ser a pessoa que lhe contou sobre a vulnerabilidade do castelo. Conte-nos quem lhe passou essa informação. Podemos ser mais condescendentes com você. Os olhos do bispo desviaram para Renard. Katrine seguiu o olhar do bispo. Seus olhos assustados encontraram os de Renard. E ali ficaram. Nunca subestime um adversário, Renard lembrou, ao olhar para o bispo. Ele tentou abrir um sorriso. O bispo queria destruir os dois, mas se contentaria com qualquer um deles. Bastava Katrine dizer a verdade que ela estaria livre, e ele, morto. Não me importa se ela é culpada ou não. Não posso deixar que ela morra. Renard se levantou. — Tem razão, excelência. Eu contei para Katrine que o castelo era vulnerável. A culpa é minha. Prenda-me e deixe-a livre. A sala foi tomada por murmúrios, mas ele só via os olhos de Katrine cheios de amor e angústia. E ao sentir que o anel de bispo e sua vida inteira lhe escapavam das 151
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) mãos, ele achou que tinha valido a pena. — Então parece que a conspiração alcançou níveis mais altos — disse o bispo sorrindo. — Chegou ao homem em quem o rei tanto confia. — Isso não é verdade. — Katrine tentou se aproximar do bispo, mas foi detida por guardas, que a seguraram pelo braço. — O rei terá que ser ouvido a este respeito — disse Artevelde, intervindo. — Vamos esperar que ele chegue. — Não podemos esperar pelo rei quando a segurança da coroa está em jogo — retrucou o bispo, acenando para os guardas. — Levem os dois. Que morram como traidores. Os guardas partiram em direção a Renard, mas Katrine foi mais rápida e se atirou de joelhos aos pés do bispo. — Contarei a eles o que houve com Merkin. Contarei... Renard a interrompeu. — Não, Katrine. — Ninguém acreditaria nela agora. — Solte-a, Clare. É a mim que você quer. De repente, uma voz gritando se sobressaiu na multidão. — Você não pode deixá-la livre. Ela é culpada! Um homem corpulento, suado e com olhos esbugalhados abriu caminho entre a multidão. Katrine ficou pálida ao vê-lo. O bispo se contorcia na cadeira. — Quem é você? — Charles, barão de Gravere. Sou tio dela. Renard odiou o sujeito logo de cara. E pelo fato de aparecer num tribunal de partidários de Edward, sem aviso prévio, já demonstrava que era capaz de fazer o que Katrine havia dito. Confusos, os guardas ficaram entre Katrine e o tio, sem segurar ninguém. Até Clare parecia confuso. — Acusa sua própria sobrinha? — arriscou Renard. O homem nunca o tinha visto, portanto, não saberia que ele era o espião que tentou pegar. — No verão passado, eu encontrei um lenço de seda vermelho e percebi que ela estava dando abrigo a um espião inglês. Renard sorriu. O homem estava louco. Louco o bastante para se incriminar. — Dar abrigo significa ajudar — disse ele. — Parece que ela apoiou Edward desde o início, então. — Renard acenou para os guardas, que se colocaram do lado do barão. — Ela não queria fazer o que eu mandava — resmungou ele. — Ela nunca fazia o que eu queria. — Ele parecia estar fora de si, incapaz de responder as perguntas. — Parece-me que o traidor aqui é você, não Katrine. O que aconteceu no castelo? Ele fitou o sujeito nos olhos, disposto a fazê-lo confessar voluntariamente. — O súdito. Foi ele que mandou a carta. Ninguém mais. 152
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) Renard se virou, olhando para Katrine e falando para todos na sala. — Então lady Katrine é inocente, como ela disse, e o traidor se entregou em nossas mãos. Atrás dele, o barão balbuciava coisas desconexas. — Ela me rejeitou. Assim como fez a mãe dela. Eu devia tê-la matado. — Ele falava como se estivesse em outro lugar, onde ele era o próprio juiz. — Eu tive que matar a mãe dela e devia ter matado ela também. Katrine engasgou e quase caiu antes que ele a pegasse. Sem querer esperar a justiça do rei, dois homens saíram da multidão e voaram em cima do barão, dispostos a linchá-lo. Os dois guardas agarraram o barão e o levaram para longe da multidão. — Viva Philip, o legítimo rei da França. — A voz estridente ecoava atrás dele. — Esta audiência está encerrada — disse Artevelde, dispersando a multidão. Todos saíram, menos o bispo, que ficou ali sentado, com a mão do anel fechada em punho. Hipócrita, pensou Renard. Ele queria condenar uma mulher inocente só pensando nele mesmo. Não pensou em Deus. Nem mesmo nos interesses do rei. Mais uma vez, ele pensou no seu bispado. Imaginou o peso do anel no seu dedo. Sentiu o balanço do manto. Ele não queria esse poder e essa proteção. Edward teria que arranjar outro aliado. Katrine o ensinou a ser quem ele era. Por completo. Será que o perdoaria por duvidar dela?
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Katrine caminhava debaixo de sol e nem reparou que Renard andava do seu lado. Ela andava livre, e seu tio havia assassinado sua mãe. Como seu pai ia chorar. — Ele teria me matado também — falou ela baixinho. Mas, inconscientemente, ela sempre soube disso. — Agora você está segura — disse Renard. Igualzinha à sua mãe, disse ele. Mas ela não era. Katrine nem era igual à mulher que era um ano atrás, quando escondia seu cabelo porque seu tio o odiava. Quando pararam, Katrine viu que estavam em frente à casa de Artevelde. Olhou para o rosto de Renard, tão querido, e se perguntou como se deixou ficar aos cuidados dele novamente. Agora seria muito mais difícil se separar dele. Tantas traições, de ambas as partes. Será que poderia perdoá-lo? Renard não a perdoaria. Ela não esperava por isso. Mesmo assim, tinha que tentar. 153
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Aquilo que disse para você... Eu estava errada. Fui cruel com você porque eu estava sofrendo. — Katrine queria que ele sofresse tanto quanto ela. Renard pegou sua mão. — Vamos conversar. Sozinhos. Eu também preciso... Os olhos dele se expressavam de um jeito que a boca não fazia. Ela observou o cabelo castanho, os olhos azuis, cheios de uma emoção que ele não escondia mais. Eu vou dizer adeus. Apenas um momento para uma despedida. Depois vou deixar que ele volte para a Inglaterra e receba seu anel de bispo. Em silêncio, os dois subiram a escada para o quarto da torre. Ela se encaminhou para a janela e observou a torre inacabada da igreja, que parecia querer alcançar o céu. As vozes, na rua, falavam palavras em francês com sotaque inglês. Os sinos da tarde tocaram, e ela ouviu Renard puxando a escada. Quando soou a última badalada, ele falou: — Eu decidi abrir mão do bispado. — Por causa dos meus pecados? — Não — disse ele com convicção. — Seus pecados são meus pecados. E você ainda deve me perdoar por eu ter duvidado de você. — Ele se aproximou. — Não posso me entregar à Igreja, eu já me dei a você. Toda a verdade que ela sempre quis ouvir estava nos olhos dele. — Você pediu para ouvir o fim da história — lembrou ele. — A bola de cristal de Renard era uma mentira. Ele não tinha nada para oferecer à rainha, assim como eu não tenho nada a lhe oferecer. Não tenho terras, nem títulos, nada. Eu sirvo às vontades de Edward. O bispado era para ser uma recompensa. — Ainda não entendeu? Eu não espero nada de você. Adão não tinha títulos. Eva não tinha terras. Nós só temos um ao outro para dar. — Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, você sabe. — Ele sorriu. — E vieram viver neste nosso mundo. — Como arranjou tanta coragem? — Amando você. Renard a envolveu nos braços, cheio de amor, então começou a lhe tirar a roupa lentamente. Quando ela estava nua, ele pegou o lenço de seda vermelha, que sempre carregava consigo, e o passou pelo corpo dela. Passou o lenço pelos seios dela, como faziam seus dedos, pelas orelhas, como fazia com a língua, e foi até as solas dos pés, como ele fazia com os dedos dos pés até ela rir, se contorcer e gemer. Então ele deixou o lenço cair e se apoderou do corpo dela, fazendo dos dois uma só pessoa. Em troca, ela o amou como se fosse a última noite' da vida deles. Porque seria. Só mais uma noite. Depois eu devo deixá-lo ir.
Depois de se amarem bastante, Katrine ficou deitada ali, em total felicidade, dormindo e acordando nos braços dele. A pele do seu corpo, tão sensível ao toque dele, 154
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) se arrepiou toda ao ouvir os sinos da manhã. Ela respirou fundo e sentiu o cheiro da paixão que havia impregnado o quarto. Queria se lembrar de cada momento, cada toque, cada palavra para poder reviver tudo no futuro. Seu cabelo espalhado pela cama, no seu corpo e no de Renard. Os dedos dele acariciando cada pedacinho seu, desde a orelha até a parte mais íntima entre as pernas. A sensação de tê-lo dentro do seu corpo. Querendo deixar sua semente no seu corpo, e ela rezando para que Eva não permitisse. Renard acabou dormindo e liberou seu corpo do peso dele. Como ela o deixaria livre. Não ficaria no caminho dele, não seria um empecilho para a vida que ele queria levar. Eu não tenho nada, disse ele, mas isso não era verdade. O rei Edward não abandonaria um homem que conquistou Flandres para ele. Se Renard recusasse o bispado, o rei poderia lhe arranjar uma viúva rica ou um título de nobreza. Ele teria uma vida na corte. Qualquer dessas opções seria melhor para ele do que uma mulher com fiapos de lã embaixo das unhas. Renard podia perdoá-la e até amá-la. Mas ela sabia bem a mulher que era agora. Adorava a lã e seu trabalho mais do que a vida que poderia ter com ele. Renard precisaria de outro tipo de mulher. Uma que não gritasse de felicidade quando faziam amor. Quando ele acordasse, ia lamentar as promessas que lhe fez. Se eu partir agora, não vou ter que ver arrependimento nos olhos dele quando acordar. Tentando não fazer barulho para acordá-lo, Katrine saiu da cama e vestiu sua roupa, nem se preocupou em pentear o cabelo. Ela pegou apenas seu saco pequeno, no qual colocou o tríptico de sua mãe, o pente e o espelho de prata. Nunca mais ela olharia para o espelho sem se lembrar do punhal que fazia conjunto com ele. Ela prendeu o saco e saia em uma das mãos e, com a outra, segurou a escada para descer, mas antes parou para dar uma última olhada em Renard. Ele não se mexeu. Depois ela desceu e puxou a escada.
CAPÍTULO TRINTA
Antes mesmo de abrir os olhos, Renard já sabia que ela não estava mais ao seu lado. Ainda não bem acordado, ele ouviu a voz de um homem no andar de baixo: — Katrine, você está aí? Renard conhecia a voz da cada cortesão. Este ele não conhecia. Pulando da cama, pegou a calça e a túnica que havia jogado longe num momento de paixão. Não podia ser encontrado nu no quarto dela. 155
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) A voz chamou de novo. Mais velho. Excitado. Impaciente. — Katrine, sou eu. Você está aí? A escada foi colocada no lugar e rangia com o peso de alguém subindo por ela. Renard enfiou o braço esquerdo na manga da túnica e colocou o punhal no cinto para alcançar a escada e logo deu de cara com um homem grisalho, magro e com linhas de expressão profundas em torno dos olhos. Olhos que eram iguais aos de Katrine. Sir Denys de Gravere estava de volta. O homem o fitava como se tivesse visto um fantasma. — Quem é você? — sussurrou ele. — Você parece ser meu parceiro reencarnado. Aliviado por não ter que responder o que fazia no quarto de Katrine, Renard lhe mostrou o cabo do seu punhal, sem nada dizer. — Onde você arranjou isto? — A mesma pessoa que deu a ele o espelho. — Então havia mesmo uma criança. — O senhor balançou a cabeça. — Giles nunca teve certeza. — Ele não tirou os olhos de Renard. — Qual foi o nome que ela lhe deu? — Renard. — Ela não pôde lhe dar o nome dele, mas prestou uma homenagem a ele. Renard significa raposa em francês. Vos significa raposa, em flamengo. A ideia o agradou, e ele se perguntou por que nunca tinha reparado nisso antes. Sua mãe havia colocado seu segredo à vista de todos, mas ninguém viu. De Gravere finalmente deixou de olhar para Renard para procurar pela filha. — Gostaria de lhe fazer inúmeras perguntas, mas primeiro quero saber onde está Katrine? A imagem de Katrine nua e satisfeita passou como um flash pela mente dele. — Acho que ela voltou para High Gate Street. — Voltou para o lugar no qual sempre se sentiu segura, até ele entrar na sua vida. Bem, isso não ia terminar assim. De Gravere ficou em silêncio, mas Renard sabia o que ele queria perguntar. — Vamos juntos até lá — disse Renard. — Muita coisa aconteceu nestes últimos meses que você precisa saber. Enquanto caminhavam, Renard contou como chegou na loja de Giles, falou do julgamento e sobre a confissão do irmão. Mas não disse nada sobre ele e Katrine. — Esse tempo todo... — Gravere estava arrasado. — Eu devia saber. Se não tivesse me ausentado de casa com tanta frequência... — Por favor — pediu Renard ao virarem a esquina. — Fale-me sobre meu pai. De Gravere o fitou rapidamente. — Seu colorido é muito parecido com o dele, exceto pelos olhos. Ele era enérgico e vigoroso. Um verdadeiro artista no tear. — Ele sorriu. — Dizem que os tecelões são mais inteligentes que os outros, porque têm muito tempo para pensar. Giles era assim. — E o que pode me dizer sobre... ela? — Até hoje, ele não conseguia chamá-la de mãe. 156
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Eu só conheci sua mãe através dos olhos de Giles. Ela estava viúva, depois de vinte anos de um casamento sem amor. Giles foi a Bruxelas para passar uma semana e acabou ficando lá seis semanas. Ele me contou o que aconteceu, mas nunca mais foi o mesmo. — No entanto, ele não foi atrás de mim quando ela morreu — falou Renard com amargura. — Ele nunca soube. Ela o escondeu bem. Um príncipe pode ter muitos filhos bastardos, mas uma princesa... Pela primeira vez, ele percebeu que faltou paixão na vida de sua mãe e também coragem para se arriscar. Coragem que agora ele sentia que tinha. — Alguma vez ele falou sobre ela? — Apenas com o trabalho. Giles criou o tecido duquesa, e enquanto ela viveu, ele fabricou uma peça de tecido por ano para ela, sempre de uma cor diferente. A última peça que ele fez era num tom azul forte. A cor dos olhos dela. E dos seus. Eles tinham chegado à loja. O letreiro com o nome Marca da Margarida balançava com o vento. Pela janela, ele viu Katrine varrendo a lareira. O cabelo dela caía pelas costas como seda. De Gravere se virou para Renard. — Você vai pedir que ela vá com você. Depois de passar a vida toda sem demonstrar emoção, ele tinha se revelado a esse estranho sem dizer uma só palavra. — Eu vou pedir, só não sei o que ela vai dizer. — Deixe-me falar com ela primeiro. Ao se afastar, Renard ouviu o grito de alegria de Katrine.
Algumas horas mais tarde, quando Katrine estava sozinha de novo, Renard entrou na loja, levando uma laranja na mão. — Tenho uma proposta a lhe fazer, ma petite — começou, sem lhe dar a chance de falar. — Se deixar passar esta oportunidade... — Ele pigarreou. — Farei a oferta a outra pessoa. — Qual é a proposta? — Vamos tecer as nossas vidas juntas. — Tem certeza? Não sou uma mulher perfeita. Trabalho com lã, falo demais. — Ela mordeu o lábio. — E raramente controlo minhas emoções. — E eu não quero outra mulher. Sua paixão me ensinou a aceitar a minha. Só tem um espelho que combina com o meu punhal. — Mas o rei vai lhe recompensar. Se não for com o bispado, será com uma esposa digna da sua linhagem. Ele lhe segurou o rosto e a fitou nos olhos. 157
Blythe Gifford - Véu da Inocência (Harlequin Históricos 107) — Depois de tudo, ainda não sabe que você significa tudo para mim? — Mais que o direito à primogenitura? — Tenho outra filiação. Sou filho de Giles de Vos. Quero tomar o lugar dele no tear, com você ao meu lado. Venha comigo para a Inglaterra. Vamos criar o nosso Jardim do Eden. Ele estendeu a mão para ela com a laranja e esperou que ela a pegasse. O que Renard estava propondo exigia muita coragem dela. E dele também. Katrine sorriu. — Que eu saiba, a fruta usada era uma maçã. — Ela ameaçou pegar a laranja, mas escondeu a mão nas costas. — Se eu aceitar, vai me arranjar toda a lã que eu quiser? — Se aceitar, vou lhe trazer toda a lã cisterciense que conseguir tecer. Ela pegou a laranja da mão de Renard, passou um dos braços em volta da cintura dele e o fitou. — Como posso saber se devo confiar em você? — Olhe na bola de cristal que são meus olhos. Você verá a verdade.
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POSFÁCIO DO AUTOR
Muitos dos fatos e personagens deste livro fazem parte da história, incluindo o embargo de lã feito pelo rei Edward III, a missão do bispo, apesar de eu ter trocado o nome dele, a batalha para obter a aliança com o povo flamengo, o assassinato de Sohier de Courtrai por conspiração, a ascensão de Jacob van Artevelde, o nascimento de John of Gaunt, Ghent, em uma data diferente da que consta neste livro. As histórias de Renard, a Raposa, eram bem conhecidas na França e nos Países Baixos. Os estudiosos desse período que me perdoem pela liberdade que tomei. Simplifiquei e resumi os acontecimentos de vários anos em um. Escolhi a hora e o lugar do confinamento da rainha Philippa, do nascimento e batizado do bebê para ilustrar minha história. Rei Edward, de fato, viajou para a França, uma vez, disfarçado de comerciante, mas não como retratei aqui. A palavra “globo” entrou em uso uns cem anos mais tarde, mas não quis usar o termo “esfera de vidro” por achá-lo pouco poético. Renard e Katrine são, claro, criações minhas. A história não registrou nenhum filho ilegítimo de Margaret, a duquesa de Brabante, filha do rei Edward I. Ao contrário do duque, que teve vários filhos ilegítimos. Na época em que se passa esta história, poucos tecelões se transferiram para a Inglaterra. Algum tempo depois, a Inglaterra superou a região de Flandres, passando a ser a maior produtora mundial de tecido de lã. Agrada-me imaginar que Renard e Katrine poderiam ter ajudado.
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