Blythe gifford a águia e o anjo (grh 01)

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford

A Águia e o Anjo

Blythe Gifford (The Knave and the Maiden)

O cavaleiro mercenaá rio Sir Garren devia muito a William, Conde de Readington: a espada que o protegia, o cavalo que montava, ateá mesmo seu tíátulo de nobreza. Por sua vez, Garren salvara a vida do Conde na Terra Santa. Mas William fica gravemente enfermo quando retornaram. E cabe a Garren salvaá -lo novamente a qualquer custo: mesmo que isso signifique fazer outra peregrinaçaã o e rezar por um deus a muito abandonado, prometendo deflorar uma jovem dama inocente caso seu senhor se recupere da doença... E Garren jaá fizera sua escolha para o sacrifíácio: a religiosa Dominica, para quem Sir Garren era um sinal dos ceá us. A peregrinaçaã o, abençoada com a presença do belo e heroá ico cavaleiro, certamente era uma orientaçaã o para que ela tomasse o haá bito. A cada passo da jornada, poreá m, Dominica parecia se desviar um pouco mais de Deus e ir diretamente para os braços de Garren. A ponto de começar a se perguntar se sua verdadeira missaã o naã o seria abrir o coraçaã o frio do mercenaá rio para o verdadeiro amor. Seraá que o beijo de Dominica teria mais poder do que as armas de Sir Garren?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Capítulo Um Castelo de Readington, Inglaterra, junho de 1357 — Deus me trouxe de volta dos mortos, Garren — disse William. — Voceê foi Seu instrumento. Garren fitou o amigo, deitado em seu leito. Quando William, Conde de Readington, estava no campo de batalha em Poitiers, Deus naã o levantara um dedo. Agora, Garren se questionava se devia ter feito aquilo. Talvez a morte em solo franceê s tivesse sido melhor para ele. Pela vida de William, contudo, Garren lutaria ateá com Deus o tempo que fosse necessaá rio. — Voceê foi o uá nico — disse William. — Os outros me deixaram laá para morrer. Mas William naã o estava morto, mesmo tendo havido dias em que Garren naã o tinha certeza disso. Depois que as tropas vitoriosas caminharam por toda a França e, finalmente, navegaram de volta para a Inglaterra, William começou a viver um purgatoá rio na terra; mantinha-se vivo porque Garren forçava-o a engolir aá gua, mingau e carne moíáda. — Sou teimoso demais para abandonaá -lo. — Mais que isso. — Entre cada palavra, William ofegava para respirar. — Voceê me carregou. Nas costas. — Voceê e sua armadura. — Garren sorriu, os laá bios apertados, e simulou um soco no ombro de William. — Naã o esqueça a armadura. Os Readington regozijaram-se mais com o retorno da armadura do que de seu dono. Enquanto o resto dos cavaleiros ingleses voltava para casa com os produtos dos saques, Garren limitou-se a trazer William. Para carregaá -lo, deixou para traá s as riquezas que tinham sido a promessa da campanha francesa. Tudo parecia valer a pena aà medida que William recuperava as forças. Poreá m, nas semanas que se seguiram ao seu retorno, os voê mitos começaram. Alguns dias estava melhor, outros pior. Agora, William estava deitado em um leito de morte. Durante o dia, sua cor variava entre o vermelho e o marrom, de uma extremidade a outra. Os criados trocavam os lençoá is, uma tarefa vaã , contudo um sinal de respeito. Naã o tinham muito mais a fazer. Pelo menos, pensou Garren, William poderia morrer em sua proá pria cama. — Preciso pedir mais... uma... coisa... — Seus dedos frios agarraram os de Garren com a força da morte. Dei-lhe a vida, o que mais posso fazer? Pensou Garren. Mas, quando fitou William, com pouco mais de trinta anos, e incapaz de se levantar da cama, teve duá vidas se o seu presente de vida havia sido taã o valioso, afinal. — Vaá aà peregrinaçaã o para mim. Peregrinaçaã o. Um pagamento preá vio a um Deus que jamais cumpre o que promete. Uma jornada a um tuá mulo que abrigava os ossos de uma mulher e as plumas de um anjo. — William, se Deus ainda naã o o curou, duvido que a Abençoada Larina o faça. — Vou pagaá -lo pela tarefa. Garren retirou sua maã o. Desistira de quase tudo por William, de bom grado. Soá lhe restava seu orgulho. — Voceê pode encontrar muitos tolos para fazerem a jornada como seus peregrinos. A dor contraiu o rosto de William. Com o braço esquerdo, protegeu o estoê mago, tentando conter o proá ximo acesso de voê mito. — Naã o confio... em mais ningueá m.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren murmurou alguma coisa, nem sim nem naã o, com a intençaã o de acalmaá -lo. Abrigou a maã o esqueleá tica de William entre as suas, grandes e quadradas. Muito tempo jaá se passara desde que William o assumira, um garoto de dezessete anos que ningueá m mais queria, velho demais para iniciar um treinamento para escudeiro. Tudo o que era devia a este homem. William agarrou-se ao braço de Garren e levantou o corpo, quase chegando a sentar. Era cinco anos mais velho do que Garren, mas parecia estar com uns oitenta. Depois de assegurar-se de que estavam a soá s, William estendeu a maã o e apanhou um pergaminho dobrado que naã o era maior que sua maã o. — EÉ para o monge do santuaá rio. Pegando a mensagem dos dedos treê mulos de William, Garren espantou-se como ele tinha conseguido segurar uma pena para escrever. A voz de William tambeá m estava treê mula. — O lacre naã o pode ser violado. Garren sorriu em sileê ncio. Mesmo no mosteiro, tinha sido um mau leitor. William acenou com o braço para chamar sua atençaã o, forçando uma resposta. — Por favor. Naã o tenho mais ningueá m. Garren olhou nos olhos do amigo, e decidiu que, enquanto William respirasse, cederia aos seus pedidos. — Naã o quero o seu dinheiro. — Queria dar a jornada de presente ao amigo. William balançou a cabeça indicando que não, soltando na fronha da cama um novo chumaço de cabelo louro. Sabia que o amigo naã o tinha dinheiro para ir mais longe que a proá xima batalha. — Aceite-o. Compre-me uma pluma de chumbo. Um emblema de chumbo de peregrino. Prova da jornada. Um sinal para alardear sua feá . Garren agarrou os dedos de William. — Trarei algo melhor. Jaá que naã o pode viajar ateá o santuaá rio, trarei o santuaá rio ateá voceê . Vou trazer-lhe uma pluma de verdade. De algum modo, parecia apropriado violar um santuaá rio para confortar um homem cheio de feá . Pelo menos uma pluma se pode ver, segurar, tocar. Naã o eá como as falsas promessas da Igreja. A peleja paá lida descorou. — Sacrileá gio. Um calafrio subiu a coluna de Garren. Roubar uma relíáquia. Violar um santuaá rio. Deus o puniria. Quase riu ao pensamento, resquíácios de anos de treinamento. Garren tinha visto como era insignificante a misericoá rdia divina. O castigo divino naã o podia ser taã o maior. — Naã o se preocupe. Ningueá m sentiraá falta de uma pequena pluma. Ainda balançando a cabeça, William fechou os olhos e caiu num sono profundo. A porta abriu sem ningueá m bater, e a voz alegre e ritmada do irmaã o mais novo de William, Richard, irritou os ouvidos de Garren. Richard naã o iria em uma peregrinaçaã o pelo irmaã o, nem por amor, nem por dinheiro. — Ainda respira? — Voceê parece ansioso para ouvir um "naã o". — EÉ que no estado em que se encontra naã o se pode dizer que esteja vivendo, naã o concorda? — Talvez. Mas, enquanto respirar, eá ele o Conde de Readington. Richard, contudo, soá tinha que aguardar. Seria o Conde dentro de muito pouco tempo. — O que eá isso? — Richard tentou pegar o pergaminho dobrado como se tivesse o direito. — Deve ser um pedido para a santa. — Agora que concordara, temia a jornada. Naã o os

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford dias de caminhada, mas a companhia de todos aqueles peregrinos cheios de feá que acreditavam em um Deus invisíável que responderia suas preces se eles pagassem Seu preço. Garren era mais esperto. — Pediu-me que fosse ao santuaá rio orar por sua recuperaçaã o. — Quando chegar laá , estaraá rezando pela alma de William. E quando voltar, pensou Garren, estarei rezando pela minha. Ajoelhada diante de seu crucifixo particular, a Priora desviou os olhos que contemplavam a pintura lascada da maã o esquerda do Cristo, quando a jovem adentrou sua sala em passadas largas, quase sem dobrar os joelhos para saudaá -la. Levantou-se com um estalar dos joelhos, sem saber por que consentira com esta audieê ncia, e acomodou-se em sua cadeira. Dominica era uma jovem esbelta, muito grata ao convento por teê -la recebido, criado e lhe conseguido o trabalho de limpar, lavar e cozinhar para as poucas freiras que ainda restavam ali. A peste negra havia causado muitas perdas. Havia poucas servas para plantar ou colher a safra. A caridade cristaã acompanhava um estoê mago cheio. Claro, Lorde Richard poderia ter tornado tudo mais faá cil. — Madre Julian, quero acompanhar a Irmaã Marian ao santuaá rio da Abençoada Larina. A Priora sacudiu a cabeça para ouvir melhor. O pedido era taã o afrontoso que achou que naã o tinha compreendido bem. Nenhum por favor. Nenhuma suá plica. — O que disse, Dominica? — Quero ir em peregrinaçaã o. E depois fazer os votos para noviça. — Quer ingressar na ordem? Era nisso que resultava educar uma jovem numa condiçaã o acima daquela que Deus lhe destinara. Devia ter dado a criança aà esposa do mineiro de carvaã o, quando teve a oportunidade. — Voceê naã o tem dote. — O dote naã o eá uma exigeê ncia — contestou Dominica, recitando o texto como se estivesse pregando. — A feá , sim, eá uma exigeê ncia. A Priora mordeu a líángua. Naã o iria discutir teologia com uma oá rfaã . Era preciso mais do que feá para alimentar e vestir vinte mulheres. — Naã o pode tornar-se freira. — Por que naã o? — A garota levantou o queixo como se tivesse o direito de discordar. — Posso copiar os manuscritos em latim taã o bem quanto a Irmaã Marian. — O que a faz pensar que tem um chamado, Dominica? — Deus me contou. — Deus naã o fala com oá rfaã os abandonados. — A Priora entrelaçou as maã os em oraçaã o, ateá os noá s dos dedos ficarem brancos e as pontas vermelhas. Era culpa sua. Permitira que a garota se sentasse com elas durante as refeiçoã es e ouvisse a leitura das Escrituras. Provavelmente, a criança esperta alimentava a ilusaã o de que entendia a vontade de Deus porque tinha ouvido Suas palavras. — Deus fala atraveá s de Seus servos da Igreja. Ele naã o me disse nada quanto a voceê ingressar na ordem. — Mas, Madre Julian, eu sei que tenho a missaã o de propagar a palavra d'Ele. — Aproximou-se mais e baixou a voz: — Quero copiar os textos na nossa líángua, para que o povo possa verdadeiramente entendeê -los. A Priora bateu os dedos devotos contra os laá bios. Heresia. Tenho uma herege sob o meu teto. Se os Readington descobrirem, nunca verei outro vintém deles. Eu não deveria tê-la deixado aprender as letras. — Este eá o meu lugar. Sei disso. E depois que chegar ao santuaá rio, a senhora tambeá m saberaá , porque Deus me daraá um sinal. — O rosto de Dominica iluminou-se com o tipo de feá

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford que a Priora haá muitos anos naã o via nem sentia. — A Irmaã Marian seraá minha testemunha. Irmaã Marian sempre mimou demais a menina. — Quem pagaraá pela jornada, seu manto e seu alimento? Quem faraá seu trabalho em sua auseê ncia? — As Irmaã s Catherine, Baá rbara e Margaret assumiraã o as minhas tarefas. E a Irmaã Marian disse que pagaraá minha comida com seu dote. — Dominica tinha uma expressaã o desafiadora. — Naã o vou comer muito. — O dote da Irmaã Marian agora pertence ao convento. — A Priora aninhou a cabeça palpitante nas maã os. Que fim levou a obedieê ncia? Era nisso que dava permitir que as Irmaã s mantivessem caã ezinhos de estimaçaã o. — Por favor, Madre Julian. — A jovem caiu de joelhos, finalmente em atitude de humildade. E puxou com força o haá bito preto da Priora com seus dedos manchados de tinta, as unhas roíádas taã o rente que a terra do jardim naã o tinha onde se prender. — Eu preciso fazer essa jornada. Ateá que Priora percebeu onde aquilo poderia ser providencial. Quem sabe a jovem naã o quisesse retornar quando descobrisse a vida aleá m dos muros. Ela tinha uma beleza de causar inveja aà maioria das pessoas. Se ao menos se deitasse com o primeiro homem que a cortejasse, retornaria de barriga, e naã o haveria condiçaã o de fazer os votos. Madre Julian suspirou. Que a vontade de Deus seja feita. E melhor que ela vaá e leve suas ideá ias perigosas consigo antes que o Abade ou o Conde descubram, mesmo que me obrigue a designar outra pessoa para cuidar da roupa e capinar. Praticamente naã o tinham condiçaã o de pagar uma moça da vila. — Estaá bem, vaá . Mas naã o fale mais de sua heresia. E se houver qualquer problema na viagem, naã o poderaá voltar mais para o convento, com ou sem o veá u. Dominica levantou as maã os e os olhos para os ceá us. — Obrigada, Pai Celeste. — Abaixou a cabeça e saiu apressada, sem pedir permissaã o. A Priora fez um ar de reprovaçaã o. Nenhum agradecimento a mim pelas muitas bondades, pensou. Soá a Deus. Deus cuidaria dela agora. A respiraçaã o de Dominica irrompia de seu corpo. O alíávio elevava-a do chaã o, e ela quase flutuava pelo corredor. Deus sempre respondia aà s suas preces, mesmo se tivesse de ajudaá -1O um pouco. O que a Priora e a Irmaã Marian naã o sabiam sobre essa jornada ficaria reservado para o futuro. Sentada no paá tio ensolarado do claustro, a Irmaã Marian ensinava Inocente a sentar ereto. Melhor dizendo, tentava. Como Dominica, o, caã o era um vira-lata que ningueá m mais queria. Difíácil de ser amado e treinado. — Ela disse "sim", ela disse "sim". — Dominica girou a Irmaã ateá levantar seu haá bito preto. — Eu vou, eu vou. — Inocente latiu. — Shhh, quieto. — A Irmaã tentava acalmar Dominica e o caã o, que corria em cíárculo para alcançar o curto rabo. Era uma brincadeira que Dominica lhe ensinara. — Bom menino — Dominica cocou atraá s da uá nica orelha. — Naã o se preocupe, Irmaã . — Tudo vai dar certo. Deus me contou. A Irmaã arregalou os olhos em direçaã o ao corredor. — Naã o deixe a Madre Julian ouvir que Deus fala com voceê . Dominica deu de ombros. Naã o adiantaria contar aà Irmaã que Madre Julian jaá sabia disso. — EÉ como diz a escritura: Bata, e a porta se abrirá para você — emendou Dominica em latim. — E se a ouvir falando latim, mudaraá de ideá ia. — Mas se Deus tenta falar conosco, por que naã o deveríáamos abrir nossos ouvidos para Ele?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Certifique-se de que naã o estaá colocando suas proá prias palavras na boca de Deus. Dominica suspirou. Deus lhe dera ouvidos, olhos e um ceá rebro. Certamente esperava que ela os usasse. — De qualquer modo, iremos e, quando voltarmos, farei meus votos. A Irmaã sentou-se e segurou os dedos de Dominica entre os seus. Dominica amava a sensaçaã o das maã os da Irmaã . Eram macias, pois naã o tinham que lavar roupa ou capinar, e os dedos de sua maã o direita eram sempre rijos, em posiçaã o de segurar a pena. Quando criança, Dominica invejava a Irmaã com seu calo de escrever, no dedo meá dio, e esfregava sempre o seu, na esperança de criar um. — Lembre-se, minha filha, Deus nem sempre responde as nossas preces da maneira que desejamos. — Como poderia haver uma outra resposta? Minha vida inteira eá aqui. — Ela amava os dias organizados e previsíáveis, o sileê ncio da capela onde podia ouvir a voz abafada de Deus, a tinta vermelha, azul e dourada brilhante que iluminava Suas palavras. Tudo o que sempre desejara estava a ponto de, finalmente, lhe pertencer plenamente. Ser aceita como uma Irmaã . — Posso ler melhor do que a Irmaã Margaret e copiar melhor do que qualquer uma, exceto a senhora. — A Irmaã suspirou. — Estaá fazendo pressaã o novamente, Dominica. Naã o haá garantia de que Deus concederaá o que procura. — Ah, quanto a Deus tenho certeza. Quem me preocupa eá a Priora. — A Irmaã levantou as maã os em submissaã o. — Quando tiver vivido mais, estaraá menos certa quanto a Deus. Venha, vamos arrumar nossas coisas. Precisamos nos aprontar para partirmos amanhaã . E quando retornarem, pensou Dominica, a mensagem estaraá a salvo nas maã os certas, e ela nunca mais precisaraá sair de casa. Soá era preciso feá . E açaã o. — Precisamos de dinheiro, Milorde. — A Priora forçou a inclinaçaã o em suá plica. A humildade diante de Lorde Richard naã o lhe vinha com facilidade. A Priora havia armado uma situaçaã o para ele ouvir seu pedido, aproximando-se apoá s a refeiçaã o do meio do dia, quando a Grande Sala ainda estava cheia de cavaleiros, escudeiros e servos, de modo que ele naã o pudesse recusar. Mas a sala estava vazia agora, aà exceçaã o do cheiro de carneiro cozido. Seu estoê mago roncou. — Para que quer dinheiro, Priora? — perguntou Richard. Com seus ombros estreitos e o nariz afilado, ele recostou na cadeira e limpou a orelha, depois atirou a cera da unha para o ar. — Pensei que as freiras naã o precisassem das coisas mundanas. A Priora se perguntou se Lorde Richard mostrava esse desrespeito por todos os seus requerentes. A doaçaã o que ela pedia naã o representaria nenhuma privaçaã o. — Alimento, tinta para escrever e fundos para a peregrinaçaã o anual, Milorde. — Estamos em tempos difíáceis. — De pernas cruzadas, Richard balançava o peá , examinando-o atento. — Seu pai era um grande patrono do nosso trabalho no convento — lembrou ela. Ela nunca sentira sua perda mais do que quando olhava para esse segundo filho de cabelo escuro e pele clara. — Ele prometeu apoiar nosso trabalho de copiar a Palavra de Deus. — Meu pai estaá morto. — E eá por isto que me dirijo ao senhor. — Como sabe, eá a meu irmaã o que deve pedir. E eá impossíável, para mim, permitir-lhe isto agora. — Oramos por ele diariamente. Sua sauá de estaá melhorando, Milorde? Lorde Richard tentou sufocar o riso com uma expressaã o grave. — Priora, talvez seja melhor que a senhora se apresse em terminar o Livro de Morte de

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford meu irmaã o. Mas sempre existe uma esperança — disse Richard, reprimindo o riso. — O mercenaá rio vai aà peregrinaçaã o por ele. Madre Julian persignou-se. — O cavaleiro que trouxe seu irmaã o de volta dos mortos? — A vila inteira sabia da histoá ria. Ela chegara a ouvir blasfeê mias de pessoas que o chamavam de O Salvador. — Se acredita na versaã o dele. EÉ difíácil confiar em um homem que luta por moedas, e naã o por fidelidade a um senhor. Uma críática curiosa, pensou ela, jaá que Lorde Richard tentara evitar lutar na França e conseguira. — Um cavaleiro sem terras deve fazer o que pode — disse ela. — Deus trabalha de formas misteriosas... Richard deu um sorriso de desprezo. — Naã o eá mesmo? Bem, talvez suas preces e a visita do mercenaá rio suavizem o coraçaã o da Santa Larina e curem o meu irmaã o do mal que o atinge. — Sua voz era puro teá dio. — Quem cumpriraá a promessa perpeá tua este ano? — Irmaã Marian. — Ela hesitou por um momento. — E Dominica. Lorde Richard empinou-se, seus olhos encontraram os dela pela primeira vez. — A pequena escriba? Jaá tem idade para viajar? Seraá que todos sabiam que a garota sabia escrever? Queira Deus que ela naã o tenha dito nada a ele sobre suas ideá ias hereá ticas. — Estaá no seu deá cimo seá timo ano, Milorde. — E ainda virgem? — A Priora levantou-se. — O senhor tem uma opiniaã o taã o negativa a respeito da minha administraçaã o? — Interpretarei isso como um "sim". O que ela busca nessa peregrinaçaã o? — Dominica deseja entrar para a ordem, e estaá buscando um sinal da aprovaçaã o de Deus. — Certamente porque a senhora naã o aprova. Ela o avaliou por um instante. Poderia haver uma razaã o para dizer-lhe a verdade. — Naã o, eu naã o aprovo. — Entaã o temos algo em comum. Tenho um outro interesse. O mercenaá rio — disse ele. Seus olhos escuros brilharam. — A gratidaã o de meu irmaã o parece transformar-se em sustento eterno, como se Garren fosse um santo. Eu gostaria que meu irmaã o visse o patife que ele realmente eá . Ela jaá sabia o patife que Lorde Richard era. Sem duá vida, seu irmaã o tambeá m o sabia. A Priora esperou sua proposta. Sabia que naã o seria agradaá vel. — Ofereça a Garren dinheiro para seduzir a pequena virgem. Ele parece fazer qualquer coisa por umas moedas. E quando ela acusaá -lo, teremos o que desejamos. — Milorde, eu naã o posso... — A senhora naã o quer que ela seja freira. Nem eu. E quando Garren estiver desgraçado, William seraá obrigado a enxotaá -lo. Do contraá rio, serei eu a fazer justiça. E, entaã o, terei algumas tarefas pessoais para a jovem. — Seu sorriso naã o deixava duá vidas de que seriam executadas no quarto. — Ela ainda vai poder cuidar da roupa para a senhora, Priora, no seu tempo livre. — Milorde, como pode pedir tal coisa? — E como poderia ela levar em consideraçaã o? Por ser responsaá vel por vinte vidas aleá m da de Dominica. Vidas jaá prometidas ao Senhor. E, quando o Conde morresse, o destino dessas vidas ficaria nas maã os de Lorde Richard. — Se fizer isso, poderei dar-lhe um incentivo generoso para o mercenaá rio por seu pecado. Esse esquema asseguraria que nunca fizesse os votos. Claro, naã o era exatamente isso que ela mesma havia imaginado, melhor dizendo, desejado? Talvez, Deus estivesse

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford respondendo aà s suas preces naã o verbalizadas. — E estou certa que seraá generoso com o convento. — Tudo dependeraá do eê xito da senhora e da Abençoada Larina, naã o eá ? A jovem tinha os olhos do proá prio diabo. Talvez esse fosse o destino que Deus pretendia para ela. E o mercenaá rio? Ele e Deus poderiam lutar por sua alma. — Naã o prometo nada — disse a Priora, cautelosa. — Soá posso preparar a mesa. E orar por perdaã o. — Eu tambeá m naã o prometo nada. — Richard fitou-a de relance. — Prepare isso bem. Garren, apesar de ter desistido de Deus como causa perdida, ainda estava chocado por uma freira ter-lhe pedido que violasse uma virgem. — Dominica eá o nome dela — disse a Priora. — O senhor a conhece? Sem fala, ele negou com a cabeça. — Venha. — A Priora fez um gesto convidando-o a aproximar-se da janela. — Veja por si mesmo. A jovem estava ajoelhada na terra com o rosto voltado para o outro lado. Seus cabelos caíáam pelas costas como mel derramado em uma trança grossa. Cantarolava junto aà s plantas, um som tranquü ilizador como o zumbido de uma abelha sonolenta. O coraçaã o de Garren bateu mais forte. Mesmo de costas, ela o agradava. Naã o seria difíácil possuíá-la, mas a ideá ia trazia-lhe de volta uma sensaçaã o de indignidade que haá muito acreditava desaparecida. — Naã o a forçarei. — Ele vira muita brutalidade na França. Cavaleiros faziam votos de honra, e depois possuíáam as mulheres como porcos no cio. A lembrança revirou seu estoê mago. Seria melhor passar fome. — Use os meá todos que preferir. A garota naã o deve voltar virgem dessa viagem. Garren voltou a olhar para a jovem que arrancava as ervas daninhas. Naã o era um cavaleiro saíádo de um romance, mas sabia lidar com as mulheres. Os adeptos de acampamentos por toda a França poderiam confirmaá -lo. Toda mulher tinha um ponto fraco, era soá dar-se ao trabalho de procuraá -lo. Qual seria o dela? As orelhas em formato de concha? A curva do pescoço? Dominica ficou de peá e os olhos azuis mais puros que Garren jamais vira penetraram sua alma infeliz. Por um instante, Garren tremeu mais do que jaá tremera diante de uma batalha com os franceses. Seios redondos. Sardas. Sobrancelhas cerradas. A boca, o laá bio superior seá rio, e o inferior com uma curva sensual. E uma impressaã o de que ela naã o era deste mundo. — Por queê ? — Garren fizera regularmente essa pergunta a Deus, sem obter resposta. Naã o sabia por que esperava que uma Priora fosse respondeê -la. A Priora, de peito e quadris fartos, naã o analisou a pergunta sob a oá tica da teologia. Seu crucifixo pendente tilintou como uma espada quando ela se afastou da janela para naã o ouvir o feliz cantarolar. — O senhor me considera cruel. — Jaá vi a guerra, Madre Julian. A falta de humanidade do homem naã o eá pior que a de Deus. — Garren teve um pensamento repentino. A decisaã o de ir para a cama com uma donzela o levaria a casar-se em quinze dias. — Se eá um marido que a senhora procura, eu naã o sirvo. Naã o tenho como sustentar uma esposa. — Ningueá m lhe pediraá para casar com a moça. Os olhos de Garren pousaram em um remendo muito bem costurado no haá bito preto desbotado, e ele teve duá vidas se a madre teria o dinheiro que prometera. — Nem serei punido.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Se o senhor tivesse algum dinheiro naã o estaria considerando minha oferta. Naã o, tambeá m naã o seraá punido. Deus tem outros planos. — A senhora naã o se importa com a minha alma imortal, mas e com a dela? O que lhe aconteceraá depois? — Sua vida vai continuar quase como era antes. Garren duvidava. Mas o dinheiro que lhe era oferecido seria suficiente para dar a William o presente da peregrinaçaã o. William em breve estaria morto. Garren naã o seria bemvindo sob o reinado de Richard. Tudo o que possuíáa eram um cavalo e uma armadura. Com a Inglaterra e a França em paz, naã o tinha para onde ir. Com o que a Priora lhe oferecia, mais as poucas moedas que lhe restavam da França, poderia encontrar um canto da Inglaterra que ningueá m quisesse, onde Deus e ele pudessem ignorar-se um ao outro. — Pode pagar-me agora? — Sou uma Priora, naã o uma tola. Receberaá seu dinheiro quando retornar. Se tiver eê xito. Vai aceitar? O cantarolar feliz da moça ainda soava nos seus ouvidos. O que mais um pecado significaria para um Deus que soá punia os honrados? Aleá m do mais, a Igreja naã o precisava dessa moça. Jaá tinha muitas. Garren inclinou a cabeça concordando. — A Irmaã Marian tambeá m iraá ao santuaá rio. Ela naã o sabe nada sobre isto. Quer que a moça volte para o convento e faça os votos. — E esse naã o eá o desejo da senhora. A Priora fez o sinal-da-cruz. Um leve estremecimento agitou seu haá bito. — Dominica eá uma criança rejeitada que tem os olhos do diabo. Ele poderaá teê -la de volta. — Seu sorriso era tudo menos santo. — E o senhor agiraá como instrumento de Deus.

Capítulo Dois — Olhe. Laá estaá ele, O Salvador. — As palavras da Irmaã Marian encantaram os ouvidos de Dominica. A Irmaã sussurrou, para que ningueá m ouvisse, o apelido blasfematoá rio daquele que, como o verdadeiro Salvador, trouxera um homem de volta a vida. — Onde? Qual? — Dominica naã o se preocupou em falar baixo. Todas as pessoas do convento estavam reunidas no paá tio do Castelo de Readington a fim de assistir aà beê nçaã o dos peregrinos de Deus, antes de saíárem em sua jornada. — Laá . Ao lado do grande cavalo baio. — Dominica respirou fundo. Era o homem que tinha visto aà janela da Priora. Ele certamente naã o tinha a apareê ncia de santo. Seus ombros largos pareciam feitos para o mundo real, naã o o espiritual. Os cabelos ondulados castanho-escuro, da cor de couro bem usado, cobriam sua cabeça e emolduravam seu rosto, onde ele começava a deixar crescer uma barba de peregrino. Sua pele era curtida do sol e do vento. Garren novamente encontrou os olhos da jovem. Como na primeira vez, alguma coisa muito forte chamou a atençaã o dela, como se Garren tivesse falado. Isso certamente deve ser devido aà santidade dele. Com um latido, Inocente saiu correndo pelo paá tio atraá s de um grande gato alaranjado. — Vou pegaá -lo — avisou Dominica, tarde demais para a Irmaã objetar. Seria difíácil manter Inocente em segurança em meio aà s tentaçoã es do mundo. Aos primeiros passos, Dominica emaranhou a saia nas pernas, e, ao soltaá -las, sentiu o ar fresco do dia. Rindo, precipitou-se por entre dois burros e, finalmente, agarrou Inocente ao

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford peá de um cavalo. Um grande cavalo baio. Ao lado de um homem de ombros largos. O Salvador era mais alto do que parecera aà distaê ncia. Uma espada de soldado pendia ao lado da tigela e do saco de viagem de peregrino. Trazia alguma coisa em volta do pescoço, escondida sob a tuá nica. Uma peniteê ncia particular, talvez. — Bom dia — disse ela, inclinando a cabeça para traá s para encontrar os olhos castanhos, aliaá s, verdes, de Garren. — Meu nome eá Dominica. — Sei quem voceê eá . Ao seu olhar, o sangue dela correu pelos dedos e pelo estoê mago, de um jeito estranhamente agradaá vel. — Deus lhe contou? — Se Deus falava com ela, com certeza devia ter longas conversas com algueá m taã o santo. — A Priora me contou. Ela se perguntou o que mais a Priora lhe havia contado. O cachorro retorcia-se em seus braços, e ela cocou sua cabeça. — Este eá Inocente. — Ele riu. — Em homenagem ao nosso Santo Padre em Avignon, sem duá vida. Isso, ela tinha certeza, a Priora naã o lhe contara. Dominica continuou a correr, sem lhe dar tempo para pensar se o nome homenageava ou zombava do Papa. — Estamos todos gratos ao senhor por trazer o Conde de volta dos mortos — disse Dominica. — Ele fedia como Laá zaro? — Como? — A Bíáblia diz que "Laá zaro cheirava mal porque estava morto haá quatro dias". — Naã o foi em um dos sermoã es do Abade que ouviu falar do mau cheiro de Laá zaro. Era melhor naã o lhe contar que ela proá pria tinha lido. — Na refeiçaã o da tarde, as Irmaã s leê em as Escrituras e me permitem ouvir. — Dominica esperou um sinal de irritaçaã o. Poderia algueá m taã o ligado a Deus perceber sua pequena mentira? — A histoá ria de Laá zaro naã o soa muito agradaá vel — disse ele. — Mas, sim, noá s dois fedíáamos quando chegamos em casa. — EÉ claro que o Conde naã o estava morto haá quatro dias quando o trouxe de volta aà vida. — Eu naã o o trouxe de volta dos mortos. Simplesmente naã o o deixei morrer. Dominica achou essa uma distinçaã o teoloá gica muito sutil. — Mas o senhor tinha feá no poder de Deus. "Aquele que creê em mim, ainda que esteja morto, viveraá ." — Cuidado em quem creê . A feá pode ser perigosa. As palavras daquele homem, frias como os seus olhos, pareciam taã o simples e taã o complexas quanto as Escrituras. Dominica lembrou-se do final da histoá ria de Laá zaro. Quando os fariseus souberam o que Jesus tinha feito, decidiram que deveria morrer. — Sabe meu nome, mas eu naã o sei o seu, Senhor... — Garrem — Sir Garren de queê ? — Sir Garren de lugar nenhum. Sir Garren sem nada. Como conveá m a um simples peregrino. — Naã o tem um lar? — Tenho Roucoud de Readington. — Ele acariciou o pescoço do cavalo. — Readington? — Um presente do Conde.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Por que ele teria ficado irritado diante de um presente taã o maravilhoso? Readington deve valorizaá -lo muito para presenteaá -lo com um animal fantaá stico como este. — E o seu lar eá montado em um cavalo? — Tenho sido mercenaá rio. Luto por moedas. — E agora? — Agora sou um peregrino pago — murmurou ele —, fui contratado para fazer esta peregrinaçaã o. O que surpreendeu Dominica naã o foi ter na jornada um peregrino pago, e sim ser ele o Salvador. — Que pobre morto teria deixado moedas em testamento para uma peregrinaçaã o por sua alma? — Naã o foi um morto... ainda. Ele deve estar se referindo ao proá prio Conde de Readington, pensou Dominica, aliviada. O segredo estava em boas maã os, e seria bom ela parar de fazer perguntas. — Desculpe-me — disse ela. — Guarde o segredo de sua jornada santa em seu coraçaã o. — Eu naã o sou nenhum santo. Sua insisteê ncia pareceu irritaá -lo. Como ele podia negar que foi tocado por Deus? Todos conheciam a histoá ria. Hoje, estaá partindo em viagem para o santuaá rio da Abençoada Larina. Por Saã o Miguel Arcanjo, pensou Dominica, era bem possíável ele vir a ter seu proá prio santuaá rio. — Deus o escolheu como Seu instrumento para salvar a vida do Conde. — Um instrumento pode servir a muitas maã os. Tanto Deus como o diabo fazem uso do fogo. O sino tocou e, como um bando de gansos, os peregrinos de manto cinza dirigiram-se aà porta da capela. Dominica depositou Inocente no chaã o, e ele voltou para a Irmaã Marian, de rabo em peá . Dominica tentou segui-lo, mas suas pernas recusaram-se a sair dali. — Por favor — murmurou ela. — Deê -me sua beê nçaã o. — Receba sua beê nçaã o do Abade como o resto dos peregrinos. — Mas o senhor eá o Sal... — Ela mordeu a líángua. — O senhor eá especial. Os olhos dele faiscaram, mudando de emoçaã o e de cor, e ela sentiu o perigo que a feá podia trazer. — Jaá disse, naã o sou santo. Naã o posso dar nenhuma beê nçaã o de Deus. — Por favor. — Com dedos treê mulos, ela segurou as maã os grandes e quadradas. Ajoelhou-se e encostou os laá bios nas articulaçoã es de seus dedos. Garren retirou as maã os. Ela as puxou de volta e as colocou sobre sua cabeça inclinada. A maã o de Garren enrijeceu-se. Lentamente, cobriu-lhe a curva da cabeça e desceu deslizando, ateá chegar aà pele nua da nuca. Os dedos dele queimavam como brasa. O peito da jovem ficou tenso, e ela tentou respirar. O cheiro da poeira do paá tio mesclava-se a um novo odor, intenso e profundo, que vinha dele. O som do sino na igreja foi sumindo, mas a sensaçaã o de paz que ela esperava naã o chegou. Seu coraçaã o batia em seus ouvidos, como se todos os quatro humores de seu corpo estivessem loucamente fora de equilíábrio. Ele se afastou, balançando a maã o em um gesto que poderia ser uma beê nçaã o, uma despedida, ou rejeiçaã o. — Obrigada, Sir Garren do Aqui e Agora — murmurou ela, voltando correndo para a segurança da Irmaã e de Inocente, com medo de olhaá -lo novamente e temendo jaá ter colocado muito de si naquelas maã os. As maã os de Garren queimavam como se tivessem tocado o fogo. O sangue santo de Deus. Ela acha que sou um santo. Garren riu da blasfeê mia.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford A reaçaã o de seu corpo enrijecido era a de um homem, mas o caimento do manto de peregrino disfarçava aquilo, aleá m de todos os seus outros pecados. Esta tarefa seria faá cil demais e muito agradaá vel, mas ele estremecia perante a ideá ia de tirar vantagem da feá que ardia nos olhos da moça. Ela acreditava que ele era separado por Deus de alguma forma. Seria um grande desapontamento descobrir o quanto ele era carnal. Garren afastou a sensaçaã o de culpa. A jovem teria que aprender um dia, como ele aprendera. A feá eá uma armadilha para os tolos. Garren virou-se e viu a Priora, sorrindo como se tivesse presenciado toda a cena. Como se quisesse veê -lo possuir a garota ali mesmo, no chaã o do paá tio. Dominica, com sua feá inocente, naã o era paá reo para a Priora. Talvez ele pudesse nivelar as desigualdades e enganar a Igreja: diria aà Priora que tinha levado a garota para a cama, e receberia o pagamento por um pecado que naã o tinha cometido. Naturalmente, a garota diria que continuava pura, poreá m seria taã o prejudicada quanto se ele a tivesse deflorado. Mas estaria livre. Livre das garras da Igreja. Sorrindo, Garren entregou as reá deas do cavalo a um pajem e foi unir-se aos outros. Servos, cavaleiros, escudeiros, cozinheiros, pajens, ateá a Priora e Richard afastaram-se quando eles se dirigiram aà capela. Esperava que William naã o visse da janela Richard usurpar o lugar que, de direito, era do Conde de Readington. Pela primeira vez, Garren reparou em seus companheiros de viagem. Quando atravessaram a porta da igreja, contou os integrantes do grupo. Eram menos de doze. Um jovem casal de maã os dadas. Um homem com uma cicatriz no rosto e nariz torto. Uma mulher rechonchuda, com certeza esposa de algum comerciante, pela costura de seu manto. Dois homens que pareciam irmaã os, pelo formato dos queixos. Alguns outros. Cada um deles tinha uma cruz que enfeitava o manto comprido cinza ou estava costurada por dentro, ou ainda, como no caso da esposa do comerciante, estava pendurada no pescoço. Dominica andava com os olhos azuis enfocados em Deus, ignorando o caã o que se agitava em seus braços. Na porta da igreja, ela o colocou no chaã o e se virou treê s vezes para conseguir que ele ficasse. Garren riu. Pelo menos o cachorro era irreverente. Quando Dominica cruzou a porta da sombria capela, Lorde Richard colocou a maã o no seu ombro e sussurrou-lhe algo no ouvido. Dominica afastou-se e entrou raá pido, sem sequer olhar para ele. Garren cerrou o punho. Naã o precisava de mais uma razaã o para odiar Richard. Richard e a Priora viraram-se para Garren, o uá nico peregrino ainda no paá tio. Um criado aparentemente tenso afastou-se e deu passagem para ele entrar na capela de Readington. Garren passou por eles apaá tico, lerdo, com os olhos fixos no acabamento de pedra da moldura da porta, procurando ignorar os olhares e murmuá rios. O manto com a cruz costurada por insisteê ncia de William, o relicaá rio em volta do pescoço, tudo parecia uma fantasia de uma personagem de um drama sacro. A mensagem misteriosa de William estava presa ao seu peito. Somente sua espada e a concha em volta do pescoço lhe eram familiares. A concha de chumbo era uma lembrança da famíália que Deus levara, apesar de terem pago Seu preço para serem salvos. — Venha, Garren. — Richard nunca o honrava com Sir. — Deus e o Abade o aguardam. Partíáculas de poeira rodopiavam no raio de luz que terminava proá ximo ao altar. Garren ajoelhou-se ao lado de Dominica, em frente ao parapeito do altar. Com os olhos no Abade, Dominica naã o o percebeu. O Abade, que fizera uma longa viagem de White Wood para dar a beê nçaã o, a proferia em latim, com o propoá sito de ser mais bem compreendido pelos ouvidos surdos de Deus do que noá s outros, pensou Garren.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford A garota acompanhava suas palavras com os laá bios, como se as entendesse. Seus cabelos refletiam uma luz em volta da cabeça como uma aureá ola. Ela era jovem e vulneraá vel, intocada pelo mundo, e Garren tinha a mais estranha sensaçaã o de que, apesar de tudo, era mais forte do que ele. De repente, ele se perguntou se conseguiria teê -la e continuar sendo a mesma pessoa. O Abade mudou para o idioma do povo. — Voceê s que estaã o aqui reunidos para partir em peregrinaçaã o estaã o prontos para essa jornada? Deixaram para traá s os bens mundanos para viajarem na simplicidade, como fez Nosso Senhor? Garren observou Dominica acenar que sim, perguntando-se que bens mundanos ela teria. Em nove anos, ele naã o juntara nada aleá m do que podia carregar. — Quando chegarem ao santuaá rio, devem fazer uma confissaã o sincera, ou sua jornada naã o seraá reconhecida aos olhos de Deus e dos santos. Todos faraã o? Murmuá rios de sins farfalharam como folhas secas. Garren se conteve. Confessaria a Deus quando Ele lhe devolvesse o favor. — Lorde Richard pede que cada um de voceê s ore por seu amado irmaã o, o Conde de Readington, que, depois de ter sido salvo da morte, vive em um estado mais proá ximo dos ceá us do que da terra. — Agradeço ao meu irmaã o, mas eu mesmo pedirei por minha salvaçaã o. — Willíáam interrompeu-o. — Que...? — Richard naã o sabia o que falar. Garren ameaçou levantar-se, querendo acreditar em milagres, desejando ver William novamente forte e de peá . Protegendo os olhos do sol, voltou-se para a porta da igreja. Contra a luz, viu a silhueta de uma figura reclinada, quase comprida demais para a maça. William, paá lido e magro como um fantasma, foi carregado em seu leito por dois homens, um deles segurando uma vasilha de estanho para o caso de uma necessidade. A multidaã o respirou fundo em uníássono. Depois, maã os iam das testas aos ombros, fazendo o sinal-da-cruz contra um espíárito surgido dos mortos. William acenou para os dois criados seguirem adiante. As pessoas ali reunidas davam passagem enquanto William era carregado ateá o altar, onde a Priora se inclinou sobre ele. Richard, com expressaã o arrogante e olhos impiedosos, permaneceu imoá vel. O Abade, aturdido, virou os olhos para os ceá us em busca de orientaçaã o. — Deus deu ao Conde forças oriundas da pureza das nossas intençoã es. — Sua voz cresceu. — Voceê s que faraã o essa jornada orem por um milagre! — Obrigado por suas... preces. Garren ficou de coraçaã o partido ao ouvir a voz de William. Antes, taã o firme nas batalhas. Agora, tremia como se fosse de algueá m com o dobro de sua idade. — Providenciei o alimento do primeiro dia. — Um gesto magníáfico, Lorde Readington — disse o Abade. Richard franziu a testa. William acenou como se afastasse uma pequena nuvem de fumaça. — E que seja sabido... — Ele pausou para respirar. — Garren viaja a meu pedido e leva minha mensagem para a Abençoada Larina. William virou-se, com aê nsia de voê mito, justo a tempo de alcançar a vasilha de estanho. Garren fechou os olhos, como se a dor de William pudesse deixar de existir se ele naã o a visse; como se, assim, trouxesse o passado de volta. — Vamos terminar com uma prece pelo eê xito de Sir Garren e pela recuperaçaã o de Lorde Readington. Depois, abençoarei os cajados e distribuirei os testemunhais — anunciou raá pido o Abade. Garren viaja a meu pedido — dissera William. O que iriam pensar dele agora?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica sorriu para ele, mas todos os outros pareciam fascinados, como se realmente estivessem vendo um homem de Deus. Todos, menos a Priora. E Richard.

Capítulo Três Dominica apoiou a testa no parapeito do altar para se concentrar em Deus, em vez de na repentina apariçaã o do Conde. O Abade beijou o seu cajado e o depositou nas suas maã os estendidas. Ela encostou os laá bios na madeira tosca descascada e o firmou no chaã o. Em seguida, o Abade entregou-lhe os testemunhais, o rolo de pergaminho com as palavras maá gicas do Bispo que faziam dela uma peregrina de verdade. Seus dedos tremiam quando ela o colocou dentro de um saco, ao lado do seu proá prio pergaminho e da sua pena. Mais tarde, sem ningueá m por perto, compararia a letra do copista com a sua. Dominica procurou a voz de Deus dentro de si. Tentava ignorar O Salvador aà sua esquerda mas, ao mesmo tempo, queria saber se ele a observava. Era um homem firme como o cajado que tinha nas maã os. Do tipo que pode nos amparar. Ela o examinou pelos dedos entreabertos. Segurava seu cajado como se fosse uma arma. Parecia acostumado a ficar de peá sem precisar do apoio de um cajado. Nem de um amigo. Nem sequer de Deus. Por favor, Deus, me dê um sinal no santuário de que eu devo continuar me dedicando a servi-Lo no convento e a pregar a Sua palavra. Quis acrescentar "na líángua do povo" mas naã o forçaria ainda aquele ponto com Deus. Depois, abriu os dedos e deu uma espiada na Irmaã Marian aà sua direita. Um servo secava o suor da testa do Conde. Haá quase dez anos, no auge da peste negra, Deus o poupara da morte e levara seu pai, o velho Conde. Ainda tinha na lembrança as semanas de luto pela morte dele. Os olhos da Irmaã Marian ficaram vermelhos por muitos dias. Mas Deus poupara seu filho. Tinha enviado O Salvador para protegeê -lo mais uma vez. Dominica acrescentou uma prece pelo Conde que, certamente, merecia a ajuda de Deus. E a dela. O Abade falou o uá ltimo ameá m. Os companheiros peregrinos levantaram-se e passaram pelo Conde no caminho de saíáda da capela para agradecer o alimento. Quando a Irmaã Marian parou diante do Conde, ele agradeceu por seu trabalho no Livro dos Salmos de Readington. Trazia-o firme nas maã os. A Irmaã afastou o cabelo fino e louro da testa uá mida do Conde como se ele fosse uma criança. Muitos tiveram medo de tocaá -lo. Murmuraram "lepra" ao verem as manchas pretas, rosas e brancas da sua pele. Dominica tambeá m vacilou um pouco quando chegou sua vez de inclinar-se diante do Conde. Mas ele fora taã o bom para ela. Diferente de Richard. O Conde encostou o dedo indicador nos laá bios. — Lembre-se. Um segredo. Ela inclinou levemente a cabeça num sinal de confirmaçaã o e procurou Lorde Richard. Fazer uma confissaã o sincera, dissera o Abade. Seraá que manter um segredo requer a mesma peniteê ncia que uma mentira? Dominica achou que naã o. Uma mentira tem palavras. As palavras a tornam real. O Salvador ajoelhou-se ao lado do Conde e abraçou os ombros do moribundo com ternura. Sir Garren vai nos apressar, pensou ela, aliviada. Chegaremos laá a tempo de a Abençoada Larina salvar o Conde. Dominica e a Irmaã retornaram ao parapeito do altar e se ajoelharam para uma beê nçaã o final da Priora. A jovem queria palavras que a confortassem ateá voltar para casa, segura. Em vez de um beijo de paz, a Priora sussurrou para ela, muito baixo para ningueá m mais ouvir.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Lembre-se, qualquer sinal de problema, e voceê naã o teraá mais um lar conosco. Depois, virou-se para a Irmaã Marian e disse qualquer coisa em latim. Dominica agarrou seu cajado. Naã o ter o convento como lar significaria naã o ter lar algum. Finda a beê nçaã o da Madre, a Irmaã Marian apoiou-se em seu cajado e esticou os joelhos relutantes. Naã o tinha mais de quarenta anos, mas a atividade de copiar envelhecera seu corpo, assim como a de cantar mantivera a juventude de sua voz. Dominica, ainda tremendo das palavras de Madre Julian, ofereceu-lhe o braço. Ela e a Irmaã saíáram juntas, em passos lentos, em direçaã o aà porta da capela. As laá grimas frias que saíáam dos seus olhos transformaram numa nuvem cinza a imagem dos peregrinos no meio do paá tio ensolarado. Certamente Deus naã o deixaria a Priora atrapalhar o plano que Ele tinha para a vida dela. — Qual eá o problema, filha? — a Irmaã acariciou o braço de Dominica com os dedos enrijecidos. — Por que estaá chorando? Mudou de ideá ia? Quer ficar? Mais do que qualquer coisa. Mas naã o haá razaã o para perturbar a Irmaã Marian com palavras que naã o saã o para ela. Dominica esfregou as costas da maã o na laã aá spera. — Claro que quero ficar aqui. EÉ por isto que estou nesta jornada, para nunca mais precisar sair de novo. — Fora do convento, o mundo eá grande. Muitas coisas podem acontecer. — E eu pretendo anotar tudo para poder me lembrar quando voltarmos. — Ela acariciou o saco onde estavam o precioso pergaminho e a pena. — Diz isso agora. — Uma tristeza obscureceu os olhos da Irmaã . — Pode ser que naã o queira voltar. — Claro que vou querer. — Ateá o pensamento de ser abandonada no mundo a fazia desejar o conforto do convento. — Conheço cada tijolo da capela, cada galho da aá rvore do jardim. O convento eá o meu lugar. A Irmaã Marian piscou quando saíáram para o sol, e esticou-se para endireitar o manto grosso de laã cinza nos ombros de Dominica. A Irmaã Baá rbara tinha costurado o manto aà s pressas, com todo amor, jaá que naã o se podia dizer que Dominica costurava taã o bem quanto copiava. A Irmaã Marian tinha resolvido que o manto que usara na peregrinaçaã o, haá cinco anos, ainda estava perfeitamente bom, e naã o precisaria de um novo. — Algum dia sentiu falta de ter uma maã e, Nica? — Ela sorriu ao ouvir a Irmaã usar seu nome de quando era uma menininha e naã o conseguia dizer "Dominica". — Tenho muitas maã es. Voceê , a Irmaã Baá rbara, a Irmaã Catherine, a Irmaã Margaret. — Com facilidade, Dominica cobriu a maã o da Irmaã com a sua. A Irmaã sorriu exibindo uma covinha. — E nenhuma de noá s conseguiu fazeê -la deixar de roer as unhas. Jaá sentiu falta de um pai? — Como eu poderia sentir falta de algo que nunca tive? Aleá m disso, tenho nosso Pai Celeste. E prometi a Ele espalhar Sua palavra santa usando as minhas maã os. — Dominica elevou o rosto para o ceá u, deixando o calor do sol apagar as palavras da Priora. — Sei o que Deus quer para mim. A feá naã o permite duá vidas. — Naã o consegui ensinar a voceê algumas coisas. Ateá mesmo os mais fieá is duvidam. Ter feá eá seguir adiante apesar da duá vida. O Salvador disse que a feá pode ser perigosa. Dominica olhou para o interior da capela. Ele ainda estava ajoelhado e segurava a maã o do Conde. Seus ombros faziam sombra sobre o corpo enfraquecido. Fidesfacitfidem, respondeu ela, em sileê ncio. — A feá gera feá .

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren apertou a maã o fraá gil de William, como se a sua proá pria energia pudesse trazer a sauá de de seu amigo. Ateá a pele de William estava descarnando, era como se o corpo se dissolvesse para libertar sua alma. — Vou entregar sua mensagem sem perguntar do que se trata, e trazer uma pluma de laá , mesmo sendo pecado — disse Garren. Richard ainda falava com o Abade, e a Priora conversava com a jovem e a Irmaã , longe demais para ouvi-lo. — Mas naã o finja para essas pessoas que sou algum tipo de profeta. Um sorriso tomou conta do semblante de William. — Talvez voceê esteja mais perto de Deus do que pensa, meu amigo. — Sabe que naã o eá bem assim — retrucou Garren. — Se Deus ouvisse as minhas preces, eá você quem estaria nesta peregrinaçaã o. — Firmando o cotovelo contra o de William, ele o forçou. O peso de seu braço empurrou o do amigo para baixo sem esforço. — Na volta, vamos fazer uma queda de braço pelo pagamento da peregrinaçaã o. O vencedor paga. — Pensei que seu jogo preferido fossem os dados. — Naã o vou desperdiçar essa chance de ganhar. — O pagamento da peregrinaçaã o eá muito pouco se comparado a tudo que deixou para traá s por mim. — E uma peregrinaçaã o naã o eá nada, perto do que voceê fez por mim. — Qualquer coisa que Garren tivesse que fazer em retribuiçaã o valia a pena. Qualquer coisa. Ele afastou a lembrança de Dominica cantarolando. A energia que levantara William da cama tinha se esvaíádo. A pele de seu rosto estava toda repuxada. — Aleá m disso, a naã o ser que se apresse, eu naã o estarei aqui para podermos discutir. — EÉ bom estar — disse Garren entre os dentes trincados. — Vai querer ver a pluma da santa que vou trazer para voceê . William demonstrou descrença e murmurou algo contra o ato de blasfeê mia, mas Garren naã o ouviu. Devia a William mais do que a Deus. Farei o que for preciso para ir e voltar a tempo de vê-lo de novo, de devolver um pouco do que lhe devo. Mas ele achou que Deus ria de sua promessa. Um suave farfalhar anunciou a aproximaçaã o da Priora em seu haá bito preto. — Que bom veê -lo fora do quarto, Lorde Readington. E uma resposta aà s nossas preces constantes. Garren naã o tinha duá vidas de que aquilo era verdade. A ajuda dos Readington significava sua subsisteê ncia, e Richard naã o era conhecido como um patrono generoso. — Obrigado pelas preces, Priora. — William sinalizou para Dominica. — Dominica tambeá m vai? Curioso. Garren sequer sabia que William a conhecia. — Implorou-me para deixaá -la ir, Milorde — disse a Priora, levantando as sobrancelhas. — Vamos ver aonde Deus a levaraá quando vir o mundo pela primeira vez. Garren fitou a Priora com repugnaê ncia. Naã o era Deus quem iria desencaminhaá -la. — Quem eá ela, William? — perguntou Garren. Desta vez, a Priora dirigiu-lhe um olhar lancinante. Os olhos de William estavam desbotados, mas ainda lhe restava um certo humor. — Voceê teve muitas mulheres, Garren. Naã o me diga que naã o percebeu essa. Cabelos louros. Olhos sombrios. — Parece que voceê mesmo a percebeu — respondeu ele. A Irmaã Marian endireitava o manto de Dominica. A luz do sol incidia nos seus cabelos. William estava enganado. Naã o era louro. Era cor de cerveja clara, quando a luz do fogo reflete nela. — A minha famíália eá responsaá vel pelo convento e por todos que ali residem.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren sentiu um arrepio na espinha. E se William tivesse um interesse na jovem? Depois, afastou a ideá ia. Era mais provaá vel que William estivesse morto quando eles voltassem. Nunca saberia qual foi o seu destino. Ainda assim, o pensamento naã o o confortou. — William — começou Garren. — Milorde — interrompeu a Priora. — Jaá que estaá taã o bem a ponto de sair do quarto, venho tentando ter uma audieê ncia para pedir... — Irmaã o, como voceê eá tolo — interrompeu-a Richard, que largou o Abade sozinho e se aproximou apressado, quase empurrando a Priora com o cotovelo. — O esforço foi demasiado. Niccolo, venha! Garren ia começar a falar, quando o italiano Niccolo apareceu. Haá quanto tempo estaria ele escondido? Niccolo, com seu nariz grande e laá bios grossos, tinha sido deixado para traá s por um dos prestamistas da Lombardia. Foi com o dinheiro do empreá stimo deles que o Rei pagou os mercenaá rios que lutaram na França, como o proá prio Garren. Richard cedera um aposento ao homem. Ningueá m sabia ao certo o que ele fazia ali. Garren suspeitava que era dado aà praá tica da alquimia. Richard sustentava que ele pesquisava o elixir de ouro que pudesse curar a doença que estava matando William. E incríável quantas doenças o ouro pode curar. Niccolo, com a cabeça inclinada, escondia os olhos. — Sim, Lorde Richard. — Ele nunca deveria ter deixado o quarto neste estado — disse Richard. — Acho que estaá precisando de um dos seus remeá dios curativos. Niccolo bateu palmas, e os dois criados se aproximaram. Os dedos de William soltaram os de Garren quando a maça foi levantada. — Volte logo, Garren. — Adeus, irmaã o — murmurou Garren, sem saber se voltaria para ver William ainda com vida. Quando Richard seguiu acompanhando a maça, Garren voltou-se para a Priora. — Naã o me disse que o Conde tinha um zelo especial por Dominica. — Era a primeira vez que ele pronunciava aquele nome, e soava de forma agradaá vel. — A garota naã o foi feita para o veá u. Isto deve ficar bem claro. Temos um acordo. Honreo. — Honraá -lo? Uma estranha palavra, Priora, considerando o que pediu. — Deus trabalha de formas misteriosas — disse ela desviando o olhar para Richard. — Parece ansiosa para culpar Deus por todos os pecados. Assumo a responsabilidade pelos meus. — Entaã o faça-o. Acredito que a quantia seja suficientemente persuasiva. — E eá . — Garren sentiu-se sujo, mas seu pecado naã o seria pior que os que cometera em troca do dinheiro do Rei. Mais uma vez, perguntou-se como a freira conseguiria o dinheiro. E por que isso era taã o importante para ela. Sem duá vida, mais um dos misteá rios de Deus. De repente, uma vontade enorme de ir embora dali tomou conta dele. Queria começar logo a jornada, respirar o ar puro do vento, ateá mesmo fazer essa coisa inuá til para William. Inclinou-se para cumprimentar a Priora e, sem dizer nada, saiu da capela. — Ali estaá ele — Dominica apontou para Garren. Os companheiros peregrinos voltaram-se para veê -lo. — EÉ aquele? — Esse eá o homem? Uma voz soava como a outra. Os rostos indistintos fitaram-no em expectativa.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Precisamos de um líáder — disse um jovem de cabelos ondulados. Ao seu lado, uma mulher que parecia igual a ele segurou sua maã o. — Deveria ser O Salvador. Todos pausaram esperando alguma reaçaã o da parte de Garren. Ele resmungou. De fato, em uma peregrinaçaã o, a devoçaã o eá importante. — Sim — disse Garren. — Estou certo de que Nosso Senhor Jesus seraá nosso líáder a cada passo do caminho. — Isso mesmo. Respondeu com as palavras adequadas. — Naã o — disse o jovem. — O Salvador. Voceê .

Capítulo Quatro O Salvador. Você. Garren teve que se conter para naã o rir. Ateá em Deus o mundo pregava peças. Dez rostos ansiosos que aguardavam sua resposta. Ele podia identificaá -los agora, um por um. A freirinha. O jovem casal parecido de maã os dadas. A esposa de comerciante, uma mulher roliça e experiente. Os irmaã os. O homem mal-humorado com a cicatriz. Um escudeiro jovem demais para ganhar as esporas. Um homem alto e magro que o vento poderia derrubar. Dominica tinha o rosto iluminado pela feá . Nele. Ningueá m ali poderia manejar uma arma ou conseguir alimento na floresta. Naã o sabiam nada a respeito de sobreviveê ncia. Ele sabia. A França lhe ensinara. — Eu os guiarei, porque tenho condiçoã es de levaá -los ateá laá em segurança. — E de trazeê los de volta raá pido para ver William mais uma vez, pensou. — Naã o por ser o Salvador de algueá m. — Salvador? Quem voceê salvou? — resmungou em desaprovaçaã o o homem da cicatriz. Esse, pelo menos, naã o o reverenciava. O cabelo branco, grosso como palha, emoldurava seu rosto maltratado. Poderia ter vinte ou quarenta anos, mas certamente tinham sido anos difíáceis. — Nenhum homem pode me salvar. Nem Deus pode. — E afastou-se com passos pesados. — Como? — A mulher roliça virou um ouvido na direçaã o dele. — Pode repetir? Naã o ouço deste ouvido — disse ela bem alto, batendo de leve na sua orelha di reita. — Soá consigo ouvir com este — continuou, apontando para o esquerdo. — Fale mais alto. Algueá m jaá fez esta viagem antes? Quando fui ao santuaá rio de Santiago, em Compostela, tíánhamos um guia inexperiente e passamos uma semana perdidos nos Pirineus, ateá que conseguimos chegar aà Espanha e quase... Enquanto ela divagava, a concha pressionava o peito de Garren. Ele se perguntou se Deus e Santiago teriam respondido aà s preces da mulher. Dominica tocou o braço da mulher para que ela a ouvisse sem precisar gritar. — A Irmaã Marian jaá esteve no santuaá rio da Abençoada Larina. Mais de uma vez. A freirinha puxou a manga de Dominica. — Nica, por favor... Nica. Chamavam-na de Nica. Garren repetiu. A mulher do comerciante dava duas da Irmaã , a quem olhou de cima a baixo. — Mais de uma vez? Entaã o, talvez, a Irmaã pudesse nos guiar, em vez desse rapaz Salvador. Garren acompanhou a risada geral que dissipou a irritaçaã o do homem da cicatriz. A mulher do comerciante, ainda rindo, aproximou-se dele, com a concha de Compostela em volta do pescoço, tilintando contra uma cruz de ouro e uma medalha de estanho de Saã o Tomaá s Becket sentado de lado em um cavalo. Ela apertou os muá sculos de seu braço, como se

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford estivesse avaliando um cavalo. O espanto de Dominica pelo desrespeito divertiu-o. — O senhor parece ser do tipo confiaá vel — disse a mulher. — Ombros largos. Braços fortes. Lutou em Poitiers? — Sim — respondeu Garren entre dentes. — Uma grande vitoá ria. E trouxe o Conde de Readington de volta aà vida. — Ela inclinou a cabeça em aprovaçaã o. — Se Deus estaá cuidando tanto do senhor, cuidaraá de noá s tambeá m. Deus naã o tem nada a ver com isso, pensou Garren, desvencilhando-se dos dedos dela. — Sou um soldado, naã o um santo. As almas dos senhores saã o problema vosso. — O muá sculo entre as omoplatas doíáa-lhe, como se ele tivesse levantado uma espada pesada ao assumir a responsabilidade da segurança de todos. — Peguem sua comida. Façam suas despedidas. Sairemos dentro de uma hora. AÀ exceçaã o de Dominica e da Irmaã , eles se espalharam. Essa histoá ria de Salvador era tudo obra da garota, pensou, e ele terminaria com isso agora. — Dominica — começou Garren. Ela se afastou de sua carranca. — Vou pegar sua comida, Irmaã — gritou ela, e correu para a cozinha, caã o abanando o rabo atraá s dela. — Parece que a feá de Dominica eá um fardo desagradaá vel para o senhor — A freirinha falou. Garren a analisou por um instante. O haá bito herdado era comprido e largo, dando aà pequenina mulher a apareê ncia de uma criança que usa a roupa da maã e. Os olhos azul-claro demonstravam cansaço. A Irmã Marian quer que a garota faça os votos, segundo disse a Priora. Ele se perguntava se isso seria verdade. — Obrigada por concordar em nos liderar — continuou ela. — Isso naã o eá faá cil para o senhor. Garren teve um arrepio como se um espíárito tivesse falado. Naã o queria que ela pensasse que ele era um peregrino de verdade. Estava ali por William, e naã o por Deus ou para se elevar. — Naã o sou o que pensam, Irmaã . — Nenhum de noá s o eá , meu filho. Soá Deus nos conhece de verdade. — Entaã o Deus sabe que sou um impostor — disse Garren, com um ar de desafio que naã o sentia. — Uma farsa, uma fraude. Sou um peregrino contratado, Irmaã . — Falou alto como se sentisse orgulho disso. — Estou sendo pago por esta jornada. — Muitos peregrinos teê m segredos — disse a Irmaã , como se tivesse ouvido tudo o que ele naã o tinha dito. A voz melodiosa naã o pedia uma confissaã o. — Deus nos ama de qualquer jeito, naã o importa nossos segredos. Garren buscou algo no rosto da Irmaã . Naã o, esta mulher naã o sabia o que a Priora planejara para Nica. — A senhora passou a vida longe das tentaçoã es do mundo. Que segredos pode ter, Irmaã ? — Os que Deus me ajudou a guardar. Garren naã o sabia por que ela lhe dizia isso, e sentiu uma pontada de inveja pela certeza de sua feá , uma feá que naã o tinha sido forjada atraveá s da leitura do ritual, mas em um pacto entre o seu coraçaã o e o de Deus. Deus mantivera Sua promessa aà Irmaã Marian. Ateá agora. Se os padres que conheceu fossem taã o santos, ele ainda estaria no mosteiro. E ficaria satisfeito em deixar Dominica no convento. — A senhora chamou-a de Nica — disse ele. A pele clara da Irmaã ficou ainda mais paá lida, como se ele a tivesse sobressaltado ou amedrontado.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — O que disse? — Eu estava falando outra coisa. A senhora chamou a garota de Nica. Por queê ? — Eu a conheço desde que nasceu. Era assim que ela se chamava quando estava aprendendo a falar. — Desde que nasceu? Eu pensei... — Garren parou. Naã o havia necessidade de contar que tinha conversado com a Priora. — Eu disse desde que nasceu? Eu quis dizer desde que Deus a trouxe para nossos cuidados. — Baixa demais para alcançar os ombros de Garren, a Irmaã afagou-lhe os braços com dedos suaves. — E agora estaraá nas suas maã os. Ele naã o queria ser lembrado de sua traiçaã o. — Entaã o, Irmaã , a senhora jaá fez essa viagem antes. — Treê s vezes. Fui no ano da peste negra para rezar pelas almas de todas as pessoas que viviam sob a proteçaã o do Conde. Soá a Irmaã que viajou comigo e o proá prio Conde morreram. — Seus olhos ainda levavam a sombra daquela peste. — A Santa protegeu todos os outros. Anualmente, mandamos algueá m para agradeceê -la. Estive no primeiro ano da gestaã o do Papa Inocente. — E a terceira vez? — Irmaã Marian desviou os olhos de Garren. — Dez anos antes. — A freira pegou seu cajado e inclinou-se, ríágida, para caminhar. — Agora, se me daá licença, preciso reunir meus pertences. Garren observou-a. Sentia dor a cada passo. Ela pode ter feito a jornada antes, mas era mais jovem. — Irmaã , vou lhe pedir um favor. — A mim? Qual eá , meu filho? — Sei que a senhora prefere caminhar com todos noá s, mas... — Mas o queê ? Que desculpa poderia encontrar para poupaá -la do sofrimento da caminhada? — mas meu cavalo Roucoud estaá acostumado a levar peso nas costas. Seraá difíácil para ele andar sem isso. — Naã o era preciso contar-lhe que ela era taã o pequena que o cavalo de batalha quase naã o a perceberia em seu dorso. — Aleá m disso, a senhora jaá fez o caminho antes. Se montaá -lo, poderaá ver a estrada e ajudar a nos orientar. — Abençoado, senhor, por sua bondade. — Uma covinha apareceu no rosto da Irmaã . — EÉ preocupante, naã o eá , ter um cavalo que precisa ter um peso nas costas quando se estaá cansado de cavalgar? Eu estava pedindo a ajuda de Deus nesta jornada, e voceê aparece. — Naã o confunda a minha ajuda com a de Deus, Irmaã . Saã o duas coisas inteiramente diferentes. — Ela o descobriria mais tarde, pensou. — A ajuda de Deus vem de onde voceê menos espera. — A puniçaã o de Deus tambeá m, pensou ele. Com Inocente atraá s de si, Dominica correu para a escura e enfumaçada cozinha. Coelhos, pombos e um ganso gordo, mais carne do que Dominica jamais vira, pendiam dos caibros do telhado. O cheiro do sangue secando misturava-se ao do paã o receá m-saíádo do forno. Os ajudantes da cozinha entravam e saíáam e, quando o cozinheiro gritava, corriam taã o raá pido quanto ela precisou correr para escapar da irritaçaã o do Salvador. Pela cara feia de Garren, ele sabia que ela tinha contado ao simpaá tico moço e aà sua esposa sobre ele ter trazido Lorde William de volta da morte. Ora, e qual eá o problema? Pensou. Se eu tivesse feito alguma coisa taã o maravilhosa, iria querer que todos soubessem. Como a Priora sempre dissera, o orgulho antecede a destruiçaã o. — Fiquem em fila! Aguardem um minuto! — gritou o cozinheiro. Um jovem ajudante de cozinha entrou correndo e acrescentou um paã o do dia anterior aà estranha combinaçaã o de queijo e vegetais sujos de terra que estava espalhada sobre a mesa de madeira. O cozinhei ro,

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford resmungando, tentava dividir tudo em onze sacolas iguais. — Era melhor que a piedade do Conde tivesse sido avisada um dia antes. Pacientemente, no fim da fila, ao lado da mulher surda, Dominica reprimiu uma certa inveja de seu belo manto de laã . A mulher abaixou a cabeça e sorriu atraveá s dos cíálios para o homem alto e magro que estava do seu outro lado. Tambeá m sorriu e respondeu ao cumprimento. Dominica baixou o olhar, com medo de ser pega observando, e piscou muitas vezes ao ver as meias vermelhas que cobriam os tornozelos grossos da mulher. Apesar do peito cheio de medalhas, essa mulher mundana naã o parecia nem um pouco uma peregrina. Seria ela uma prostituta arrependida? — A comida eá importante — disse o homem alto. — EÉ bom para equilibrar os humores. A mulher poê s a maã o em seu ouvido bom. — Ah, o senhor eá um meá dico, bom senhor? — Meu nome eá James Ardene — disse o homem alto, curvando todo seu corpo num cumprimento. — Exerço a profissaã o proá ximo de St. John's. — Ficaremos felizes com sua companhia. — Onde mora, senhora? — perguntou o meá dico. — Em Bath — respondeu ela. — Sou Agnes Cropton, viuá va. — A viuá va de meias vermelhas balançou os dedos em um aceno quando o meá dico se despediu. Viúva. Naã o julgue, que naã o seraá s julgado, Dominica lembrou a si mesma. — Sinto muito por sua perda. — Qual? — Do marido que morreu. Ah, desculpe, e pela perda de sua audiçaã o tambeá m. — Dominica suspirou. Era mais faá cil falar com Deus do que com estranhos. — Eu quis dizer qual marido. — Quando o cozinheiro virou as costas, a mulher jogou um pedaço de queijo na boca. — Quanto aà minha audiçaã o, foi o imprestaá vel do meu segundo marido que me fez ficar surda. Ele me batia muito na cabeça e nos ombros. Deus o levou de um golpe soá — disse ela enfaá tica. — Mas isso foi haá muitos anos. — O proá ximo! Andem! — berrou o cozinheiro. — Estou feliz por termos um meá dico entre noá s. Podemos ser atacados por alguma doença horríável no caminho. Quando eu estava em... O cozinheiro puxou a manga da viuá va. — Eu disse para andar. EÉ surda? — Sim, eu sou — a mulher respondeu. — Que Deus o proteja por sua preocupaçaã o. O cozinheiro jogou o farnel de comida para ela rispidamente. — E mantenha aquele cachorro longe da mesa! — gritou ele para Dominica. — Olha, ele jaá comeu um pedaço de queijo! Naã o vou alimentar os animais tambeá m. A viuá va fingiu naã o ouvir. Mesmo esticando-se, Inocente naã o conseguiria alcançar a mesa, mas Dominica o segurou e deu-lhe os treê s uá ltimos farneá is de comida. — Para a Irmaã Marian e O Salvador — gritou ela para o cozinheiro mal-humorado, e saiu da cozinha ao lado da viuá va Cropton. — Hoje eu naã o me importaria de ser surda de um ouvido — gemeu Dominica. — Pode ser uá til quando naã o quero ser perturbada. Qual eá o seu nome, querida? De onde eá ? — Dominica. — Sob a luz do sol, ela deixou Inocente no chaã o e varreu com os olhos o paá tio aà procura da Irmaã e do Salvador. — Moro no convento. — Naã o parece uma freira. — Ainda naã o sou. Mas serei. — As palavras a fizeram sorrir.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford A viuá va resmungou como se duvidasse. — Naã o tem o jeito de quem vai ser. — Dominica levou a maã o ao rosto, apertou as bochechas, tocou a testa, desceu pelo nariz, puxou as orelhas. A Priora dizia que seus olhos eram ameaçadores. Havia mais alguma coisa? Seria ela deformada? — O que haá de errado comigo? Naã o temos espelho no convento. — Nada quando voceê sorri — respondeu a viuá va ao beliscar a bochecha de Dominica com os dedos. — Ria mais, menina. Mostre essa covinha. Naã o se preocupe. Vai arranjar um marido. — Mas eu naã o quero um marido. Quero ser freira. — A viuá va Cropton naã o pareceu acreditar nem aprovar. — Esse eá o uá ltimo recurso. Uma garota bonita naã o vai precisar desperdiçar a vida num convento. Naã o eá um desperdíácio divulgar a palavra de Deus, pensou Dominica, mas decidiu que naã o era funçaã o sua explicar o plano de Deus aà viuá va Cropton. — A senhora vai peregrinar para pedir que a Abençoada Larina a ajude a ouvir de novo? — perguntou Dominica. — EÉ , suponho que sim. — A viuá va acariciou as medalhas. — Apesar de Santiago e Saã o Tomaá s nada terem resolvido. Talvez uma boa santa possa ajudar. — Entaã o, a senhora jaá peregrinou antes? — Dominica avistou O Salvador e a Irmaã ! — Cinco vezes. — A viuá va riu com vontade. — Uma depois de cada marido. — Cinco? — Dominica voltou-se para a viuá va chocada. — O que aconteceu a eles? — Ah, morreram todos. Eram muito mais velhos do que eu. — A viuá va acariciou o queixo e o pescoço, onde a pele estava perdendo a firmeza antes de desaparecer nas dobras da touca. — Os homens saã o criaturas muito fracas. Se naã o saã o mortos em batalha, pegam varíáola, caem de um cavalo ou se afogam no rio. Dominica tentava ouvi-la, mas naã o parava de virar-se para observar Sir Garren. O Salvador naã o parecia fraco, refletiu. Com as mangas dobradas, revelando os braços queimados de sol, ele colocava um saco de viagem atraá s da sela do cavalo. O esforço contraíáa seus muá sculos. Na verdade, ele naã o tinha nenhuma semelhança com os retratos dos santos magros e paá lidos que adornavam as paredes da Igreja. — Entaã o a senhora naã o estaá casada agora? — Naã o, do contraá rio naã o estaria aqui. Ou naã o precisaria estar. Haá mais de uma razaã o para visitar os santos, querida. Em Bath, nunca acontece nada, sabe como eá . — Nada acontece no convento tampouco, mas quero muito ficar laá . — Segura com Deus e o sileê ncio. — Eu nunca tinha me afastado. — Ah, voceê tem um divertimento pela frente. Na estrada, nunca se sabe o que cada dia pode nos trazer, apesar de que, se soubesse que esta viagem seria taã o atrasada, talvez tivesse mudado de ideá ia. Todos serem obrigados a caminhar! E ainda usarem mantos cinzentos! Quando fui ao santuaá rio de Santiago em Compostela, na Espanha, fui carregada por um burro o tempo todo, durante quase um ano, na ida e na volta, e ningueá m reclamou que eu naã o estava demonstrando a piedade apropriada. Dominica pareceu concordar, novamente observando a Irmaã , preocupada. Com sorte, estariam de volta antes do Dia de Saã o Swithin, mas os passos da Irmaã entre o scriptorium e a capela estavam mais lentos do que antes, e ela recusara a sugestaã o de Dominica de montar o burro extra do convento. — E entaã o? — disse a viuá va, alto o bastante para trazer Dominica de volta de suas preocupaçoã es. — O rapaz Salvador, qual eá o nome dele? — Sir Garren. — Ele me lembra o meu quarto marido. Foi o meu favorito. Haá muito a se dizer a favor

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford dos maridos, querida, mesmo dos ruins. AÀ s vezes eá bom ter um homem para aquecer a cama e murmurar no seu ouvido bom. — Mas ele eá O Salvador! — As palavras da viuá va soavam como blasfeê mia, mas naã o mais do que as sensaçoã es provocadas pelo pensamento de Sir Garren aquecendo sua cama. Dominica queria lembrar-lhe que ia ser freira e naã o precisaria de um homem, mas a viuá va viu James Ardene no paá tio, e acenou para ele. — Desculpe-me. Acho que vou perguntar ao meá dico se trouxe alguma manjerona. Vou precisar de um cataplasma para os peá s antes de chegarmos a Exeter. Dominica virou-se e viu Garren levantando a Irmaã Marian. Ele a colocou no cavalo e a acomodou na sela de encosto alto com ternura. Ela suspirou, aliviada pelo fato de a Irmaã ir a cavalo, e quis saber como ele a persuadira. Mas era O Salvador. A Irmaã o ouviria. Iria agradecer-lhe.

Capítulo Cinco Ao lado do enorme cavalo de batalha, Dominica esticou-se para entregar aà Irmaã seu farnel de comida. Depois, abaixando a cabeça para evitar os olhos de Gar-ren, jogou o outro para ele, que estava ocupado amarrando a bagagem atraá s da sela. Dominica ainda naã o es tava pronta para fazer seu discurso de agradecimento. Quando o sol estava a pino, ela e os outros falantes peregrinos seguiram O Salvador na travessia da ponte do castelo de Readington em direçaã o a oeste. Ao lado de Garren, a Irmaã equilibrava-se em cima de Roucoud. Dominica caminhava do outro lado. Inocente vinha logo atraá s. Entre o castelo e o convento, os campos variavam entre o amarelo e o verde, tudo lhe era familiar. A oeste, para aleá m do convento, cada passo a distanciava de tudo que conhecia. A fala monoá tona da viuá va Cropton a descrever cada detalhe de suas peregrinaçoã es anteriores irritava seus ouvidos e obscurecia o canto da cotovia. No meio da tarde, a mulher tinha descrito a viagem pelo Canal ateá Calais. Dominica tambeá m se sentia como se tivesse viajado ateá a França, pois jaá naã o reconhecia a terra que os circundava. Suas pernas doíáam, e ela invejava os muá sculos de Roucoud, contraindo e relaxando sob o peê lo avermelhado a cada passo firme. Olhou em volta dele. O Salvador andava com tanto vigor quanto seu cavalo, um passo atraá s do outro. Dominica pronunciou em tom inaudíável vaá rias palavras que poderia dizer em agradecimento, preferindo na verdade escreveê -las, mas a quantidade de pergaminho que trouxera jaá era pouca para o registro da jornada. Finalmente encorajada, repetiu-as ao ritmo das passadas. Naã o as pronunciaria alto ateá que estivesse a soá s com Garren, para que a Irmaã naã o ouvisse, pois naã o gostava de ser mimada. Por baixo do manto de laã cinza, o corpo de Dominica estava quente de calor como o paã o receá m-assado do cozinheiro, quando o Salvador ordenou uma parada. Ele ajudou a Irmaã Marian a descer, e Dominica viu manchas uá midas sob seus braços. Estaá com calor, pensou ela, surpresa. Naã o esperava que um quase santo tivesse um corpo de pecador que suasse como o dela. Observou furtivamente quando Garren desapareceu na floresta. Ele também deve ter necessidades físicas. O quadro chocante do Salvador aliviando-se surgiu de repente em sua mente. Sentiu um calor no rosto e guardou a imagem ateá implorar o perdaã o de Deus. Quando Garren voltou e a Irmaã entrou na floresta, Dominica aproximou-se dele, pronta para falar. Alcançava os olhos de muitos homens, mas este era mais alto que o Abade. Respirando fundo, repetiu as palavras memorizadas. — Obrigada por persuadir a Irmaã Marian a montar. Ateá nos pequenos gestos, voceê eá um

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford salvador. — Eu naã o sou salvador de ningueá m! — disse Garren, os dentes trincados, dirigindo o olhar para os outros peregrinos. — Pare de repetir isso para todos. — Mas voceê salvou Lorde William! — Como naã o tinha ensaiado outras palavras, tudo o que jaá tinha ouvido jorrou de sua boca. — Em Poitiers, onde nosso glorioso Príáncipe Negro triunfou com a ajuda de Deus. — Soá se Deus criou todos os franceses covardes. — O mau-humor tomou conta do semblante de Garren como a neá voa matutina. Dominica sempre parecia irritaá -lo. — Mas foi um milagre! — Era isso que Dominica tinha ouvido sobre a gloriosa vitoá ria. — Eles eram mais numerosos, nossas tropas estavam cercadas, e ainda assim as forças francesas foram dispersas como que por uma maã o invisíável. — Soá acredito em maã os que posso ver. — Garren estendeu as maã os na frente do rosto dela. Maã os grandes, quadradas. Calejadas. E, ela sabia, meigas tambeá m. — Foram estas maã os que carregaram Readington para casa, naã o as de Deus. Dominica tinha imaginado um fantasma de camisola branca que flutuava a alguns centíámetros do chaã o e esticava dedos finos em direçaã o a Lorde William, que simplesmente se levantava e andava. Mas este homem tinha levado Lorde William nos ombros como um saco de farinha. — Carregaram com a ajuda de Deus. — Dominica fez o sinal-da-cruz. — Todos sabem disso! Garren deixou as maã os caíárem e suspirou. — Ningueá m sabe nada. Naã o fiz mais por ele do que ele jaá tinha feito por mim. — Lorde William o trouxe da morte? — O Conde era forte e gentil, e Deus certamente tinha protegido seu povo da peste negra quando muitos outros foram levados, mas ela nunca tinha ouvido rumores de que Lorde William pudesse trazeê -los de volta aà vida. — Pensei que ele soá lhe dera um cavalo. O homem silenciou pensando no passado. — Lorde William me deu uma vida nova. Sem saber se deveria arriscar e perguntar o que ele queria dizer com isso, Dominica ignorou o latido de Inocente ateá ele passar correndo atraá s de um coelho que fugia precipitadamente, — Volte aqui! — gritou Dominica, levantando as saias para correr atraá s dele. O Salvador segurou-lhe o braço. — EÉ um terrier. Naã o pode ir atraá s dele toda vez que for aà caça de um coelho. — O Salvador sorriu. — Ele vai se perder! Nunca esteve fora do convento. — Se nem ela sabia onde estava, como Inocente encontraria o caminho de volta? A menos de um dia de distaê ncia de casa, o mundo jaá parecia amedrontador. O latido de Inocente desapareceu gradualmente. — Mande ele para trazer nosso jantar — disse a viuá va, rindo. — Mas ele gosta de nabo — exclamou Dominica, pensando quantas vezes tinha tirado aquele focinho coberto de terra de seu jardim. Ela mordeu o laá bio. E se Inocente naã o voltar? — Se fugir, onde vai achar nabos? Os dedos do Salvador seguravam seu pulso. — Deixe-o sentir o prazer da caça. — E se ele naã o voltar? Como vai cuidar de si? — Dominica ansiava que a Irmaã voltasse logo. Ela a entenderia. — Qualquer caã o sem uma orelha jaá viu alguma coisa da vida — respondeu Garren, sem soltar-lhe o braço.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford A outra orelha compensava pela ausente, pensou Dominica. Era ereta como um pequeno chifre empertigado de unicoá rnio, depois caíáa no topo e balançava quando ele caçava o rabo, como ela lhe ensinara. Usando nabos. Se naã o voltasse, ela naã o suportaria. Dominica despejou a histoá ria para a Irmaã , enquanto o Salvador a levantava e a acomodava no cavalo. — Deus o guiaraá de volta a noá s, se assim tiver que ser. Voceê orou? Dominica fez que naã o, envergonhada e duvidando se Deus tinha tempo para achar caã es perdidos. Com um ar de desprezo ao passar por Dominica, o escudeiro aproximou-se do Salvador e o encarou como se quisesse mostrar que tambeá m era um lutador. Talvez ele ache que precisa provar alguma coisa, pensou Dominica, pois eá belo e louro como um anjo pintado. — Sir Garren, vamos partir. Naã o vamos ficar aqui esperando um caã o, naã o eá ? Sir Garren, por mais que seja difíácil pensar nele assim, sorriu com a pacieê ncia que parecia ter com todos, menos com ela. — Ficaremos ateá eu determinar a partida. Sua voz soou dura. Dura o suficiente para lembrar a Simon e a todos que ele era o líáder e que estava acostumado a comandar. — Por que naã o vai examinar a floresta para certíáficar-se de que estamos todos aqui, jovem Simon? As orelhas do jovem escudeiro ficaram vermelhas, mas ele se encaminhou para a floresta. Antes que Simon retornasse, Inocente, com sua líángua rosa arfando no meio do peê lo preto cerrado, apontou o focinho para fora do campo de trigo. Correu para a jovem e começou a perseguir o proá prio rabo, como se precisasse conseguir seu perdaã o. Dominica agarrou-o e apertou-o forte, confortada com o peê lo quente e ofegante do peito do caã o contra si. — Caã o feio! — A Irmaã cocou atraá s da orelha boa. — Naã o o recompense por ter fugido! Da proá xima vez pode naã o voltar. — Como veê , Dominica, deve ter feá em Deus. — Dominica passou o caã o preto e cansado para a Irmaã . — Leve-o no cavalo para que naã o fuja de novo. — O cavalo pode naã o apreciar os caã es, minha filha. — A Irmaã voltou-se para o Salvador buscando aprovaçaã o. — Roucoud eá extraordinariamente tolerante — respondeu Garren. Um sorriso pairava em sua boca. — Inocente naã o pode ir a cavalo ateá Cornwall — disse a Irmaã , mas assentou o caã o na sua frente. Exausto, Inocente acomodou-se na sela, e o grupo partiu. Haá ameaças escondidas por todo lugar, pensou Dominica, andando aà frente como se, com isso, pudesse afastar suas preocupaçoã es. Sabia que a jornada teria perigos, javalis ou ateá mesmo dragoã es, mas naã o esperava perder Inocente. O Salvador a alcançou, diminuindo as passadas para andar ao seu lado. — Naã o se preocupe com o cachorro. — O bom humor embelezava sua voz. — A julgar por aquela orelha faltando, ele naã o foi criado em um convento. Teve uma vida e tanto antes de chegar laá . Dominica observou Garren do canto do olho. Quanto mais o via, mais difíácil era imaginaá -lo com asas. — Voceê tambeá m. Garren naã o chegou a fechar a cara, mas seu rosto mudou, como se tivesse jogado um manto sobre ele. — Como qualquer soldado.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Jaá viu muito do mundo? — O suficiente. — Era moderado nas palavras. — Conte-me sobre esse mundo de Deus. — Nunca saiu do convento? — Soá para ir ao castelo. — Viagens que ela queria esquecer. Pelo menos os encontros com Lorde Richard. — EÉ verdade que existem dragoã es nas praias? — Soá fui ateá a França. E a viuá va Cropton descreveu o campo em mais detalhes do que eu jamais conseguiria. — A brincadeira suavizou as linhas marcadas de seu rosto. Diferentemente dos santos severos das pinturas, ele parecia tolerar as fraquezas humanas. Menos as dela. — Mas vamos aproveitar o dia. A guerra naã o eá tema para um passeio com uma dama encantadora. Dominica examinou os olhos de Garren para ver se ele estava zombando, mas pareciam afetuosos. Ela naã o era uma dama, mas a palavra a fez empinar-se e levantar o cabelo que caíáa no rosto. Seria o pecado da vaidade? — Qual eá um assunto para um passeio com uma dama? — perguntou ela. — No convento naã o eá permitido conversar. — E, quando falava, a Priora sempre a repreendia. Na escrita, podia medir cada palavra. — A beleza do dia. — A voz dele ficou rouca. — A beleza dos olhos dela. Pasma, Dominica virou-se. Os olhos de Garren, fitando os seus, eram de um verde profundo sob os cíálios escuros, compridos e espessos. Dominica sentiu como se ele tivesse entrado nela, tocando a regiaã o de seu coraçaã o. Ou de seu estoê mago. Algum instinto fez com que ela mantivesse os peá s em movimento na trilha. — A Priora diz que saã o olhos do diabo. — Garren murmurou algo que ela naã o ouviu. — Nenhum cavaleiro corteê s diria isso. Ele os compararia ao azul brilhante do ceá u antes do amanhecer. — Os seus saã o mais como folhas verdes rajadas do marrom da casca das aá rvores. A risada de Garren feriu-a como um tapa. — Essa naã o eá a resposta que se espera — comentou ele, sorrindo. Pelo menos ela naã o o irritara outra vez. — Por que naã o? Voceê falou dos meus olhos. Eu naã o deveria falar dos seus? — Naã o. Deveria suspirar e corar. — Ela fez os dois. — Nunca conversei com um homem por muito tempo. Naã o conheço as regras. Parece muito confuso. — O mundo eá um lugar confuso. — Por isso, o meu lugar eá no convento. Quem sabe falar de Deus lhe agrade... — sugeriu ela. — Nada me agradaria menos. A regra de sileê ncio da Priora evitava situaçoã es como esta. Talvez ele queira falar de sua casa e famíália. — Onde cresceu? — Naã o importa — respondeu ele, duramente. Mais uma vez, o calor inundou o rosto de Dominica, mas naã o pelo sol ou por um rubor; ela sentiu o pecado da raiva. — Falei alguma coisa errada de novo? Voceê queria conversar. Suspirar e corar naã o levam a um discurso comprido. O olhar fuzilante de Garren queimou seu rosto. — Naã o eá para discursar que falamos. O significado de suas palavras era taã o estranho para ela quanto o latim jaá fora um dia. Aquele naã o era o seu lugar. Sentia falta da rotina familiar, onde sabia o que fazer a cada minuto do dia. Nunca havia duá vidas sobre as palavras na hora de cantar para Deus.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Minha presença o desagrada. Vou me afastar. Mais uma vez, obrigada por sua bondade com a Irmaã Marian. Dominica virou as costas e caminhou ao lado da viuá va Cropton, que naã o esperava que ela falasse. No jantar, tinha ouvido sobre a viagem da viuá va de Calais a Paris, a caminho de Compostela, e escolhido umas palavras que escreveria sobre o Salvador. Estraguei tudo, pensou Garren, ela nunca mais conversaraá comigo. Por haá bito, olhava de um lado para outro e mantinha os ouvidos atentos a passos estranhos. Mesmo aqui, nas terras dos Readington, ladroã es poderiam assaltar os peregrinos. Hoje, poreá m, ele soá via botoã es de ouro amarelos balançando no topo de caules verdes altos e es-guios; soá ouvia o canto alegre dos pardais. Ningueá m se aproximou. Os peregrinos juntavam-se aà viuá va para ouvir conversa fiada. Teraá sido Dominica quem riu? Era ele quem deveria provocar seus risos. Em vez disso, resmungara e ela fugira. O charme que cativava as mulheres na França o abandonara. Mas a culpa naã o era inteiramente sua. Como iria seduzir uma mulher que naã o sabia nada do jogo? Como poderia levar para a cama algueá m cujos olhos soá viam Deus, em vez das maravilhas do mundo aà sua volta? Garren encheu o peito do ar puro ingleê s, desfrutando o momento de paz. Ele soá tinha o hoje. O passado fora muito doloroso. E o futuro? Sabia que era inuá til tentar conseguir um lugar no ceá u. Deus arrebatava os bons taã o raá pido quanto os maus. E ela, definitivamente, estava entre os bons. Ou talvez nunca tenha enfrentado a tentaçaã o. Ele a tentaria. Quando viu aqueles olhos azuis enigmaá ticos, percebeu que algueá m iria tentaá -la. Poderia muito bem ser ele. Garren deixou a mente divagar. Nica em seus braços, os cabelos caindo sobre ele como mel, os seios, redondos e cheios, respondendo aos seus laá bios... Estava feliz por andar adiante do grupo, onde ningueá m podia ver seu membro reagir ao pensamento. Era bom sentir-se atraíádo por ela, mas naã o necessaá rio. Era por dinheiro, exatamente como as prostitutas da Rose Street. Sentiu-se sujo diante desse pensamento. Naã o, naã o por dinheiro. Todos queriam fazer dele um santo ou um pecador. Um instrumento de Deus ou um mercenaá rio. Naã o era nenhum dos dois. Era dinheiro que buscava. Meu lugar eá no convento, ela dissera. E o dele, onde era? Naã o era no mosteiro. Onde você cresceu! Garren de nenhum lugar. Garren sem lar. Lar. Era difíácil lembrar como era. Pedras cinzentas, como o ceá u. Arvores sombrias que nunca mudavam com as estaçoã es. Uma torre, ou eram duas? Sempre de prontidaã o, aà espera de um ataque de qualquer lado, ou de uma fronteira que sempre estava mudando. Soldados ingleses a gritar taã o alto quanto os escoceses. Ele se fora aos seis anos, como qualquer criança, sem nunca voltar, ateá aquelas semanas terríáveis, onze anos depois, quando a peste negra encharcou as paredes. AÀ s vezes, o leve perfume das urzes o fazia voltar atraá s no tempo. Sua maã e adorava aquele cheiro. Ela recheara com a planta uma pequena almofada para ele sentar enquanto falava como Cristo transformou a aá gua em vinho e multiplicar os paã es. Contos de fadas. Descobrira justo a tempo de naã o entregar sua vida aà pobreza, castidade e obedieê ncia. Garren afastou as lembranças indesejaá veis. Passado eá passado. Devia olhar para o presente. Mais uma vez admirou as terras de William. Os campos verdes abraçavam suavemente os morros ondulados, cada um deles elegantemente costurado ao vizinho com aá rvores ainda mais verdes. Borboletas azuis e acobreadas agrupavam-se taã o compactas

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford quanto as flores amarelas e brancas em que pousavam. Como seria ter um lar em uma terra encantadora como esta? Haá nove geraçoã es, nenhum invasor a destruíára. Nenhum sangue inundara este solo. Nenhum grito de soldados selvagens, vivos ou mortos, abafara o gorjeio dos pardais. Garren invejava William pelas terras em que caminhava. Queria ter sua proá pria terra sob seus peá s. Talvez depois de pagar sua díávida; depois que William morresse, e Richard o expulsasse. Quem sabe encontraria alguma terra sem dono que pudesse tornar sua. Mas, primeiro, era preciso levar a garota para a cama. Da proá xima vez, seria galante e sedutor, e, finalmente, ela se deitaria com ele como uma serviçal de taverna. Ele naã o precisaria fitar seus olhos quando ela estivesse vibrando embaixo dele. Seja correto e use palavras gentis. Garren recordou-se. Era como se sua maã e falasse em seu ouvido, Voltou aos seis anos de idade, quando ela se despedia dele, no cavalo que o levaria embora. O pensamento o perturbou. Ordenou que parassem para o descanso do dia sob um bosque de aá rvores, proá ximo a uma fonte gelada, e designou as tarefas da vigilaê ncia noturna. Tinham muitos dias de caminhada. Falaria com Dominica de novo. Seja correto e use palavras gentis. Deus cuidará de você. Deus tinha muito que cuidar. Mas ele poderia experimentar o conselho de sua maã e com Dominica.

Capítulo Seis A uma certa distaê ncia do calor do fogo, Dominica passou os olhos pelo grupo aà procura do Salvador, ou Sir Garren, se assim insistia em ser chamado. Naã o que quisesse falar com ele, ou algo assim. Procurava-o para poder evitaá -lo. E, se o visse, se recusaria a conversar com ele. Por que deveria? Tudo o que dizia o irritava. Devia ser pecado ressentir-se com ele, mas era taã o rude que se sentiu justificada em ignoraá -lo. Garren acomodara o grupo cedo. Apoá s a ceia, a Irmaã Marian reuniu os peregrinos em um coro desafinado; inclusive a viuá va, cujo ouvido esquerdo a fez cantar feliz em seu proá prio ritmo. Pelo menos, enquanto cantava, naã o falava. "Sua feá lhe daá asas para voar como Larina Para voar como Larina, para voar como Larina. Sua feá lhe daá asas para voar como Larina Para os braços do Senhor." Dominica cantava com os laá bios fechados e acompanhava o ritmo com o peá , feliz por lembrar a razaã o de estar ali e o que encontraria ao fim da jornada: um sinal de Deus de que poderia voltar para casa. Examinou os integrantes do grupo. Sir Garren naã o estava entre eles; Simon e Ralf tampouco. Talvez ele os estivesse acompanhando na guarda. De repente, sentiu algo atraá s de si bloquear o vento e virou-se. Era Sir Garren, alto e ereto como uma aá rvore. — Naã o acompanha o canto? A garganta de Dominica sufocou o canto tíámido. Naã o falaria com ele. Naã o sabia se conseguiria. Mas precisava dar resposta aà sua pergunta direta.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Naã o tenho talento para cantar. Madre Julian sempre foi clara quanto a isso. Garren fez uma careta. Tudo o que ela dizia provocava uma cara feia. Ele sorria para a Irmaã , ateá para Inocente. O que havia nela que o irritava tanto? — Naã o gosta de cantar? — ousou Dominica perguntar-lhe, como que ao acaso. — Naã o gosto de nos anunciar aos ladroã es. Uma rajada de vento farfalhou as folhas toscas do carvalho atraá s dela. Sombras em formato de maã os movimentavam-se pelo chaã o. Dominica engoliu em seco. Ladroã es. Foi faá cil ser corajosa abrigada pelas paredes enclausuradas, onde soá tinha Madre Julian a temer. — Deus protege os peregrinos. — E a sua tarefa eá nos proteger, pensou ela. Garren abriu um sorriso deliberado. — Naã o se preocupe. — Ele afastou um cacho de cabelo da testa da jovem, que estremeceu ao toque daqueles dedos, mas se sentiu confiante. — Ainda estamos proá ximo aà s terras de William. Pelo menos naã o fez cara feia. Desta vez, contudo, ela naã o falaria. Ignorando-o, voltou-se novamente para o grupo e cantou atraveá s dos laá bios cerrados, aà espera de que ele se fosse. Mas ele ficou. Com a coluna ereta de um soldado, Garren estava taã o perto de Dominica que dava para sentir seu peito subir e descer a cada respiraçaã o. Ela se perguntou se seria coberto pelo mesmo cabelo castanho-escuro de seus dedos; depois repreendeu-se pelo pensamento. Mesmo que naã o fosse santo, naã o deveria pensar nele como um homem. Freiras nunca pensam em homens dessa forma. Dominica deu um pulo quando Garren falou de novo ao seu ouvido, numa voz suave. — Preciso pedir seu perdaã o. Falei como se fosse um rude camponeê s, e naã o um cavaleiro corteê s. Dominica manteve o olhar fixo no fogo, recusando-se a olhaá -lo para naã o mostrar seu sorriso satisfeito. — Naã o entendo muito de cortesia. Maã os grandes e quentes envolveram seus ombros. Garren virou-a, gentil, mas firme, para que o encarasse. A luz do fogo brilhava sobre o rosto dele. — Sinto muito. Naã o haá por que tratar mal algueá m. —Naã o eá minha funçaã o julgar um homem que eá mensageiro de Deus. — Dominica escolheu as palavras, tentando resistir aà quele olhar. O peito de Garren subiu com a respiraçaã o presa, como se ele estivesse pronto para repreendeê -la mais uma vez. Mas limitou-se a suspirar. — Pelo menos naã o me chamou de Salvador. Jaá chega o que a vida nos trata mal. Devemos ser gentis um com o outro. Sua voz mostrava arrependimento. Envergonhada, Dominica lamentou seu jogo tolo. Ele pregava a bondade, igual ao Salvador. E a praticava tambeá m. Presenciara seu cuidado com a Irmaã e com todos os outros. E agora pedia perdaã o. Certamente ela poderia desculpar seus maus modos. — Eu o perdoê o. — Obrigado — respondeu ele. Dominica naã o conseguia desviar os olhos. Seu peito subia e abaixava como o dele, e ela teve uma sensaçaã o estranha e perturbadora de que respiravam como se fossem uma soá pessoa. Mais adiante, a cantoria transformou-se em riso. Dominica afastou-se dele e olhou para o fogo. — Por que naã o fala agora? Dominica naã o queria falar com ele. Naã o queria sentir-se taã o treê mula e hesitante. Encheu o peito de ar, aliviada de ver a respiraçaã o voltar a ser soá sua.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Naã o estou acostumada a falar. No convento, eá preciso ter permissaã o. — Naã o precisava contar-lhe que nem sempre ela esperava a permissaã o. — Eu dou permissaã o. — Parecia uma ordem. O que ele queria com ela? Dominica virou-se e deixou as palavras saíárem sem planejar. — O que eu deveria dizer? Naã o posso falar dos seus olhos, da sua casa e sua famíália, ou da gueixa, ou de Deus. Nem de viagens que naã o fiz. Agora era Garren quem mantinha os olhos no fogo recusando-se a fitaá -la. Os outros começaram a cantar um caê none, completaram as treê s partes, e ele ainda naã o respondera. Para um homem que queria conversar, aquilo naã o parecia vir mais faá cil do que para ela. — Conte-me da sua vida no convento — pediu ele. — Eu cuido do jardim, das roupas e da limpeza. — Nenhum sinal de mau humor desta vez. Um sorriso determinado marcou o rosto dele. Deveria ela contar sobre sua escrita? Um focinho frio e uá mido cutucou o tornozelo de Dominica. Ela pegou Inocente, e enterrou o nariz no peê lo do caã o, sentindo o aroma da terra. — E alimento o cachorro. — Inocente passou a líán gua aá spera no rosto da jovem. — Achou algum nabo, menino? Sir Garren cocou atraá s da orelha preta e felpuda, e Inocente transferiu suas lambidas para a maã o grande. — Teve um cachorro quando era criança? — perguntou para o Salvador, ou quem quer que ele fosse. — Naã o me recordo. Dominica achou que ele naã o queria falar sobre sua infaê ncia. Depois, percebeu a duá vida em sua voz. Ele naã o se lembrava. Esse homem tinha deixado de ser criança haá muito, muito tempo. Dominica observou encantada sua pacieê ncia ao deixar a líángua rosa de Inocente lamber cada um de seus dedos. — Como conheceu Lorde William? — perguntou. — Ele me aceitou como seu escudeiro aos dezessete anos de idade. — Dezessete? O treinamento de um cavaleiro começa na infaê ncia. — Tive muito que aprender. Meu treinamento começou muito tarde. — As palavras vieram atraveá s de laá bios contraíádos, consequü eê ncia de uma vida dura. — Tarde por queê ? — Eu acabara de deixar o mosteiro. Dominica sentiu frio na espinha. Teria ele quebrado os votos? Ou seria um monge proscrito? — Foi expulso da ordem? — Estava completando meu ano de noviço. Ainda naã o tinha feito os votos. — Seus olhos adotaram uma expressaã o sombria. — Eu soá tinha a oferecer um braço de espada enferrujado, nem sequer uma espada. Ele me deu uma vida nova, dissera ele a respeito do Conde de Readington, com muita lealdade. Ateá ela sabia que tinha sido generosidade do Conde aceitar um escudeiro sem dinheiro e sem preparo. — Por que deixou o mosteiro? Garren continuou em sileê ncio, e o fogo crepitante atirou inuá meras centelhas para o ceá u. A primeira estrela brilhava. — Foi depois da peste negra — respondeu ele. Dominica fez o sinal-da-cruz. Ele naã o respondeu, mas ela compreendeu. Muitos acontecimentos estranhos ocorreram na terra quando foi tomada por aquele terror, haá quase dez anos. Deus quase destruiu o mundo todo. Ela ainda naã o entendia como o Deus que lhe falava e a confortava podia deixar uma praga

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford como aquela dizimar o Seu povo. — Deus nos puniu duramente. Devemos procurar seguir Sua vontade a cada dia para que o amanhaã naã o traga outra puniçaã o dessas. — Devemos aproveitar o dia de hoje — discordou ele — porque Deus pode nos arrebatar daqui antes que o amanhaã chegue. — Mas se o fizer, haveraá uma razaã o. Sempre haá uma razaã o para o plano de Deus. — Pode explicar isso? Dominica procurou seus olhos, imaginando se Deus o enviara para testar sua feá . Tem de haver palavras que ela possa usar para convenceê -lo da correçaã o do plano de Deus. — Solafide. — O queê ? — Somente pela feá . — Acredita mesmo nisso, naã o eá ? — E voceê , naã o? As vozes dos irmaã os Miller, uma de tom baixo e a outra de tom mais alto, preencheram o sileê ncio com suas harmonias. A feá eá uma armadilha para os tolos, dissera-lhe esse homem que salvava pessoas, mas se afastava de Deus. — Acredito que devemos uns aos outros mais do que devemos a Deus — murmurou ele. Ela percebeu que naã o tinha respirado esperando sua resposta. Primeiro dia: Tempo bom. Caminhamos até o fim da tarde. Terra agradável Dominica observou o sol da manhaã colorir de rosa o horizonte. Uma folha de papel descansava sobre uma pedra. Sua escrita, pequena e apertada, enchia a preciosa folha de uma margem a outra, como aprendera. Mas seriam estas as palavras certas? A apenas um dia de distaê ncia do convento, Dominica nunca estivera taã o longe de casa. Ela estava exausta com tanta novidade. Queria escrever sobre a figura engraçada de Inocente caçando o coelho, a maneira como os receá m-casados andavam de maã os dadas, e a preocupaçaã o com o cansaço da Irmaã na noite anterior. Ela queria escrever sobre ele. Mergulhou a pena na tinta e bateu o excesso. Caminho plano e reto. Dormimos sob estrelas. Estrelas. Que exagero. Milhares e milhares de pequeninas velas acesas por Deus. Era difíácil fechar os olhos diante da maravilha que era dormir sob um teto desses. Dominica acrescentou uma palavra. Muitas. Ela fez uma careta diante do seu pergaminho escasso, uma folha usada e reusada que ningueá m mais queria, que naã o servia para copiar as palavras de Deus. Soá sobrava espaço para uma uá nica palavra, ou duas, que a ajudariam a lembrar depois. Que palavra escolheria para ele? O Salvador era muita blasfeê mia, Garren muito pessoal. O Homem, escreveu. Dominica fitou aquilo horrorizada, depois rabiscou as palavras ateá a ponta da pena ficar rombuda, e ocultou-as com um horríável borraã o negro, desejando que pudesse riscaá -las da

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sua mente. Ele tem que ser mais do que um homem. Se fosse soá um homem, talvez aquela reaçaã o fosse de mulher. Sozinho, Garren pensou no seu plano. Naã o sabia se era um bom plano. Tirou do pescoço o relicaá rio de prata manchado, sem brilho e amassado. Desamarrou a tira de couro que o prendia e abriu o tubo estreito. Dentro, escondera treê s plumas de ganso que trocaria por plumas do santuaá rio. De alguma forma. Quando ningueá m estivesse olhando. Pensou outra vez em dar a William apenas as plumas de ganso. Afinal, com a quantidade de plumas da Abençoada Larina tidas como verdadeiras, daria para voar para os ceá us. A maior parte das relíáquias saã o falsas. William nunca saberia. Um galho estalou, e ele empunhou a adaga. Dominica, atoê nita, viu as plumas guardadas em um pano de algodaã o branco. Seu rosto sardento empalideceu. Depois, encarou Garren com os olhos taã o penetrantes que ele temeu que ela pudesse enxergaá -lo catando a pluma de ganso do chaã o daquele aviaá rio imundo. — EÉ uma pluma abençoada das asas de Santa Larina — murmurou ela. — As asas que recebeu de Deus. Que mal faria a uma garota que jaá acreditava solafide crer naquilo. Ela naã o podia conhecer seus verdadeiros planos. — Sim, eá . Mas naã o conte a ningueá m. — Ele segurou as plumas como se fossem uma preciosidade. — Preciso levaá -las para o santuaá rio, mas quanto menos pessoas souberem, melhor. Voceê compreende. Os olhos azuis de Dominica, jaá grandes e redondos, cresceram mais ainda. As sobrancelhas levantaram. — Onde a encontrou? — O eco de seu sussurro transformou o bosque em uma capela. — Naã o posso contar — entoou Garren, imitando a fala monoá tona de um padre. — Voceê compreende. — Vi que voceê era especial no minuto em que o vi na sala da Priora. Tive uma sensaçaã o de calor igual aà que tenho quando rezo em frente aà janela de vitral. Tambeá m tive uma sensaçaã o de calor, pensou ele, mas naã o tinha nada a ver com reza. Com ar solene, Dominica murmurou umas palavras em latim. Garren tentou lembrar o capíátulo e o verso exatos que ela estava recitando. No mosteiro, fora um mau aluno. — EÉ "Honre o mensageiro de Deus" — disse ela, num sorriso satisfeito. — Esse eu escrevi. — Voceê o queê ? . — AÀ s vezes, junto as palavras em díázeres meus. — Ela abaixou a cabeça. — Por favor, corrija-me se eu falar errado. Prudente, Garren concordou. Ela naã o precisava saber das limitaçoã es do seu latim. — Naã o deve contar a ningueá m sobre as plumas — pediu ele, sinalizando para o pano branco. — Naã o haá necessidade de espalhar outra faá bula sobre essa ligaçaã o especial com Deus. — Uma relíáquia tem o poder do santo. Pode fazer um milagre. — A garota acreditava em milagres. — Jaá testemunhou algum milagre assim? — Conheço todas as histoá rias. — E se elas forem apenas histoá rias? — Como pode perguntar uma coisa dessas? — Haá mais peregrinos que milagres. — Deus ajuda a quem acredita. —Entaã o, se voceê naã o se cura, a culpa eá sua porque naã o acreditou, e naã o de Deus porque

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Ele naã o se importa? — Haá muitos milagres. O filho do moleiro que se afogou e foi trazido de volta aà vida por Tomaá s de Cantilupe, o monge que embrulhou o braço inchado na estola de Beckett e foi curado, e... — E a ressurreiçaã o milagrosa do Conde de Readington em Poitiers — acrescentou ele. — Sim. Foi um milagre o que voceê fez. — Ela tentou pegar uma pluma, e seu dedo hesitava como se emanasse calor. — Posso... tocaá -la? Pode pegaá -la, jogaá -la no chaã o e pisar nela, no chaã o de onde a tirei, por toda a santidade que ela carrega, pensou ele, por um instante enciumado de veê -la olhar a pluma com o tipo de desejo que um homem gostaria de ver dirigido a ele. — Toque-a de leve — disse. — Tenho um pedido muito importante para Deus. — Ela pareceu perfuraá -lo com os olhos. — A Abençoada Larina me ajudaraá ? Garren sabia como Deus respondia aà s preces. Implorara a Deus pela vida de seus pais. Ele negara. — Deus ouve nossas preces — disse ele, amargo. — Mas talvez naã o nos deê a resposta que desejamos. — EÉ isso que a Irmaã Marian diz. E eá por essa razaã o que preciso da ajuda de Larina. AÀ s vezes, Deus precisa de um empurraã ozinho... Dominica acreditava que Deus ouviria suas preces pessoais, como ele acreditara um dia. Naã o sabia se devia sentir pena ou inveja. — Meu dedo estaá treê mulo — murmurou ela. O meu corpo tambeá m, por razoã es nada santas — pensou Garren. As palavras seguintes de Dominica foram em latim, por isso Garren adotou a expressaã o pensativa. — EÉ preciso ter uma feá taã o grande que remova montanhas. — Ela riu. — Carta de Paulo aos Coríántios. Essa eu mudei um pouco. Ele sentiu uma pontada de simpatia pela Priora. — Lembre-se, ningueá m deve saber que estou levando as plumas. Dominica cruzou os dedos na frente da boca como se estivesse trancando com uma chave, um gesto infantil que o fez sorrir. — Voceê me deu um presente incalculaá vel — disse ela. — Como eu poderia negar seu pedido? Garren quase deixou escapar que naã o passavam de plumas de ganso, que ela naã o devia acreditar, mas naã o podia quebrar o brilho da feá que a envolvia. Ainda. — A Santa vai se importar se eu contar a voceê para que saã o as minhas preces? A vontade de Garren era dizer naã o me conte. Em vez disso, deu de ombros. — Pode me contar ou naã o. Naã o faraá nenhuma diferença para Deus. — EÉ um sentimento estranho para um homem que carrega consigo relíáquias para um santuaá rio. — Ela lambeu os laá bios e mordeu o inferior, sem muita certeza se devia falar. — Naã o contei a ningueá m fora do convento. — Um sorriso tíámido, melancoá lico, surgiu em seu rosto. — Claro, naã o conheci ningueá m fora de laá . Os laá bios de Dominica entreabriram-se, e os olhos azuis se ampliaram, maravilhados e confiantes. Relaxada, seu rosto era simples, comum, redondo, e os laá bios desiguais. Mas os olhos eram uma janela para sua alma. E para a dele. De repente, ele quis muito saber o que ela pensava durante as horas solitaá rias, quando soá havia a companhia de Deus. — Conte-me — disse ele, fechando as maã os dela entre as suas, e, pela primeira vez, sem ter medo de se perder naqueles olhos. — Conte-me o que quiser.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Ela se aproximou tanto que ele poê de sentir seu cheiro de mulher, feliz por estar sentado, porque seus joelhos titubearam. Os seios dela subiam e desciam, ateá que ele sentiu o corpo arder de desejo. — Quero fazer os votos — contou ela. Por mais que Garren soubesse o que ela ia dizer, aquelas palavras reviraram seu estoê mago. Dominica queria perder a vida orando para um Deus que nunca responderia. Seus dedos curvaram-se perante a tolice e esmagaram os dela. Ela acreditava em um Deus que nunca nos responde da forma que esperamos. A resposta de Deus aà s preces dela a estava fitando no rosto, ainda que ela naã o soubesse. A resposta aà s preces de Dominica era ele, Garren. E ele teve a mais estranha sensaçaã o de satisfaçaã o de que conseguiria livraá -la daquela armadilha de Deus. Que a libertaria, como um dia tambeá m fora liberto. Por tristes desapontamentos. — Tem certeza? — perguntou ele, afinal. Ao perceber a força com que a apertava, Garren abriu as maã os, e Dominica tirou a sua. — Ah, sim. EÉ o que Deus pretende. Garren levantou-se abruptamente e virou de costas para aqueles olhos. — Como sabe o que Deus pretende? — Voceê parece a Priora. Eu simplesmente sei. Sinto isso. Meu lugar eá laá . EÉ o uá nico lugar onde eu... — Sua voz sumiu. — EÉ laá o meu lugar. Garren girou de volta para fitaá -la. — Como sabe onde eá o seu lugar? Nunca conheceu outra coisa. — Se ele lhe tirasse a vida no convento, o que lhe daria em substituiçaã o? Teve que lutar contra uma onda de culpa. Deve haver outras coisas que uma mulher pode fazer. — Talvez prefira se casar. — Nunca pensei em casamento. — A maioria das pessoas se casa. — Voceê naã o casou. — Naã o tenho nada para oferecer a uma esposa. — As palavras soaram como vinho acre. — E quanto aà sua casa? — Minha casa estaá nas maã os da Igreja. — Deu a sua casa para a Igreja? Foi quando entrou para o mosteiro? — Dominica levantou-se e fez o sinal-da-cruz, dobrando um pouco os joelhos em defereê ncia. Garren riu com desdeá m. Dera aà Igreja sua casa, suas esperanças, sua proá pria vida. E fora recompensado com traiçaã o. Ela naã o parava de fitaá -lo, a sobrancelha levantada, como que esperando que ele contasse a histoá ria. Garren suspirou. Naã o precisava de mais uma prova de santidade, mas Dominica tampouco precisava da verdade. Segurou sua maã o. — Levante-se. Naã o me torne uma coisa que eu naã o sou. Os olhos azuis de Dominica estavam confusos. — Voceê naã o eá o que eu pensava. Quando Dominica o fitou pela primeira vez, ele sentiu como se ela enxergasse o seu interior. Mas a feá a cegava. Ela via um santo em vez do pecador que era. O que ela faria quando descobrisse a verdade? Garren afastou o pensamento e guardou as plumas de volta no relicaá rio de prata. Tudo isso era para William. Ele merecia qualquer coisa. Os dedos de Garren escorregaram ao refazer o laço no cordaã o de couro. — Deixe-me ajudaá -lo. Deê o primeiro noá , e vou manter o dedo sobre ele enquanto voceê faz o laço. Dominica pressionou o dedo sobre o primeiro noá . Uma salieê ncia calosa, manchada de

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford preto, ornava o dedo meá dio da sua maã o direita. Garren reconheceu aquilo. Os irmaã os que copiavam o dia inteiro tinham o calo de escritor bem desenvolvido. Roçou a salieê ncia com o polegar. — O que eá isto? — Nada. Ela abaixou a cabeça para se esconder atraá s do cabelo, que caiu em cachos por cima do joelho dele, quase cobrindo as maã os de ambos. Juntou os fios dourados em sua maã o e levou-os para traá s dos ombros dela. — Parece a maã o de uma copista. Dominica naã o respondeu, mas a constataçaã o gelou os ossos de Garren. Onde mais aleá m do scriptorium de um convento uma copista poderia viver? — Preciso ir agora. — Ela evitou fitaá -lo novamente. — Posso ter sua beê nçaã o primeiro? Garren ia dizer um naã o, mas ela jaá estava ajoelhada, com as maã os sobre seus joelhos. Ele ansiava por tocaá -la de novo. Tremendo, apoiou as maã os na cabeça dela, depois inclinou-se para beijar seus cabelos. Dominica olhou para cima e fugiu precipitada para a mata. E Garren ficou ali, sentado, por um longo tempo, brincando com o relicaá rio com as plumas de ganso.

Capítulo Sete Enquanto caminhava entre as aá rvores na volta para o acampamento, Dominica roçava os dedos pelo couro cabeludo, aà procura do lugar onde os laá bios do Salvador tinham tocado. Deve ter deixado uma marca. Naã o era um homem qualquer, pensou, aliviada. Era um mensageiro de Deus, escolhido para carregar as plumas de Larina. E suas reaçoã es naã o eram de mulher. Naã o lhe cabia questionar os planos de Deus, mas ele parecia uma escolha estranha, um homem que dava mais importaê ncia aà s pessoas que a Deus. Estava viajando ao lado das plumas de Larina. Esse era um sinal de que Deus abençoava sua jornada. Mal podia esperar para contar aà Irmaã . Guarde o segredo de Deus, ele pedira. Naã o estava acostumada a guardar segredos da Irmaã , exceto, claro, as sensaçoã es esquisitas que tinha com ele. Mas naã o haveria mais segredos a guardar. Naã o pensaria mais nele como homem. Ningueá m percebeu seu retorno para a clareira. Quando os peregrinos se reuniram para a jornada do dia, o fogo jaá tinha se apagado e virado uma mancha preta. A Irmaã segurava um biscoito perto do focinho de Inocente. Ansioso, ele pulou. — Voceê eá quem devia estar comendo isso — disse Dominica, Sob o haá bito preto, a Irmaã era magra como um espíá rito, mas esta manhaã as linhas em torno dos olhos tinham desaparecido. Era como se ela ficasse mais jovem a cada passo que a distanciava do convento. — EÉ soá a uá ltima mordida — disse a Irmaã , acenando com o biscoito, quando Inocente pulou e o apanhou. — Fez suas oraçoã es, Nica? Dominica se afastara do acampamento para encontrar um lugar calmo para ouvir a voz de Deus. Em vez disso, encontrara Seu mensageiro. Certamente que pedir a ajuda dele constituíáa uma oraçaã o a Deus. Dominica confirmou com a cabeça, sem confiar que manter um segredo pudesse naã o ser uma mentira. — Esta manhaã me deu vontade de caminhar — disse a Irmaã .

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Mas naã o se canse. — Bom dia, Irmaã . — O jovem escudeiro inclinou-se para cumprimentaá -las e afastou o cabelo louro que lhe caiu na testa. Seu corpo ainda trazia a delicadeza da infaê ncia, pensou Dominica, mas as maã os e os peá s tinham crescido mais que o resto do corpo, como as patas de um cachorro. Naã o como o Salvador, cujas maã os harmonizavam-se com os braços fortes e os ombros largos. — Bom dia, meu jovem. Desculpe-me por esquecer seu nome. Naã o consigo guardar o de tantas pessoas novas na minha cabeça velha. — Sou o Simon, Irmaã . Escudeiro de um nobre cavaleiro que bondosamente me permitiu fazer a peregrinaçaã o. — Eu sou a Irmaã Marian, e esta eá Dominica. O escudeiro naã o se inclinou para beijar a maã o de Dominica, que, aliaá s, naã o esperava isso, mas parecia dirigir-se ao seu peito, e naã o aos seus olhos. — E voceê , Dominica, de onde eá ? — Eu tambeá m moro no convento. — Quando o perigo se aproximar, naã o se preocupem. Posso protegeê -las. — Ele acariciou o cabo da espada, depois cumprimentou-as com a cabeça. Com um ar arrogante para o chefe do grupo, bateu no ombro do Salvador, como antigos companheiros de armas. — Acho que naã o preciso avisaá -la para ter cuidado com esse aíá — comentou a Irmaã . — Naã o me tenta em nada — comentou Dominica. O jovem escudeiro parecia-lhe um menino ao lado do Salvador, a quem, claro, ela nunca poderia olhar como homem. O sol forte e o ceá u azul abençoaram a segunda manhaã de viagem. Atraá s de Dominica, a viuá va Cropton contava alto uma histoá ria comprida, em que havia sido atacada por ladroã es, nos Piríáneus, que foram atingidos em pleno ato, como Paulo no caminho para Damasco, e ajoelharam no chaã o para implorar o perdaã o e pedir para se juntarem aos peregrinos. Soá a Irmaã e o meá dico queriam prestar atençaã o de fato, mas a viuá va falava demais. AÀ frente dela, o jovem casal — Jackin e Gillian — impediam sua visaã o do Salvador e de Simon. De maã os dadas, eles caminhavam taã o grudados um no outro que a luz do dia naã o passava entre os mantos. No momento que o marido achou que Dominica tinha se distraíádo, beijou a esposa nos laá bios. Dominica desviou o olhar e observou as borboletas acobreadas, alaranjadas, marrons e azuis, como flores esvoaçantes, seduzirem Inocente aà caça. Como os peregrinos podiam concentrar-se em coisas do corpo quando estavam em uma busca espiritual? Contudo, aà medida que a manhaã passava, Dominica tambeá m começava a preocupar-se com o corpo. A cada passo, as pedras do caminho castigavam seus peá s atraveá s das solas de couro fino. A dor subia pelas panturrilhas e coxas e localizava-se no final da coluna, deixandoa feliz pela Irmaã , que estava de novo montada em Roucoud. Soá o Salvador parecia caminhar sem vacilar. Quando pararam para almoçar, Dominica sentia uma dor torturante. Mas, em vez de encarar de forma submissa e devota, achou que talvez a viuá va tivesse razaã o, e eles devessem mesmo ter seus cavalos. Enquanto o grupo comia, ela se afastou para o bosque para orar. Em vez disso, ouviu uma risada reprimida feminina. Avistou uma pequena clareira. Jackin estava ajoelhado, montado sobre Gillian, que estava deitada, com as saias levantadas e as pernas nuas. Taã o nuas quanto as naá degas de Jackin. Dominica agachou-se atraá s do arbusto espinhento com medo de ficar ali, e chocada demais para sair, pensando que Deus tinha uma maneira muito estranha de responder aà s

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford preces. Jackin beijou os laá bios, os olhos, as orelhas e o pescoço de sua mulher. Beijou-a como se estivesse esfomeado, e ela fosse o alimento. Gillian correspondia, e seu riso aos poucos se transformava em um gemido. Sobre os joelhos, Jackin balançava-se como se estivesse em eê xtase de oraçaã o, em movimentos cada vez mais raá pidos, a cabeça arremessando-se para o ceá u. Jackin deu um grito e caiu por cima da mulher. No sileê ncio que se seguiu, Dominica prendeu a respiraçaã o, certa de que, agora, ele se viraria e a veria a observaá -los. Em vez disso, ele cobriu o rosto de Gillian com mais beijos, aninhou-se em seu pescoço, sussurrou-lhe coisas, ateá que ela riu satisfeita. Dominica chegava a ouvir as batidas de seu coraçaã o. — Parados! Um camponeê s, acenando uma foice enferrujada, saiu de traá s de uma aá rvore do outro lado da clareira. Alto, de cabelos pretos desgrenhados e olhos claros, parecia naã o comer haá muito tempo. Ele cutucou as costas de Jackin com a foice. — Passe o seu dinheiro. O rosto de Jackin ficou sem expressaã o, e as naá degas apertaram. O sangue de Dominica golpeava sua cabeça. Ah, Deus, mande Garren. Rápido. — Somos peregrinos pobres — disse Jackin. — Naã o temos nada para dar. Gillian, com as saias reunidas na cintura, apertou o cotovelo do marido. O ladraã o olhou para ela, a líángua crispada no canto da boca. Com duas passadas, alcançou Jackin, puxou-lhe a cabeça para traá s e segurou a foice enferrujada sob seu queixo como se fosse um bar beiro beê bado. Dominica engoliu a seco, preocupada. Rápido, Deus. — Devem ter alguma coisa para me dar. Sei que os santos esperam uma oferenda — disse ele, passando a laê mina curva sobre o pomo-de-adaã o de Jackin. Ossos salientes pulavam dos dois lados do pulso do camponeê s. — Vamos. Sai de cima dela. Jackin levantou-se, aos tropeços, as naá degas desequilibrando os tornozelos. Entre suas pernas, pendia o que parecia uma linguü iça pequena e uá mida. Gillian chegou para o lado e puxou a saia ateá os peá s. — Por favor, naã o o machuque. Aquele apelo tomou conta de Dominica. Se Deus naã o enviou Garren, deve ser para ela fazer algo. Levantou-se, coma terra macia sob os peá s, e começou a andar em cíárculos, tentando pisar confiante como Simon. Espinhos rasgavam seu manto. Ignorando o barulho que isso fazia, sentiu um puxaã o e percebeu que estava presa no arbusto. Aprumou os ombros para que o ladraã o naã o visse que estava presa. — Pare! — Berrou. Os treê s viraram-se. Sua voz tremeu na garganta e saiu com um guincho. — Se o matar, Deus enviaraá a alma dele direto para o ceá u, e a sua para o inferno. Deus misereatur. — O queê ? — O ladraã o fitou Dominica com os olhos esbugalhados de um texugo capturado. — Ele viaja sob a proteçaã o de Deus. — Acenou para Jackin, mantendo os olhos firmes acima da cintura dele. — Mostre-lhe seus testemunhais. Ainda com a foice na garganta, Jackin, impotente, apontou para sua roupa amarrotada. O ladraã o soltou Jackin e segurou Gillian pelo pescoço, com a foice pairando bem proá ximo. Observou cada movimento de Jackin, enquanto abria o cordaã o do saco de viagem e apalpava o interior, procurando, com dedos treê mulos.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica inclinou-se para a frente, testando a sustentaçaã o do arbusto. Finalmente, Jackin tirou o rolo de pergaminho enrolado e balançou-o no rosto do ladraã o. — Aqui. Olhe. Dominica viu Garren mover-se em sileê ncio, acompanhado de perto por Simon. Deo gratias, pensou. O ladraã o olhou o pergaminho. — O que estaá escrito? Atraá s deles, Garren se aproximou, tocando a ponta de sua espada nas costas do homem. — Abaixe a arma. Agora. Bem a tempo, Deus, pensou Dominica. E, num suspiro bem sonoro, todo o ar de seu peito esvaiu-se. Ao lado de Garren, Simon reprimia o riso. Jackin deixou cair o pergaminho e pegou as calças. O ladraã o puxou a cabeça de Gillian para traá s. — Naã o tentem nada, ou corto a garganta dela. — A moça tem razaã o — disse Garren. — Somos peregrinos. Com direito a proteçaã o. O ladraã o lambeu os laá bios mas manteve a foice na garganta de Gillian. — Pode pagar por sua proteçaã o. Deê -me alguma moeda, ou corto a garganta dela. Garren moveu a espada para a orelha do homem. — Solte-a, e eu o deixarei ir. EÉ um pagamento maior do que merece. — Somos dois — disse Simon, pulando de um peá para outro. — Podemos pegaá -lo. — Quer testar suas habilidades contra um homem que eá pago para matar? Dominica estremeceu perante aquelas palavras. Pago para matar. Mas naã o tinha sido pago para salvar a vida do Conde. Na ponta da espada do Salvador, o ladraã o foi obrigado a observar Simon acenando a espada diante dele, sem conseguir ver a ameaça que estava aà s suas costas. — Como vou saber que naã o vai me matar? — Pode acreditar nele — disse Dominica. — O homem atraá s de voceê eá um mensageiro de Deus. Os olhos esbugalhados reviraram ateá o limite das paá lpebras, na tentativa de ver atraá s de si. — E receberaá um pouco de comida. — O Salvador estendeu o farnel por cima do ombro do homem, que farejava igual a Inocente. — Ande. Solte-a. — Antes me deê a comida. — Garren lançou o farnel na direçaã o das aá rvores. — Agora, pegue-o e corra, antes que eu mude de ideá ia. — Abençoado seja o senhor que tem a bondade de Deus. — O ladraã o correu apressado para o farnel, apanhou-o e desapareceu entre as aá rvores. — Certifique-se que naã o volte — Simon afastou-se. — E naã o o machuque — gritou Garren. Os joelhos treê mulos de Dominica naã o conseguiram manteê -la em peá , e ela afundou no chaã o, ao mesmo tempo em que Gillian e Jackin caíáram nos braços um do outro. Balançando-se juntos, naã o olharam para os demais, ateá que o Salvador se manifestou. — E voceê s dois. Satisfaçam seus desejos aà noite, quando temos um vigia a postos. Depois, foi ateá Dominica, e ela se desviou, puxando seu manto, tentando soltar-se antes que ele a alcançasse. Mas o arbusto a prendia com firmeza. Garren ajoelhou-se e abraçou-a. Por um instante, quis recostar-se nele e enterrar a cabeça em seu peito. — Estaá bem, Nica? O som de seu nome de criança naquela boca quase a fez chorar. Soá a Irmaã , que a amava

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford mais que a qualquer um, aà exceçaã o de Deus, a chamava assim. Afastou aquele pensamento, esforçando-se para levantar. — Sim, claro — respondeu, mas seu coraçaã o ainda palpitava em seu peito, e a imagem de Jackin e Gillian abraçados queimava seu rosto. Faria uma prece extra esta noite. — Nunca mais faça isso. — Fazer o queê ? — Enfrentar um homem armado. Ela se virou e puxou o manto de novo, ateá que ele cedeu, rasgando-se em pequenas tiras esvoaçantes ao longo da bainha. Encarou-o novamente. — Deus custou a enviar voceê . Tive que fazer algo. — Deus naã o eá um mensageiro confiaá vel. Devia ter me chamado. Foi uma sorte eu sentir falta dos treê s a tempo. — Naã o foi sorte. Foi Deus. Ela viu sua boca contrair-se, enquanto seus olhos verdes e profundos transmitiam alíávio. — Chamou-me de Nica. Onde aprendeu esse nome? — Chamei? Naã o sei. Devo ter ouvido a Irmaã Marian chamaá -la assim. — Garren afastouse e gritou para Jackin e Gillian, que ainda se embalavam juntos. — Venham. Todos. Simon, volte aqui. Garren os reuniu diante de si como a um rebanho. — Nunca mais saiam da nossa vista. Ela manteve a boca fechada. Naã o era mais valente do que o necessaá rio, mas precisava escrever, orar, enfim, cuidar de suas responsabilidades. Quando precisasse, estaria fora de vista. Ele podia ser um mensageiro de Deus, mas começava a testar a pacieê ncia dela. E as sensaçoã es que a percorriam quando a tocava começavam a assustaá -la. Segundo Dia Ao admirar o glorioso sol nascente que Deus proporcionou, Dominica indagou-se o que poderia escrever sobre o dia anterior. Inocente aninhou-se a seus peá s. Naã o contara a ningueá m sobre as plumas. Seraá que poderia escrever sobre elas? Naã o, seria pior do que falar. Palavras escritas naã o se dissipam no ar. A distraíá-la dos pensamentos sobre as plumas, estava a lembrança de Jackin e Gillian, embalando-se juntos, fechados em seu proá prio mundo. A felicidade que sentiam um com o outro a amedrontava. Como seria ter aquele tipo de alegria na terra? Como poderia Deus competir com tamanho eê xtase? Esforçou-se para afastar a imagem, mas pensar em Jackin e Gillian trouxe aà lembrança as maã os de Garren a confortaá -la e sua voz a chamaá -la de Nica. Garren. Naã o conseguia mais pensar nele como o Salvador. Era grande demais, proá ximo demais, real demais. Cabelos castanhos ondulados. Olhos verde folha. Ombros largos. Maã os grandes. Dissera a ele que nunca havia pensado em casamento. Era mentira. Naã o conhecera muitos homens. O Prior, Lorde William, os rapazes do vilarejo. Lorde Richard. Sua pena tremeu. Tinham falado em casaá -la com Peter, o filho do ferreiro, que tinha perdido um dedo com um machado. Era pouco inteligente, mas agradaá vel, e naã o era mais sujo que a maioria. O chaã o do chaleá tambeá m naã o era mais duro do que a cama no convento, e o trabalho de uma esposa naã o podia ser mais difíácil do que cuidar de muitas freiras. Mas no seu chaleá naã o haveria

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford escrita. Dominica implorou que naã o a mandassem para onde naã o houvesse escrita. A Priora concordou, entaã o, e Peter acabou desposando a filha do carpinteiro, com quem agora jaá tinha treê s filhos. É melhor casar-se que sentir arder por dentro. Dominica sempre achara que Saã o Paulo queria dizer queimar no inferno, mas sua pele pegava fogo quando Garren a tocava. Seria essa a sensaçaã o que levava Jackin e Gillian a se deitarem no meio do dia? Se ela tivesse casado, teria essas sensaçoã es? Duvidava. Deus queria que ela copiasse Suas palavras, e naã o que sucumbisse aà s tentaçoã es da carne. Era instrutivo ver o quanto eram sedutoras. Mas esse naã o era o seu destino. Esta viagem o provaria. A Deus. A Priora. A ela mesma. Brisa fresca, escreveu. Muitos pardais. O rabo alegre de Inocente anunciou visita. — Com sua licença. — Gillian estava diante dela, agora totalmente coberta. Dominica nunca a tinha visto sem o marido. Seus olhos castanhos miuá dos quase sumiam quando sorria. Mas naã o estava sorrindo agora. — Naã o pretendia atrapalhar suas meditaçoã es. Mas disse a Jackin que precisava achaá -la e me desculpar pelo que viu ontem. Sei que eá pecado gostar tanto disso, e que naã o eá certo uma garota de convento presenciar esse tipo de coisa, mas, aà s vezes, um calor nos domina, e temos que nos deitar juntos. — Obrigada. Estaá tudo bem. Quero dizer, eá verdade que eu nunca tinha visto... — Ela naã o sabia uma palavra para terminar a frase. Gillian viu a pena e o papel e ficou pasma. — Voceê sabe escrever! — Sei, sim — falou, sentindo um orgulho proibido. — Escreveria uma coisa para mim? — A Irmaã Marian escreve muito melhor que eu. Ela eá a responsaá vel por todo o manuscrito no convento. Gillian abaixou a cabeça e corou. — Naã o posso pedir a uma freira para escrever isso. Dominica ficou curiosa. — Sou quase uma freira, quero dizer, espero ser. — Ah, naã o eá nada de mais — disse Gillian. — Soá que... tem a ver com... o que voceê jaá viu. Por favor. O que Gillian poderia querer que ela pusesse no papel sobre aquele ato? E que palavras ela saberia usar para descrever aquilo? Mas sua escrita era um dom de Deus. — Eu poderia, mas soá tenho esta folha de papel — respondeu Dominica, virando o outro lado do pergaminho que teria que durar toda a viagem. Gillian arregalou os olhos ao ver as letras agrupadas pela paá gina, e depois os apertou, como se estivesse tentando compreendeê -las. . — Pode comprar mais. Eu pagarei, se naã o custar muito. EÉ uma mensagem para a Abençoada Larina — sussurrou ela — para que saiba a razaã o da nossa vinda. Naã o quero falar na frente de um padre. Eu rezo e tudo mais, mas acho que, se voceê colocar no papel, vai ficar mais claro para ela. Naã o quero vir ateá aqui e naã o me fazer entender. — Ela compreenderaá o que estaá no seu coraçaã o, se voceê rezar — disse Dominica. — Mas, aà s vezes, quando me confesso, o padre me diz que eu naã o falo suficientemente claro para Deus, e naã o sei nada de latim. Temo que, ao chegar laá , esqueça algo ou fale errado. E isto eá muito importante. Dominica sentiu raiva do padre sem nome. Por isso, queria escrever a Bíáblia na líángua

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford do povo. Para que uma mulher como Gillian nunca se envergonhasse de falar com Deus. Dominica apertou sua maã o. — Claro, farei isso. Encontraremos um vendedor de pergaminhos em algum lugar. — Ah, obrigada. Se escrever as palavras, sei que elas aconteceraã o. Dominica observou Gillian ir embora e fitou as palavras que tinha escrito no seu pergaminho. Ladrão. Faminto. Amor. Nica.

Capítulo Oito — Voceê s precisavam veê -lo — Simon falava aos irmaã os Miller e a Ralf, o da cicatriz no rosto, enquanto Dominica pegava um biscoito e se instalava em um tronco ao lado. Fingia naã o ouvir, aà procura de Garren. Os outros estavam dispersos pela clareira. Gillian, sentada ao lado de Jackin, sorria para Dominica. Nesta manha, havia espaço entre os dois para a luz do dia passar, mas eles comiam usando soá uma maã o e entrelaçavam os dedos da outra, como se um naã o pudesse existir sem tocar no outro. Simon desenhava no ar seu inimigo. — Um homem alto e forte. Deste tamanho. Empunhava uma espada afiada como a de um sarraceno. — Na verdade, Simon, era soá uma foice enferrujada. — Simon fez uma cara feia para ela, inclinando-se para os irmaã os Miller. — E laá estava Jackin, em peá , com as calças nos tornozelos... De cotovelos apoiados nos joelhos, os irmaã os pararam de comer, esperando as proá ximas palavras de Simon. Ateá Inocente virou a cabeça, como que para ouvir com a orelha boa. Simon reprimiu o riso. — ... com aquela coisa murcha escondida atraá s das bolas, morrendo de medo de teê -la cortada fora. Aos uivos, os irmaã os davam tapas nas coxas. O mais novo fez tanta algazarra que caiu do tronco. A risada explosiva de Ralf transformou-se em tosse seca. Jackin levantou a cabeça ao som da gargalhada. Gillian acariciava sua maã o. O carinho do casal podia ser exagerado, pensou Dominica, mas Simon naã o se importava com ningueá m. Ela torcia para eles naã o ouvirem as palavras de Simon. Naã o era correto rir de algo que deveria ser íántimo como uma prece. — Claro — continuou Simon. — Enfrentei o camponeê s e mandei que soltasse Jackin. Naturalmente, ele tremeu de medo. Naã o estava em condiçoã es de segurar uma arma contra mim, ainda que fosse afiada o suficiente para cortar o meu cabelo. E, enquanto isso, — fez uma pausa para rir —, laá estava Jackin com o membro flaá cido que parecia derretido... — Simon. — A voz de Garren interrompeu a frase de Simon. Sua sombra pousou sobre os dedos de Dominica. Ela estremeceu como se os dedos de Garren, e naã o a sua sombra, a tocassem. Simon abaixou a cabeça. — Senhor. — Naã o foi treinado para conversar com uma dama? — Dominica cocava a orelha de Inocente e observava uma formiguinha preta, na grama, içar um farelo caíádo do paã o de Simon. Garren tambeá m precisava de treinamento na arte da conversa, pensou. — Mas ela estava laá , viu tudo. — Se viu, naã o precisa tambeá m ouvir. — Garren, com os olhos em Simon, naã o a fitou. — Especialmente da maneira como voceê enfeita a histoá ria. Simon encolheu-se perante a reprimenda, ao mesmo tempo em que a Irmaã se aproximou, os passos mais lentos do que no dia anterior. Dominica rezou para que ela naã o tivesse ouvido a histoá ria de Simon. Naã o lhe contara toda a verdade para naã o a preocupar. A

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford histoá ria do ladraã o jaá era muito. Garren apertou o ombro do jovem escudeiro. — Simon, hoje, vigie a retaguarda. Certifique-se de que todos permaneçam juntos. Fique atento aà faca do sarraceno. — Sim, senhor. — Reuá nam seus pertences. Sairemos em pouco tempo — avisou Garren. Os irmaã os Miller e Ralf retiraram-se furtivamente. Pelo menos, naã o ririam mais de Jackin, pensou Dominica, satisfeita. A Irmaã Marian juntou-se a eles, enquanto Simon, engolindo o resto do paã o, se levantava. — Simon — disse ela. — Ontem reparei que voceê naã o sabe todas as palavras do terceiro verso da Cançaã o de Larina. Hoje, viajarei montada em Roucoud. Caminhe ao meu lado, e eu as ensinarei. — Ela sorriu, doce como sempre, mas Dominica reconheceu aquele olhar. Geralmente, antecedia vinte ave-marias. — Sim, Irmaã . Soá vou guardar os meus pertences. — Simon afastou-se de ombros arqueados. — Ele eá jovem — disse a Irmaã , compreensiva, e virou o olhar de ave-maria para Dominica. — Acho que voceê naã o me contou tudo sobre ontem. — Naã o quis preocupaá -la. — Dominica cobriu os dedos frios da Irmaã com os seus. — Assim como a senhora naã o quis me preocupar e naã o me falou do seu cansaço. De agora em diante, soá viajaraá a cavalo. — Estarei bem. Naã o se preocupe comigo. Agora, vire-se, deixe-me ver o seu manto. — A Irmaã examinou as tiras rasgadas pelos espinhos da moita. — Vou remendaá -lo esta noite — disse ela, acariciando o braço de Dominica. — Comeu bem? Fez suas oraçoã es matinais? Nica. — Esse nome lembrou-a a sensaçaã o das maã os de Garren em seus ombros. — Irmaã , me chamou assim na frente de Garren? — Agora eá Garren em vez de O Salvador? — Um vinco de preocupaçaã o marcou a pele clara entre as sobrancelhas da Irmaã como as linhas feitas pela faca no pergaminho. — Nica, ele pode naã o ser o que voceê imagina. EÉ um soldado, naã o um santo. — Sabia que quase fez os votos?—Dominica acatou. — Ele contou isso a voceê ? — perguntou de volta a Irmaã com olhos arregalados de surpresa. Ele me contou que carrega as plumas de Larina, Dominica quis dizer, mas tinha feito uma promessa. — Sim — respondeu Dominica. — Ainda naã o me respondeu. Ele a ouviu me chamar de Nica? — Acho que sim. Por queê ? — A Irmaã disse, pensativa. — Chamou-me assim. — A lembrança de seu nome especial na voz rouca e suave de Garren envolveu-a. Especial. Intimo. Como a voz de Deus, um sinal de aprovaçaã o de seu plano. Mas em vez de ter pensamentos virtuosos, ela pensava nas maã os de Garren tocando-a. Fortes e suaves. E, depois de ver o pobre Jackin naquela situaçaã o, imaginou como Garren seria nu. De algum modo, naã o achou que o membro dele fosse derreter como cera de vela. A Irmaã a observava intrigada. Dominica naã o queria revelar suas emoçoã es desordenadas. Talvez o encontro com o ladraã o a tenha perturbado mais do que imaginara. Soá o tempo acalmaria seus pensamentos. — Jaá vou iniciar a caminhada — disse Dominica. — Naã o me distanciarei demais. — Mas os ladroã es... — retrucou a Irmaã . — Naã o se preocupe. — Dominica pegou um galho e o lançou o mais longe que poê de. Inocente correu para pegar, e ela o seguiu.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford O caminho era reto e plano. Prados verdes estendiam-se de ambos os lados, repletos de cotovias e sem esconderijos. As dores do dia anterior dissiparam-se. Nunca mais saiam da vista do grupo, Garren dissera. Ela naã o saiu, mas jaá naã o podia ouvi-los. Quando, finalmente, sentou para esperar os outros, estavam pequeninos como as imagens pintadas no teto da igreja. A caminhada fez Dominica esquecer a preocupaçaã o na voz da Irmaã e o enfado das histoá rias interminaá veis da viuá va, mas naã o conseguiu afastaá -la de seus sentimentos em relaçaã o a Garren. Precisava conseguir fitaá -lo sem corar, sem ter pensamentos pecaminosos. Apreciando as margaridas, abraçou Inocente. — O que Deus estaraá tentando me dizer? — murmurou no ouvido do caã o. Poucos instantes apoá s, uma das pequeninas figuras aproximou-se. Eram passadas zangadas. Ali, parada, enquanto aguardava a aproximaçaã o dele, encheu a mente de pensamentos virtuosos. — Avisei a voceê ontem para naã o sumir de vista. — Garren agarrou-lhe o braço. Dominica viu, pela boca contraíáda e a respiraçaã o forte, que estava muito irritado, pois uma caminhada taã o curta naã o poderia exauri-lo tanto. — Naã o haá ladroã es por aqui. — Aquela maã o em seu braço nu lembrou-lhe as peles de Jackin e Gillian tocando-se. Antes, achava que era a aureá ola da santidade dele que a tocava. Agora, jaá naã o estava taã o certa disso. — Nenhum que voceê esteja vendo. A histoá ria de Simon a irritou? Foi por isso que se afastou? Dominica naã o podia contar que naã o foi a histoá ria de Simon, e sim seus proá prios pensamentos. — Ele zombou de algo que deveria ser íántimo. Garren começou a andar, e ela acompanhou seu passo. As harmonias dos irmaã os cantores soavam distantes, acompanhadas pelas batidas dos cajados no solo. — Ontem voceê viu uma situaçaã o muito íántima. — Dominica procurou nos campos uma borboleta para distraíá-la, mas todas pareciam estar dentro do seu estoê mago. Deu de ombros, procurando afastar a sensaçaã o, a percepçaã o terríável da presença dele ao seu lado. Pegou uma vareta e jogou o mais longe que poê de. Inocente correu atraá s, dispersando um bando de paá ssaros. — EÉ uma coisa que os cachorros fazem. Jaá vira aquilo, uma vez. Encontrara Inocente em cima da cadela branca e felpuda da Irmaã Margaret, sob as flores lilases de um arbusto de tomilho. Mesmo depois que Dominica os separou, o caã o a montou muitas outras vezes, insistente e determinado. Mas naã o era como ontem. Os caã es naã o se apegam com tamanho desejo, como se fossem morrer se algueá m os separasse. — Ficou angustiada com o que viu? Naã o posso deixaá -lo imaginar o quanto, pensou ela. — Acho que disse a Simon que este naã o eá um assunto apropriado para damas. — Dominica deu de ombros, como se visse casais nus todos os dias. — Jackin e Gillian teê m um prazer exagerado um com o outro. — Exagerado? — Um sorriso ameaçou aparecer. — EÉ pecado ter prazer excessivo com o corpo. — E voceê identificou um prazer excessivo? — Garren estava prestes a soltar uma gargalhada. Um calor subiu ao rosto dela. Claro que naã o podia identificar um prazer excessivo. Mas isso levou-a a um pensamento amedrontador. E se o delíário que presenciou naã o fosse fora do comum? E se todo mundo fizesse amor assim?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Santo Agostinho foi muito claro nesse ponto. — Garren ficou de queixo caíádo. — O que sabe de Santo Agostinho? Ela sabia que tinha usado sessenta e duas penas de ganso num soá dia, copiando com muito esmero uma seçaã o de A Cidade de Deus. Mas ainda naã o estava pronta para compartilhar o segredo de sua escrita. — Jaá lhe contei que quero fazer os votos. Como freira, vou precisar conhecer as doutrinas de todos os grandes padres da Igreja. — E os padres desaprovam o prazer da uniaã o? — Claro que sim. — Soá um herege questionaria Santo Agostinho. E Deus naã o teria confiado as plumas de Larina a um herege. Ele pode não ser o que você imagina. De repente, todo o calor esvaiu-se de seu rosto. — Compreendo agora. Deus mandou voceê para testar o meu conhecimento da doutrina. Ele quer se certificar de que mereço fazer os votos. Eu devia ter esperado por isso. Estou pronta. Pode me testar. Passado o momento de descontraçaã o, as linhas em torno da boca de Garren ficaram mais profundas. — Estaá bem — disse ele. — Explique a doutrina. Conte-me o que haá de errado com um homem e uma mulher terem prazer um com o outro. A respiraçaã o de Garren parecia irregular. Sem duá vida estaá abalado por ter sido descoberto, pensou ela. Deus naã o percebeu que ela seria taã o esperta em descobrir Seu plano. — Muito bem — disse ela. Dominica respirou fundo e imaginou-se vestida no haá bito preto das freiras, em segurança. Sob o peso de seu manto, o suor uá mido encharcava suas axilas. Esse parecia ser um assunto íántimo demais para ser discutido com um homem, mesmo em nome da doutrina. — Deixe-me expor o argumento: "Naã o haá nada que devamos evitar tanto quanto as relaçoã es sexuais." Santo Agostinho disse isso. — Dominica preferia escrever em vez de falar, pois poderia escolher a palavra exata. — A uá nica razaã o para Deus criar o ato entre o homem e a mulher foi a concepçaã o. — Como sabe disso? — Todos sabem disso. A uá nica razaã o para o homem e a mulher se unirem eá gerar uma criança. — A uá nica razaã o? — Outras razoã es apareciam nos olhos verdes de Garren. Razoã es que explicavam todo o eê xtase que Jackin e Gillian sentiam. — A uá nica razaã o. Portanto, se um casal se une pelo prazer egoíásta, e naã o apenas para reproduçaã o, uma uniaã o por prazer, isso eá um pecado. — Sua líángua enrolou-se na boca. Quando ela aprendeu, aquilo pareceu mais simples. — Por que Deus desejaria que foê ssemos infelizes? — Abster-se das relaçoã es carnais deveria nos alegrar. Deus quer que sejamos felizes no ceá u, naã o aqui na ilusaã o temporaá ria da terra. — Por que eá pecado ter prazer na terra que Deus criou para noá s? — Os olhos dele a desafiaram. Dominica sabia que naã o era certo o que Garren dizia, mas naã o conseguia descobrir por queê . Procurou o rosto da Irmaã para confortar-se. — Estaá tentando me confundir. — Voceê apreciou o nascer do sol esta manhaã ? — Estava lindo. — Uma criaçaã o terrena de Deus. E que tal esta flor? — Ele se inclinou como se fosse arrancar a margarida amarela e branca mas, em vez disso, ajoelhou-se na terra e puxou-a para se ajoelhar ao seu lado. Depois, levou a flor ao nariz dela — Gosta deste perfume? Ela fechou os olhos e inalou o perfume. Garren pegou a maã o de Dominica e passou os

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford dedos sobre as veias azuis de seu pulso, subindo ao cotovelo. — E quando eu faço isto, naã o eá uma sensaçaã o prazerosa? Os dedos de Garren na sua pele pareciam ter o efeito estranho de apressar as batidas de seu coraçaã o. — EÉ , mas... — Como pode essa sensaçaã o naã o ser um presente de Deus? — Garren virou o braço dela ao contraá rio e acariciou a pele nua ateá causar arrepios; e, quando retirou a maã o, Dominica sentiu a pele ficar fria. Ela acariciou seu braço, subindo e descendo com seus proá prios dedos, do mesmo modo suave. — A sensaçaã o naã o eá a mesma — afirmou Garren. — Naã o, naã o eá — admitiu ela. Garren desnudou o braço direito e fechou a maã o com força. Os muá sculos saltaram. — Toque-me. Vai sentir uma coisa diferente. Os dedos de Dominica formigavam como se ela estivesse a ponto de segurar as plumas sagradas e roçaram os cabelos finos, sem ousar tocar a pele. Ofegante, Garren abriu a maã o e estendeu os dedos na direçaã o de Dominica. Ela acariciou as linhas que atravessavam a palma daquela maã o, desejando, por um momento, que os dedos fechassem e apertassem os seus. Ele retirou o braço, e ela suspirou aliviada. E desapontada. Sua respiraçaã o veio forte e acelerada. — Veê o prazer que duas pessoas podem ter juntas? — AÀ distaê ncia, Dominica ouviu a viuá va falando com o meá dico aos berros. — O homem jogou fora a muleta e correu, naã o andou, correu, estou lhe dizendo. Deus eá minha testemunha. Eu vi. Ele beijou o osso do dedo míánimo de Santiago e, no instante seguinte, estava curado. Milagres, lembrou-se Dominica. — Naã o pode me enganar com loá gica falsa. Fides quaerens intellectum. — Sua voz tremia. — Latim de novo? — Voceê naã o estudou Santo Agostinho o suficiente no mosteiro. Quer dizer "A feá antes da compreensaã o". — Aprendi tudo o que preciso do latim. Carpe diem. — Aproveite o dia? — EÉ a uá nica coisa que Deus naã o pode tirar. — Garren levou os dedos ao rosto dela e a acariciou. — Aproveite o dia de hoje, Nica. Pode naã o haver um amanhaã . Ela temeu perguntar se fora aprovada.

Capítulo Nove Para Garren, naã o havia um amanhaã . Deus arrebatara aqueles que lhe eram mais preciosos mas, entre um passado doloroso e um futuro vazio, permitira-lhe um eterno hoje. A moça o evitava, e ele lamentava teê -la amedrontado. Sua intençaã o era apenas abrir-lhe os olhos para o mundo como ele eá . Ela, poreá m, teimosa, insistia que ele era um mensageiro de Deus e se retraiu, apegada aà s palavras de Agostinho, aquele degenerado que se converteu. Garren podia naã o ser um letrado mas conhecia as histoá rias de Agostinho. Antes de se converter, o homem sucumbira a uma vida de tentaçoã es. E agora ela despertava para isso. Ele percebeu quando a garganta se contraiu ao seu toque, sentiu o batimento do pulso acompanhando o seu. Ah, ela estava tentada, sim, e isso a

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford amedrontava. Mas aquilo tambeá m abalou sua confiança, confiança essa de que ele precisava, naã o como um enviado de Deus, mas como homem. EÉ melhor naã o apressaá -la. Dominica caminhava bem comportada ao lado de Roucoud, que carregava a Irmaã . Atraá s, os irmaã os Miller discutiam. Garren suspirou. Quando concordou em lideraá -los, pensou que a tarefa abrangesse apenas a preocupaçaã o com alimento, abrigo e segurança. Para os soldados, resume-se nisso. No caso dos peregrinos, contudo, isso naã o era o bastante, apesar de as Escrituras da Igreja serem contra o conforto na jornada. Depois de treê s noites, jaá precisavam de uma cama, um teto e uma refeiçaã o quente. Talvez os confortos de Exeter pudessem acabar com as discussoã es dos irmaã os Miller, proporcionar ao casal um pouco de privacidade, e permitir que a Irmaã Marian recuperasse suas forças. Se naã o houvesse acomodaçaã o para os peregrinos no mosteiro, a responsabilidade de conseguir um lugar recairia sobre ele; a naã o ser que fossem pedir abrigo. Comida e acomodaçaã o em um albergue representaria mais do que o pagamento de um dia. O uá nico dinheiro de que dispunha era de William. Por mais inuá til que a peregrinaçaã o pudesse ser, tinha prometido fazeê -la. Era um presente pequeno comparado a tudo que recebera dele. Reembolsaria tudo que gastasse. Usando Dominica, se preciso. Pensar nela o excitava. Garota corajosa e tola. Quando a viu encurralada entre os arbustos, e o casal nu, quis possuíá-la e salvaá -la. Jamais considerara a tarefa desagradaá vel. Soá o sofrimento que traria. Calma, pensou. Ainda temos alguns dias. Espere que ela o procure. E o faraá , com toda a certeza. Ainda era manhaã quando os peregrinos chegaram a Exeter no dia da Festa de Corpus Christi. Muitos palcos giratoá rios de madeira estavam espalhados nas ruas empoeiradas, repletas de pessoas alegres que naã o trabalhariam nesse dia. Em vez disso, iriam de vagaã o em vagaã o, todos palcos para apresentaçoã es dos grupos que tinham suas proá prias versoã es das histoá rias de Deus. A alegria trouxe-lhes energia nova. Garren deu orientaçoã es rigorosas para se reunirem em frente aà catedral, antes das veá speras. Jackin e Gillian foram os primeiros a desaparecerem. Os irmaã os Miller saíáram aà procura de alguma indicaçaã o de um barril de vinho. Ralf sumiu em seu proá prio submundo. A viuá va e o meá dico afastaram-se para assistirem juntos aà s apresentaçoã es, que ele repetiria para o ouvido bom de sua acompanhante. Simon pediu permissaã o para montar Roucoud, e Garren cedeu. O cavalo precisava de um bom exercíácio. Soá sobraram ali a Irmaã Marian e Dominica. Espere que ela o procure — relembrou-se Garren, fingindo fascinado com um vagaã o cortinado com uma bandeira que retratava um enorme peixe. Uma multidaã o reunida aguardava a proá xima apresentaçaã o. — A Irmaã disse que eu posso assistir aos autos com voceê , enquanto ela vai ao mosteiro para pedir acomodaçoã es. Se voceê concordar, se naã o for fazer outra coisa. — Claro. Nada me daria mais prazer. — Garren sentiu um alíávio mais forte do que esperado. A Irmaã , segurando o caã o, viu que ele concordou e acenou a maã o em despedida, hesitante, antes de seguir a passos lentos em direçaã o a Saã o Nicholas. Eles viram uma baleia enorme, que escondia treê s peixeiros, engolir um desafortunado Jonas. Dominica riu com a multidaã o. — Jaá viu um auto de milagre? — perguntou Garren, desejando por um momento que ela quisesse olhar para ele, em vez de soá prestar atençaã o nas apresentaçoã es.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — No convento, celebramos a festa de Corpus Christi de uma maneira um pouco diferente. Uma casa de mulheres cantoras limitada por um muro e um portaã o. Intocada. Protegida. Ele sacudiu os ombros para se livrar da sujeira do mundo que trazia consigo e que iria macular o lago puro e líámpido que era a vida de Dominica. — Por que foi criada laá ? — perguntou, imaginando que a histoá ria de Dominica seria diferente daquela contada pela Priora. — Deus me deixou laá . — O proá prio Deus? — Ela tratava Deus com muita intimidade, pensou ele, diante da convicçaã o de que o Onipotente administrava a vida dela. — Deus arranja todas as coisas. Ele me deixou no portaã o como se eu fosse uma oferta de maçaã s. — Dominica encheu as bochechas de ar e fez um cíárculo com os braços. — Naã o pareço uma maçaã ? Garren deve ter parecido assustado, pois ela caiu na risada, feliz e despreocupada, sentindo o vento no rosto; e ele quis tocaá -la, abraçaá -la e beijar seu nariz engraçado por razoã es que naã o tinham nada a ver com a Priora e tinham tudo a ver com ela. Vaá com calma, pensou ele, mantendo os braços ao longo do corpo. Fabricou uma expressaã o seá ria como se estivesse analisando a pergunta. — Uma maçaã ? Naã o. Parece mais uma ameixa. — Dominica curvou-se de tanto rir, uma risada que foi abafada pelo aplauso da multidaã o quando Jonas e o grande peixe agradeceram ao puá blico com uma revereê ncia. A pequena curva de seus laá bios era irregular. Garren os admirou por tanto tempo e com tanta intensidade que podia senti-los unidos aos seus. Ele colocou a maã o nas suas costas enquanto a levava pelas ruas apinhadas. Comprou duas tortas com um vendedor de rua para o almoço, protegendo-as de um ganso agressivo, e engoliu a sua com duas mordidas. — Naã o gosta disso? — Comemos pouca carne no convento. Naã o estou acostumada ao gosto. O ganso, grasnando, mordiscou o manto de Dominica. Garren o afastou, e ela devorou a torta. O ganso beliscou seus dedos, e o uá ltimo pedaço caiu no chaã o. O ganso investiu para cima do pedaço de torta caíádo, soltando plumas brancas, e saiu triunfante. Dominica pegou uma das plumas do ganso. — Parecem muito com as plumas da Abençoada Larina, naã o acha? — perguntou. Garren sentiu o relicaá rio pesar no seu pescoço e na sua mente, e esperou que ela nunca descobrisse o quanto as plumas se pareciam. — Incríável como haá pouca diferença entre as plumas de um ganso e as de uma santa — concordou ele. — AÀ s vezes, muito pouco nos impede de sermos bons como deveríáamos. Isso nos ensina a ter compaixaã o por aqueles que erraram. Ele sabia: naã o haá perdaã o para o pecado que iria cometer. No fim da tarde, avistaram a fachada oeste da catedral dourada de Exeter. Um tapume cobria a fachada, ainda em construçaã o, um novo monumento para satisfazer a ambiçaã o do bispo atual. As ferramentas de pedreiro estavam no chaã o, abandonadas por aquele dia, A porta em arco era adornada na parte superior por uma fileira de figuras de santos, algumas acabadas, outras ainda lutando para emergir da pedra. Acima da porta, um grande espaço vazio esperava por um vitral. Na frente da catedral, começou outra apresentaçaã o. Os olhos de Dominica arregalaramse de espanto diante do homem vestido de Deus. Alto e desengonçado devido aà s pernas de pau ocultas sob uma longa veste branca, ele usava uma peruca loura e uma maá scara de ouro. A

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford seus peá s, um Sataã de chifres lutava uma batalha vigorosa pela alma de um pecador agachado. — Isso naã o estaá na Bíáblia. — Claro que estaá — retrucou ele, perguntando-se por que estava discutindo. Tinha deixado a Igreja porque o Deus que eles veneravam parecia menos auteê ntico do que o homem de pernas de pau. Deus agora agarrou o diabo em uma chave de joelho, açoitando suas naá degas acolchoadas com uma paá comprida. O povo gritava. — Dois centavos no diabo — gritou um arqueiro. — Naã o — insistiu ela. — Naã o estaá . Garren passou os olhos pela multidaã o animada, esperando que ningueá m ouvisse a blasfeê mia. — O que quer dizer com isso de naã o estar na Bíáblia? — Ela o analisou com um olhar silencioso e desafiador, fitando-o com cautela, antes de se inclinar para ele e sussurrar, com os laá bios roçando-lhe a teê mpora; — Eu li. Seu sussurro soou taã o alto no ouvido de Garren quanto a risada da multidaã o. Atordoado, naã o conseguiu falar. Sabia que ela escrevia e lia um pouco. A salieê ncia em seu dedo comprovava isso. Mas a Bíáblia era escrita em latim. Somente os escolhidos da Igreja podiam leê la e interpretaá -la. Apesar de ter sido criada pelas freiras, naã o havia razaã o para ensinarem latim a uma pobre oá rfaã . — Voceê leê latim? — Leio. — Ela confirmou, empinada e orgulhosa. . — E escrevo tambeá m. Ele sabia o quanto precisava confiar para contar isso. Ele colocou a maã o nas costas de Dominica e conduziu-a para longe da multidaã o, para a calma serena da catedral inacabada, onde ningueá m aleá m de Deus poderia ouvir seu sacrileá gio. A nave oeste, em construçaã o, quase duplicaria o tamanho da igreja. Dentro, colunas elevavamse do chaã o, arqueando em um teto sem telhado como um bosque de aá rvores taã o altas que alcançariam o ceá u; e para Deus poder observar das nuvens, pronto para mataá -lo por personificar um homem santo. O castelo, o convento, a vila, tudo caberia aqui dentro. Esta eá verdadeiramente a casa de Deus. Aos olhos de Garren, a igreja tinha sido esculpida e embelezada para um bispo morto, e naã o para um Deus vivo. O uá ltimo bispo estava em uma tumba aà esquerda. Que pobres tolos, como sua famíália, teriam dado toda sua riqueza para a gloá ria de um bispo morto? Mas quando a luz dourada do sol se derramou, atraveá s do enorme buraco do vidro colorido, reluziu em volta de Dominica como se ela fosse um anjo na terra. E ele quis voltar a acreditar em tudo de novo, Garren pegou os dedos dela, suavemente, e levou-a ateá os degraus sob o arco de um biombo de madeira entalhada que ocultava o coro no centro da igreja. Roçando o polegar na pequena salieê ncia do dedo meá dio de Dominica, sentou-se ao seu lado e esperou. — Agora, conte-me tudo, Nica — disse ele, finalmente, sem ter certeza de que estava pronto para ouvir. — EÉ mais um teste? — Sim, pensou ele, e neste eu naã o posso falhar. — Nenhuma resposta eá certa se naã o for a verdade. — Acredito em voceê . — A sobrancelha de asa quebrada parecia pronta para voar. — Bem, voceê sabe que os Readington sustentam o trabalho do convento. — Claro. — O bem mais precioso de William, que o acompanhou na França, era o Livro dos Salmos de seu pai, um trabalho das freiras do convento. — A Irmaã Marian eá a nossa cantora, responsaá vel pela coá pia e pelo canto. Ela sempre teve um cuidado especial comigo. Quando copiava, me deixava sentar no seu colo. Ela me

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford ensinou a escrever com as sobras de tinta e de pergaminho. — Dominica deu uma risadinha quando ouviu o eco de sua voz rebater no chaã o de pedra. — Acho que ela viu que eu nunca seria cantora. — Garren sorriu, apreciando a sensaçaã o confiante dos dedos dela. Apesar de naã o ter a pacieê ncia nem o talento para isso, respeitava os Irmaã os que produziam testamentos lindos e duradouros. — Eu amo o cheiro da tinta, a sensaçaã o da pena, a forma como a gloá ria de Deus eá revelada quando a paá gina eá completada. EÉ isso o que quero fazer da minha vida. — Iluminado de alegria, seu rosto naã o precisava de nenhuma luz do sol. Naã o eá aà toa que ela naã o pensou em casamento. Soá uma freira teria permissaã o de passar os dias copiando textos sagrados. — Copiei uma parte de Cidade de Deus de Santo Agostinho. Haá uma paá gina de Mateus em nossa biblioteca que eu mesma copiei, ateá a letra maiuá scula com verde e ouro. A Irmaã fez o molde de gesso para seguir o padraã o, mas eu apliquei a folha de ouro e a poli. Garren percebeu, sorrindo, que ela tinha uma pontada de orgulho a respeito de seu talento. Mas naã o chegava a se caracterizar como um pecado. — Que parte de Mateus? — perguntou ele, mais interessado em ver o movimento de seus laá bios do que no verso da Bíáblia. — "Peça e receberaá s; procure e acharaá s; bata e ela se abriraá para voá s." Vou mostrar a voceê para que possa ler e ver como eu faço um bom trabalho. Ele tambeá m precisava fazer uma confissaã o. — Mesmo no mosteiro, eu deixava o latim para os outros. — Ela sorriu, encantada com suas palavras. — Por isso, quero copiar a Bíáblia na líángua do povo. — Em ingleê s? Um raio gelado atravessou-o quando ela confirmou. Ateá ele que lia ingleê s pouco melhor que o latim, isto eá , quase nada, poderia ler uma Bíáblia dessas. Poderia ser falada, citaçoã es poderiam ser feitas, ela pertenceria ao povo, deixaria de ser exclusividade da Igreja. Ele se perguntou o que William, agarrado com toda força ao seu Livro dos Salmos, pensaria a respeito. — A Priora sabe disso? — perguntou Garren. — Ela desaprova. Claro, pensou ele. Tamanha heresia poderia ameaçar a proá pria existeê ncia do convento. EÉ por isso que ela queria colocar em risco a alma imortal de Dominica. — Mas ateá mesmo as Irmaã s pronunciam errado as palavras durante os cultos, porque soá as sabem de cor. Quero tornaá -las verdadeiras para que todos possam entender. Voceê ... — Ela fechou os olhos e depois abriu para fitaá -lo. — Voceê acha que eá errado? Os olhos azuis insondaá veis brilhavam com o fervor da primeira vez que a viu. Ateá agora, pensara nela como um paá ssaro esperando ser libertado da gaiola da Igreja e poder voar, feliz, para o mundo real. Agora, em vez de libertaá -la, percebeu que seu plano a levaria a perder tudo o que lhe era mais precioso. Naã o tinha coragem de fazer isto. Nem por William. — Penso que, se quer copiar as Escrituras em ingleê s, eá o que deveria fazer. — Voceê eá um homem de Deus estranho. A Irmaã disse que eu nunca deveria falar disso. Vai me ajudar? — Como poderia ajudaá -la? — Diga aà Priora que naã o haá problema. Talvez ela o ouça, jaá que eá taã o proá ximo a Deus. Ele se atrapalhou, desejando, por um momento, a ajuda de um poder superior. — Talvez deveê ssemos deixar isso nas maã os da Abençoada Larina.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford O sorriso de Dominica irradiava sua feá . — EÉ por isto que estou fazendo peregrinaçaã o. Sei que Larina me ajudaraá . Certamente, Deus naã o me condenaraá por disseminar Sua palavra. O peito de Garren doíáa como se tivesse levado uma martelada perante a mal-orientada feá de Dominica. Ela acreditava que Deus se sentava nos ombros dela e que poderia mudar o mundo com Suas palavras. Ele envolveu o rosto suave com a maã o. — Voceê eá mais pura do que eu jamais poderei ser. Qualquer Deus que a condene naã o merece respeito. Mas o Deus que ele conhecia naã o merecia mais respeito do que o pedreiro que usava uma barba falsa. No fim da jornada, quando visse aonde sua feá a levou, ela seria taã o amarga e solitaá ria quanto ele. Nenhum Deus que mereça ser venerado deixaria isso acontecer. Em vez disso, seria justo aquele que a extinguiria. E ele percebeu, naquele momento, que naã o poderia culpar Deus por seus proá prios pecados. Richard segurava proá ximo ao nariz uma laranja espetada com um cravo-da-íándia, enquanto se dirigia ao quarto de William para sua visita diaá ria. Hoje, pensou ele, perguntaria sobre a mensagem. A pele de William afundava no craê nio de cabelo dourado escasso. Suas maã os paá lidas curvavam-se em garras escamosas, exatamente como o italiano previra, e nem mesmo a caixa de perfumes contra infecçoã es tinha sido capaz de disfarçar o mau cheiro. Richard estremeceu. Niccolo tinha avisado, mas estava levando mais tempo que ele pensara. Teria que mandar lavar bem o quarto antes de se mudar para laá . — Como estaá se sentindo hoje? — Naã o fique rondando aà espera da minha morte, irmaã o. Naã o fica bem. — Meu desejo eá evitar qualquer dor. — E ter o caminho livre para ser o herdeiro. — Ansiando por ar puro, Richard foi ateá a janela. No prado a oeste, criados molhados de suor ceifavam o feno novo. A mulher do mineiro, com o decote aberto para refrescar os seios generosos, levava cerveja para o marido no campo. Jaá se deitara com outros antes dele. Como as mulheres que seu pai gostava. Certamente, naã o se casara pura como a maã e dele. Sim, seu pai teria gostado dela. Talvez a chamasse esta noite. — O tempo estaá bom, William. Nossos peregrinos devem estar chegando em Exeter com a mensagem. O que escreveu, William? — Naã o eá da sua conta. — Estranho. Foi o que o mercenaá rio disse. — Ele naã o eá um mercenaá rio. Defendeu-o. Sempre defende esse homem sem qualquer relaçaã o de sangue. Quem tem o sangue de seu pai eá ele, e naã o aquele cavaleiro sem nome e sem lar. — Luta por dinheiro. Chega a ir em peregrinaçaã o pelo pagamento. Do que mais eu o chamaria? — Richard deu uma risadinha. — Salvador, talvez? — Eu o considero mais meu irmaã o que voceê . Richard percebia na voz de William o tom de desprezo do pai. Por que você não é como seu irmão? — Do que mais voceê acha que ele poderaá salvaá -lo? De mim? — Jaá eá tarde demais para isso. Richard rangeu os dentes no sileê ncio longo e vazio. Entaã o, William sabia. Mas, agora, e daíá? William fitou-o com olhos brilhando de raiva. — Quer saber o que a mensagem diz? Pois vou contar. — William levantou o corpo com

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford dificuldade e apoiou-se nos cotovelos. Richard afastou-se na direçaã o da porta, temendo que ele desenvolvesse uma força de louco. — Ela diz ao padre do santuaá rio que, se eu morrer, teraá sido por sua maã o, e que voceê deve ser enforcado para que Deus possa mandaá -lo direto para o inferno. Os dedos de Richard subitamente ficaram entorpecidos como os de William. Ele bambeou e caiu contra a porta. Deveria ter desconfiado disso. Poderia teê -los impedido antes. Se aquela mensagem chegasse ao santuaá rio, todos os seus planos cairiam por terra. — Ela diz o queê ? — Voceê e o seu italiano. Achou que eu naã o saberia, e, de fato, fui saber tarde demais. — Garren sabe? — Naã o basta Deus saber? — EÉ claro que naã o sabe. — Richard falou para si mesmo, empinando-se de novo. Naã o precisava falar com William agora. Logo ele estaria morto. — Se Garren soubesse, jaá teria me matado. E jaá que todos esses tolos acreditam que Garren eá algum tipo de santo, eles proá prios me enforcariam, se ele mandasse. — Richard caminhou de um lado para o outro, tentando pensar. — Mas voceê quase naã o consegue segurar uma colher. — Continuou nas passadas, tentando pensar. — Naã o foi voceê quem escreveu. Teve um escriba. Quem foi? William riu baixinho. Richard segurou os ombros do irmaã o e balançou-os. — O escriba, quem foi o escriba? Os olhos de William reviraram. Richard largou-o e recuou dos lençoá is malcheirosos. Uma pontada de remorso maculou seu alíávio ao sair de perto. — A garota, claro. Dominica. — Precisaria mudar os planos. — Voceê naã o assinou somente a sua sentença de morte, irmaã o. A deles tambeá m. O som de William querendo vomitar acompanhou-o pelo corredor. Ainda vivo. Muito ruim. Agora ele tinha outras preocupaçoã es. Arrumar suas coisas em um saco de viagem. Certificar-se de que Niccolo sabia o que fazer em sua auseê ncia... — Niccolo! — gritou Richard, com a voz treê mula como os dedos de William. O homem saiu de uma porta como se estivesse esperando Richard chamar. — Sir? — O homem o deixava nervoso. Alguma coisa nos olhos dele. Talvez devesse livrar-se dele quando seu trabalho terminasse. Se bem que, se ele realmente conseguia transformar estanho em ouro, valeria a pena manteê -lo. — Meu cavalo mais veloz. Apronte-o para antes do meio-dia. As ordens deveriam ser dadas a um pajem, mas Niccolo encaminhou-se para o estaá bulo. Os peregrinos partiram haá treê s dias, mas, se ele forçasse o cavalo, poderia alcançaá -los antes de chegarem ao santuaá rio. Talvez levasse uma pequena guarda... Naã o. Naã o podia simplesmente aproximar-se e mataá -los. Teria que ir como um peregrino. Sozinho. Descobriria uma maneira depois. Quem sabe um dos venenos de Niccolo. Agora tinha que providenciar aquela baboseira de manto e cajado. — Lombardo! — gritou. No meio da escada, o italiano parou. — Arranje um pouco de beladona. E consiga-me um desses mantos cinzas e uma cruz para usar. Os laá bios grandes do homem contraíáram-se. — Como um peregrino, Sir? — Sim, seu tolo imbecil. — Richard soltou uma gargalhada e jogou a laranja para o homem, rindo mais ainda quando ele se atrapalhou para agarraá -la. — Vou fazer uma peregrinaçaã o. Isso poderia acabar bem. Muitos acidentes aconteciam na estrada. O mercenaá rio e a garota poderiam morrer ao longo do caminho santo, e ir direto para o ceá u por seus

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sofrimentos. Era uma laá stima pela garota. Levantando da sua mesa, sem fala, a Priora observava Sir Richard, vestido como um peregrino, ajoelhado diante dela. Ele nunca visitara o convento, nunca reconhecera nenhum de seus pedidos, exceto oferecer a ela aquele seu negoá cio do diabo. Seraá que ele achava pos síável que jaá tivesse uma resposta? Ou seraá que naã o confiava na palavra dela? A Madre estava começando a ter uma certa anguá stia com relaçaã o a Dominica. Quase chegava a sentir falta dela. — Abençoe-me, Priora, estou partindo para o santuaá rio da Abençoada Larina. — Que mudança no coraçaã o o leva em peregrinaçaã o? — Descobri um fato lamentaá vel. — As paá lpebras de Richard contraíáram-se. — Parece que meu irmaã o, quase morto e delirante, sem duá vida, foi tomado da ideá ia de que estou tentando envenenaá -lo. — Por que acharia tal coisa? — Porque Garren estaá levando uma carta para o padre do santuaá rio contando isso. Meu irmaã o a escreveu, ou, melhor dizendo, Dominica escreveu para ele. Ela sabia taã o bem quanto se tivesse ouvido de Deus que o Conde naã o tinha delíários. Aleá m de expor a alma imortal de Dominica, ela a condenara a morrer. — Claro. Saã o os delíários de um moribundo, mas naã o posso permitir mal-entendidos, concorda? Ela tocou a testa, o peito e os ombros com os dedos frios para afastar a maldade de Richard. Perdoe-me, Senhor. Perdoe-me por minha arrogância de achar que poderia compactuar com o diabo em coisas pequenas, sem ter conseqüências. — Abençoe-me, Priora. Parto para corrigir uma injustiça caso eu seja erroneamente acusado. — Naã o prefere esperar o Prior? — Levaria pelo menos um dia para a mensagem chegar a ele. Mais um para ele vir. Talvez esse atraso os salvasse. — Ele vai precisar trazer os testemunhais oficiais. — Naã o eá necessaá rio, cara Priora. Para mim, a senhora jaá eá bastante proá xima de Deus. Madre Julian fez um sinal com a maã o sobre a cabeça de Richard, murmurou: "Deus me perdoe", em latim.

Capítulo Dez O queixo apoiado na maã o, e os cotovelos na mesa da sala da hospedaria Inn of the Hart, em Exeter, Dominica sufocou um bocejo. No banco aà sua esquerda, a Irmaã Marian cochilava com a cabeça sobre os braços, na mesma mesa. AÀ esquerda da Irmaã , a viuá va Cropton dormia com o corpo ereto e a cabeça pendendo. A Irmaã naã o tinha conseguido as acomodaçoã es na casa de hoá spedes do mosteiro que estava lotada de visitantes para a Festa de Corpus Christi. Agora, na terceira hospedaria que tentavam, Garren encurralou o hospedeiro gordo e rabugento, insistindo que ele providenciasse cama para as mulheres. Gillian e Jackin, sem esperar um quarto, tinham desaparecido. Os homens, em seus mantos, jaá dormiam no chaã o do alojamento. As histoá rias de Jonas, Jesus e Noeá misturavam-se na mente de Dominica, clamando para serem escritas. E Garren aprovou, um sinal certo do apoio de Deus. Garren naã o sorria. Um mau humor apossou-se dele ao saíárem da catedral e, agora, o envolvia como um manto. Talvez seja a preocupaçaã o de conseguir leitos para todos, pensou ela, vendo-o negociar. Mesmo ao humilhar o hospedeiro provocador, Garren naã o levantou as maã os ou a voz.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Ela naã o conseguia ver suas maã os grandes e seus dedos grossos como ameaçadores. Quando ele tocava seu rosto e entrelaçava os dedos em seus cabelos, sentia-se querida e valorizada. Que estranho homem para Deus escolher como Seu mensageiro! Mas o Conde o escolhera tambeá m, e a mensagem do Conde era questaã o de vida ou morte. A alegria quase a fizera esquecer, mas talvez fosse o atraso deste dia que sobrecarregasse seu semblante. Debaixo da mesa, Inocente descansava sobre seus peá s, banqueteando-se com os farelos e sobras caíádos no chaã o. Dominica balançou os dedos dos peá s, cutucando-o, ateá ele pedir seu colo. Ela o levantava com mais facilidade agora que estava mais magro de tanto andar. O hospedeiro subiu as escadas rangentes. Garren deslizou para um banco na frente dela e esticou as pernas longas e musculosas sob a mesa. Suas panturrilhas roçavam a bainha do manto de Dominica. Proá ximo demais, talvez, mas a hospedaria estava repleta. Aonde mais ele se sentaria? Dominica manteve as pernas imoá veis para naã o tocaá -lo. Garren encheu a caneca de cerveja e bebeu. — Teraã o uma cama — disse ele com a boca apertada. — Custe o que custar. Ela e a Irmaã naã o tinham dinheiro para hospedadas. — Estarei bem. Caso soá haja quarto para um, deê aà Irmaã . Pagaremos a voceê quando voltarmos. — Naã o vou deixaá -la dormir no meio dos homens — disse ele de forma brusca. Depois, olhou para a viuá va e a Irmaã , que cochilavam, e murmurou: — Nenhuma de voceê s. Tenho algumas moedas. — Naã o estou com sono. — Entaã o, por que estaá bocejando? — Eu posso estar cansada, mas esta eá a melhor mesa para escrever que vi desde que saíámos do convento. — Ela correu a maã o sobre a mesa. Naã o era lisa e inclinada como as mesas do scriptorium, mas dura e plana. — Se eu tivesse mais pergaminho, passaria a noite inteira aqui e anotaria todas as histoá rias que vimos hoje. — O que faria com elas? — perguntou ele. — Eu as descreveria no papel para que as pessoas naã o precisassem esperar pelos dias de festa para veê -las representadas. — O povo naã o sabe ler. — Algumas pessoas sabem — insistiu ela. — Se conseguirem entender, poderaã o acreditar. Empoleirado em seu colo, Inocente contraiu o focinho frio e uá mido. Algueá m tinha comido um frango assado, e o cheiro pairava no ar. — Comeu bem, menino? — perguntou ela ao caã o. — Voceê acha que, se escrevesse a Bíáblia em "palavras de caã o", Inocente tambeá m acreditaria? — Talvez. — Seria aquela pergunta um teste ou um gracejo? Ele naã o sorriu. — Deus tambeá m criou os caã es. — Mas cachorro naã o tem alma. Dominica percebeu um brilho de triunfo nos seus olhos. O homem sabia discutir teologia quando queria. — Eu sei. Entaã o eles naã o podem ir para o ceá u. — Naã o parecia justo. Sentiria falta de Inocente no ceá u. Talvez essa parte da doutrina estivesse errada. — Se Santo Agostinho tivesse um caã o, teria escrito de outra forma — disse ela, brincando com o peê lo dele. Garren soltou uma gargalhada. Bom. Ela ficou feliz por ter melhorado seu humor. A panturrilha de Garren encostou na dela. Dominica sentiu um arrepio pelo corpo como se um relaê mpago tivesse estalado perto

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford dela. Garren sorriu. Ela correspondeu, imaginando a sensaçaã o de passar os dedos nos cachos escuros que subiam por aquele pescoço queimado do sol. — O que vai fazer se naã o conseguir o que deseja? — perguntou ele, como se nada tivesse acontecido. Ela encolheu as pernas sob o banco. — Mas vou conseguir. — Uma duá vida inoportuna obscureceu suas palavras. Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos. Ele deixou as pernas no mesmo lugar. — Como pode ter tanta certeza? — Jesus disse: "Peça e receberaá s." E pedi com muita clareza. — Ela esticou as pernas, segurando Inocente para que naã o escorregasse de seu colo. — E voceê , o que quer da Abençoada Larina? Garren endireitou-se, dobrou as pernas sob o banco e tomou mais um gole da cerveja. — Uma coisa impossíável. Que William viva. — Dominica corrigiu sua postura na cadeira. Estava pensando em acariciaá -lo ao ver seu desespero com a sauá de do Conde. Garren podia estar sendo pago pelo Conde para ser seu peregrino, mas sua devoçaã o naã o tinha preço. — Nada eá impossíável para Deus. Mas naã o quer nada para si mesmo? Ele voltou a franzir o rosto, formando vincos mais profundos. — Nada que a Abençoada Larina possa conceder. — O hospedeiro desceu as escadas. — Treê s mulheres? — Sua voz ríáspida acordou a Irmaã e a viuá va. — Haá uma cama. Soá cabe mais uma pessoa. No andar superior, aà direita. Dominica colocou Inocente no chaã o para ajudar a Irmaã a se levantar. Os dias que tinha passado montada no cavalo acrescentaram-lhe novas dores. — Nenhum cachorro na cama — resmungou o hospedeiro. — Mantenha esse animal no chaã o. Ela abriu a boca para dizer que Inocente naã o tinha pulgas, depois começou a duvidar. — EÉ uma coroa por todos voceê s. — Ele pegou a moeda de prata de Garren e virou-a para certificar-se de que a prata naã o tinha sido raspada. — E mais um xelim pelo alimento do cavalo — acrescentou. — Se o cachorro fizer algum estrago, haveraá um extra. Contrariado, Garren deu mais moedas. — Aquele caã o eá mais educado do que voceê . — Custava tanto assim? Pensou Dominica, contando um, dois, treê s. Esperava que o Conde tivesse sido generoso com seu peregrino. Quando Inocente subiu correndo as escadas aà frente, Dominica dirigiu-se para o hospedeiro. — Por favor, qual eá o caminho mais raá pido para o santuaá rio da Abençoada Larina? — A maioria faz o caminho que contorna o paê ntano para entaã o subir pelo outro lado para Tavistock. Isso leva treê s dias. Depois, saã o mais treê s dias. — Mais seis dias! — Seraá que o Conde viveria tanto tempo? — Naã o haá nenhum caminho mais raá pido? — Qual eá sua pressa, moça? — Os olhos dele pousaram no seu peito, e ela ficou aliviada de saber que iria dormir numa cama com mais treê s mulheres esta noite. — Ela lhe fez uma pergunta — disse Garren. — Haá algum caminho mais raá pido? — Ah, claro que sim. — O hospedeiro piscou inuá meras vezes antes de responder. — Haá um caminho que atravessa o paê ntano. Economiza um ou dois dias. — Ele jogou as moedas, uma por uma, dentro de um saco fechado por um cordaã o. — Mas os antigos deuses ainda se escondem por laá , e, se desce uma neá voa... — Jaá se retirando, ele deu de ombros e balançou a sacola que tilintou com as moedas. — Algumas pessoas que entram laá nunca retornam — Finalizou ele, ao entrar no quarto e fechar a porta num estrondo.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Um dia, Garren. — Ela sentou-se a seu lado no banco. Ele naã o deve ter ouvido, ou naã o estaria ainda olhando fixo para o fogo. — Se atravessarmos o paê ntano, poderemos ganhar um dia. Talvez dois. — Que diferença isso vai fazer? — perguntou ele sem olhar para ela. — Voceê vai ser freira ou naã o vai. Meu irmão me mata aos poucos. As palavras do Conde ainda lhe davam calafrios. — O dia naã o eá para mim, mas para Lorde Readington. Um dia poderia salvar-lhe a vida. — EÉ mais provaá vel que William jaá esteja morto. Ele deve estar tomado pela tristeza causada por um excesso de bíális preta. E naã o eá para menos. — Garren jaá tinha feito um milagre. Deve estar louco para que Deus conceda outro. Talvez, se ela lembrasse seu dever. — Mas ele confiou a mensagem a voceê ... — Mensagem? Seraá que o Conde ocultou de seu mensageiro? — Eu vi um pergaminho embrulhado com o selo dele — disse ela, cautelosa, observando o rosto de Garren. — Achei que devia ser uma mensagem. — Prova que as plumas saã o auteê nticas — disse Garren, agora sem nenhum sorriso nem expressaã o de desespero. — Entaã o eu estava enganada. Mas para orar pela vida dele, naã o quer voar logo para o santuaá rio? — Voar como a Abençoada Larina?— Ele deu um riso amargo. — Sou responsaá vel por todas essas almas e pelas preces de William. Seraá que eu deveria guiaá -los por um paê ntano sem pistas? — Naã o guiaraá sozinho. Deus estaraá ao seu lado. — Ele virou a cabeça para o outro lado, observando o chaã o repleto de homens roncando. — Naã o vejo nenhum Deus ao meu lado. — Ele estaá com voceê sempre. — Garren podia naã o ser um santo, mas como podia negar o Deus que taã o claramente agia atraveá s dele? — Ele o ajudou a salvar Lorde Readington. — Eu naã o salvei, nada que Deus naã o tirou de mim. Devo salvaá -la, Nica? Ela lambeu os laá bios e abriu a boca, mas nenhuma palavra surgiu. — Salvar-me de queê ? — Salvaá -la do que voceê quer. — As maã os dele pairavam hesitantes nos ombros dela. Um calor tomou conta dela. — Neste momento, voceê quer que eu a toque. — Naã o eá isso que eu quero. — Naã o mesmo? Garren aninhou a maã o grande e quadrada na curva entre o pescoço e o ombro de Dominica. A pele dela pulsava, e o coraçaã o batia na garganta. Ela quase naã o conseguia respirar. Ele estava fazendo ela ficar zangada. Era por isso que ela se sentia taã o quente e rubra. — Quero chegar ao santuaá rio o mais raá pido possíá vel. E voceê tambeá m. Garren levou a outra maã o ao ombro dela, e deslizou ateá o pescoço. Depois, segurou seu rosto com as duas maã os, inclinando-se taã o perto que ela sentia sua respiraçaã o; e quis sentir seus laá bios. — Estaá me testando de novo? Jaá que superei voceê na teologia, quer me atacar atraveá s da carne? Muito bem. — Ela rangeu os dentes para interromper o tremor da voz. — Minha feá eá mais forte que sua tentaçaã o. Ele acariciou a linha de seu queixo e delineou o arco de sua garganta com o polegar, ateá sentir ela engolir. — Mais forte que isso? — Sim. — Ateá os ossos dela pareciam derreter, e ela pensou, pela primeira vez, se era mesmo. Ela queria ver aqueles olhos mudarem de verde folha para esmeralda com as mudanças

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford de humor. Queria ouvi-lo rir quando ela dizia alguma coisa inteligente. Queria que ele lhe mostrasse o perfume de uma flor, o voê o de um paá ssaro, a forma das estrelas e como apre ciar toda a maravilha de cada um dos dias de Deus. Ela queria aninhar-se nele e nunca sair do santuaá rio de seus braços, para curar algo que ela nem sequer sabia que estava ferido. Garren afastou as maã os, e Dominica sentiu estremecer a pele com a sua falta. — Voceê tem uma cama — disse ele. — Use-a. Dominica sentiu o cheiro da sobra de frango, da fumaça do fogo, e da cerveja entrando no pulmaã o dela. Era como naã o respirar enquanto ele a tocava. — Quero entrar para a ordem para poder copiar a Bíá blia para o ingleê s. Voceê disse que eu devia. Minha feá eá forte e suporta qualquer tentaçaã o que Deus me envie atraveá s de voceê , ateá Ele me mandar um sinal. Dominica levantou-se, sem saber como suas pernas treê mulas a sustentariam. Ele naã o a chamou, e ela naã o olhou para traá s, temerosa como a esposa de Loá , de se transformar em uma estaá tua de sal por olhar para traá s, para a depravaçaã o de Sodoma e Gomorra. Mas quando poê s o peá no primeiro degrau, numa sala cheia de roncos, desejou ouvi-lo e se virou. — Naã o haá nenhuma daá diva que a Santa possa lhe conceder? Ele voltou a encher a caneca, e fitou o fogo atraveá s do filete dourado de cerveja, como a luz do sol atravessa o vitral. — Que eu esquecesse — disse ele, afinal. Ela subiu correndo as escadas sentindo que o mundo todo era inseguro, inclusive o chaã o que pisava. Na escuridaã o, seguiu os roncos da viuá va ateá a cama, debaixo de uma janela por onde entrava o cheiro de feno usado e de estrume fresco do estaá bulo. — Nica? Onde estava? — Discutindo o caminho de amanhaã . Achei que uma cama e um teto fossem lhe dar descanso. — Naã o fui abençoada com um ouvido surdo como a viuá va. A Irmaã disse isso com um sorriso, mas Dominica ouviu em sua voz a dor de seus quadris, coluna e joelhos. A Irmaã sempre cuidara dela. O que fazer em troca? — Posso pegar algo para voceê ? Mais cobertas? — Estou bem. Dominica enrolou seu manto e colocou debaixo da cabeça para servir como travesseiro, tateando nos peá s da cama para alcançar o lençol de linho. Era a mesma sensaçaã o que tinha com Garren, como se estivesse a ponto de cair fora ou dentro de alguma coisa. Ao seu lado, o colchaã o de palha da Irmaã denunciava cada movimento seu aà procura de conforto. — Ainda estaá acordada, Irmaã ? — Estou, filha. Por queê ? — Conte-me — pediu Dominica, tomando coragem com a escuridaã o — Sobre os homens e as mulheres. O colchaã o silenciou. — Por que pergunta? Ela naã o podia dizer Garren. — Gíállian e Japkin. — E continuou. — Por que eá pecado um homem e uma mulher se unirem, se foi assim que Deus nos criou para a concepçaã o? — O pecado naã o eá a uniaã o. EÉ o desejo que nos afasta de Deus. Ela conhecia o argumento. Jaá o repetira para Garren. — Mas eles parecem taã o felizes. — Felizes. Que nome pobre para a alegria que tinha

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford presenciado. — Um casamento feliz agrada a Deus. O amor entre um homem e uma mulher eá como o amor de Cristo por sua Igreja. Dominica jaá tinha ouvido tudo isso antes, mas, agora, a imagem parecia um sacrileá gio. — Nica, voceê foi tentada? Sim, pensou ela, mas resisti. EÉ o que importa. Naã o haá necessidade de preocupar a Irmaã . — EÉ que o mundo fora do convento eá mais complicado do que eu pensava. — A força que atrai o homem e a mulher eá a mais poderosa sobre a terra. Antes de fazer os votos, voceê precisa estar certa... Ter certeza de que consegue resistir. — Claro que consigo. — Mas por quanto tempo? Dominica olhou para o teto e desejou o conforto de um ceá u repleto da luz de Deus. — Voceê jaá foi tentada? — Cada um de noá s enfrenta tentaçoã es. Claro, faz parte do plano de Deus. A Irmaã tinha sido tentada e resistiu. O mesmo aconteceu com Jesus no deserto. Dominica se virou e apoiou os cotovelos na cama, tentando ler o rosto da Irmaã no escuro. — Como a reconheceu? — Voceê vai desejaá -lo mais do que a comida, a bebida ou a proá pria vida. — As palavras soavam como uma maldiçaã o. — Mais do que a sua alma imortal. A Irmaã estava errada, pensou Dominica, fechando os olhos para a oraçaã o da noite. Tambeá m resistiria, como ela. Provaria a Deus, atraveá s de seus testes, que era forte e merecedora. Mande as tentaçoã es se for preciso, rezou ela, e a vontade para resistir. Mas, em vez disso, Deus lhe enviou uma noite de sonhos irresistíáveis. Garren estava de peá entre dois caminhos na manhaã seguinte, a cabeça inclinada, sentindo-se como Moiseá s, pronto para conduzir seu rebanho pelo deserto. Misericordiosamente, as nuvens faziam uma barreira para o sol, mas cada passo ecoava na cabeça dele, que latejava do excesso de cerveja da veá spera. Queria esquecer que arruinaria a vida dela, que era provaá vel que William jaá estivesse morto, que precisava fazer uma escolha hoje. A menos de uma hora a oeste de Exeter. AÀ sua esquerda, o caminho confortaá vel e muito usado em direçaã o ao mar. A sua direita, o caminho mais curto pelo paê ntano que ficava a um dia de distaê ncia. — Sempre fiz o caminho ao sul — disse a Irmaã . — Pegue o paê ntano — disse Simon, escavando o chaã o com o peá , inquieto como Roucoud. — Naã o tenho medo. — Naã o eá uma boa ideá ia — avisou a viuá va. — No caminho para Santiago, ficamos perdidos nos Pirineus durante semanas. Dominica ficou em sileê ncio. Garren olhou na direçaã o do paê ntano para ver as rochas retorcidas dos espíáritos que coroavam o topo das montanhas. Os antigos deuses ainda se escondem lá. Que diferença faria? Eles naã o eram diferentes do novo. Deveria ele arriscar a segurança de todos? Wíálliam estaria morto do mesmo jeito. Mas tinha feito uma promessa. Entregar uma mensagem e levar de volta uma pluma. E talvez, soá talvez, se essa Larina pudesse controlar Deus, se houvesse alguma chance de recuperar William... — Carpe diem — disse Dominica. Se naã o pudesse dar a vida a William, pelo menos poderia proporcionar-lhe uma morte em paz.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Por aqui. — Garren sinalizou para a direita.

Capítulo Onze Deus naã o tinha senso de direçaã o, concluiu Garren no dia seguinte, quando o sol frio pairou no ceá u. Moiseá s errou pelo deserto durante quarenta anos. Quanto tempo Ele os faria errar naquele pantanal? Desde o nascer do sol, eles subiam cada passo sobre a pedra acolchoada pela turfa, dura como a primeira pedra da criaçaã o. Pedras altas e retorcidas surgiam da turfa esponjosa, projetadas para cima, como se fossem fumaça soá lida vindo em giros do fundo do inferno. O vento oeste trazia a umidade do mar distante e cobria o rosto de Garren. Inocente caçava cada barulho. Seu latido, o som das patas de Roucoud e as adverteê n cias horríáveis da viuá va sobre um desastre eram os uá nicos sons familiares numa paisagem desconhecida. — O que estaá pensando? — perguntou Garren a Dominica, que estava aà sua esquerda. — Parece o topo do mundo — disse Dominica, os olhos arregalados como que para memorizar a vista. Taã o raá pido quanto ele virou a cabeça, a neblina apagou o horizonte. A nuvem uá mida desceu na direçaã o do grupo, perseguindo-os taã o raá pido quanto a praga da escuridaã o no Egito, e os cercou e envolveu como a laã densa da ovelha. Encoberto pela neblina, o sol parecia paá lido como a lua. Naã o conseguiam mais ver o sol. — Deê em-se as maã os! — gritou Garren. A neá voa obstruiu seus olhos, ouvidos, boca, e absorveu suas palavras. — Onde estaá a Irmaã ? — perguntou Dominica com a voz tremida de medo. — Naã o a vejo. Ele tateou aà sua esquerda na direçaã o da voz, ateá que encontrou a cabeça de Dominica. Apalpou-a, deslizou a maã o ateá o ombro, o braço e, finalmente, entrelaçou-a na maã o dela, aliviado pelo consolo desse contato. As reá deas de Roucoud esfolavam sua maã o direita. O cavalo, apesar de treinado para batalha, gemia e tentava afastar-se de um inimigo que naã o conseguia ver. Garren afagou seu pescoço, depois falou com a Irmaã no seu dorso. — Naã o se preocupe, Irmaã . Tenho as reá deas. — Um latido os envolveu. — Inocente, venha. — Dominica soltou os dedos, como que para correr atraá s do latido. — Onde ele estaá ? Garren a segurou de volta. — Nica, naã o pode procuraá -lo agora. Naã o se solte, ou se perderaá como ele. Vai nos achar; sabe como. Garren esperava naã o estar mentindo. A neblina baixou sobre eles como se os velhos deuses tivessem enviado sua ira por invadirem o paê ntano. — Ouçam, todos voceê s! Vamos todos nos dar as maã os. Eu vou apertar a maã o que estou segurando, e a pessoa seguinte faraá o mesmo, e assim por diante. Quando sentir, fale seu nome alto. — Ele tateou os flancos de Roucoud. — Irmaã ? — Sim. — Garren — gritou ele, confiante, depois agarrou a maã o de Dominica, fria, mas segura na dele. — Dominica. — Gillian. — Jackin.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford E assim continuou, ateá Ralf resmungar seu nome, fraco, no fim da fila. — Agora o que vamos fazer? — perguntou Gillian. — Vamos ficar aqui ateá ela se dissipar. — E apodrecer? Devíáamos voltar. — Quando fiquei perdida nos Pirineus... — Voltar como viemos. Pegar o caminho do sul. Devíáamos ter feito isso desde o começo. — EÉ loucura. Jaá estamos andando haá horas. Nunca acharemos o caminho de volta. Vamos continuar. — Como podemos continuar? — perguntou Dominica, os dedos agarrados nos dele. — Nem sequer conseguimos enxergar. Deus nos guiaraá , ela dissera. Ele resmungou para o Todo-Poderoso com raiva por desapontaá -la. — Vamos continuar — disse ele. — Juntos. O que quer que aconteça, naã o soltem as maã os. Inuá meras vozes protestaram. Ele deu um passo e fez força com os ombros para puxar a fila que naã o se movia, como o boi que puxa o peso morto de um arado. Dominica caminhava ao seu lado. Gillian deve teê -la seguido, pois a tensaã o aliviou. Maã os unidas, a fila atravessava o paê ntano vagueando como uma cobra esquisita que se move de lado. Eles arrastavam os peá s, temendo tropeçar em alguma pedra invisíável ou cair em um buraco escondido. Não vejo nenhum Deus ao meu lado. Cego e surdo da neblina, Garren naã o via nada. Naã o fosse pela maã o de Dominica, quente, teria se sentido sozinho. Sem ver e ouvir, Garren teve suas proá prias visoã es. Um caã o demoníáaco uivou. Um espíárito ganiu. Uma donzela de vestido branco flutuou diante dele. O haá lito frio de um fantasma gelou sua nuca. Garren riu com desdeá m. Naã o acreditava mais em fantasmas do que em Deus. Apesar de que, aqui, era possíável acreditar em ambos. A cada passo, dizia a si mesmo que eles naã o eram reais. Soá o chaã o sob seus peá s, as reá deas de couro e a maã o de Dominica eram reais. O resto, os delíários de sua mente, deviam ser ignorados. Ele naã o sabia quanto tempo tinham caminhado, ou que distaê ncia, mas continuou andando, naã o porque tinha feá , mas porque naã o tinha outra coisa a fazer. No fim da fila, algueá m tropeçou. — Isto eá loucura — falou Ralf. — Vou voltar. — Naã o, espere — falou Garren, mas sentiu o vazio deixado por ele na corrente humana. A neá voa engolira Ralf. Era um homem que naã o o oprimia com o tíátulo de Salvador. A perda o afligia como se fosse seu irmaã o, mas naã o podia arriscar o resto por uma busca inuá til. — Irmaã , conduza-nos numa muá sica — pediu ele. Montada no cavalo, sua voz líámpida o envolveu, mais alto do que os gritos dos espíáritos. "A feá lhe daá asas para voar como Larina Voar como Larina, voar como Larina; A feá lhe daá asas para voar como Larina Para os braços do Senhor." Encheu o peito e soltou a garganta, e as notas saíáram de sua boca e entraram na neá voa. Garren cantou pela alegria de estarem vivos, desafiando os deuses antigos ou fantasmas novos a mataá -lo. Se o fizessem, morreria cantando, loucamente, selvagemente, claramente. Os irmaã os Miller uniram-se ao coro com vozes ansiosas. Simon cantava raá pido para que todos soubessem as palavras. Gillian se fazia ouvir alto e claro. A viuá va estava uma batida

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford atrasava. O canto desafinado de Dominica maltratava o ouvido esquerdo de Garren. Uma pancada suave e um grito no meio da fila interrompeu a muá sica. — O que estaá acontecendo? Estaã o todos bem? Atraveá s da neblina, ele viu uma pedra grande, uá mida, fria, dura, quase taã o alta quanto Nica, que se projetava do chaã o. Jackin tinha ido de encontro a ela. — Estaá ferido? — Naã o. — Jackin tremia. — O que acha que eá ? — Apenas uma pedra — disse ele. — Talvez um marco de sinalizaçaã o. — Aqui haá um outro — gritou Simon. Do outro lado, mais pedras formavam um cíárculo. — Talvez seja um aviso — disse Jackin. — Os peregrinos naã o teê m nada a temer — disse Dominica, mas sua voz era treê mula. — Ouvi falar deste lugar — disse a Irmaã com voz suave. — Dizem que as donzelas que dançavam aqui em um cíárculo no sabaá se transformavam em pedras. Um medo palpaá vel correu pelas maã os unidas. Precisava evitar que o medo os empurrasse para o nevoeiro. — Deus nos protegeraá — bradou ele para o nevoeiro, uma mentira em que queria acreditar. Revele-se, droga, ele desafiou o Deus que naã o tinha protegido seus avoá s, seus pais e William. O latido de um caã o os cercou. — Inocente, onde estaá ? Venha! — gritou Dominica. Pela primeira vez, o som tinha direçaã o. Desesperançado de tudo mais, Garren foi aos tropeços atraá s do som, levando os outros consigo. Enquanto caminhavam, a neblina se dissipou, revelando o solo pela primeira vez em horas. Por toda a fila ouviu-se uma expressaã o de alíávio. Garren viu o muro baixo a tempo de parar. Era curvo em ambas as direçoã es, da altura da cintura, alto o bastante para conter o gado em seu interior, poreá m naã o evitaria a entrada de soldados. Mas ali naã o havia nada que valesse a pena arriscar a vida. Ateá que ouviu o latido feliz de Inocente vir por cima do muro. Soltou a maã o de Dominica para apalpar o topo do muro, aà procura de uma abertura. Encontrou-a e atravessou para o outro lado do muro. Dentro, corria um rio. Viu, diante de si, espalhadas, umas cabanas pequenas, redondas e sem teto. Uma grande pilha de cascalho queimado era indíácio de um fogo haá muito apagado. Um lugar para descansarem. — Vamos passar a noite aqui. Havia alguns galhos enterrados no cíárculo queimado. Um misteá rio, pois ele naã o tinha visto nenhuma aá rvore desde o meio do dia. Acendeu uma centelha com sua pederneira. Os galhos chamejaram produzindo calor e luz para afastar os espíáritos. Pegaram turfa no paê ntano e jogaram no fogo, ateá que uma fumaça taã o densa como o nevoeiro se espalhou no ceá u escuro, agora miraculosamente líámpido. Observando o fogo, Dominica deixou os olhos embaçarem. Inocente, um heroá i malcheiroso, deitou-se aos seus peá s. O ar puro e ralo entorpecia o interior de seu peito. Garren estava sentado bem atraá s dela, como uma proteçaã o para suas costas, fora de alcance. Ela beijou a maã o direita, a mesma que tinha apertado a dele o dia inteiro. Privada do toque dele, ela se sentia vazia. Mais uma vez, com a ajuda de Deus, Garren os salvara. Desta vez, por culpa sua. Tinha insistido para atravessarem o paê ntano, e agora estavam realmente perdidos. Por que cismara que um dia faria diferença? Garren estava certo. Talvez o Conde jaá estivesse morto pelas maã os do irmaã o, e o pergaminho trouxesse apenas a palavra de um defunto.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — EÉ o meu dia de sorte! Deus nos salvou da neá voa demoníáaca, e agora isto! Dominica tremeu. Em algum lugar, Ralf estava soá . — Jogue de novo — disse o irmaã o Miller mais velho. — Tive tanta sorte hoje quanto voceê . — Hoje, Deus velou por noá s — disse a Irmaã Marian, em uma voz alta para ser ouvida acima dos dados. — Talvez este seja um bom momento para contar a histoá ria da Abençoada Larina, para nos lembrarmos do porqueê de estarmos fazendo esta jornada. Enquanto ouvirem, rezem por Ralf. Os jogadores, contrariados, silenciaram como crianças prontas para ouvir histoá rias na hora de dormir. O meá dico acordou a viuá va para que tambeá m naã o perdesse a narrativa. Dominica sabia a histoá ria de cor. Nunca se cansava de ouvir a Irmaã contaá -la. Algum dia a escreveria. — Larina acreditava em Deus — começou a Irmaã — e tinha feá que Ele a protegeria. Um dia, enquanto levava alimento para uma famíália pobre na floresta, foi atacada por um bando de javalis e começou a correr. As palavras eram as mesmas que sempre ouvira, mas esta noite soavam diferente. Se Deus queria salvar Larina, por que naã o deixou que ela simplesmente domasse os javalis? Os santos faziam isso a todo instante. Santo Ambroá sio prendeu um enxame de abelhas dentro da boca quando ainda era um bebeê . Saã o Patríácio dominou as cobras para sair da Irlanda. Devia ser uma coisa simples para Deus arranjar. — Ela correu o mais raá pido que poê de — continuou a Irmaã , em um ritmo cantado que tornava a noite um pouco menos tenebrosa. — Saltando por cima de raíázes e galhos. E o sol foi se pondo, e o dia foi terminando, e ela naã o sabia onde estava ou para onde estava indo, mas ainda corria. — E entaã o o que aconteceu? — perguntou Dominica, com um entusiasmo menor do que o usual. — Larina saiu da floresta e irrompeu num espaço aberto. Naã o parava de correr, mas, aà sua frente, os penhascos caíáam direto no mar bravio! Se continuasse correndo, cairia na espuma do mar que quebrava nas rochas abaixo. Ela estava perdida! Os irmaã os Milíáer inclinaram-se para a frente. — Mas, entaã o, ela virou os olhos para o ceá u e disse para o nosso Pai Celeste: "Colocome nas maã os do Senhor." Depois, correu na direçaã o do penhasco o mais raá pido que poê de e, quando pulou, brotaram-lhe asas... — Como um anjo! — emendou Dominica, compensando o seu lapso anterior. — Como um paá ssaro. Ela voou do penhasco, deslizou sobre as ondas e aterrissou segura sobre as pedras onde os javalis naã o podiam alcançaá -la. Porque tinha feá em Deus. Ela pulou, e suas asas apareceram. — Porque tinha feá — murmurou Dominica. Talvez sua avidez de cruzar o paê ntano tenha sido um orgulho teimoso em vez de feá . Na verdade, ao primeiro sinal de dificuldade, ela perdeu a feá em Garren. E em Deus. — Deus pousou Larina em uma rocha e protegeu-a com aá gua ao redor. Foi exatamente no local onde hoje estaá o santuaá rio. — Em uma ilha? — disse Garren surpreso. — Uma rocha pequena, onde soá cabe a cabana que guarda algumas plumas de suas asas. Pode-se ir a peá quando a mareá estaá baixa. — E isso acontece com que frequü eê ncia? — perguntou ele. — Uma vez por dia, talvez. Do contraá rio, eá preciso ir de barco. Uma nuvem escondeu a lua. Os jogadores espalharam seus mantos. Jackin e Gillian escapuliram para uma das cabanas de pedra. O meá dico e a viuá va caíáram no sono. Dominica

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sentiu um frio na espinha. Garren se fora. Garren seguiu a curva do muro de pedra ateá estar fora do alcance dos roncos e da luz do fogo. Depois sentou-se no chaã o, com a cabeça nas maã os e as costas apoiadas na pedra. O relicaá rio e a concha de chumbo pesavam frios no seu peito. A lua ria dele, meio escondida, redonda como o sol que os abandonara. Deus ainda conspirava contra ele. Por um minuto ele chegara a acreditar. Aquela prece a mais, dita em mais um lugar, poderia suavizar o cora çaã o de Deus para que Ele pudesse deixar William viver. Por um instante, ele acreditara, e decidira atravessar o paê ntano para ganhar um dia que poderia salvar William. Este foi o resultado. Ralf tinha sumido, ou coisa pior. E o resto do grupo estava perdido. Sua promessa a William parecia impossíável. Pode-se ir a pé quando a maré está baixa. Ele segurou o relicaá rio e a concha. Se, por algum milagre, conseguissem chegar ao santuaá rio, como ele conseguiria alcançar a ilha sem ningueá m ver? Dominica o chamava de Salvador. Naã o era salvador de ningueá m. Dominica surgiu como se fosse um desejo dele que ela estivesse ali, uma das donzelas dançantes revividas ao luar. A lua cheia, irradiando por detraá s da neá voa remanescente, iluminava seus olhos, jaá sem medo, mas cheios de dor. — Naã o quero atrapalhar suas preces — disse. Preces, pensou ele. Quando rezara pela uá ltima vez? No campo de batalha. Por William. — O que quer? — A presença dela em si o condenava. Ele naã o queria pensar no que tinha prometido fazer. Ela se ajoelhou, com as maã os entrelaçadas, ainda trazendo a suave plenitude da juventude. A vida ainda naã o a despojara de tudo o que ela tinha a dar. — Preciso pedir seu perdaã o. Insisti que cruzasse o paê ntano porque queria economizar um dia de viagem. Agora, podemos ter perdido mais do que isso. — A decisaã o foi minha. — Tive a culpa do orgulho. — Ela olhou para ele desesperada. — Eu sempre acho que, se ajudar a Deus com um empurraã ozinho, Ele vai fazer o que eu quero. Soá quem naã o viu nada da vida pode ter tamanha feá , pensou ele, mas naã o podia ridicularizaá -la. Dominica o lembrava do tempo quando ele, tambeá m, tinha feá . — Deus desapontou a noá s dois — disse ele. — Naã o, eu desapontei a Deus. O erro foi meu, naã o d'Ele. Combinei o pecado do orgulho aà falta de feá . Eu devia saber que voceê nos salvaria. — Salvar voceê s? — As palavras de Garren soaram como pedras. — Fui eu quem levei a todos noá s para uma neblina densa. Devia ter esperado, em vez de continuar em frente sem enxergar nada. — Fez a coisa certa. Estamos salvos agora. — Diga isso ao Ralf. — Ele naã o o acompanhou. — Nem voceê s deveriam. A concha de chumbo pesava em seu peito. Ela a alcançou e a pressionou contra o corpo dele. — Por que tem taã o pouca feá , logo voceê que deveria ter muita? — Isto naã o eá um síámbolo de feá . EÉ um lembrete da inutilidade da feá . — Mas voceê fez a peregrinaçaã o a Compostela. — Naã o. Meu avoê fez. — Ele fechou a maã o sobre a dela e a concha; o chumbo frio contra os dedos quentes. — E Santiago naã o lhe concedeu a graça?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Eu jaá disse. Haá mais peregrinos do que curas. — Dominica soltou a medalha e sentou com o joelho pressionando a perna de Garren. — Conte-me a histoá ria. EÉ melhor ela saber agora. EÉ melhor estar preparada para a desilusaã o que a aguarda no final desta jornada. — Foi no primeiro reinado de Eduardo — começou ele. — Eu ainda naã o tinha nascido. Meu avoê voltou para casa apoá s lutar na Escoá cia, e encontrou a esposa muito doente. — Sua doce esposa, como meu avoê sempre a chamava, lembrou Garren, triste. — O Padre falou: "Faça uma peregrinaçaã o. Deus iraá curaá -la." Ele, entaã o, abandonou suas posses e partiu na longa viagem para a Espanha. Levou seis meses para chegar laá , mais outros seis para voltar. Quando chegou em casa, encontrou-a morta. Ele tinha dedicado a Deus aquele uá ltimo ano que poderia ter passado com ela. — Garren balançou a concha na frente do nariz dela. — E tudo o que lhe sobrou foi este pedaço de chumbo. — Mas eles estaã o juntos agora. No ceá u — disse ela. — Ceá u? — Ele riu com desdeá m. — Nenhum ceá u invisíável pode consertar todos os erros desta terra. Garren pensou em William, em seus pais e avoá s, e em todos os cavaleiros deixados nos campos da França. Respirar, estar vivo, admirar a perfeiçaã o redonda e cheia da lua paá lida contra um ceá u de veludo negro parecia insuportavelmente encantador. Cada dia salvo da morte era um milagre. Para ser desfrutado. Dominica fitou-o, e ele admirou-a. Queria que ela conhecesse o prazer de viver, antes que um Deus ciumento se apoderasse dela. Garren segurou suas maã os, chegou-a mais perto e envolveu-a com os braços ateá sentir sua respiraçaã o. — Naã o guarde toda a sua alegria para depois da morte, Nica. — Tenho pensado sobre o que voceê disse. Sobre salvar-me do que eu quero. — Dominica falou para o coraçaã o dele, mas ele ouviu cada palavra. — EÉ certo que Deus enviaria voceê , como fez com Jesus que esteve no deserto por quarenta dias e foi tentado pelo diabo. — Gostaria de vagar pelo paê ntano por quarenta dias enquanto eu a tentasse? O pulso de Dominica parecia sair pela boca, ele a embalou nos braços, protegendo-a. Ela se aninhou nele. Quente. Viva. Ele podia sentir seu peito subir e descer, seu coraçaã o bater. Alguma coisa correu pelos braços dele. Pulsou nas maã os que tocavam as costas dela. Uma força vital. Um espíárito. Garren se perguntou se era fruto de sua imagi naçaã o, mas ela tambeá m pareceu sentir algo. — O que foi isso? Ele virou o rosto dela para a luz da lua e afastou um fio de cabelo rebelde para traá s da orelha, antes de aproximar a boca e murmurar. — O espíárito do paê ntano. Dominica virou-se, e ele encontrou sua boca. O que quer que tenha assombrado o paê ntano fluiu entre eles, quente, vivo, mais real do que a pedra dura em que se apoiavam. Os laá bios de Dominica eram macios e doces e prenderam-se aos dele. Ela cheirava a fumaça de turfa e amor-perfeito. Ele a abraçou e puxou para cima dele, servindo de almofada, protegendo-a com seu corpo do chaã o frio. Ele mostraria a ela a felicidade do agora. A felicidade que podia existir na terra. A alegria do sol e da estrela, e de um homem e uma mulher. Ao pensar isso, ele a apertou ainda mais forte. Perdido nela como no nevoeiro, Garren naã o soltou os laá bios nem os braços. Depois, ela se afastou, mas as maã os permaneceram unidas, como se os dedos dela o

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford beijassem. — Acho que a minha peniteê ncia vai ser pelo menos treê s dias de jejum. Uma raiva intensa tomou conta dele. — Esta pedra naã o foi esculpida em nenhum santo — respondeu ele, com a voz fria como o vento. — O seu Deus naã o estaá neste paê ntano. — Eu estava errada. Deus naã o enviou voceê para me testar. Voceê veio do proá prio diabo para me arruinar. Era verdade, pensou ele, levantando-se enquanto ela se afastava. Mas ele queria outra coisa. — Por que eu preciso ser santo ou diabo? Por que naã o posso ser simplesmente um homem? Ela fez o sinal-da-cruz contra ele. — Naã o vai conseguir. Minha feá eá forte. — Seraá ? — Ele deixou a vergonha de lado. — Tem certeza que quer uma vida no convento, agora que conheceu o mundo? — Ele deslizou as maã os subindo pelos braços dela e emaranhou o dedo nos seus cabelos. — Agora que o sentiu? Dominica queria afastar tudo o que tinha sentido. — Eu acreditei em voceê . Eu acreditei em voceê . — Tomado pela culpa e se abominando, ele a deixou ir. — Naã o coloque toda a sua feá nos outros, Dominica. No fim, soá teraá a si mesma. — E a Deus. Eu terei Deus. — Naã o. Deus eá o que naã o teraá . — Ele estava aqui o tempo todo. Mesmo quando eu naã o acreditei. Ele nos trouxe aqui. — Ela naã o permitia duá vida, como se qualquer duá vida fosse destruíá-la. — Foi um caã o que achou este lugar — riu ele com desdeá m. — Naã o foi Deus. Ela se acalmou, como se as palavras dele tivessem aberto uma janela e deixado a certeza voltar. Fitou-o com pena. — Voceê soá reconhece Deus quando Ele aparece como uma sarça ardente? Garren abriu a boca para zombar dela. Foi por sorte que eles encontraram este antigo abrigo e a madeira para o fogo. Nada foi consequü eê ncia de sua fala com Deus que, aliaá s, sequer podia ser chamada de prece. Nada. Apesar de toda a evideê ncia, contudo, a feá de Dominica naã o permitia duá vidas. Essa ideá ia o paralisou. Apesar das constataçoã es, seraá que ele duvidava da sua proá pria descrença? Ele olhou para o fogo que se extinguia. — Amanhaã eles pediraã o que voceê os guie novamente — disse ela. — O que vai responder? — Soá Deus sabe. — Sim — disse ela, ao sair. — Ele sabe. Manuseando a velha concha de chumbo no seu pescoço, ele naã o a viu afastar-se. Mas, e se a concha fosse mesmo alguma coisa mais? Ele a tirou do pescoço e a amarrou na ponta do cajado.

Capítulo Doze A aurora surgiu diante dos olhos de Dominica em rosa, dourado, laranja e azul, como se o Senhor tivesse dito "Que seja feita a luz" pela primeira vez. Ela se espalhava ateá o limite mais distante da terra aá rida jaá naã o oculta pela neblina, do chaã o sem rastros.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica desenrolou seu pergaminho. Depois, fez uma ponta nova, afiada, na pena e mergulhou-a no tinteiro de chifre, Dominica escrevia lentamente, com linhas menores que usualmente, pois naã o havia uma pedra lisa em um muro que os homens construíáram quando ainda naã o sabiam escrever. Pântano. Neblina. Lua. As palavras pareciam zombar dela. Queria escrever um guia para peregrinos. Agora estava perdida. Na noite anterior, com os braços de Garren envolvendo-a, sentira Deus. Ou alguma coisa mais antiga do que Deus. Vida fluindo entre eles. O resto da noite, ela olhou para a lua cheia tocando um corpo que naã o parecia mais seu. Com a lembrança, sua pele vibrava e seus humores corriam de novo. Êxtase. Isso mesmo. Seu pecado em uma palavra. Mas naã o se sentia uma pecadora. As donzelas que violaram o sabaá viraram pedra. E se Deus a punisse negando-lhe Seu sinal? E se ela naã o o quisesse mais? Forçou a pena sobre a pedra acidentada. Quo vadis? Para onde vaá s? Uma barreira formou-se atraá s dela bloqueando a brisa. Garren. Ela soube sem precisar se virar. — Como estaá esta manhaã , Dominica? — Ele apoiou seu cajado no muro entre ambos. A pequena concha que estava escondida no peito, na noite anterior, agora pendia animada na ponta do cajado. Ela se perguntou que mudanças Deus teria forjado na alma dele na noite passada. — Estou firme na minha feá — disse ela. Tarde demais. Ele deitou a maã o grande e quadrada sobre as palavras preciosas. — O que eá isto? O que estaá copiando? — perguntou. — Naã o estou copiando nada. Eu crio. Escrevo sobre nossa jornada. — Ela segurou a respiraçaã o aguardando a aprovaçaã o dele. — Para que outros tenham um guia — disse ele. — E naã o se percam no paê ntano — acrescentou, rindo. Dominica mostrou-se aliviada. — Vou recomendar o caminho do sul — disse ela. — Talvez seja sensato. — Os olhos dele escureceram, e ela pensou que ainda via a lua refletida neles. — Poucas pessoas saã o taã o fortes para enfrentar o espíárito do paê ntano. — Ele virou o papel para si, e seguiu com o dedo rude as linhas marcadas a faca. — Ingleê s? — A maioria das palavras, sim. — Aqui. Que palavra eá esta? — Nica — disse ela, engolindo em seco. — Naã o vai orientar nenhum peregrino com isso. Por que escreveu? Com um noá na garganta, Dominica naã o respondeu. Naã o conseguia, nem queria falar. Fitou as letras pretas ateá elas ficarem borradas. Garren segurou seu rosto e forçou-a a encaraá -lo. — Por que, Nica? Sem poder acrescentar a mentira aà sua lista de pecados, ela contou. — Porque voceê me chamou assim. — Foi taã o importante? — Ela apertou os laá bios e confirmou. Garren voltou-se para o pergaminho, seguindo as palavras com os dedos, pairando sobre as uá ltimas. — E o que escreveu sobre a noite passada, Nica? Dominica mordeu o laá bio. Ele estava proá ximo demais de saber o quanto se tornara importante. Sua boca tremia, querendo sentir a dele outra vez. E se ela o quisesse? Garren que podia salvar todas as outras pessoas, mas que a

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford destruiria. Dominica livrou-se daquela maã o e escondeu o pergaminho atraá s de si. Sentia-se mais forte quando ele naã o a tocava. — Deus nos testa todos os dias. — O sol jaá brilhava forte, e as cores da aurora tinham desaparecido. Deus trouxe luz para expulsar os demoê nios da noite. — Devemos resistir aà s tentaçoã es do diabo aà luz do dia e na escuridaã o da noite, se queremos ser merecedores. AÀ luz do dia, apoiado no cotovelo, ele ainda a tentava. Um aro verde mais escuro circundava seus olhos. — Ainda sou o diabo ou voltei a ser um santo? Dominica jaá naã o sabia. Soá sabia que sua pele, seu sangue, sua proá pria alma ficavam mais vivos ao lado dele. Deus tenha piedade de uma pobre pecadora. Orando pela proteçaã o de Deus, ela estendeu a maã o e deu um piparote na concha de chumbo com o dedo, fazendo com que ela balançasse alegremente. — Seja voceê diabo ou santo, eá instrumento de Deus. Garren afastou com força o cajado, fazendo a concha de Santiago girar furiosamente no cordaã o de couro. — Quantas vezes vou precisar dizer, Dominica? Deus naã o atua atraveá s de mim. Era mais faá cil enfrentar sua raiva do que seu toque. — E o diabo? Surpreso, uma expressaã o de culpa, e de outra coisa que ela naã o poê de identificar, dominou seu rosto. Abriu e fechou a boca, mas naã o pronunciou nenhuma palavra. Ele não nega isso. Ela sabia que deveria sentir medo. Mas seu coraçaã o sofria com a dor que via nele. — Naã o se preocupe. Pagarei a peniteê ncia pela noite passada. Treê s dias de jejum devem bastar. Palavras tolas. — Eu a proíábo de jejuar. Naã o vou deixaá -la desmaiar de fome. — Deus me manteraá forte. — Deus precisa de um pouco de ajuda — disse ele, inflexíável. — Jaá quebrou o jejum esta manhaã ? — Naã o estou com fome — respondeu ela. — Coma. — Jogou um biscoito para ela. — Naã o! — Ela se atrapalhou ao pegar o biscoito, sem querer que ele caíásse no chaã o, e acabou por deixar cair o pergaminho e a pena. A pena rolou descontrolada para cima da folha e espalhou tinta como uma aranha quando arma o bote. — Olha o que voceê fez. Aqui, pe gue-o. — Ela jogou o biscoito de volta, mas ele jaá tinha virado as costas. — Socorro! Ajudem-me! O grito veio do lado de fora do muro. No meio do urzal, um emaranhado de cabelos brancos mexia-se acima dos arbustos. Ralf. — Socorro — gritou ele, depois caiu. Garren pulou por cima do muro e correu para ele, sem precisar ouvir uma segunda vez. Enlaçando o braço esquerdo de Ralf em volta de seu pescoço, Garren arrastou-o para o acampamento. O outro braço de Ralf movia-se loucamente para cima, para baixo, para a esquerda e para a direita. Um enorme sinal-da-cruz para afastar um grande mal. Dominica jogou suas coisas dentro do saco e correu de volta para o fogo extinto. Garren deixou Ralf, soluçando, ao lado da fumaça que ainda contaminava o ar da manhaã . Seus olhos avermelhados, descontrolados, naã o viam ningueá m, mas olhavam para um mundo que eles naã o conseguiam ver. — Voceê estaá bem, Ralf? — disse a Irmaã .

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Os outros juntaram-se ao redor, mas a uma certa distaê ncia, como se ele fosse um fantasma. Garren balançou a maã o na frente dos olhos vagos de Ralf. — Sabe quem noá s somos? — Passei a noite sozinho com Deus no paê ntano. Dominica estremeceu perante aquele olhar vazio. Seraá que ele esteve sozinho com Deus, ou com os antigos deuses? — E Ele me devolveu a minha alma. — Deus eá piedoso — disse a Irmaã . Seus braços o envolviam e o embalavam como se fosse uma criança. Inocente pulou no peito de Ralf, lambendo as laá grimas de seu rosto. Dominica o resgatou. Ralf nunca tinha acariciado Inocente, mas agora o fazia, acariciando sua cabeça com afagos longos e estranhos. Os olhos de Ralf clarearam aos poucos, como se ele estivesse acordando de sonhos. Esticou a maã o para tocar o rosto da Irmaã e o braço de Garren. — Voceê s saã o reais? Eu estou aqui? — Estaá seguro. Conte-nos o que aconteceu — disse Garren. — Quando me separei de voceê s, naã o havia nada aleá m do nevoeiro. Nada para ver, nem para ouvir. Eu estava soá . — Ralf falava com uma voz vazia como a morte. — Depois vi formas, ouvi gritos, e entendi que eram as pobres almas do inferno. Corpos rasgados pelas garras do diabo. Queimando. Gritando. Para sempre. Condenados por toda a eternidade. — Laá grimas rolavam pelos vincos que contornavam seu nariz torto. — Deus me mostrou. Eu seria aquilo. Era para laá que eu estava indo. A terra fria entorpecia os peá s de Dominica. Seu peito ficou apertado ao observar o esforço dele para respirar. Esse naã o era o Deus cuja voz calma e suave guiava seu coraçaã o. Mas Ralf sabia o que tinha visto. Era real. — E eu rezei — proclamou Ralf—Eu disse: "Deus, diga-me o que fazer." E Ele falou para eu me arrepender. Para me arrepender sinceramente. — Ralf segurou a cabeça. — Sabe, Irmaã , eu vim porque me disseram para vir, mas estava aqui soá com o meu corpo. Deus me contou que isso naã o era o bastante. — Naã o, meu filho. Deus exige arrependimento verdadeiro do coraçaã o. — Sei disso, agora. Ajoelhei-me e disse a Ele que lamentava ter batido na minha mulher. Que eu lamentava ter esmagado a maã o dela. Que eu nunca mais deixaria a bebida tomar conta de mim. E Ele me perdoou. — Pela primeira vez, a Irmaã percebeu que os olhos de eê xtase de Ralf eram azuis. — Ele me perdoou, e me trouxe de volta a voceê s. — Como soube que Ele o perdoou? — perguntou Dominica. Era esse o mesmo Deus que ela conhecia? — Naã o havia nenhum padre para ouvir sua confissaã o. — Um sorriso suave abençoou o rosto machucado de Ralf. — Eu senti uma paz tomar conta de mim. Dos meus ossos. — Depois, os olhos bem abertos, ele olhou para Garren, agarrando sua manga. — E eu ouvi Ele dizer "Siga O Salvador. Ele o conduziraá para a segurança." Garren tentou arrancar os dedos de seu braço. — Ele quis dizer Nosso Senhor Jesus, claro. — Por cima da cabeça de Ralf, olhou para a Irmaã pedindo ajuda. — Claro — disse a Irmaã . — Nosso Senhor Jesus Cristo. Tarde demais. Todos, pasmos, fitavam Garren. Ralf desviou os olhos da Irmaã para Garren, balançando a cabeça como uma criança teimosa. — Naã o, naã o, Ele quis dizer voceê . — Dominica fez o sinal-da-cruz, e implorou a Deus o perdaã o por suas duá vidas. Devia ouvir e seguir a voz interior que nunca a desapontara.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Tinha prometido a Deus esta peregrinaçaã o. Naã o devia hesitar ou duvidar. Conhecia o plano d'Ele para a sua vida, e, quando estava no caminho certo, sentia em seus ossos a mesma paz que Ralf sentiu. Garren era parte daquele plano, se pelo menos ela soubesse qual parte. Deus lhe mostraria. Se pelo menos ela tivesse feá . Ao meio-dia, Dominica jaá lamentava naã o ter comido o biscoito. Deus mandou um dia nublado depois daquele amanhecer. Lavada pelo nevoeiro, a terra expoê s-se diante deles. Para todos os lados, estacas de pedra retorcida, com formas estranhas como letras estrangeiras, pareciam observaá -los de cima. Esta manhaã , ela viu que eram postes de sinalizaçaã o que indicavam o caminho para algum lugar, mas naã o sabia qual. Mesmo sem encontrarem nenhuma estrada, todos sentiam como se Deus tivesse abençoado a jornada mais uma vez. Inocente corria investigando cada barulho na vegetaçaã o rasteira. Pelo menos, ela achava que ele naã o se perderia. Quando o sol estava a pino, pararam para descansar. Inocente aproximou-se dela, agitando o rabo orgulhoso, e deixou uma presa aos seus peá s: um bicho peludo, de orelha comprida, mole e ensanguü entado. — Coelho ensopado para o jantar! — disse Garren. — Bom menino! EÉ mesmo um caã o caçador. — Vaá pegar o caldeiraã o, querida — disse a viuá va. — Gillian e eu vamos acender o fogo. Acho que tenho um pouco de tomilho seco guardado para uma ocasiaã o especial. — Ela abriu a primeira das muitas sacolas que pendiam de seu cinturaã o largo, enquanto Gillian segurou o coelho de peê lo marrom manchado de sangue e pegou uma faca. — Acorde, moça. Pegue o caldeiraã o no cavalo e vaá buscar um pouco d'aá gua. Dominica tinha prometido a Deus treê s dias de jejum. Este era mais um de Seus testes. Garren tirou o caldeiraã o e treê s cebolas do cavalo, e levou Dominica para um pequeno riacho abundante que corria na direçaã o oeste. AÀ s vezes, ela achava que o paê ntano se resumia a pedra e aá gua, disfarçado pela turfa verde. — Ontem foi o nevoeiro. Quem sabe o que vai ser amanhaã ? — comentou ele. — Aproveitemos o ensopado de hoje. — Eu jaá disse, estou de jejum. — Se Deus usou Inocente para nos levar ao abrigo na noite passada, Ele tambeá m deve querer que comamos a presa de hoje. Dominica quase podia sentir o cheiro do ensopado cozinhando, as cebolas, a carne. O estoê mago roncou. — Pare de me tentar. — O orgulho eá um pecado, Nica. — Soá quero que me deê as cebolas. — Ela se virou, e a aá gua do caldeiraã o entornou nos seus peá s no caminho de volta para o fogo. Ela provaria sua devoçaã o. Cozinharia o ensopado para os outros comerem. — Casamento — estava dizendo a viuá va, quando ela chegou — soá funciona quando eá a mulher quem manda. — O homem domina tudo. — Gillian naã o concordou. Dominica naã o estava interessada em ouvir conversa sobre homens e mulheres. Naã o tinha nenhum significado para a sua vida, pensou ela. Deixou cair o caldeiraã o no meio do fogo, salpicando aá gua no carvaã o. — Cuidado! — disse a viuá va. — Naã o o afogue! — Sinto muito. E o discurso para Gillian continuou. — Eu sei. Jaá tive cinco maridos. A esposa de Ralf podia ter me perguntado. Voceê deixa eles pensarem que tomam as decisoã es, mas na verdade... — Ela sacudiu a cabeça. — Naã o fazem

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford nada sem noá s. Dominica cortava a cebola com tanta força que os pedaços voavam para o fogo. Ela os tirava dali, e chupava seus dedos com sabor de cebola e cobertos de cinza, chamuscados pelo carvaã o. — Casamento — disse Dominica, jaá um pouco irritada — eá como o amor do Cristo por sua Igreja. A viuá va deu uma gargalhada. — Naã o acredite em tudo o que contam a voceê , querida. — Ela piscou para Gillian. — A naã o ser, claro, se acreditar que vai realmente ser a esposa de Cristo. A viuá va deu um berro entusiasmado, e Gillian corou. A imagem que passou na mente de Dominica era taã o sacríálega que ela teve vergonha de pedir perdaã o a Deus. — A uniaã o eá míástica — disse ela. Míástica. O calor subia por seu pescoço e entrava por suas orelhas. Como se sentira com Garren. — Sinto muito, querida. Tem muita coisa que voceê naã o sabe. — Ela acenou as maã os na frente de Dominica. — Vou parar agora, antes que eu blasfeme alto demais e perturbe a adoraá vel Irmaã ali. — Fez o sinal-da-cruz e indicou com a cabeça a Irmaã que ouvia, pacientemente, Ralf repetir seu encontro com Deus. — Laá estaá uma que a Igreja tem sorte em ter. EÉ uma pena que naã o sejam todos como ela. Isso pareceu uma grande blasfeê mia. A fome corroendo seu estoê mago, e a culpa dilacerando sua alma, Dominica agarrou-se aà s antigas certezas. — Naã o se pode duvidar de Deus e fazer peregrinaçaã o. — Sabe o que eu realmente quero de Deus, querida? — Ela acariciou o rosto de Dominica. Seus dedos ainda tinham sobras de tomilho seco, e o cheiro forte inundou Dominica. — Ah, sim, seria bom ouvir de novo, mas jaá aprendi a viver sem ouvir. Soá naã o aprendi a viver sem marido. EÉ isto que eu quero. Um novo marido. E ateá agora, Deus estaá indo bem — concluiu, olhando para o meá dico. Um marido, pensou Dominica. Que pedido desprezíável. — Mas Deus exige feá verdadeira, como a de Latina! — Olhe para Ralf — disse a viuá va. — AÀ s vezes, a feá vem depois do milagre. Quando os peregrinos se enfileiraram para serem servidos, Jackin olhou para oeste com a praá tica de barqueiro. — Nuvens novas se aproximam. Ela seguiu o olhar. Ateá onde conseguiriam caminhar antes da chuva? Os peregrinos estavam muito mais aà frente do que Richard imaginara. Dois dias de cavalgada intensa, e ainda naã o tinha visto nenhum vestíágio da poeira deles. Naã o sabia exatamente o que faria quando os encontrasse. Soá sabia que Garren naã o podia continuar vivo para entregar a mensagem. E a garota? Ele balançou a cabeça. Ela precisaria morrer. Mas naã o sem antes possuíá-la. A simples ideá ia provocou nele uma gargalhada e o endurecimento do membro entre suas pernas. Talvez, ele fosse o filho mais parecido com o pai. O pai que o afastara desde aquela noite, haá tantos anos. Richard, um escudeiro receá m-investido, de volta ao lar, cheio de orgulho e arrogaê ncia, ouviu passos naquela noite, passos furtivos. Empunhou a pesada espada no braço treê mulo de menino de doze anos que era, encheu o peito e dirigiu-se para o corredor. — Quem estaá aíá? Seu pai, grande como um leaã o, estava paralisado aà luz da vela. A malha de metal arreada. A tuá nica mal-arrumada nos ombros. Os cabelos despenteados. Parecia ter chegado de um longo duelo, com a pele cheirando a vinho da Gasconha.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Mas em vez de raiva seus olhos transmitiam culpa. — O que estaá fazendo, menino? Por que naã o estaá na cama como seu irmaã o? Por que não é como seu irmão? A pergunta era sempre essa. Seu irmaã o William. Filho da preciosa primeira esposa. Richard abaixou a espada. — Ouvi um barulho. Achei que deveria investigar. — Naã o sabe fazer coisa melhor do que meter o nariz onde naã o eá chamado? — Com uma maã o, seu pai segurou as calças e com a outra, arrumou os cabelos. Os olhos de Richard se arregalaram. Ele viu o longo fio de cabelo cor de mel no ombro do pai e a mancha uá mida entre suas pernas. As palavras escaparam. — Voceê estava com uma mulher. — Segure a líángua, menino. O Conde olhou para a porta do quarto que se abria. A maã e de Richard estava no vaã o da porta, os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. As maças do rosto cor de salgueiro, e o queixo estreito estavam levemente inclinados, depois ela se empinou, fitando o filho e o marido. — Estaá tudo bem, Richard. Ele soá estava praticando sua escrita. Venha para a cama, querido. O Conde se deixou ser levado para o quarto. Quando passou por Richard, ele sentiu o cheiro de mulher. — Mas, maã e, ele... — Boa noite, meu filho — disse ela. Entaã o, pensou, essa era a dignidade do pai. Respeitar a maã e de William e desonrar a sua. Ele podia entender essa desonra. Seu pai mandou-o embora no dia seguinte. Nunca mais falou com ele. Agora, Richard tinha feito William pagar pelos pecados do pai. William, o filho que tinha os cabelos e os olhos do pai. Em breve, seria o dono de tudo. O sol de pleno veraã o tinha se transformado em temporal quando Richard chegou em Exeter. Faixas e bandeiras molhadas caíáam sobre plataformas de madeira vazias. Ele fez seu caminho atraveá s delas, determinado a achar uma cama de verdade. Chega de sofrer como peregrino. Quando encontrou o Inn of the Hart, chovia a caê ntaros. Escorria aá gua pelo nariz, dedos, pernas, e pelo cajado de Richard. — Olaá , quero uma cama seca e vinho quente. — Fez uma pausa. — E uma informaçaã o. — Tenho muitas camas hoje. — A medida da cintura do hospedeiro denunciava seu sucesso, e os olhos mostravam sua avareza. — Que informaçaã o deseja? E quanto vale para o senhor? — Nada se naã o a tiver. — Richard jogou uma moeda de bronze de pouco valor para o hospedeiro. — Estou procurando um grupo de peregrinos. O líáder eá um cavaleiro de ombros largos que tem um bom cavalo. — EÉ peregrino tambeá m? — Naã o veê a cruz? — Richard bateu no peito encharcado. — Eu deveria estar com eles mas me atrasei. — Peregrinos? Ah, minha memoá ria... Richard pegou uma moeda de dois pence, bem mais valiosa, e jogou na mesa. — Agora fale, maldito. — Peregrinos? Ah, eu acho que estiveram aqui haá umas duas ou treê s noites. — Quantas, afinal, duas ou treê s? — Ele segurou a garganta do homem e a apertou. O medo escancarou os olhos do homem.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Eu me lembro. Foi na noite de Corpus Christi. — Droga. Ele liberou o homem e esfregou as maã os na tuá nica. Ainda dois dias de vantagem. Precisaria conseguir um cavalo novo para manter o mesmo passo. — Havia uma moça com eles? Alta, olhos azuis? — Ah, sim. Lembro-me dela. Richard contraiu o rosto diante do sorriso na voz do homem. Jaá teria Garren seduzido a moça? — Ela dividiu a cama com o líáder? — Essa informaçaã o vale um xelim. — Ah, entaã o ela dividiu — disse Richard. A boca do hospedeiro curvou-se num sorriso que dizia "naã o esteja taã o certo", e Richard entendeu que Garren ainda naã o tinha seduzido a pequena virgem. — Ah, naã o importa. Para que lado foram? — Haá dois caminhos. Um atravessa o paê ntano e vai ateá Tavistock; o outro desce pelo sul por Plymouth e sobe. O caminho de Plymouth eá mais longo, poreá m mais seguro. Eu os avisei, mas naã o sei qual deles tomaram. Estavam discutindo sobre isso quando fui dormir. A garota parecia apressada. A garota escreveu a mensagem, pensou Richard. Mas, aparentemente, ainda naã o contou a Garren, ou ele estaria correndo para voltar a agir como Salvador. — Traga-me aquele vinho e mostre-me a cama. Duas noites. Estava ganhando. Mesmo que tenham sido tolos o suficiente para atravessar o paê ntano, ele naã o precisaria fazeê -lo. A chuva os retardaria.

Capítulo Treze Dominica acolheu com alegria a chuva que chegou. As gotas naã o paravam de cair em sua cabeça. O gosto de uma garfada pecaminosa do coelho e da cebola ficaram na boca, fazendo seu estoê mago roncar. — Na peregrinaçaã o para Compostela — começou a viuá va — caiu um temporal na planíácie da Espanha. Depois dos trovoã es, veio o sileê ncio da chuva caindo. — Ela suspirou. — Mas naã o foi taã o forte como este. A Irmaã segurava-se em Roucoud. Dominica ouviu-a tossir por cima da trovoada. Ela precisa de um fogo e de roupas secas, pensou, irritada com Deus. Ateá os bons teê m que ser punidos? Garren seguia aà frente, sozinho. A chuva escorria dos cachos de seu cabelo. Ele tira prazer ateá mesmo das mais miseraá veis criaçoã es de Deus, pensou ela. Apoá s a refeiçaã o, reencontraram o caminho marcado. Uma ponte firme de lajes de pedra, escorregadia da chuva, levou-os ao outro lado do primeiro rio. Naã o tinha corrimaã o, e Inocente, farejando em busca de algum cheiro que naã o tivesse sido levado pela chuva, quase escorregou pelo lado. Um sinalizador de pedra, em forma de cruz, pendia proá ximo aà estrada. Eles se juntaram em volta dele. — Diz Tavistock — disse Dominica, feliz por naã o ser uma pedra deixada pelos espíáritos antigos. — Precisamos pegar o caminho da direita para chegar ao mosteiro. Os dentes da Irmaã batiam. — Eu nunca passei por aqui, mas se conseguirmos atravessar este rio, talvez possamos encontrar laá camas secas para esta noite. Garren passou os dedos pelos cabelos encharcados.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Irmaã , estou feliz por seu Deus naã o nos exigir dormir na chuva, nem caminhar nela. Vou levar cada um de voceê s ateá o outro lado no lombo de Roucoud. — Leve a Irmaã primeiro — sussurrou Dominica. Garren assentiu. Montou no cavalo atraá s da Irmaã , seu corpo engolindo o dela. No primeiro passo, Roucoud quase caiu no musgo escorregadio. Dominica cobriu a boca com a maã o para abafar um grito. Garren acariciou os flancos do cavalo e o acalmou, mas Dominica soá conseguiu respirar quando avistou as patas do cavalo fora d'aá gua do outro lado. Garren voltou muitas vezes para pegar Ralf , o meá dico, a viuá va, e Jackin e Gillian, que discutiram durante cinco minutos porque queriam atravessar juntos. Finalmente, soá restavam Dominica, Simon e os irmaã os Miller. — Sua vez — disse Garren. Ela sofria de ver o cansaço e a tensaã o que pesavam sobre os ombros de Garren. Protegeu o rolo de pergaminho embrulhado no oleado, e pegou Inocente. Naã o deixaria de escrever sobre os rios no seu guia para os peregrinos, pensou. Sentado na sela de Roucoud, Garren irritou-se ao ver aquilo. — Ponha o cachorro no chaã o. — Ele naã o consegue nadar ateá o outro lado. — Naã o vou deixaá -lo para traá s, mas voceê naã o pode montar com os braços ocupados com um cachorro. E eu naã o posso levantaá -la como se fosse um saco de trigo. Agora, deê o caã o a Simon. Ela o fez, mas sentiu-se como um saco de trigo quando ele a içou junto dele na sela. Seus braços circundavam os dela sem a gentileza da noite anterior. Por que deveria ele, afinal? Pensou ela. Acusara-o de ser o diabo. Dominica empoleirou-se indecisa na montanha que se movia, suas pernas penduradas para a esquerda. O cavalo se mexia, e ela agarrou os braços de Garren. — Ele eá muito grande, naã o eá ? — Nunca montou um cavalo? — Naã o. O convento soá tem burros. — Ele eá o melhor — disse ele, acariciando o pescoço grosso de Roucoud. — Este cavalo naã o recuou diante dos cavaleiros franceses. Naã o vai nos faltar agora. — Deus tambeá m naã o vai — disse ela, sem saber ao certo se Deus queria ajudaá -la ou puni-la. — Tenho mais feá no cavalo — disse ele, implacaá vel. Depois, virou-se para Simon. — Deê a ela o caã o — ordenou. Dominica apertou contra o peito o animal preto. O cavalo cambaleava a cada passo. — Calma, estou segurando voceê — disse ele. Ela naã o sabia se ele falava com ela ou com o cavalo. A batida constante do coraçaã o de Garren misturou-se ao som da aá gua corrente. Roucoud cambaleou para a direita. Ela caiu para traá s e deu um grito, antes de perceber que o braço de Garren a circundava. Inocente, agitado, empurrou-a com suas pernas curtas e lançou-se para o turbilhaã o do rio. — Inocente! Naã o! Os olhos de Dominica se arregalaram, e ela tentou alcançaá -lo. Tarde demais. O mergulho foi seguido de um latido abafado. Sua tentativa de alcançar o caã o carregou-a na direçaã o dele. Ainda tentou segurar Garren, mas perdeu todo o equilíábrio e escorregou da sela. A aá gua corrente arrastava seus peá s. Suas uá ltimas palavras coerentes para Deus foram para cuidar da Irmaã Marian e de Garren quando ela se fosse.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Capítulo Quatorze A força da aá gua sugou Dominica para a correnteza. De Garren, soá conseguiu alcançar o manto encharcado. Segurou-o e naã o soltou mais. A aá gua penetrava seus ouvidos, olhos e nariz. Sentia-se cada vez mais perto do outro mundo. E naã o sabia se era a sua voz, ou apenas a sua mente que gritava por socorro. Sufocada, engolia aá gua e se debatia, ateá que se sentiu sendo puxada para cima. — Calma. Eu naã o vou soltaá -la. O manto encharcado pesava como um sudaá rio. Mesmo com a cabeça acima da aá gua, naã o conseguia respirar. Debatia-se tentando afastar a aá gua, ansiando por ar. — Pare! — Exclamou ele, bruscamente. — Flutue, ou naã o vou conseguir segurar. Entre espirros, Dominica sentiu o braço de Garren em torno de si. Abriu os olhos e procurou flutuar como as varetas e galhos navegam na espuma. O cavalo, treinado para batalha, ficou parado como uma rocha no meio do turbilhaã o das aá guas, esperando o comando do dono. — Roucoud nos puxaraá para a margem. — O braço direito de Garren segurou-se aà perna dianteira esquerda de Roucoud, e o cavalo deu um passo, depois outro, e mais outro, puxando Garren e Dominica. O alíávio inundou-a como a aá gua. Segura. Fria e molhada, ainda a meio caminho da margem, agarrava-se a Garren. Salva. — Onde? — Naã o conseguia falar nem respirar. — Inocente? — Nada como um pato. — Dominica olhou para a margem, e viu a Irmaã com a maã o no coraçaã o. Jackin corria para frente e para traá s, entrava e saíáa da aá gua rasa da margem, gritando alguma coisa que ela naã o conseguia ouvir. Ralf estava ajoelhado na lama, as maã os unidas em oraçaã o. E a cabeça de uma orelha soá de Inocente balançava-se feliz sobre a aá gua, nadando na direçaã o deles. Ela queria rir, mas tossiu. — Por que me preocupo com ele? Garren deu uma risada ao seu ouvido. O braço dele, firme, caloroso, a carregava atraveá s da correnteza, segurando-a um pouco mais apertado do que o necessaá rio. Tudo estava molhado, dentro e fora do rio, e ela naã o sabia em qual dos dois se sentiria mais encharcada, mas estava segura. Salva. Obrigada, Pai Celeste. Quando o cavalo os arrastou, passo a passo, atraveá s do rio, Dominica sentiu o saco de viagem balançando nas suas costas. Naã o o perdera, mas estava cheio de aá gua. O oleado naã o era proteçaã o suficiente para o rio. Todas as maravilhosas palavras que tentara escrever devem ter desaparecido com a aá gua. Laá grimas misturavam-se a gotas de chuva em seu rosto. Ele a apertou. — Naã o eá preciso chorar. Estou segurando voceê . — Naã o eá por mim — fungou ela. — Meus escritos. Estaã o arruinados. — Um pensamento pior tomou conta dela. — A mensagem. — Ela pressionou os dedos no peito dele, procurando-a. — Onde estaá ? — Amarrada aà sela de Roucoud. — Tambeá m pode estar danificada. — As plumas! Estaã o encharcadas! — Paá ssaros pegam chuva. — Mas estas saã o sagradas! O braço esquerdo de Garren agarrou-a mais apertado, ele mantendo os olhos na margem.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Eu a salvei. Deus pode salvar Suas proá prias relíáquias. Dominica sabia que, provavelmente, era um sacrileá gio, mas sorriu mesmo assim. Quando Jackin e Ralf os puxaram, nos uá ltimos centíámetros, para a margem, a chuva tinha reduzido. Inocente corria para cima e para baixo na margem, como se tudo fosse uma fantaá stica aventura, e todos estivessem aproveitando a aá gua tanto quanto ele. Tirada do aconchego dos braços de Garren, Dominica foi sufocada pelas vestes pretas molhadas da Irmaã , como se ainda fosse uma criança. — Shh, shh, Deus protegeu voceê — disse a Irmaã , desatando a tossir. Dominica levantou a cabeça dos ombros da Irmaã para olhar para Garren. Todos os peregrinos deram um passo atraá s, como se houvesse uma aureá ola em volta dele que os afastassem. Montando Roucoud, Garren voltou ao rio para atravessar os treê s que faltavam. — De fato — murmurou Ralf. — Ele eá um Salvador. Dominica estremeceu. E agora ele me salvou. Os outros peregrinos se alojaram nos aposentos para hoá spedes, mas a Irmaã insistiu que Dominica ficasse em um dos quartos reservado para convidados importantes. A jovem se aqueceu no calor do fogo, bebeu o vinho quente e comeu. Finalmente, a Irmaã deitou-a na cama e embalou-a como se ainda fosse a risonha Nica. Dominica naã o sorriu aà noite. Nem Inocente conseguiu alegraá -la. Quando a Irmaã levou as tigelas de volta para a cozinha, ela se aconchegou sob as cobertas, aquecida e confortaá vel, mas sua alma estava longe. Tudo o que achava que sabia sobre o plano de Deus para a sua vida tinha ido por aá gua abaixo. Quando, com os dedos treê mulos, finalmente abriu seu rolo de pergaminho, naã o viu nenhuma palavra. Soá havia um borraã o de manchas pretas e riscas escuras irreconhecíáveis. Ela bateu no pergaminho, como se pudesse esticaá -lo, mas ele quebrou e enrolou de volta em suas maã os. Cada toque destruíáa outra palavra. Ela jogou a pobre coisa no chaã o, sacudindo as maã os para livraá -las dos sonhos perdidos. Como Deus podia salvaá -la, e destruir seu trabalho? Garren tentou-a, e ela pecou, mas em vez de puni-la, Deus mandou Garren para salvaá -la do rio. Ela fechou os olhos e ouviu o eco familiar da hora de dormir dos uá ltimos caê nones do dia, cantados esta noite por vozes de monges. Queria ouvir as freiras cantarem. Queria ir para casa. Para o convento, para a sua pena, para o conforto de saber que o dia acontece exatamente como o anterior. Para a paz. Para a certeza. Para o seu lugar. Onde cada dia ajudava a construir seu espaço no ceá u. Um lugar sem incertezas nem duá vidas. A tosse da Irmaã e o som dos mantos molhados interromperam sua prece. Aquecida e bem alimentada, Dominica assistiu aà Irmaã espalhar os conteuá dos encharcados sobre o banco e a cama. Está tão molhada quanto eu. Como não percebi? Dominica pulou da cama. — Venha, agora. EÉ a sua vez de se esquentar na cama. — Estou bem. Vou unir-me aos outros. Foi voceê quem quase se perdeu hoje. — Ela entrelaçou os dedos nos de Dominica apertando-os, como se quisesse ter certeza de que ela ainda estava viva. — Agora sou maior que voceê — disse Dominica, tirando a touca molhada da Irmaã e pendurando-a sobre o banco ao lado do fogo. — Vai fazer o que eu mandar. Vou cuidar de voceê . Ela se deixou levar ateá a cama e ser coberta. — Obrigada, minha filha. Acho que estou cansada. — Precisa manter sua força. Estamos quase chegando laá , naã o estamos?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Mais alguns dias. — Deus salvou a minha vida hoje. — Sim. Eu sempre achei que Deus a trouxe para alguma coisa especial. — Estou pronta para chegar em casa e começar a copiar como voceê . Ela esperou a Irmaã dizer que era esta a intençaã o de Deus. Mas viu toda a sua confusaã o interior refletida nos olhos da Irmaã . — EÉ o que eu sempre quis, mas certifique-se que esse tambeá m eá o plano de Deus, e naã o apenas o seu. — Conte-me de novo como cheguei no convento. — Era sua histoá ria favorita antes de dormir. Como a lenda de Larina, sabia as palavras de cor. — Era uma manhaã de veraã o — começou a Irmaã , como sempre, exceto que desta vez era ela quem estava deitada, e Dominica acomodou-se na beira do colchaã o estreito. — Eu ainda era uma noviça, mandada para abrir os portoã es para os viajantes. O sol jaá estava a pino quando iniciei minhas tarefas matinais. Fui ateá o portaã o, e laá estava uma cesta coberta com um pano. — Como Moiseá s na correnteza do rio! — falou Dominica, recitando sua parte. — Talvez. — Vincos marcaram o rosto da Irmaã . — E qual era a cor do pano? — Azul. Azul como os seus olhos. — Ela olhou para Dominica e sorriu. — Mas eu pensei que fosse uma cesta de maçaã s. — Maçaã s — disse ela, de repente naã o querendo que Garren pensasse nela como uma fruta vermelha e redonda. — E eu pareço uma maçaã ? Ou mais como uma ameixa. A Irmaã riu e beliscou sua bochecha. — Bem, voceê tinha bochechas coradas e redondas. Mas quando peguei a cesta, as maçaã s espernearam e choraram! — E era eu! — Sim, era voceê . E eu a amei imediatamente, e disse que cuidaria de voceê . — E o que a Priora disse? — A princíápio, ela naã o estava bem certa. — Mas voceê a persuadiu? A Irmaã acariciou a testa de Dominica como fazia quando tinha febre em criança. — Todas noá s. Todas noá s a amamos muito. — Quem voceê acha que era a minha maã e? — Ela nunca tinha perguntado isso antes. De algum modo, hoje pareceu importante. — Eu acho — disse a Irmaã , finalmente — que ela era uma mulher jovem, tola, soá , que naã o podia ficar com um bebeê . Uma mulher tola e sozinha que sucumbiu aà tentaçaã o dos prazeres mundanos. O que aconteceu com ela, afinal? — Voceê acha que Deus a perdoou? — Lembre-se do que Ralf disse. EÉ preciso o arrependimento verdadeiro para conseguir o perdaã o de Deus. Arrependimento verdadeiro. Ela se arrependeu verdadeiramente daqueles momentos que passou nos braços de Garren? Mas, quando a Irmaã Marian dormiu, Dominica deitou-se no chaã o ao lado do fogo, as maã os em volta do corpo, e ficou a pensar sobre a jovem moça, sua maã e, que tinha sido taã o tola. De olhos fechados, sentiu o rio cobri-la novamente. Quase tinha morrido. Garren fora seu Salvador. Aquilo devia ser uma mensagem. Deus deve ter mandado Garren por uma razaã o. Talvez ele tenha sido enviado para ensinaá -la e naã o para tentaá -la. Que liçaã o Deus guardava para ela?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford E quando Dominica pensou na forma como seu corpo queimava quando estava ao lado do corpo de Garren, começou a entender como aquela jovem deve ter se sentido, ter desejado algueá m mais do que sua alma imortal. Garren rolava no seu colchaã o, e fechava os olhos contra o fogo que se apagava. Mas, quando fechava os olhos, sentia Nica escorregar de sua maã o de novo. Sentia o batimento do seu coraçaã o, o suor da pele taã o forte quanto a chuva e a terríável sensaçaã o de que o mundo estava fugindo do seu controle. Sentiu seus braços tentando alcançaá -la. Você é verdadeiramente o Salvador. Como Deus deve rir. Ele quase a perdera hoje. Esta noite, estremecia diante do que aquilo significava. Ela doíáa nele como uma ferida antiga. O dia naã o começava ateá que ele a visse. A noite naã o podia cair ateá ela estar deitada, segura. Sentia como se fosse sua a fome dela. Seu corpo gritava para unir-se ao dela. Uma presença viva fluíáa entre eles. O espíárito do paê ntano, ele a avisara, como se eles pudessem tocar as almas um do outro. Claro, ele jaá naã o tinha mais alma. Diante da morte, ela se preocupou com a mensagem de William e as plumas. Ele esqueceu de tudo, todas as suas promessas, exceto de salvaá -la de seu Deus. Dominica agarrava-se aà sua feá como um escudo. Como se fosse morrer se a perdesse. Como se naã o tivesse mais nada. Afinal, o que mais ela tinha? Nenhuma famíália. Nenhum futuro, exceto aquele que pedia que Deus lhe desse. Aquele que Garren lhe roubaria. O que acontecerá a ela depois? Sua vida vai continuar quase como era antes. Quase como era antes. Lavar, cuidar do jardim, uma criada sem posiçaã o social. Uma oá rfaã aceita por toleraê ncia. Ele conhecia aquela vida. A sua fora assim, ateá William abrir os braços e fazer dele seu escudeiro sem lar. Por isso, tinha com William uma díávida que nenhuma peregrinaçaã o poderia pagar. Ele naã o a arruinaria. A salvaria. Sim, salvaá -la de uma vida presa a esse Deus ridíáculo que tentava criar justiça no outro mundo, com palavras no aqui e agora. Não minta para si mesmo. Não se trata de salvá-la da Igreja. Nem mesmo do dinheiro. Trata-se do que você quer. Virou de lado para afastar sua culpa. As coisas na vida aconteciam. Nenhuma justiça. Nenhum padraã o. Soá uma seá rie de experieê ncias a serem vividas. Aproveite o hoje. O passado eá doloroso demais. Deus naã o prometeu amanhaã s. Naã o a William, cujo tuá mulo aceitaria as penas e o dinheiro, se ele os conseguisse. Certamente naã o a ele. Deus jaá tirara dele o suficiente. Naã o queria gostar de mais ningueá m. Apresentaria a garota aà s decepçoã es da vida. Ela aprenderia a suportaá -las. Ele naã o se apegaria a mais ningueá m. Naã o sofreria mais perdas. Amanhaã , decididamente, iria atraá s dela.

Capítulo Quinze Com uma frieza inadequada a quem pretende seduzir algueá m, Garren deu uma olhada nas barracas montadas em volta do mosteiro de pedra para sondar o terreno de seu campo de batalha. O dia do mercado em Tavistock, uma selva de barracas desmontaá veis cobertas de lona, parecia um local inapropriado, mas um comandante nem sempre podia escolher. Hoje, lançaria sua campanha para capturar Dominica.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Depois que a Irmaã a levou para um quarto particular na noite anterior, naã o a vira mais. Agora, enchia os olhos com a maravilha de teê -la viva ao seu lado no sol da manhaã . Depois das adversidades vividas no paê ntano, concedeu a todos um dia de descanso. Os outros, logo se dispersaram para o mercado, aà exceçaã o de Ralf, que foi ajoelhar-se na capela, e da Irmaã , ainda na cama com uma terríável tosse. — Como estaá a tosse da Irmaã esta manhaã ? — O meá dico deu-lhe pulmonaá ria, e eu tenho rezado para Deus. Estaraá melhor amanhaã . Garren duvidava disso. A Irmaã estava cada dia mais fraca. Mas Dominica naã o queria enxergar. E ele naã o queria mostrar-lhe. — Voceê estava certo em insistir para descansarmos — disse Dominica, novamente olhando para ele como se fosse O Salvador em vez de o diabo do paê ntano. — AÀ s vezes, a vontade de Deus eá muito clara para mim. — E voceê ? — Ele se controlou para naã o tocar seu rosto, soá para ter certeza de que ela estava ali. — Estaá se sentindo bem? Dominica naã o parecia ter estado taã o perto da morte. Os dias de caminhada a tornaram forte como o aço. Estava mais alta e os ombros mais eretos do que quando saiu de Readington. Sardas de sol salpicavam seu nariz, mas ela jaá naã o empurrava o laá bio para fora e levantava o queixo para desafiaá -lo. As liçoã es da vida a baquearam. Ele tinha saudades da mulher ardente que nunca duvidava de si mesma ou de Deus. — Ah, sim. — Dominica virou a cabeça, e ele quase naã o ouviu as palavras seguintes. — Mas tudo o que escrevi se perdeu. — Naã o pode começar tudo de novo? — Eu soá tinha um resto de pergaminho velho para escrever, e agora ele estaá todo rachado. — Ela olhou para o saco pendurado nas costas dele. — EÉ por isso que estou taã o preocupada com a mensagem que voceê estaá levando. Ela estaá aíá? — Naã o. Por queê ? — Seraá que foi danificada? Ele naã o pensava nisso desde o dia anterior. — Naã o sei. Estaá lacrada. — Deixe-me ver. Posso ter uma ideá ia sem quebrar o lacre. — Dominica sussurrou. — Esta noite. Depois dos uá ltimos caê nones. A capela estaraá vazia. Enquanto Garren observava seus laá bios sussurrarem, pensava em estar a soá s com ela no escuro e quase esqueceu de considerar sua preocupaçaã o. — Por que estaá taã o interessada em uma carta sobre as relíáquias? — Soá pensei em ajudar porque entendo disso. — A Irmaã naã o entende mais do que voceê ? — Dominica empalideceu por traá s das sardas. — Naã o quero incomodar a Irmaã com isso. — Garren estava taã o envolvido com Dominica, e sua proá pria promessa estuá pida de roubar uma pluma, que naã o pensava na mensagem de William haá dias. O que ele teraá escrito? E de que jeito, com maã os treê mulas como se tivesse paralisia? Algueá m deve ter escrito para ele. Ele a fitou novamente, e viu um brilho no olhar que soá podia ser porque ela sabia. Nica. Nica escreveu para ele. E o que escreveu a assusta. — Hoje, entaã o — disse ele, vendo-a relaxar aliviada. E, antes que ele a deixasse ir embora esta noite, descobriria que mensagem era essa que ele tinha que levar, mas naã o podia saber o que era. Mas, agora, era hora de cortejaá -la.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Precisa ter uma lembrança desta viagem — disse ele, enquanto passavam pelo vendedor de tecidos. — O que gostaria? Ela acariciou uma peça de laã vermelha. — Naã o tenho nenhuma moeda. E mais pobre ainda do que eu, pensou Garren. Cada prato que comia era uma daá diva de Deus. Naã o eá para menos que acredita que Deus vai suprir todas as suas necessidades. — Eu tenho uma sobrando. — Valeria a pena gastar uns trocados para veê -la sorrir. Garren olhou para uma pilha de pequenos enfeites de mulher. — Um botaã o, talvez? — Ele pegou um, de osso de ovelha entalhado, e o segurou por cima da manga de laã cinza que ela usava. — Onde as mulheres usam essas coisas? — Uma noviça naã o pode usar isso. — Voceê ainda naã o eá uma noviça. — E nunca será. — Talvez alguma coisa para oferecer aà Abençoada Larina. — Quem sabe alguma coisa para voceê — retrucou ele numa voz aá spera. Tolo. Use palavras gentis. — Voceê acha que eá permitido? Novamente ela via O Salvador, em vez de Garren. — Naã o soá acho que eá permitido, acho que eá necessaá rio. Parte da razaã o para a peregrinaçaã o eá conhecer melhor o mundo de Deus. — Carpe diem? — Exatamente. — Estaá bem. — Ela riu formando uma covinha. Garren tambeá m estava feliz por ter conseguido afastar aquela tristeza. Vitoá ria conquistada, pegou uma moeda para pagar o botaã o, quando sentiu a maã o dela, leve, em seu braço. Segurou-se para naã o tocaá -la. — Se devo conhecer o mundo de Deus, entaã o eá melhor ver tudo o que puder — disse ela. — Vou visitar cada uma das barracas. — Cada uma? — Garren pensava em comprar o botaã o e pronto. As barracas — quantas? — espalhadas em volta dos muros do mosteiro pareciam naã o ter fim: peles, temperos, estanho, tecidos, couro, carvaã o. Ela naã o iria ver o carvaã o, obviamente. — Peregrinos — um homem de nariz torto chamou da barraca ao lado. — Querem comprar uma lasca da Cruz Verdadeira? Devia ser uma lasca tirada da ponta do cajado do vendedor, pensou Garren. Um dos milhares de pedaços da "Cruz Verdadeira" vendidos a peregrinos facilmente enganados, da Inglaterra aà Terra Santa. Se juntassem todos, daria para construir uma catedral. Mas ela jaá estava ao lado da relíáquia no balcaã o. — Posso tocar? — Garren respirou fundo e devolveu o botaã o aà pilha de onde tirara. — Venha, Inocente — falou ele. — Vamos. — Dominica manuseou um tecido fino, experimentou luvas de couro, e cheirou a canela. Depois, examinou o carvaã o que, misturado com seiva, virava tinta. Sem dinheiro, tudo era impagaá vel, mas quando ela colocou no pescoço uma corrente de ouro, o estoê mago de Garren deu um noá . Ele precisaria vender Roucoud para comprar aquilo. Os elos pesados ajustaram-se perfeitamente entre seus seios e subiam e desciam acompanhando sua respiraçaã o. Ela olhou para a corrente, depois para ele, atraveá s dos cíálios, com o olhar instintivamente feminino de uma mulher que naã o nasceu para ser freira. Diante daquela que tinha os olhos de uma meretriz no corpo de uma virgem, ele riu de alegria. Ela tambeá m riu. Riu tanto que se desequilibrou e caiu para o lado dele. Ele a envolveu e

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sentiu seus seios contra suas costelas. Seu coraçaã o batia taã o forte que ela deve ter percebido. Ele acariciou os cachos dourados com dedos que ansiavam por deslizar para os seus seios. Ele queria beijaá -la outra vez. Dominica se contraiu e se afastou de seu abraço. Tirou a corrente e devolveu-a ao mercador. Quando se virou para ele, alguns fios de cabelo macio, dourados do sol, tinham escapado da trança e grudado no pescoço. Seus olhos azuis confusos buscavam os dele, cheios de perguntas que ele naã o queria responder. — Foi para isto que eu fui salva? Ela naã o se referia aà corrente. Ele queria dizer sim. Um sim a levaria aos seus braços. Talvez aà sua cama. Sim significaria sua capitulaçaã o. Mas ele naã o queria que ela cedesse a um santo ou a um diabo. Ela deveria veê -lo como Garren. Ele desviou o olhar, temendo que ela percebesse a verdade sob seu disfarce. — Talvez seja melhor continuar procurando. Seus olhos eram um misto de confiança e confusaã o. Ela apontou para uma barraca no final do muro. — Laá estaá o vendedor de pergaminhos. Gillian me deu uma moeda para comprar-lhe alguns. Aliviado, ele acompanhou seus passos. Sob o manto, ele apertou bem a malha metaá lica em torno da protuberaê ncia uá mida entre suas pernas. — Para que Gillian precisa de pergaminho? — Ela me pediu para escrever seu pedido para a Abençoada Larina. — Ela certamente vai pagar pela escrita, aleá m do pergaminho. — As pessoas saã o pagas para escrever? William naã o lhe pagou? Ele queria perguntar. Mas, na verdade, toda a comida, roupa e tinta que o convento usa saã o pagas com o dinheiro de Readington. — Sim. Na cidade e na corte, um escriba pode ganhar a vida escrevendo mensagens. — Olhem aqui! Papel de boa qualidade! — o vendedor de pergaminho clamava. Ele escolheu uma folha de uma pilha que estava sobre um pequeno banco de madeira aos seus joelhos. — Importado de Frankfurt, feito com aá gua do Reno. — Pergaminho fabricado aqui, por favor, mas novo, sem uso. — Ela recusou sua sugestaã o. Enquanto ela barganhava um preço que se adequasse ao bolso de Gillian, ele a observava manusear as bordas com revereê ncia. Este era o presente que ela queria. Por que naã o pensara nisso antes? — Vou comprar uma folha para voceê . Outros peregrinos vaã o precisar do seu guia. Dominica deixou cair a folha. — Deus naã o quer que eu escreva isso. — Como pode duvidar? Ele a salvou da correnteza de um rio. — Pelo menos, era isso que ela acreditava. Naã o era preciso lembrar-lhe os seus braços fortes. — Ele me salvou. Naã o aà s minhas palavras. — E por causa disso voceê acha que estaá desobrigada? Que tipo de feá eá essa, Nica? — Ele mordeu a líángua. O tipo de feá que breve ele arrasaria. Por que a estava encorajando? EÉ melhor ela desistir. Aceitar que a Bíáblia naã o ganharia vida sob seus dedos pacientes. Contudo, a tristeza no semblante de Dominica era mais do que ele podia suportar. Se escrever a fazia feliz, entaã o, por Deus, O Salvador a diria para escrever. Deixe que ela chore sua perda depois que ele se for, quando naã o estiver mais presente para ver sua dor. — Mostre-nos uns pergaminhos — Garren falou. O sorriso de Dominica era recompensa suficiente. O vendedor folheou as pilhas sobre o banco, enquanto Garren puxou

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford uma folha branca e macia. — Esta parece boa. — Cuidado com seus dedos, senhor. Para naã o manchar, sabe como eá . Mas o senhor tem um bom olho. EÉ uma excelente escolha. A melhor pele de carneiro cisterciense. Naã o haá nada que supere isto. — E muito cara para as minhas necessidades — retrucou Dominica. Ela tirou uma folha do fundo da pilha. Camadas de tinta desbotada manchavam a pele de carneiro. — E esta aqui? — EÉ usada, claro, mas foi muito bem limpa. — Naã o taã o bem. Ainda consigo ler o Salmo Vinte e Treê s; e as Beatitudes escritas antes do Salmo. Aíá estaá uma mulher que naã o tem duá vidas, pensou Garren, sorrindo. Deu um passo para traá s para deixaá -la negociar. O vendedor naã o tinha como se defender. — Vou precisar apagar tudo isso antes de usar. — Talvez eu possa diminuir um pouco o preço... Aos peá s de Garren, Inocente farejava o papel importado com seu focinho uá mido. Ele colocou as patas no banco e perdeu o equilíábrio. O banco caiu. Folhas de pergaminho e papel deslizaram para a borda. O vendedor de pergaminho jogou-se sobre a pilha cambaleante. — Ei! Cuidado com o seu cachorro! Com um grito agudo, Dominica segurou Inocente, justo quando as folhas caíáram na Garren. O vendedor apanhou-as, limpando cada folha, procurando por manchas. — Olhe soá isso agora! Quase destruiu... — Naã o destruiu nada — disse Garren, jogando para o vendedor uma moeda mais generosa do que o pergaminho merecia. Ele fez um sinal para Dominica correr, segurou a pele de carneiro e seguiu-a ateá estarem taã o longe que podiam cair numa gargalhada. — Voceê eá um caã o feio — disse Dominica, abanando o dedo na frente do focinho de Inocente, mas sua gargalhada prejudicava o efeito. O rabo do cachorro balançava de orgulho e felicidade, e ele lambia o dedo dela. Achando graça, ela o colocou no chaã o. — Aqui. Para voceê . — Garren estendeu a maã o para entregar-lhe o pergaminho. — Obrigada. — Algumas sombras tinham desaparecido de seus olhos. — Nica — começou Garren. — Voceê ... — Mas ele parou. Suas perguntas sobre a mensagem de William podiam esperar ateá a noite. Deixe-a ser feliz por uma tarde. Enquanto isso, evitaria pensar muito sobre o que ele queria de Nica agora. No sileê ncio apoá s as veá speras, Dominica sentou-se na frente de Gillian. Alisou a folha sobre a mesa de madeira aá spera dos aposentos vazios dos peregrinos. Seu pergaminho estava ao seu lado, seguro. Tocou-o, soá para ter certeza. Quando ela se moveu, a moeda que Gillian lhe deu, pelo trabalho que faria, tilintou contra a faca. Orou pedindo perdaã o por ter sentido uma pontada de orgulho. De qualquer modo, a moeda naã o era dela. Daria ao convento, logo que retornasse. — Como voceê começa? — perguntou Gillian. Dominica tirou uma lasca da ponta da pena com a faca de afiar, acertou-a e refez a ranhura, antes de mergulhaá -la no tinteiro. Teria preferido uma mesa de copiar jaá lisa do uso, de tampo inclinado, mas o scriptorium do mosteiro naã o estava aberto a moças oá rfaã s desconhecidas. — Vou começar por escrever "Saudaçoã es aà Abençoada Larina". Era difíácil desenhar as letras bem-feitas e em linha reta, apesar de ter marcado a paá gina com riscos horizontais bem suaves. Levantou a folha e soprou a tinta.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Veja, este eá um "S". — Com seu olho críático, ficou a imaginar como ficaria o nome Ga-r-r-e-n. — Estas saã o as palavras que voceê disse? — Sim. "Saudaçoã es aà Abençoada Larina". — A Santa naã o conhece essas palavras. Pensei que soubesse escrever em latim. — Claro que, sei. — O orgulho fez com que ela se empinasse toda. — Mas voceê naã o fala latim. — Os santos soá sabem latim. EÉ por isto que os padres precisam traduzir para noá s. Eles naã o falam a nossa líángua, portanto naã o entendem as nossas preces. Dominica queria argumentar que Larina tinha vivido ali, naã o em Roma, e que Deus ouvia, naã o importava a líángua. Mas como poderia ela? Gillian talvez tenha entendido mal as razoã es da Igreja, mas estava certa quanto ao resultado. Nenhuma pobre alma na terra podia falar com Deus sem a Igreja. — Estaá bem. — Ela mordeu a líángua e mergulhou a pena na tinta. Acrescentou uma frase em latim, repetindo mentalmente as coisas que naã o ousava dizer em voz alta. A Igreja estava errada quanto a isso. Assim como estava errada quanto aà s almas dos cachorros. EÉ por isto que a Bíáblia precisa ser escrita na líángua dela. Para que esta pobre mulher possa, ela mesma, falar com Deus. — Pronto: Salutem dicit. Quer dizer "Saudaçoã es" em latim. — Larina precisaria reconhecer seu proá prio nome. — Agora precisamos de uma introduçaã o. Algo como "Estamos aqui, diante de voá s, Jackin e Gillian de..." — Dominica fez uma pausa. — Jack eá Ford. Jackin eá barqueiro, conduz a barca de travessia. — Mas a que castelo voceê s pertencem? Que Lorde cuida de voceê s? Gillian abriu-se no riso vibrante que Dominica tinha ouvido muitas vezes ao longo da jornada. — Nossas ovelhas cuidam dele, eá algo assim. — Mas todo mundo estaá aos cuidados de algueá m. — Hoje, haá menos pessoas como noá s do que antigamente. Noá s mantemos um pouco das nossas tradiçoã es. Era uma heresia, uma violaçaã o da ordem do mundo e das leis de Deus. A Igreja cuida dos seus; os servos e cavaleiros devem fidelidade aos seus Lordes. Todos pertencem a algueá m. Exceto, claro, os mercadores que viram hoje. E os cavaleiros mercenaá rios como Garren. Ningueá m cuida dele. E, se o convento naã o a aceitar, ningueá m cuidaraá dela tampouco. Mas Jackin e Gillian claramente cuidavam um do outro. Dominica esfregou a haste da pena. — Haá quanto tempo estaá casada? — Fez dois anos no uá ltimo Natal. Dominica comprimiu os laá bios, temendo perguntar, mas talvez fosse a sua uá nica oportunidade. — Como eá ser casada? — Isso tambeá m vai na carta?— perguntou Gillian. — Ah, naã o — Ela corou. — Eu soá estava curiosa. — Eu naã o trocaria o casamento por Deus. Meu homem estaá taã o perto do ceá u quanto eu vou chegar nesta pobre terra. Dominica tambeá m naã o trocaria o casamento por Deus. Ningueá m se casaria com ela. — O seu marido, como ele eá ? — Ele eá um bom homem. Aquece meus peá s aà noite e minhas intimidades de manhaã . EÉ trabalhador e sabe se divertir. Tem um temperamento melhor que muitos homens, se bem que eu sei o meu lugar, com certeza. Concordo com a viuá va Cropton. Acho que naã o saberia viver

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sem um marido. Dominica queria perguntar se Gillian sentia seu corpo derreter quando Jackin a abraçava. Se ela sentia suas almas se unirem. — Voceê s parecem sentir tanta... — Dominica naã o sabia que palavra usar. —... alegria um com o outro. — Voceê viu mais do que a maioria das pessoas jamais veê . Mas noá s temos sorte. Ainda somos apaixonados. — Mas sabe que eá um pecado. Naã o teme por suas almas? — Eu sei que o padre diz que eá errado, mas Deus tambeá m criou esse desejo. Ele deve ter tido um motivo. Dominica cortou a pena outra vez e mergulhou-a de volta na tinta. Sua vida teraá que ser a escrita, ou aquela sensaçaã o de desejo que sente com Garren. Naã o poderaá ser as duas coisas. — O que voceê e Jackin querem de Larina? — Um filho. Entaã o, apesar de seu amor, Jackin e Gillian eram sine prole. Sem prole. Com base no que ela sabia sobre bebeê s, eles estavam ajudando Deus o mais que podiam. Isso significava que Gillian devia ser esteá ril. Sentiu um calafrio na base da coluna. Entaã o eles de fato precisam de um milagre. — Peça um menino — disse Gillian. Homo, escreveu Dominica. Fez uma pausa para examinar o que tinha escrito e, para certificar-se de que naã o haveria erro, acrescentou: Nonfemina. — Mais alguma coisa? Gillian deu uma olhada na folha, que ainda tinha muito espaço. — Tem mais espaço. — Gillian indicou com a maã o, — Peça um vestido vermelho. E um anel de ouro com um rubi para combinar. Isso soava mais como uma lista de presentes de Dia de Reis do que o pedido de uma peregrina. — E voceê acha que Deus lhe concederaá tudo isso soá por estar fazendo uma peregrinaçaã o? — Soá o vestido custaria mais do que eles deviam ganhar em dez anos. — Ah, sim. EÉ a barganha com Deus. — Mas voceê ainda precisa criar suas ovelhas, ter seus bebeê s... — Sou muito melhor na cama do que nos campos. — Ela deu de ombros. — Deus nos"daraá . Ateá mesmo entre as freiras, Dominica nunca tinha visto uma feá taã o cega. — AÀ s vezes, Deus precisa que voceê ajude. — EÉ por isto que estamos fazendo a peregrinaçaã o. Depois seraá a vez de Deus. Ah, peça tambeá m uma corrente de ouro. — Uma corrente de ouro? — Nica sentiu o peso da corrente e os dedos de Garren perto de seus seios. — Sim — riu Gillian. — Quero usaá -la nua. Isto noá s naã o contamos ao Padre quando pedimos permissaã o para fazer a peregrinaçaã o. — Deus nem sempre responde aà s nossas preces da maneira que desejamos. — Dominica reconheceu as palavras da Irmaã , mas naã o a voz amarga que ela usara. — Voceê fala como se naã o tivesse feá . — Claro que tenho — respondeu ela. — O que voceê quer de Deus? — Meu pedido eá menos mundano. Quero ser freira. — Sua líángua tropeçou nas palavras familiares. De repente sentiu-se envergonhada. Ela naã o tinha pensado, exatamente como Gillian,

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford que Deus daria exatamente o que ela pedisse? Seria isso feá ou orgulho? Gillian fitou-a com os olhos de respeito. — Sinto muito. Eu naã o sabia. Claro que voceê tem feá . Mas, para mim, isso soa como uma vida de prisaã o. — Ah, naã o, o meu mundo eá isso. — Ela pensou no convento, taã o pequeno e taã o amado. No pequeno paá tio da clausura. Nos dedos da Irmaã guiando suas primeiras letras. E compreendeu, por um momento, como algueá m podia ver aquilo desse modo. — Claro, algumas pessoas tambeá m dizem que o casamento eá uma prisaã o. Escreva sobre a corrente. Aurum, escreveu ela para ouro. Qual seria sua lista de desejos? Pensando em encontrar Garren sozinho esta. noite, jaá naã o estava certa do que desejava. Ou de quem era. Soá sabia que queria sentir os braços dele.

Capítulo Dezesseis O caê ntico dava um ar sinistro na capela do mosteiro. Deitado de barriga para baixo no chaã o tosco, Garren fingia orar. Este naã o era o lugar ideal para estar com Dominica. Mesmo para um descrente, havia algo de profano em marcar um encontro na casa de Deus. As colunas elevavam-se para a escuridaã o de um teto invisíável onde, pelo que ele sabia, Deus se empoleirava como um abutre faminto, exatamente como fizera quando Garren era pouco mais que um menino e apertava o rosto contra a pedra fria orando pelos pais que, mesmo assim, morreriam. A luz do sol se foi com a uá ltima nota musical. Os monges subiam para suas celas. O relicaá rio de Garren arrastou no chaã o ao levantar-se. Garren naã o ouviu Dominica e seus passos silenciosos de convento antes de veê -la, segurando uma vela numa maã o e agarrando seu pergaminho na outra, como se fosse uma relíáquia sagrada. — Nica... Ela fez sinal para ele silenciar enquanto examinava o ambiente. Seus cabelos revoltos sobre os seios embelezava-a como se fosse uma estaá tua. — Trouxe? — Garren confirmou com a cabeça. Dominica escondia uma camisa religiosa debaixo do manto e sob uma roupa indefinida de linho branco, e os peá s nus encolhiam-se no chaã o frio. Ela se dirigiu a uma capela lateral, onde uma uá nica vela tremeluzia na frente de uma imagem de Nossa Senhora. — Laá . Na capela, ela colocou a vela no chaã o, ao lado do pergaminho, como uma oferenda diante do altar. Relutante, Garren depositou a mensagem dobrada naquelas maã os reverentes. Sem duá vida, a fina pele de bezerro trazia as palavras de um homem jaá morto, mas ele tinha prometido a William que a entregaria. — O lacre naã o pode estar violado. O pergaminho estava duplamente lacrado. Primeiro, o anel de Readington de William carimbava um cíárculo de cera vermelha. Depois, um fio, ainda intacto, perfurava as camadas. Dominica passou o polegar sobre a gravaçaã o de cera, agora rachada onde a espada de Readington cruzava o livro aberto, depois segurou o pergaminho diante da chama, como se pudesse ler atraveá s dela. — Parece bem — disse ela, devolvendo-a a ele. Garren enfiou-o debaixo da tuá nica e segurou os ombros de Dominica para impedir que fosse embora. — Confesse, Nica. Voceê escreveu esta mensagem.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Ele me fez prometer naã o contar a ningueá m — respondeu, com a altivez familiar. Nem a você. As palavras naã o ditas machucaram. Por que William naã o confiaria nele? Ela deve ter percebido sua decepçaã o, pois deitou sua maã o sobre a dele como que para curar uma ferida. — Voceê gosta muito dele, naã o eá ? — Sou mais seu irmaã o do que aquele que Deus lhe deu. Mesmo com pouca luz, Garren podia veê -la empalidecer aà mençaã o de Richard. — Conte-me, Nica. Conte-me o que ele escreveu. — Ela se negou. — Por favor. — Naã o posso. Prometi a ele. Cuide dela, Garren. É mais uma coisa que eu preciso pedir a você. Teria ele mantido sua promessa taã o bem? Ele suspirou. — Guarde seu segredo. — Eu devo isto a William. Sem querer deixaá -la ir embora, ele pegou seus cabelos e arrumou sobre os seios. Ela endireitou os ombros. — Há algo que preciso confessar a voceê . — Garren soltou seu cabelo. — Acorde um monge. — Ele naã o queria ouvir mais nada sobre jejuns quebrados. — Quando vai assumir quem voceê eá de fato? Diabo ou Salvador. Ela naã o conseguia veê -lo como homem. — Quando vai aceitar que eu naã o sou quem voceê pensa? — Mas a minha confissaã o eá sobre voceê . O desejo fez arder seu interior, naã o apenas pelo corpo dela, mas por seus pensamentos. Sua determinaçaã o transformou-se em desejo. — Entaã o — resmungou ele — eu preciso ouvir. — Preciso ficar de costas para as suas costas para que voceê naã o me olhe enquanto falo. Garren queria contar-lhe que naã o era diabo nem santo, mas quando ela pressionou as costas nas suas, naã o conseguiu dizer nada. O calor que ela exalava aqueceu sua pele, e, de frente para os olhos acusadores da Virgem Maria, sentiu-se um maá rtir pronto para ser queimado. — Agora, pergunte-me o que eu devo confessar. — O queê ... — As palavras estavam presas na sua garganta. — O que voceê tem para confessar? — Certamente dois pais-nossos perdoariam qualquer pecado que ela pudesse ter cometido. Menos os que forarn cometidos com ele. — Tenho pensado em voceê aà noite. — O que voceê pensou? Ela abriu as maã os dele e entrelaçou os dedos. — Quando vou dormir, fico deitada no escuro imaginando voceê ao meu lado. Ele ajeitou as pernas para acomodar o volume que ameaçava revelar-se atraveá s da malha metaá lica. — Nica. — Ainda naã o pode me absolver. — Eu naã o posso absolveê -la de jeito nenhum. — Deve ser voceê ou Deus. Uma gota de vela pingou em cima do altar. Os olhos da Virgem pintados de azul pareciam encher-se de laá grimas. Eu a salvei, Deus, pensou ele, chocado com a raiva que crescia dentro dele. Não a terás. — Entaã o tem de ser eu. — Sinto suas maã os. Quero que me toque. Eu tenho ateá ... — Ela acariciou a maã o dele. — Eu tenho me tocado, querendo que as minhas maã os fossem as suas.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Ríágido, os peá s separados, ele olhou para baixo, sem reaçaã o, quando seu corpo procurou o dela. — Como? — Eu coloco uma maã o no seio e uma...— parecia falar dentro dele — ...uma entre as minhas pernas. O mundo inteiro de Garren parou. Desejo e mais alguma coisa gritavam em suas veias. Queria abraçaá -la. Tocaá -la. Teê -la e abandonaá -la antes que fosse tarde demais. Antes que Deus a levasse. Antes que ele naã o pudesse mais abandonaá -la. Ela caiu sobre ele, os dedos escorregaram, como se a confissaã o tivesse levado toda a energia de seu corpo. — Garren, o que isso quer dizer? O que devo fazer? Ele se virou e se perdeu nos olhos dela, naã o mais ardentes ou desafiadores, atraindo-o taã o suavemente quanto seus dedos. — Feche os olhos. Mostre-me. — Naã o posso. Ele a abraçou e acariciou seus cabelos. — Mostre-me. Ela se abraçou forte contra ele, como que temendo deixar as maã os dele encontrarem seus lugares secretos. — Naã o posso — murmurou ela, contra o coraçaã o dele. — Vou ajudar. Mas naã o abra os olhos, naã o importa o que sinta. — Não posso me arriscar a ver. Garren deslizou a maã o sob seu manto, abriu os dedos sobre o seu toá rax, com cuidado para evitar os seios, que intumesceram com a proximidade. — Aqui? — Ela balançou a cabeça, negando. — Mostre-me. Ela levou a maã o dele mais abaixo, ofegando quando ele roçou o pano de linho que cobria seu seio. — Aqui? — De olhos fechados, ela confirmou. A maã o dela ainda estava sobre a dele. Garren deixou o bico do seio escorregar por entre seus dedos, depois apertou, suavemente. Ela gemeu, e sua respiraçaã o, agora raá pida, a empurrou contra a maã o dele. Ele deixou cair a maã o esquerda sob o manto dela, e cingiu o linho que cobria o calor entre as pernas dela. — E aqui? Ela enrijeceu, mas naã o respondeu, exceto por cobrir a maã o dele com a sua, prendendo-a entre o calor da sua intimidade e a suavidade de seus dedos. — Mostre-me como, Nica. Quase sem respirar, ele esperou, deixando-a acostumar-se aà sua maã o. Depois, em vez de guiar a maã o dele, ela jogou os quadris contra ele. — Assim? — Ele deslizou um dedo para dentro dela e sentiu-a molhada. Ela largou a maã o dele e jogou os braços em volta de seu pescoço, recolhendo bruscamente seus quadris para longe do toque dele. Cumprindo a promessa, ela naã o abriu os olhos. — Naã o tinha sido taã o maravilhoso assim. — Deixe-me tornar mais maravilhoso. Lenta e suavemente, com uma maã o em cada lado, ele levantou o linho, percorreu suas panturrilhas, seus joelhos, e finalmente correu as maã os sobre a curva branca de suas coxas, deleitando-se com a sensaçaã o de sua pele. O dedo dele encontrou-a outra vez. As pernas dela

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford abriram-se para ele. Molhada, intumescida, ela se enroscou nele, respirando no ritmo dos seus toques, gemendo, os braços em volta do pescoço dele, pois suas pernas naã o a sustentavam mais. Ele soá ouvia o gemido dela e a batida de seu coraçaã o. Soá queria levaá -la dali e nunca deixaá -la ir embora. E naã o mais pensava em quem era, ou onde estavam, ou o que tinha prometido fazer; soá no seu desejo. E no dela. Quando ela se afastou, ele naã o soube o que ocorrera. Aos poucos, viu o mundo de novo, onde estava, e o que quase tinha feito, feliz por naã o teê -la levado muito longe, cedo demais. E se perguntou em que momento o prazer de executar a tarefa a que tinha se proposto se tornou mais importante do que seu objetivo inicial. Ela cambaleou ateá o parapeito do altar, caiu contra ele e escorregou para o chaã o. Seus olhos abriam e fechavam, enquanto ela voltava, taã o lentamente quanto ele, do lugar secreto para onde tinha sido levada. — O espíárito. Como no paê ntano. Uma vela sombreava os olhos tristes da Virgem. Agora os olhos de Nica naã o se desviavam dele, como que esperando que chifres ou asas lhe brotassem, sem saber qual dos dois seria, ateá veê -los crescer. Ele sentou ao seu lado, encostado no biombo de madeira, e envolveu seu queixo com a maã o, tentando manter-se calmo. Ela acariciou-lhe o rosto. Ele desejou que sua barba naã o estivesse aá spera nos dedos dela. — Beije-me — pediu ela. Ele sentiu-se envergonhado de naã o ter feito nem isso. A líángua de Garren procurou sua boca. Ela a ofereceu, ateá que ele voltou a ficar atordoado. Os cabelos cor de mel, prendiam-se aos dedos dele, e, quando o beijo cessou, ele os puxou, esperando provocar um sorriso. Mas, quando o sorriso chegou, era triste. — Naã o foi isto que eu senti com Lorde Richard. O nome acertou-o como uma apunhalada e arremessou-o para o mundo real das promessas e traiçoã es. As maã os ainda emaranhadas nos cabelos de Nica, ele for çou-a a fitaá -lo, lembrando-se de Richard colocando as maã os nela, na porta da capela. — O que quer dizer? O que ele fez? — Ele tentou me beijar e... me tocar. — E voceê deixou? — O ciuá me aumentou a confusaã o de sua mente. — Naã o — disse ela. — Eu sabia o que queria. O ciuá me transformou-se em uma certa aversaã o a si mesmo. Podia ele se considerar um homem melhor do que Richard? — Naã o sou nenhum santo, Nica. — Ele a soltou, deixando-a falar sem a distraçaã o de seu toque. — Se naã o eá , entaã o o que eu sou? E Deus me salvou para fazer o queê ? Pensei que Ele tinha enviado voceê com uma resposta. — Ela se levantou, remexendo os quadris para desamassar a camisa. — Em vez disso, voceê me deu pergaminho e linho uá mido. Minha vida naã o pode ter os dois. Agora, preciso descobrir qual dos dois caminhos Deus quer que eu escolha. Queria poder oferecer-lhe a escolha de uma vida fora do convento. Queria ser tudo que ela merecia, em vez de um mercenaá rio miseraá vel, mentiroso e sem lar que arruinaria sua vida. Ela pegou o pergaminho e a vela. — Confissaã o requer peniteê ncia. Qual devo pagar? — Nenhuma. — Ele quase naã o podia aguü entar a dor nos olhos dela. — A peniteê ncia

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford deve ser minha. — E ele soube que, qualquer que fosse a peniteê ncia que pagasse por estragar a vida dela, naã o seria suficiente. — Eu acho — disse ela — que Deus encontraraá uma peniteê ncia para noá s dois. Enquanto Garren a observava sair da capela, percebeu que Deus jaá tinha estabelecido a sua peniteê ncia, e o preço seria muito, muito alto. Ele a perderia. Assim como perdera todos os outros a quem amara. Dominica fugiu da capela, correndo pelo claustro cheio de arcos como se pudesse esconder-se da vida como se escondia da morte quando criança. Tropeçando nas pernas fracas como cera derretida, sabia que Garren estava certo. Ele naã o era santo. Ela tampouco, como estava descobrindo. Dominica achava que estava acima das armadilhas dos prazeres mundanos. Força e sorte tinham sido suficientes para resistir a Lorde Richard apalpando sob a sua saia nas escadas escuras. Mas Dominica precisava mais do que isso para resistir a Garren. Ela precisava resistir a tudo que fazia dele um homem, amargo e gentil, que amava as pessoas mais que a Deus, e amava o hoje mais do que a vida apoá s a morte. Na noite anterior, ela tinha prometido a Deus abrir seu coraçaã o para o que esse homem poderia ensinar-lhe. Hoje, durante o dia, ele a levara a escrever. Esta noite, a pecar. A querer mais do que sua alma imortal. Dominica apoiou-se em uma coluna estreita, ansiando por ar. O cheiro do couro e da tinta atraíáram-na para uma porta aberta do scriptorium do mosteiro. Ela fechou a maã o sob a vela, forçando os ouvidos para o som dos monges acordando para os caê nticos matinais. Jaá seria ruim ela ser encontrada no scriptorium, pior ainda ser descuidada com uma vela. Mas a tentaçaã o era grande demais. Desenrolando seu pergaminho sobre uma mesa vazia, ela o limpou. Naã o era de uma qualidade merecedora de palavras para permanecerem pelos seá culos, mas era seu. Ela o prepararia como merecia. Depositou a vela na mesa com muito cuidado, ignorando a excitaçaã o ainda presente entre suas pernas e a culpa que contraíáa seu estoê mago. Aqui, ela expiaria seu pecado. Encontrou uma pedra-pomes e esfregou-a ateá o braço doer e o texto anterior virar uma leve sombra. Em seguida, cobriu sua maã o com giz e passou-a sobre a folha. Depois, usando um fio como orientaçaã o, riscou-a com linhas pretas. Finalmente, o pergaminho estava pronto para suas palavras. Ela mergulhou uma pena na tinta. Naã o escreveria nenhum registro desta noite tenebrosa de pecado e de duá vida. Soá do futuro. Traçou um "/" preto. Deus teria que falar ingleê s. Dominica sucumbiu aà pequena tentaçaã o de decorar seu "/" forte com sombras vermelhas antes de continuar. Cantarolava enquanto trabalhava, sem perceber a noite passar, nem os altos e baixos do som dos caê nticos matinais, nem a lua olhando por cima de seu ombro. E, quando uma onda de desejo varreu-a ao pressionar as pernas unidas, ignorou-a. Finalmente, admirou sua obra, / renuwe mi vowe. Estava escrito. Era real. Aquela era a liçaã o. Deus mandou a tentaçaã o. Ela resistiu e se penitenciaria. Contaria a Garren sua escolha amanhaã , e ele entenderia. Certamente Larina perdoaria sua uá nica transgressaã o. Ou duas. Apreciou a qualidade do trabalho e leu a primeira linha. Piscou muitas vezes, certa de que seus olhos cansados tinham lido errado. Ateá em latim, as palavras chocavam. Receba eu um oá sculo da tua boca, porque os teus amores saã o melhores do que o vinho. Ele introduziu-me na dispensa do vinho, ordenou em mim o amor. Confortai-me com

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford flores, fortalecei-me com frutos, porque desfaleço de amor. A sua maã o esquerda estaá debaixo da minha cabeça, e a sua direita abraça-me. Dominica largou a folha. Deus olhou laá de cima e colocou seus pensamentos em palavras. O calor da maã o de Garren voltou a aquecer seu seio e a envolver suas pernas. Voltou a olhar para a folha. Cântico de Salomão. Um dos livros do Antigo Testamento. As freiras nunca leram aquele. Dominica tampou o tinteiro com maã os treê mulas. Não me deixe cair em tentação, Senhor. Este eá o meu lugar, nesta paz silenciosa. Quando chegarmos ao santuaá rio dentro de alguns dias, Larina me daraá um sinal. Os dedos de seus peá s encolhiam-se nas pedras frias do chaã o do scriptorium do mosteiro de Tavistock.. Que penitência devo pagar? Parou aà porta, lembrando-se do scriptorium do convento, da alegria de aprender cada letra e formar palavras com elas. O que poderia ser peniteê ncia maior do que ser impedida de entrar nessa sala para sempre? O que poderia ser pior do que perder a vida que sempre quis? Ela estremeceu. Perder o desejo de viver aquela vida.

Capítulo Dezessete Na manha do dia seguinte, Dominica procurou por Garren nos aposentos dos hoá spedes, na casa de aquecimento, e ateá na capela, onde sua determinaçaã o vacilou como a vela da imagem da Virgem. Encontrou-o nos estaá bulos. A visaã o daqueles dedos rudes acariciando a crina de Roucoud trouxe uma leve onda de fraqueza. Nenhuma duá vida mais, relembrou-se, seá ria. Um bocejo vincou o rosto de Garren enquanto ele dobrava um cobertor cuidadosamente sobre o dorso do cavalo. Dominica sorriu, feliz por ele naã o ter dormido melhor do que ela. Um bocejo semelhante deixou-a de boca aberta justo quando ele a avistou. — Dormiu bem? — perguntou ele. Dominica engoliu seu bocejo com uma expressaã o seá ria. — Tanto quanto voceê — respondeu ela, duvidando que fosse verdade. Depois que voltou para o quarto, a tosse seca da Irmaã competiu com seu pensamento nele e a manteve acordada ateá o amanhecer. — Entaã o naã o dormiu nada. — Garren inclinou-se para levantar a sela. — Como estaá a Irmaã esta manhaã ? — Vai ser difíácil para ela montar em Roucoud. — Por isto alugamos uma carroça para levaá -la e um burro para puxar. — Obrigada. — Ela evitou maiores agradecimentos. Naã o queria pensar em Garren com carinho nesta manhaã . O que tinha de dizer jaá seria difíácil. — Quero falar com voceê a soá s. — Soá os animais poderaã o ouvir. — Virou-se para um burro de orelhas compridas na baia mais proá xima. — Bom dia, amigo — disse ele, afagando-lhe o nariz. — Estaá pronto para uma viagem? Onde puseram as suas reá deas? — A noite passada... — Dominica falava para as costas largas de Garren, enquanto ele examinava a fila arrumada de pregos cravados nas vigas. Ela criou coragem e falou. — Por favor, olhe para mim.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Quando ele virou, ela se arrependeu de ter pedido. Algum tipo de esperança acendia os olhos dele como a luz do sol brilhando atraveá s das folhas verdes. Deus estava tornando isto muito difíácil. Dominica despejou as palavras ensaiadas de um foê lego soá , antes que perdesse a coragem. — Com a ajuda de Deus, voceê me salvou do afogamento. Agradeço. Mas eu estava confusa porque Deus me salvou, mas naã o a minha escrita. Eu naã o sabia o que Ele queria para mim. Achei que tinha enviado voceê para me dar respostas. Foi por isso... — Ela fez uma pausa. — Por isso procurei voceê para me confessar. Uma sombra intensificou-se nos olhos de Garren, mas eles naã o se desviaram dos dela. O burro, ignorado, cutucou-lhe as costelas. Garren afagou seu nariz com uma das maã os, ainda a fitando. Ela falava mais raá pido agora, temendo naã o conseguir terminar a parte mais difíácil. — Fui uma tola em duvidar da resposta. Eu sempre soube. Meu lugar eá no convento. Deus me daraá um sinal. Naã o importa se voceê eá um santo ou um diabo, ou simplesmente um homem, jaá naã o poderaá me tentar mais. — Seu corpo vibrava diante daquele olhar e chamava-a de mentirosa. Ela elevou a voz para calaá -lo. — Eu naã o falharei. De rosto quente, ela lhe lançou um olhar severo. — EÉ errado ser uma mulher em vez de uma freira? — Para mim, eá . — Talvez eu seja a uá nica pessoa que realmente sabe quem voceê eá , e o que realmente quer. — Voceê naã o sabe o que eu quero. — E ela, sabia? Desobediente, Garren pegou a maã o dela e beijou cada noá de seus dedos, um por um. Depois, tentou excitaá -la passando a líángua na pele sensíável entre os dedos, ateá ela soltar um gemido. Queria sentir a alma dele fluir para dentro da sua para naã o ficar taã o soá . Mas naã o podia se permitir desejar essas coisas. — O que vai dizer quando tiver que se confessar a um padre de verdade? Ele sabia. Como se estivesse sentindo o calor aumentando pelo corpo dela. Garren sabia que ela se derretia ao seu toque. — Por que quer me destruir? — Quero salvaá -la de uma vida que naã o quer mais. — Mas eu quero! — Dominica puxou a maã o e examinou os dedos, com medo de que os laá bios de Garren tivessem manchado mais forte do que a tinta. — Que tentaçaã o pode existir nos caê nticos monoá tonos a um Deus ingrato? — Deus traz a calma, a paz. — Nada disso ela sentia agora, seu corpo contraíádo sob aquele olhar intenso e implacaá vel. — Um lugar no ceá u. — E mais uma coisa, a mais importante. — E um lugar para escrever. — Voceê jaá escreve. — EÉ mais do que isso. — O que mais, Nica? Conte-me. — Ele juntou as maã os dela, cobrindo-as gentilmente com as suas, grandes e quadradas, mas seus olhos desnudavam a alma dela de suas proteçoã es. — O que voceê quer? — Ter um lar meu de verdade, pertencer! — Tremendo, virou-se de costas, os braços em volta da cintura, tentando guardar a dor laá dentro. As laá grimas embaçaram seus olhos. Garren envolveu-a por detraá s, curvando seu corpo em torno dela. Ela apoiou a cabeça em seu peito. — Nica, existem outros lugares aleá m do convento de Readington. O mundo eá grande. — O que me importa isso? — Envolta nos braços de Garren e protegida, Dominica contestou o seu consolo e continuou numa confissaã o mais difíácil que a anterior. — Eu naã o

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford tenho dinheiro para viajar como a viuá va. Nem um marido para cuidar de mim, como Gillian. A uá nica coisa que tenho eá o dom da escrita. O uá nico lugar onde posso escrever eá no convento. E a uá nica forma de eu poder escrever eá me tornando freira. — Sua voz se elevava a cada palavra. — O uá nico lar que eu tenho eá dentro daquelas paredes. Sabe o que eá naã o ter um lar, naã o pertencer a lugar algum, nem a ningueá m? Ainda abraçando-a, Garren naã o falou nem se mexeu. Ela sentiu o rosto dele encostar na sua cabeça. — Sim — respondeu, sua respiraçaã o quente contra o couro cabeludo dela. — Eu sei. — Os braços que a aninhavam enrijeceram e caíáram. Dominica o ouviu murmurar alguma coisa para o burro ao colocar as reá deas nele. Quando se virou, era como se ele tivesse uma viseira no rosto que tirava a luz de seus olhos. Claro que ele sabe. Garren de lugar nenhum. Ao conduzir o burro para fora da estrebaria, Garren parou na frente dela, seus olhos tristes. — Naã o procure suas respostas em mim, ou no seu Deus, ou qualquer outro, Nica. Procure-as dentro de voceê . — Ele naã o olhou para traá s. Como poderia encontrar respostas dentro de si mesma? A uá nica certeza vinha daquela voz tranquü ila e suave que era Deus. Ao observaá -lo puxar o burro para a carroça, sentiu-se como se tivesse perdido um lar que naã o sabia que tinha. Garren caminhou sozinho no fim da fila, as reá deas frouxas de Roucoud na maã o, e a tosse da Irmaã a martelar seus ouvidos. O chaá de pulmonaá ria naã o fizera nenhum efeito. Ao lado da carroça de duas rodas em formato de atauá de, Dominica e o meá dico conversavam baixinho. Apesar de tudo, Garren naã o conseguia tirar os olhos de Dominica. Ela desabrochara com seu toque, os seios ficaram mais cheios, e os olhos azuis mais escuros sob as sobrancelhas arqueadas. Ele a tornara mais madura, mais triste, mais saá bia. E quando ele terminasse o que precisava ser feito, ela estaria mais triste ainda. E o faria de qualquer jeito, pois naã o suportava dever mais nada aleá m do que jaá devia a William. A vida dela vai continuar mais ou menos como antes, dissera-lhe a Priora. Uma mentira. Ah, ainda a deixariam fazer o serviço pesado do convento, mas ela naã o moraria mais dentro de seus muros, cercada de um bando de irmaã s amaá veis. Eles a casariam com algum homem rude do vilarejo, se eá que se preocupariam em casaá -la. Dominica naã o tinha dote, nenhuma aliança familiar para levar para um casamento. Nada, soá o seu bom nome. Ele a privaria ateá disso. Sabe o que é não ter um lar? Sim, sabia. Bem demais. E a dor que viu nela quase o impediu. Quase, mas naã o exatamente. Dominica sobreviveraá , tambeá m, um dia de cada vez, pois quando ele tiver feito o pior, soá lhe restaraá o hoje. O som de patas de cavalo interrompeu seus pensamentos. Vinha de traá s. — Ladroã es? — perguntou Jackin, ficando na frente da esposa, sem soltar-lhe a maã o. — Provavelmente, naã o. EÉ soá um cavalo. — E estava cambaleando. — Eu vou ver. — Simon empunhou a espada. — Naã o — respondeu Garren, puxando Roucoud. — Trate de esconder todo mundo. Eu vou ver quem eá . Montou Roucoud e virou o cavalo para subir o caminho que tinham acabado de fazer. Olhando para traá s, viu Simon e Dominica lutando com dificuldade com a carroça oscilante, grande demais para ser escondida. Gravou uma uá ltima imagem dela, querendo dizer que se

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford escondesse, se defendesse, que ele naã o era Salvador de ningueá m. Nem mesmo dele proá prio. Ao chegar no alto da ladeira, Garren avistou o viajante, magro, melancoá lico e ofegante, como o cavalo exausto que montava. Garren parou Roucoud e desembainhou a espada, apoiando-a sobre a sela. O desconhecido diminuiu a marcha do cavalo. Por um instante, parecia procurar a espada, depois cumprimentou com um aceno da maã o. — Garren, eá voceê ? Sou eu, Lorde Richard. — Garren foi acometido de uma fuá ria visceral, e a maã o da espada chegou a pulsar. Naã o respondeu ao cumprimento. Richard baixou a maã o. Não foi isto que senti com Lorde Richard. Se liberasse a raiva que tomava conta de si, estraçalharia a boca, os dedos, a líángua, qualquer parte daquele homem que pudesse ter maculado Dominica. Mas conteve-a. Certamente, Richard naã o tinha cavalgado ateá taã o longe soá para satisfazer seu desejo. Podia muito bem fazeê -lo no conforto do seu proá prio quarto. A uma distaê ncia que dava para conversar, o cavalo de Richard diminuiu o passo. OÀ manto pintado com uma cruz vermelho-sangue salpicada de chuva naã o lhe caíáa bem. Por que veio? Teraá ele trazido notíácias que confirmariam a inutilidade desta viagem? A promessa de Garren pesava mais do que a mensagem em seu saco de viagem. Teve medo de naã o dar mais tempo. — Onde estaã o os outros? — perguntou Richard. — Mandei-os na frente para o caso de voceê ser um ladraã o. — EÉ voceê quem precisa de dinheiro, pelo que me recordo — retrucou Richard com uma voz de desprezo. Ele deve saber. — Como vai William? — Vivo. Quando saíá. Uma sensaçaã o de alíávio inundou suas veias. Talvez, a feá no poder das plumas roubadas o tenha mantido preso aà vida, pensou Garren, percebendo a esperança secreta de que Deus teria piedade de um peregrino descrente, e pouparia a vida de William. — Vivo, e voceê lamenta isso? As narinas de Richard dilataram-se de indignaçaã o. — Como pode dizer isso? Vim orar por sua recuperaçaã o. Garren bufou enfurecido. Richard devia ter menos feá em Deus do que ele proá prio. Soá estava querendo usar os que tinham. — Deveria ter vindo rezar por sua proá pria alma. — Um mercenaá rio naã o entenderia. Se eu puder fazer algo para salvar a vida do meu irmaã o, farei. Garren duvidava. — Estranho ter chegado a essa conclusaã o soá depois que noá s partimos. — Por que teraá vindo? O que teraá mudado em seis dias? Sem conseguir uma resposta, Garren olhou na direçaã o em que os outros estavam escondidos. Naã o podia negar a um peregrino o direito de juntar-se a eles. — Venha. Estaã o logo depois da ladeira. Os cavalos marcharam no mesmo ritmo. Simon estava sozinho com a espada desembainhada diante da carroça meio tombada. Uma roda tinha enterrado na lama do lado da estrada. Dentro dela, a Irmaã , de olhos fechados, abraçava o cachorro e orava. — Onde estaã o todos? — perguntou Richard. — Escondidos. — Estaá tudo bem. Vim juntar-me a voceê s. A um sinal de Garren, Simon baixou a espada. A Irmaã abriu os olhos e levantou a

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford cabeça. Inocente, liberto, pulou para o solo, a latir. A Irmaã arrastou-se ateá a borda da carroça, onde Simon a levantou com mais facilidade do que tinha levantado a espada. — Ah, Lorde Richard — disse ela. — Temíáamos que fosse um bando de ladroã es. Inocente pulava, tentando morder o peá de Richard. Pule soá um pouco mais alto, garoto, pensou Garren. Estaá quase conseguindo. — Naã o passo de um humilde peregrino como voceê s. — A voz estridente de Richard competia com o latido de Inocente. Ele olhou furioso para o caã o. — Enquanto rezava por meu irmaã o, tive a intuiçaã o de que deveria juntar minha voz aà s preces de voceê s, a Deus, e aà Aben çoada Larina. Sentindo repugnaê ncia, Garren observou o grupo aproximar-se para cumprimentaá -lo, em uma demonstraçaã o de respeito aos Readington que ele naã o merecia. Inocente sabia julgar melhor seu caraá ter, pensou. — Onde estaá a garota? — perguntou Richard. — O que fez com ela? A culpa mordeu Garren. — Eu? Nada. O que voceê fez a ela? — De sobrancelha empinada, Richard fingia inoceê ncia. — Garren, estou preocupado com todos que estaã o sob sua proteçaã o. Ou seraá que William soá pagou a voceê o necessaá rio para chegar laá com a sua carta? A carta de William. Aquela que Richard tentara tirar de sua maã o. O que ela dizia? Pela pressa da viagem, Richard jaá sabia. De algum modo, descobriu depois que eles partiram. E, pelo brilho em seus olhos, Garren achou que a resposta era uma questaã o de vida ou morte. Richard naã o se lembrava o quanto a garota era exuberante, ateá que a viu entre os peregrinos que se inclinavam para cumprimentaá -lo. Laá bios finos, pensou, examinando-a, mas a opuleê ncia dos seios enrijeceu seu membro. Mudou de posiçaã o na sela, curioso para saber se Garren jaá a tinha possuíádo. — Dominica. — Saudaçoã es, Lorde Richard. Como estaá o seu irmaã o? — Seu irmaã o, seu irmaã o. Seraá que nenhum deles se preocupa com meus ossos doloridos depois de tantos dias a cavalgar sentado em uma sela? — Ainda estava vivo quando parti. — Richard prendeu o sorriso. Estava difíácil soar triste, pois precisava falar mais alto que o latido do caã o. — Claro que jaá estou na estrada haá muitos dias. — Com Deus, tudo eá possíável. Quando Dominica naã o estava sorrindo, como agora, seu rosto ficava taã o seá rio quanto o do corvo ao seu lado. Qual eá mesmo o nome da velha freira? Aquela atitude de santa o irrita. — Sim, claro. Deus faz milagres — concordou ele. — Rezamos sem parar pela sauá de dele — disse a velha freira. Irmaã Marian, este eá seu nome. — E pela minha tambeá m, claro — retrucou ele. — Oramos por todas as criaturas de Deus, Lorde Richard. — O tom afaá vel do corvo com tosse mostrou-lhe que ele naã o era mais importante do que o vira-lata que beliscava seus calcanhares, sem ser detido. Aleá m de ler e escrever, a freira ensinou isso aà ordinaá ria. Sua arrogaê ncia naã o combina com a sua posiçaã o. Como oá rfaã , deveria ser grata por lorde dirigir-lhe a palavra. — Estaá na hora da refeiçaã o do meio do dia — disse Garren. — Simon, Ralf, Jackin, vamos levantar aquela carroça e colocaá -la na estrada. Richard apeou do cavalo e aproveitou para golpear a mandíábula do cachorro com a bota. O barulho da pancada deixou-o satisfeito. O caã o ganiu, e a garota deu um berro, caindo de joelhos para acariciaá -lo.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Talvez agora ela entenda que ele gosta de ajustar as contas. Dominica pegou o animal no colo, aninhando-o como a um bebeê , enquanto ele lambia seu rosto. Repugnante. Poderia exigir que colocasse o cachorro no chaã o, mas lembrou que estaria mais seguro se ela mantivesse a fera sob controle. — Fale da jornada, Dominica. Ela o agrediu com aqueles olhos azuis altivos como se ele naã o merecesse sua atençaã o. O mesmo olhar que seu pai lhe dirigira um dia. — Preciso ajudar a preparar o almoço, Milorde. — Naã o me obrigue a mandar em voceê , Dominica. Que coisas novas aprendeu na peregrinaçaã o? — Ele procurava algum sinal de culpa que pudesse indicar sua violaçaã o. — Ah, o mundo de Deus eá amplo e maravilhoso, Milorde. E repleto de coisas. — Que coisas? Com o caã o nos braços, Dominica esquivou-se. — Fez o mesmo caminho que noá s, Milorde. O sol nos aqueceu. A brisa refrescou nosso rosto. Os botoã es-de-ouro nos cobriram ateá a cintura. Caminhamos quase dez quiloê metros e, se o senhor naã o nos atrasar demais, estaremos em Liskeard a tempo de rezar aà s veá speras. Sua voz esbanjava desprezo. Ele transformaria aquilo em respeito dentro em breve. — E voceê tem escrito durante a viagem, Dominica? — Nada interessante, Milorde. — As palavras saã o maá gicas, naã o eá verdade, Dominica? Elas podem fazer coisas aparecerem e desaparecerem. Criou algumas palavras interessantes, naã o foi? — Copio a Palavra de Deus, Lorde Richard. — Ah, naã o soá isso. Voceê copiou as palavras do meu irmaã o, tambeá m. As palavras que o mercenaá rio leva. O colorido de camponesa que Dominica tinha adquirido durante a viagem desbotou em um instante. — O que ele lhe contou? — Primeiro, ele a provocaria. — Ou talvez o meu irmaã o nunca tenha dito essas palavras, e voceê as tenha escrito, simplesmente. Isso seria um pecado, naã o seria? Mentir. — Eu naã o... naã o estou entendendo. Richard sorriu, gratificado. Agora que via medo nos olhos dela, era mais faá cil enfrentaá los. A vagabunda era esperta o bastante para reconhecer uma ameaça. — Ah, eu acho que estaá , sim. — Richard envolveu-a com o braço direito e deixou a maã o balançar proá ximo aos seios, com um olho nos dentes do caã o. — Mas pode ajudar-me. Esqueça o que sabe, Dominica. Antes que percebesse seu movimento, Richard ficou sem ar ao receber uma cotovelada no estoê mago. — Ah, Lorde Richard, mesmo que eu esqueça, Deus se lembra. Deo gratias. — Dominica fugiu precipitada, e o caã o acompanhou-a. — Richard — gritou Garren. — Venha pegar um pouco de comida. Precisamos seguir viagem. Comida. A ordinaá ria tinha golpeado seu estoê mago. Mais uma conta para acertar quando a tivesse na cama. Deus falhou comigo desta vez, pensou Dominica, ao observar Lorde Richard de uma distaê ncia segura. Tinha conseguido escapar, mas nem para taã o longe, nem taã o raá pido. Soá quando chegassem ao santuaá rio Garren e ela estariam salvos. Lorde Richard os acompanhava na caminhada.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Agradeceu ao Pai Celeste por naã o ter contado nada a Garren sobre a mensagem. Fazia parte da sabedoria do Conde, e ficou feliz por manter seu segredo. Era uma forma de retribuir um pouco do muito que o convento devia aos Readington, mas havia algo mais profundo que isso. Algo que naã o sentia por Lorde Richard. Enquanto Garren carregasse a mensagem, estaria em perigo. Santo ou diabo, ela naã o poderia permitir que ele sofresse nenhum mal. Soá a promessa a Lorde William jaá era motivo suficiente para protegeê -lo, independentemente de outros nos quais naã o queria pensar. — Hora de partirmos — avisou Garren alto. — Cavalgue comigo. Meu cavalo cansado pode levar dois. Garren pegou as reá deas e levou o cavalo para longe. — Bem-vindo aà peregrinaçaã o, Lorde Richard. O oá dio que dirigiu para Garren fortaleceu a decisaã o de Dominica. Encontraria uma maneira de roubar a mensagem esta noite. Depois, contaria a Lorde Richard que a tinha consigo e que Garren naã o sabia nada a respeito. Garren estaria seguro, e ela seria a uá nica a ficar em perigo. Certamente, Deus a protegeria. Dominica deu uma olhada para Lorde Richard que, contrariado, caminhava sozinho aà frente dos outros. Ou ela acabaria mais proá xima da morte do que Lorde William.

Capítulo Dezoito De costas para uma fogueira quase apagada, Dominica observava a lua minguante. Roubar a mensagem seria impossíável em uma hospedaria cheia. Um coro de sons diversos provocados pelos viajantes cansados vagava pelo ar da noite. Um som novo destoava da harmonia que jaá era familiar. Um som que provocava calafrios. A respiraçaã o cavernosa de Lorde Richard. Garren naã o fazia nenhum barulho. Em seu catre, aà sombra das aá rvores no fim do acampamento, ele dormia em total sileê ncio. Espreguiçou-se uma vez, e Dominica naã o soube distinguir se estava dormindo ou acordado, ateá que o mais velho dos irmaã os Miller se aproximou para a troca da guarda. Os roncos de Miller uniram-se ao coro antes que Garren desaparecesse na floresta em sua primeira ronda do acampamento. Ela naã o teria muito tempo. Quando se poê s de peá , Inocente agitou a orelha. — Shh. Fique. — Dominica balançava o dedo indicando não, enquanto, ansiosa de preocupaçaã o, ficava atenta a qualquer som de passos entre as aá rvores. A Irmaã levantou a cabeça. — O que eá , Nica? O que haá de errado? —Nada. Soá preciso ir me aliviar. Volte a dormir. Dando uma raá pida olhada para as figuras adormecidas, Dominica correu ateá a cama de Garren, e recuou ao ouvir o estalo de um galho atraá s de si. Prendeu a respiraçaã o, mas o coro dos adormecidos continuou. Ajoelhou-se e pegou o saco de viagem, torcendo para que ele naã o, tivesse levado a mensagem consigo esta noite. Sem se descuidar de vigiar a floresta onde ele estava, tateou dentro do saco. A tuá nica envolvia um pergaminho dobrado. Ela o tirou do saco, deixou cair tudo, levantou e se virou, pronta para correr. Deparou-se com uma barreira alta, larga, com braços fortes, maã os suaves, e uma voz baixa e rouca. — Entaã o, veio para a minha cama, afinal?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Com Dominica novamente em seus braços, o primeiro pensamento de Garren foi como seria teê -la entre suas pernas. Ele a aproximou mais, inalou o cheiro de grama uá mida e violetas, e sentiu a respiraçaã o raá pida e forte junto ao seu corpo. Levou um momento ateá perceber que ela segurava algo contra seu peito. Afastou o peito e viu um pergaminho enrolado, furado por um fio e com um lacre vermelho rachado. A danadinha tinha tirado a mensagem de seu saco de viagem. Sentia um misto de desapontamento e surpresa. — O que estaá fazendo com isto? — perguntou ele. Dominica deu uma risadinha que jogou seus quadris contra a virilha latejante de Garren. Ele prendeu um gemido. — Deixe isto comigo — sussurrou ela. — Voceê estaraá mais protegido. — De quem? Uma pergunta estuá pida. Olharam para a figura de Richard, que dormia. Sem soltaá -la, ele a levou para o meio das aá rvores. Uma rajada de vento fez as folhas do carvalho farfalharem, soprando bolotas que deslizavam pelo tronco ateá o chaã o. Por que Dominica queria uma mensagem que tinha escrito? O que ela dizia? Na noite anterior, ele permitira que ela guardasse o segredo. A chegada de Richard mudava tudo. — Nica — falou Garren, suavizando a voz —, sei que prometeu a William, mas agora Richard estaá aqui. Precisa me contar o que escreveu. — Ele pediu para naã o contar a ningueá m. Garren precisou lutar contra a admiraçaã o pela lealdade de Dominica a William, taã o forte quanto a sua. Pousou a maã o no ombro dela. — William confiou em mim para levar a mensagem. Sabe que eu nunca faria algum mal a ele. Ou a voceê , pensou ele, afagando sua garganta com o polegar, sem falar alto, temendo que fosse verdade. — Voceê estaá correndo perigo. Quero protegeê -la. — Deus me protegeraá . — Deus naã o protege ningueá m. —Como pode dizer isso? — Garren naã o precisava ver os olhos sombrios de Dominica para saber que ela o acusava de falta de feá . — Deus salvou Lorde William. Garren segurou-a pelos braços, frustrado. — Dominica, pare com isso. Ou voceê me conta o que William escreveu para a bendita santa, ou eu mesmo vou quebrar o lacre. — Naã o, naã o pode fazer isso. Ele naã o escreveu para Larina. Foi para o Monge que cuida do santuaá rio. — E voceê se lembra das palavras? — Sim. — Entaã o conte-me, para que eu naã o precise ler. — No sileê ncio, o sangue de Dominica pulsava nas maã os de Garren. Soltou, entaã o, de seu braço, os dedos da maã o esquerda dele. Calmo, ele a deixou colar a maã o direita na sua esquerda, palma com palma, apontando para o ceá u em oraçaã o. E, por um momento, Garren sentiu-se novamente em uma capela aà luz de velas; quis ouvir sua confissaã o, quis pousar os laá bios nos dela, entreabertos, e arrancar dela a verdade com a líángua. Dominica fechou os olhos, e as palavras rolaram de sua memoá ria num tom monoá tono como na missa. — "Quando isto for entregue, eu certamente jaá estarei morto pelas maã os de meu

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford irmaã o." "Naã o. Morto, naã o..." — Mas Richard disse que ele ainda estaá vivo! — "... morto pelas maã os de meu irmaã o, apesar dos esforços milagrosos de meu amigo, Garren, que, com a ajuda de Deus, me trouxe dos campos da França de volta para casa, quando todos os outros me abandonaram aà morte. Poreá m, na minha proá pria cama, eu pioro. Meu irmaã o me mata aos poucos. Ele envenena minha comida e pensa que eu naã o sei. Escrevo isto para que Deus e Santa Larina possam ser meus testemunhos de sua traiçaã o." Veneno. É a arma de um covarde que destroá i William por dentro e irrompe sua pele em pontos brancos e verrugas pretas. Agora, pensou Garren, sei o tipo de alquimia que o italiano de Richard pratica. Preguiçoso ou covarde demais para trilhar seu caminho no mundo como segundo filho, Richard, como um Caim invejoso, preferiu assassinar o irmaã o. — Eu deveria teê -lo deixado morrer em batalha — disse Garren. A vida presenteada a William transformou-se em maldiçaã o para ambos. Mas William sabia que estava sendo envenenado. Uma raiva desleal dominou-o. — Se ele sabia, por que deixou isso acontecer? — Ele estava fraco e confuso. Talvez, alguns alimentos estivessem contaminados, e outros, naã o; ou ele tentasse manter a força; ou o tenham forçado a comer. Acreditou que soá lhe restava pedir ajuda a Deus. — Por que naã o me pediu? Por que não vi? — A culpa bateu fundo em seu coraçaã o. Richard assassinou William diante de seus olhos, e ele estava cego. — Como poderia pedir a voceê para agir sem prova? — perguntou Dominica. — A palavra de William eá a prova de que necessito. — Como poderia reparar isso? Deveria voltar para Readington agora? Mas sequer sabia se William estava vivo ou morto. Dera sua palavra que entregaria a mensagem que exporia Richard. Este era o plano de William. Mas alguma coisa saiu errada. Muito errada. E se a Igreja naã o o punisse? — Farei Richard pagar por isso. — Foi exatamente por isso que William naã o contou a voceê . Ouça. Haá mais. Diz respeito a voceê . — Ela apertou as maã os, pigarreou, fechou os olhos e recitou outra vez. — "Peço aà Igreja que puna Richard por seu pecado de assassinato. Tambeá m peço ao Rei que deê meu castelo, minhas terras e tudo que seria do meu irmaã o com a minha morte ao meu amigo Garren, que foi mais do que um irmaã o para mim." As pernas de Garren bambearam. Um lar. Terras inglesas de um verde taã o assustador que doá i os olhos. Tudo pronto para morar. Um lugar para viver, envelhecer e morrer. Mas o preço, a vida de William, era alto demais. — Eu nunca pedi. Naã o iria querer isso dessa forma. — Garren tentou ver os olhos de Dominica no escuro, precisava que ela acreditasse nele. — Aleá m do mais — acrescentou —, o Rei nunca concordaria. Mas quem pode saber o que um Rei faria? Por que o Rei tinha permitido que a casa de Garren passasse do controle Real para o da Igreja? — Nada disso importa, naã o veê ? Se matar Richard, todos diraã o que o fez para receber Readington, e naã o para vingar William. Devemos deixar que Deus puna Richard. — O mesmo Deus que o deixou matar? — Deus deixou Caim viver. Garren naã o seria taã o generoso com Richard. Dominica olhou-o bem nos olhos. — Garren, se Richard sabe o que a mensagem conteá m, veio para mataá -lo. As palavras de Dominica dissiparam a raiva e a tristeza que ele sentia, e o fizeram enxergar a realidade: era Nica que estava em perigo. — E a voceê tambeá m. — Ele apertou-a em um abraço. — Naã o vou deixar, sabe disso. — Mas naã o veê ? Aleá m de matar noá s dois, ele precisa destruir a mensagem. Como acredita que estaá com voceê , enquanto naã o a tiver nas maã os, voceê estaá seguro.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren tirou uma folha do seu cabelo e acariciou sua cabeça. Dominica aninhou-se em seu peito, com o pergaminho na maã o. Era um plano maluco. Richard iria querer ambos mortos no final. — E quanto a voceê ? — Deus me protegeraá — respondeu ela. Suas palavras naã o eram mais desafiadoras, e Garren se perguntou se a feá que sempre a acompanhara estaria taã o abalada quanto a voz. — Entaã o acha que Deus a protegeraá , mas que voceê precisa me proteger. EÉ assim que a sua feá funciona? — perguntou ele, quase rindo. Ningueá m se preocupava em protegeê -lo haá dez anos. Escapara de flechas e golpes de espada nos campos de batalha, sem nunca temer por sua proá pria vida, somente pela de William. Seria isso que Nica sentia? E ele sentia o mesmo por ela? — Deus protegeraá noá s dois — insistiu ela — mas, aà s vezes, Ele precisa de um empurraã ozinho. — Estaá bem — disse ele, deixando-a ir, ainda que relutante. Esta noite nenhuma discussaã o levaria a nada. — Leve-a. Vou pensar em alguma coisa. Escapulindo dos braços de Garren, Dominica suspirou, mas ele naã o conseguiu distinguir se foi de alíávio ou de pesar. — Nica, vou dar a Deus uma grande ajuda — disse ele, ao veê -la guardar a mensagem dobrada nos seios e sair correndo por entre as aá rvores. Dominica estava com a mensagem, mas Richard naã o poderia saber disso. Contaria a Richard que William chamou ao castelo um escriba desconhecido. Isto afastaria a atençaã o de Richard em Nica. Mas, por mais que odiasse admiti-lo, eles precisariam, mesmo, de uma ajudazinha de Deus. Bem depois do amanhecer do dia, Garren encontrou Nica curvada sobre a Irmaã , com os braços em volta dos ombros fraá geis e treê mulos. Ajoelhou-se e cocou distraíádo o ponto sensíável atraá s da orelha inexistente de Inocente. O rabo curto e reto batia feliz na sua perna. — Como estaá esta manhaã , Irmaã Marian? — Garren sabia que naã o gostaria da resposta. — Ela estaá cansada — respondeu Nica. — Naã o descansou bem. — Estarei bem — disse a Irmaã , abatida. — Talvez um dia de repouso... — disse Nica, com os olhos implorando por sua ajuda. Todos os seus medos estavam reunidos naquele olhar. Perder mais um dia para William. Arriscar mais um dia com Richard. Temer que o descanso naã o fosse suficiente. Dominica deve ter esquecido completamente como foi o outro dia de descanso em Tavistock. — O Castelo de Restormel fica proá ximo, ao norte. — Garren estivera laá com William. — Acho que podemos, chegar laá antes do fim do dia. — Um dos castelos do Príáncipe? Noá s seríáamos bem recebidos? — O Príáncipe tem mais castelos do que pode contar. Ele naã o estaraá laá , mas o administrador lembraraá de mim. — Garren virou-se para a Irmaã . — Vamos acolchoar a carroça com mais cobertores. — Agradeço — disse ela. — Naã o quero atrasar os outros. — Seus olhos encontraram os de Garren. Como um soldado no campo, ela sabe que sua hora chegou. Olhou para Nica, reunindo os cobertores para acolchoar melhor a carroça. A Irmaã fez um sinal para ele naã o falar nada. E não quer que a garota saiba. Garren mentalizou um soco para Deus. Esta, também, não. É uma das suas.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Vou falar com os outros — disse ele. — Tenho certeza de que ficaraã o felizes de compartilhar da hospitalidade do Príáncipe. Ningueá m protestou. Murmuraram alguma coisa, fizeram o sinal-da-cruz e, com as maã os unidas, lamentaram, no fundo felizes por naã o serem eles. — Mal posso andar esta manhaã . — Richard bocejou em cima de Garren. Como dois irmaã os podiam ser taã o diferentes? William era cordial, louro, guerreiro e erudito; Richard era superficial, moreno e egoíásta. — Naã o posso dormir mais uma noite no chaã o. — Entaã o vai gostar do meu plano. Esta noite, dormiremos em Restormel. A Irmaã necessita de repouso. — Tambeá m vou precisar de um dia de repouso, depois de ouvi-la tossir a noite inteira. Voceê carrega aquela freira velha como se fosse a rainha, e eu nem sequer posso montar o meu proá prio cavalo! — Sua noite mal dormida deve ter apagado as suas aulas de cavalheirismo. As narinas finas de Richard soltaram fumaça, e ele vestiu a maá scara de piedade, cobrindo o peito com a maã o estirada para se desculpar. — Desculpe-me. EÉ a minha preocupaçaã o com o meu irmaã o. Ainda estaá com a mensagem que ele lhe deu? Mostrou as garras muito rápido, pensou Garren. — Claro. Ainda estaá lacrada, como ele me entregou. — A fronte de Richard mostrou um leve sinal de alíávio. Talvez tenha conseguido convencer Richard de que naã o sabe nada sobre o que a mensagem diz. — Ele deu a voceê porque eu naã o vinha. — Richard estendeu a maã o. — Agora que estou aqui, cuidarei para que chegue ao destino. Esperto. Parece que Nica estava certa. Precisa terá prova nas mãos antes de nos matar. — Ah, naã o seraá necessaá rio. Dei a ele minha palavra que ningueá m aleá m do Monge a veria. — Ah, quando ele disse ningueá m, naã o se referia a mim. Seu desejo eá que eu a leve. Ele me falou. — Os olhos de Richard desviaram-se, incapazes de enfrentar os de Garren na mentira, mas seu sorriso permaneceu. — Quando rezaá vamos. Logo antes da minha partida. — Estou certo de que eá verdade — disse Garren, sabendo que naã o era — mas dei minha palavra. Fiz um juramento. William fez tanto segredo, chegou a chamar um escriba de White Wood para escreveê -la. — Dominica foi a uá nica escriba que vi. Garren naã o tirou os olhos dos de Richard. Um mentiroso obstinado como ele com toda certeza saberia identificar outro mentiroso. — Soá sei o que ele me contou. Deve ser alguma peniteê ncia secreta. — Garren forçou-se a um tapinha amigaá vel nas costas de Richard. — Soá podemos esperar que a Santa responda todas as nossas preces, as de Wíálliam, as suas e as minhas para ele. — E de Dominica. — Richard sorriu. Os muá sculos de Garren retesaram-se. — De Dominica? — De Dominica — respondeu Richard de pronto. — Para ser aceita na ordem. Era um terreno incerto como o lodo escorregadio do paê ntano. Como Richard soube? E o que mais ele sabia? Garren cruzou os braços outra vez, querendo limpar a maã o que encostou nas costas de Richard. — Ela tem uma feá que pode mover montanhas. — Mas talvez se adapte melhor a outras vocaçoã es. A garota não foi feita para o véu, dissera a Priora. E incríável o fato de Richard concordar. Garren pigarreou, temendo parecer ansioso demais.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — O que quer dizer? — Naã o se pode dizer que nasceu de forma digna. Sem duá vida, eá filha de alguma prostituta que naã o tinha um lugar melhor para largar a filha, Garren reprimiu o impulso de defendeê -la. Se Richard soubesse que ele se importava com ela, suas razoã es para defendeê -la seriam suspeitas. Fingiu indiferença, e demonstrou uma leve curiosidade. — Que vocaçaã o poderia ajustar-se a ela? — Poderaá ser uma excelente companheira na cama para algum homem. Naã o concorda? Seu corpo concordava, mas a insinuaçaã o de Richard fez seu sangue pulsar de oá dio. Seraá que ele ousaria possuíá-la primeiro, e depois mataá -la? — Eu naã o sei. EÉ um pouco alta. — Ah? Achei que tinha visto voceê s dois entrarem na mata juntos ontem aà noite. — Deve estar enganado. Aleá m do mais, por que eu quereria ir para a cama com algueá m que ama a Deus mais que a mim? — Ela ainda naã o eá uma freira, sabe disso.— Os olhos castanhos de Richard deixavam transparecer um ar malicioso. — E naã o acredito que venha a ser algum dia. — E, de repente, Garren deu-se conta do que aconteceria a Dominica. Depois. Seu oá dio por Richard e pela Priora faiscou como um relaê mpago. Depois, ele caiu em si. Foi ele quem concordou em arruinar Dominica por trinta moedas de prata. Antes de conheceê -la. Antes de conhecer seus sonhos. Seria o instrumento para destruíá-los. Naã o agiria em nome de Deus, ou mesmo do diabo, mas de uma aliança entre Richard e a Priora. Richard esperava, sorrindo. O oá dio ardente transformou-se em fuá ria gelada. Mais uma razaã o para Richard morrer. Garren deixou sua culpa de lado para enfrentaá -la mais tarde. Neste momento, o jogo tinha ficado perigoso. Se Richard esperava que ele fizesse mal a Dominica, precisava enganaá -lo e fingir que o faria, ou o proá prio Richard poderia violentaá -la. Aliaá s, isso ele poderia fazer de qualquer maneira. Garren soá naã o sabia o que Richard queria mais: o corpo, ou a vida de Dominica; mas cuidaria para que ele naã o tivesse nenhum dos dois. — Naã o, ela ainda naã o eá uma freira. — Garren desviou, os olhos para ela, como que pensando na avaliaçaã o de Richard. — Talvez voceê tenha razaã o. E tem cabelos lindos, naã o eá ? — Algum homem vai possuíá-la, Garren. Guarde o que estou dizendo. Suas palavras eram uma ameaça.

Capítulo Dezenove O Castelo de Restormel ficava acima do fosso como uma coroa enferrujada, cercado por um parque repleto de cervos. Preocupada em ouvir a respiraçaã o da Irmaã acima do chocalhar da carroça, Dominica quase naã o reparou. Logo que cruzaram a ponte levadiça, ela observou Garren tirar a Irmaã da carroça com tanta facilidade como se fossem as plumas de Larina. Com administrador do castelo e o meá dico, ele atravessou o paá tio. Os dedos esqueleá ticos de Lorde Richard seguraram o pulso de Dominica, antes que ela pudesse segui-los. Enquanto tentava livrar-se daquela maã o, ela viu Garren entrar por uma porta em arco com a Irmaã nos braços. — Naã o se preocupe, Dominica. Se a Irmaã morrer em peregrinaçaã o, iraá direto para o ceá u. — Estou certa, Lorde Richard — disse ela, levantando a voz acima do rosnado de Inocente —, de que a Irmaã iraá direto para o ceá u, seja qual for o momento que Deus escolha para chamaá -la. Dominica conseguiu se soltar, agarrou seu saco de viagem e abriu caminho entre os

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford peregrinos no portaã o de entrada, e seguiu em direçaã o ao quarto para onde Garren tinha levado a Irmaã . Gillian jogou para ela uma manta cinzenta. — Leve-a. Para o caso de ela precisar de mais uma. — Obrigada por sua bondade. Tenho certeza que de manhaã ela estaraá bem. Sinto atrasar a sua viagem. A viuá va abraçou Dominica contra seus seios amplos. — A Abençoada Larina pode esperar um dia. Vaá , ela precisa de voceê . Com Inocente aos seus peá s, Dominica atravessou o paá tio, ignorando os murmuá rios por onde passava. Talvez sussurrassem o que somente o arrogante Lorde Richard pode dizer. Quando chegou, o meá dico e o administrador saíáram do quarto. Garren e a Irmaã naã o a viram. De olhos cerrados, a Irmaã estava deitada em uma cama estreita, taã o pequenina que soá o haá bito preto lhe dava substaê ncia. Com as costas largas viradas para a porta, Garren, desajeitado, enfiou mais um travesseiro debaixo da cabeça da Irmaã coberta pela touca. Seu cuidado com a Irmaã sensibilizou o coraçaã o de Dominica. Irmaã Marian encostou a maã o paá lida no braço direito forte de Garren. A voz que Dominica conhecia melhor que a sua proá pria tremia. — Lembre-se, minha criança. Deus naã o espera que o amemos primeiro. Ele conhece nossos segredos e nos ama mesmo assim. — Ah, Irmaã — disse ele, com um sorriso maroto na voz —, vou deixaá -la guardar os seus segredos. Deixe eu guardar os meus. Dominica prendeu a respiraçaã o para ouvir, com certeza a Irmaã naã o tinha segredos, mas ela queria desesperadamente ouvir Garren falar dos seus. Quando Garren se virou, a tristeza dos seus olhos desmentia o otimismo de sua voz. Então, ele também acha que ela vai morrer. — Obrigada. — Foram as uá nicas palavras que Dominica poê de dizer. — Ela merece mais — respondeu Garren. Dominica acenou concordando, e enterrou o rosto no cobertor aá spero de Gillian, feliz por Garren estar na sua frente para que a Irmaã naã o a visse chorar. A maã o dele, grande e quente, aninhou sua cabeça. Ao seu toque, uma grande paz tomou conta dela, o tipo de paz que ela esperava sentir quando se ajoelhou pela primei ra vez no paá tio empoeirado de Readington para pedir-lhe a beê nçaã o, haá muitos quiloê metros dali. Depois, ele retirou a maã o, e a sensaçaã o desapareceu. Quando Dominica levantou a cabeça, ele estendeu a maã o na direçaã o do saco que ela trazia nas costas. — Estaá aqui. Seguro — murmurou ela; e enfiou a mensagem na sua camisa, proá ximo ao coraçaã o. — Mas trate de manteê -lo longe de mim. Garren fez uma expressaã o de quem ia discutir, mas Dominica fez sinal para ele calar, olhando de relance para a Irmaã . — Preciso cuidar dos outros. — Garren falou alto para a Irmaã ouvir, mas seus olhos naã o se afastaram de Dominica. — O administrador vai trazer alimento e acender a lareira. Vou cuidar para que naã o sejam incomodadas. Por ningueá m. Estarei por perto. Dominica jaá queria chamaá -lo de volta. Deitada em um leito no chaã o ao lado da cama da Irmaã Marian, Dominica dormiu a noite toda um sono interrompido, ora por crises de tosse, ora por um desagradaá vel sileê ncio. Jaá era dia quando a viuá va apareceu aà porta. A Irmaã finalmente cochilava. — James estaá preparando um novo remeá dio — sussurrou a viuá va. O bocejo de Dominica transformou-se em um sorriso. Quando o meá dico tinha passado a ser James para a viuá va Agnes? — Ela estaá dormindo, agora.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — E aposto que naã o dormiu nada a noite inteira. Vaá — disse ela, acenando com as maã os. — Leve o cachorro para fora. Ambos precisam de ar fresco. Vou ficar com ela. Criei cinco filhos e soá perdi um. Na ponte do outro lado do fosso, com Inocente atraá s de si, Dominica tentou respirar fundo, mas um peso pressionava seu peito e a impedia de encher os pulmoã es. A mensagem esmagava sua pele. Deus mantinha cada folha de grama presa tenazmente aà terra. Por que naã o a Irmaã ? Dominica ajoelhou-se e começou a tirar tufos de grama pelas raíázes e a jogaá -los em um tronco de aá rvore insensíável. Inocente corria atraá s de cada ramo que se desintegrava para trazer de volta para ela. Soluços taã o fortes quanto a tosse da Irmaã Marian sacudiam seu pei to, ateá que ela se inclinou e enterrou o rosto nos dedos cobertos de terra. Deus, por favor, não a deixe morrer, pensou. — EÉ esta uma nova maneira de rezar? — Dominica olhou para cima. Limpou as maã os na saia, e viu Garren apoiado numa aá rvore. — Ele naã o vai levaá -la — disse ela, como se as palavras fossem a verdade. — Naã o pode. — EÉ a primeira vez que Deus leva algueá m de voceê . — Garren naã o perguntou nada. — Implorei para que Ele a poupasse. — Implorou? Naã o Lhe disse o que fazer? — Dominica engoliu as laá grimas e sacudiu a cabeça. Às vezes Deus precisa de um empurrãozinho. Como essas palavras pareciam atrevidas agora. Taã o distantes daquela garota no convento que estava sempre certa do que Deus iria fazer. Desesperançada, Dominica fechou as maã os apoiadas no colo. Seraá que Deus ouviria se ela as apertasse e as apontasse para o ceá u? — Estou disposta a implorar, se isto mudar a resposta de Deus. — E se Ele naã o responder aà s suas preces? O que vai acontecer? — Eu naã o sei. — Nunca tinha passado um dia de sua vida sem a Irmaã Marian. Tentou imaginar-se voltando para o convento, vestindo o haá bito e pegando a pena, dia apoá s dia, sozinha. Soá pensar nisso deixou-a perdida. — Vai ser a primeira vez que Ele me falta. — Vai aprender a viver com as faltas de Deus. — A amargura em sua voz ocultava seus segredos. Dominica envolveu os braços de Garren com as maã os, dizendo a si mesma que seu carinho era por pura compaixaã o. — O que Deus fez a voceê para ressentir-se tanto d'Ele? — Eu tinha acabado de completar dezessete anos. — A emoçaã o embargou sua voz. — Havia saíádo de casa, e estava morando no mosteiro. Minhas uá nicas preocupaçoã es eram com Deus e os votos que eu faria. Ela sorriu, imaginando-o com a idade de Simon, os ombros naã o taã o largos, os laá bios naã o taã o finos, o rosto ainda resplandecente de feá . Sentiu uma dor no coraçaã o pelo menino que haá muito deixara de existir. — Onde era a sua casa? — Perto de Berwick. Uma terra que era inglesa ou escocesa, dependendo da força das tropas e da sorte do dia. Meu pai soá queria viver em paz. Sua lealdade era exclusivamente aà sua terra. Isto naã o o tornou popular com nenhum dos lados. — Voceê era um segundo filho? — Soá depois que a terra estava segura com um herdeiro, um filho teria a permissaã o de dedicar a vida a Deus. Garren confirmou. — Meu irmaã o chamava-se James. — Quantos anos ele tinha? — A idade de William. — Garren fitou as maã os dela que descansavam sobre seus

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford joelhos. — Sempre conseguia me vencer na queda de braço. — Voceê estava no mosteiro — adiantou ela. — E o que aconteceu depois? — A peste negra chegou. Temi pela minha famíália, entaã o fui para casa. Mas a praga chegou mais raá pido. Ela matou James quando eu cruzei a ponte levadiça. Depois, sua esposa. E seu bebeê . Mandei um recado para o meu Abade, pedindo-lhe que nos desse conforto, que orasse a Deus para poupaá -los. O Abade naã o poê de, ou naã o quis ir. — As lembranças terríáveis o levaram a apertara mandíábula. — As horas passavam como se fossem semanas. A morte ocorria taã o raá pido quanto em um campo de batalha. Mas eu sabia, com certeza, que os monges oravam por noá s oito vezes por dia, Eu sabia que Deus ouviria aquelas preces. — Agora ele falava consigo, fitando as aá rvores como se estivesse olhando para o passado. — Minha maã e caiu doente no dia seguinte. Meu pai naã o saiu de perto. Ambos, pai e avoê , oraram juntos no leito de morte de uma esposa. Naã o eá para menos que Garren ainda vivia sozinho. Ela se perguntou como seria ser amado assim. — Depois, meu pai adoeceu. Finalmente, o Abade mandou uma mensagem. Meu pai precisava assinar um papel doando sua propriedade aà Igreja. Depois, segundo ele prometeu, Deus nos salvaria. O medo pressionou os ombros de Dominica. Nem mesmo um Abade pode fazer promessas por Deus. — O que o seu pai fez? — Ele assinou. Ajudei-o a fazer um X. Depois, levei o rolo de pergaminho para a abadia, usando a concha de meu avoê , e fiz a minha proá pria promessa. Quando eles fossem salvos, eu faria o caminho que meu avoê havia feito ateá Compostela. Passei horas com a testa contra o chaã o de pedra diante do altar. "Leve-me em seu lugar", eu dizia. — Agora, murmurava como se novamente implorando a Deus: "Leve-me em seu lugar." Deus nem sempre responde às nossas preces da maneira que desejamos. Mas Dominica naã o conseguiu repetir as palavras ocas. Elas a sufocariam. Como se voltasse de um transe, Garren fitou-a novamente, os olhos frios como a morte. — Deus matou todos. Meu irmaã o, sua mulher, seu filho, meu pai e minha maã e. Mas me deixou vivo. Dominica deitou as maã os sobre as dele, querendo abraçaá -lo. Ela naã o podia desculpar ou explicar o plano de Deus. Os bons morreram com os maus, e a uá nica ex plicaçaã o da Igreja era que toda a raça humana devia pagar por seus pecados. — O que aconteceu com a sua casa? — O Abade mentiroso refestelou-se na cadeira de meu pai, e me disse que a morte deles era vontade de Deus, mas que a generosa doaçaã o reduziria seu tempo no Purgatoá rio. — Sua risada denunciava anos de sofrimento. — Agora virou pasto para as ovelhas gordas dos monges. — Como o Rei permitiu isso? O direito de conceder a terra eá dele. — Talvez achasse que Deus podia proteger melhor a fronteira dos escoceses do que eu. — Sob os dedos dela, Garren fechou as maã os em punho. — O Abade ofereceu-se para vendeê -la de volta para mim, se eu tivesse o dinheiro. — Se voceê tivesse preferido trazer prisioneiros como refeá ns, em vez de... — Como ela podia perguntar isso? — em vez do Conde, teria sido suficiente? — Para comprar de volta? — Dominica viu de novo o rosto de Garren que ela conhecia. Aquele que estava sempre em guerra com Deus. — Eu naã o deixaria Deus levar William tambeá m. Desta vez, ele forçou Deus a levaá -lo em vez de a um irmaã o, pensou ela. Desta vez, ele trocou seu futuro pelo do Conde, tentando corrigir um pouco os erros de Deus. Dominica compreendeu. Para ela, Readington, Lorde William, tambeá m pareciam ser sua famíália. E ela

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford sempre se perguntara por queê . — Faria qualquer coisa por ele, naã o eá ? — Houve um tempo que eu acreditei que sim. — Os dedos de Garren escapuliram dela, e soá o vento tocava o seu rosto. — Sente saudades da sua casa? — perguntou ela. Os olhos de Garren pareciam confusos e distantes. — Quase naã o me lembro, mas sinto falta de ter uma casa, um lar. Você sabe o que é não ter uma casa? Ela mesma jaá tinha proferido estas palavras com veemeê ncia para ele, acrescidas da sua proá pria dor, sem saber que ambos tinham sido crianças sem lar. Pela primeira vez, ela o viu verdadeiramente como um homem, nem santo nem diabo. Um homem que levava relíáquias sagradas e usava conchas antigas, mesmo sem feá . Um homem que naã o era capaz de controlar Deus mais do que ela. — Entaã o, voceê naã o acredita em mais nada? — Promessas e peregrinaçoã es naã o fazem sentido para mim. — Garren levantou-se, como se estivesse tentando afastar-se dela para naã o tocaá -la outra vez. Soá . Terrivelmente soá . Sem o conforto de uma famíália ou de Deus. — Voceê acredita porque naã o sabe. Quando souber o que Deus pode fazer, nem toda a feá do mundo vai ser suficiente. Eu soá acredito no que vejo. Nem toda a fé do mundo vai ser suficiente. O mundo vazio que ela temia escancarava-se diante dela. — Como voceê consegue? Como consegue suportar sozinho, sem Deus? — Como voceê consegue suportar sem nada aleá m de Deus? — Mas o que existe aleá m d'Ele? A pergunta de Dominica pareceu acordaá -lo, e ele apertou seus dedos com uma necessidade de vida ou morte. — Um ao outro, Nica. Hoje. Aproveite o hoje. Talvez naã o tenhamos o amanhaã com aqueles que amamos. E se a Irmaã morrer amanhaã ? Teraá ela aproveitado todos os dias? E ela se perguntou se tinha aproveitado cada dia precioso com Garren. Dominica levantou o rosto, sem saber por queê , e sentiu o ar vibrar entre os dois. A esperança e o desespero brigavam nos olhos dele. Ela tocou a manga de sua camisa, correu as maã os pelo seu ombro, ateá as costas, desejando que seu toque pudesse curaá -lo. Ele pegou o rosto dela entre as maã os fortes e beijou-a com muito afeto. Dominica aceitou seu beijo como se estivesse entrando em uma coberta conhecida, naquele espaço protegido onde suas almas se encontraram. O sol brilhava aquecendo sua cabeça, a brisa brincava com sua orelha como os dedos de Garren, e a presença dele tomou conta dela, forte, quente e soá lida como a terra. Um focinho frio, molhado e ciumento cutucou seus dedos e cheirou as costas de Garren. Depois, Inocente pulou entre ambos, latindo para receber atençaã o. Garren riu, caindo sobre a grama e as folhas do outono, e cocou a cabeça do caã o atraá s da orelha boa. Depois, com um grito, segurou um galho e arremessou-o atraveá s das aá rvores. Inocente correu para pegaá -lo. Garren levantou-se de um pulo e puxou Dominica para ficar em peá . O desaê nimo desapareceu de seu rosto, ele parecia aquele jovem de dezessete anos outra vez. — Corra comigo. Segura por sua maã o grande e quadrada, Dominica naã o tinha muita escolha. Respirou fundo e correu como se pudesse se elevar da terra. Ela estava feliz. Garren soltou suas maã os, e ela caiu de joelhos. — Voceê estaá bem? Quando ia responder, irrompeu num soluço.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren franziu a testa e inclinou a cabeça. Ela riu. Aquilo provocou mais um soluço, e outro, ateá que ela deu uma risada e, arfando, caiu de volta na grama. Inocente, pronto para uma nova brincadeira, jogou seu galho no chaã o e correu para lamber-lhe o nariz e as orelhas. Dominica chiava de tanto rir. Garren deitou-se ao seu lado, apoiado em um cotovelo, e segurando o cachorro com a outra maã o. — Inocente tem a cura perfeita. — Ele se inclinou sobre ela e estancou sua respiraçaã o com um beijo. Mais um soluço escapou, mas os laá bios dele estavam presos aos dela e abafaram o som. Dominica sentia-se tomada pelo ceá u azul e a grama verde. Garren interrompeu o longo beijo, fíátando-a com um sorriso. — Melhor? Dominica sentou-se. O ar entrava e saíáa dela como vida, e depois naã o ouve nenhum soluço, somente o bater de seu coraçaã o. Respondeu que sim. Com as maã os suaves envolvendo seu pescoço, ele acariciou seus braços, seguindo a curva de sua cintura, e beijou-a novamente, desta vez naã o apenas com a boca, mas com todo o seu corpo. Talvez, pensou ela, deitada sobre a grama com ele, o que sentiu antes naã o foi tentaçaã o. Talvez fosse amor. Carpe diem. Talvez não tenhamos o amanhã... Uma flecha zuniu por cima das costas de Garren e cravou-se na aá rvore com um som surdo. Como um guerreiro, o corpo de Garren retesou-se, transformando-se em um escudo sobre ela. — Pare, seu estuá pido. Quem atira? — Quem estaá aíá? Garren? EÉ voceê ? — A voz de Richard era pura inoceê ncia quando ele surgiu das aá rvores montado no cavalo, puxando um veado morto por uma corda presa ao cavalo. — E Dominica, tambeá m? Estou surpreso. Pensei que era um veado. Mais alguns centíámetros, e ela e Garren estariam mortos como o veado. Aparentemente, eles naã o tinham enganado Richard, afinal.

Capítulo Vinte Tremendo como a flecha fincada na aá rvore, Dominica observou Garren levantar-se para protegeê -la de Lorde Richard. Uma onda de medo substituiu a excitaçaã o. Garren ficou sobre ela, aparentemente calmo, mas seus muá sculos enrijeceram desde as pernas cobertas da malha metaá lica ateá a base da espinha. Garren agarrou a flecha com a maã o e partiu-a ao meio, deixando a haste com a ponta espetada na casca da aá rvore. — Um meá todo de caça incomum, Richard — disse ele. — Nenhum cachorro a rastrear o veado. Nenhum arqueiro com voceê . — E jogou a flecha quebrada para ele. — E sem muito sucesso. Voceê errou. Lorde Richard apanhou a flecha e jogou-a longe. Inocente foi atraá s por entre as aá rvores, pronto para brincar. — EÉ um parque de veados. Eu naã o estava esperando encontrar dois amantes. Amantes. Dominica sentiu o rosto queimar de pensar a impressaã o que ela dava de costas, toda salpicada de folhas e de grama. Rapidamente se levantou. — Noá s naã o somos... — Deveria ter mais cuidado — interrompeu-a Garren, falando com o homem no cavalo. — AÀ s coisas mudam rapidamente durante a caçada.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Sim — retrucou ele. — Vejo que sim. — Acredito que tenha permissaã o do Príáncipe para matar o veado — disse Garren. — Eles se reproduzem feito coelhos. O Príáncipe vai me agradecer por isso. — Logo depois de multaá -lo pela falta de licença. — Sempre pensando em dinheiro, naã o eá , Garren? Mas eu sabia disso quando fiz meus planos. Que planos poderiam incluir Garren? Dominica olhou de relance para ambos, mas viu um rosto inexpressivo em Garren. Sentiu um embrulho no estoê mago e engoliu a seco; virou-se novamente, forçando-se a olhar dentro daqueles olhos curiosos de Richard. — Estaá enganado. Noá s naã o somos amantes. Naã o agora, pelo menos. — Naã o? Uma pena. Achei que poderia ter resolvido ampliar seus talentos — disse ele, com um olhar malicioso. I Ao seu lado, Garren quis vingar o insulto, mas ela o impediu. O escaá rnio na voz de Lorde Richard a fez lembrar do dia em que estivera em uma escada vazia, presa contra uma parede de pedra fria, por aquele homem com o do bro da sua idade e muito mais força. Ela escapara dele entaã o. Escaparia de novo. Com o coraçaã o batendo na garganta, Dominica levantou o rosto. — Como eu uso os meus talentos, Lorde Richard, eá mais uma preocupaçaã o de Deus do que sua. Para sua surpresa, o homem riu. — Talvez ela ame voceê mais do que a Deus — falou Richard. Depois, enfiou as esporas no cavalo e seguiu para o castelo, arrastando o veado de olhos abertos, seguido de Inocente e seus latidos. — Boa caçada, Garren — gritou para eles, com uma risada estridente mais alta que o farfalhar das folhas. Boa caçada. Ele quis dizer que Garren estava caçando ela? Uma desconfiança ofuscou sua visaã o. Ainda tremendo, ela jogou as palavras para ele. — Por que ele disse isso? Por que deixou ele pensar que somos amantes? Um guerreiro de olhos duros tinha se apossado do corpo do enamorado risonho que acabara de livraá -la dos soluços com seus beijos. Os dedos, mais suaves que seus olhos, limparam a grama de sua saia e tiraram as folhas de seus cabelos. — Nica, Richard acabou de atentar contra as nossas vidas. Isto muda tudo. — O que ele disse muda tudo. — Nica, me deê a mensagem. EÉ perigoso demais voceê ficar com ela. — Eu peguei porque sabia que voceê estava em perigo. O que aconteceu prova isto. — Isso prova que o seu plano naã o protege nenhum de noá s dois. — Garren sacudiu-a. — Agora, me deê a mensagem. — Naã o. Voceê e Lorde Richard... — Ela buscava a palavra adequada. — Conversaram... Sobre mim. — Naã o mude de assunto — murmurou ele, com uma expressaã o severa. — O assunto era este, foi voceê quem mudou. — Era uma discussaã o tola. Ela sabia disso. Mas neste momento, saber era mais importante do que viver. Ou morrer. Ele a envolveu nos braços, e ela quis se fundir nele. — Voceê naã o eá taã o forte assim para defender a mensagem sozinha — murmurou ele. — Eu naã o posso estar sempre por perto para protegeê -la. — Deus vai me proteger. Ao contraá rio da irritaçaã o que ela esperava, ele riu. — Voceê naã o confiou em Deus para me proteger sem a sua ajuda. — Ele a apertou. — Ora, eu tambeá m naã o confio n'Ele para proteger a sua vida.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica conseguiu fugir do seu abraço. — Talvez seja a voceê que eu naã o deva confiar a minha vida. — Nica, pare de me pressionar! Estou tentando fazer o que eá melhor. Para voceê , para mim e para William. Quero que esteja segura. Naã o acredita em mim? — Naã o sei. Por que eu deveria? — Porque eu amo voceê ! — Seu grito bateu nas aá rvores e voltou. A esperança reacendeu a pequena chama de paixaã o que ainda queimava dentro dela. — Obrigada — murmurou Dominica, com um noá na garganta. — Deê -me. Dominica enfiou a maã o no pescoço, por dentro do galaã o da camisa, e pegou a missiva dobrada que estava guardada segura contra sua pele. — Nada deve acontecer a voceê — sussurrou ela. Ou eu nunca perdoarei Deus. Ela queria esconder-se em seus braços. Queria silenciar todas as perguntas e ouvir a voz calma que falaria mais alto do que as insinuaçoã es de Lorde Richard. Aquela que dizia que ela podia confiar em Garren. Garren estendeu a maã o aberta para ela, pronta. Boa caçada, Garren. Tola. Mesmo agora, voceê confia nele. Mas sabe que ele eá apenas um homem. Sabe que pode ser imperfeito como qualquer pecador. O Conde confiou nele, claro, mas seu julgamento estava ofuscado pela doença. Talvez Richard tenha subornado Garren para ajudaá -lo a matar o Conde. Seus dedos gelaram segurando o pergaminho. Para mataá -la. Com a mensagem nas maã os, ele poderia destruíá-la antes que alcançassem o santuaá rio. Ningueá m mais saberia da verdade sobre a morte do Conde. Ela deixou o pergaminho dobrado onde estava. — Jaá que naã o pode explicar o que Lorde Richard quis dizer, vou ficar com ele ateá Deus me dizer que naã o devo. — A raiva cegou os olhos de Garren. — Deus naã o fala com voceê — falou ele. — Ele costumava falar — retrucou Dominica, jaá naã o taã o certa quanto a Deus e a Garren. Garren naã o foi atraá s dela. Sentada no chaã o do quarto da Irmaã Marian apoá s a ceia, Dominica passou a faca de afiar na pena com um movimento brusco. Um pedaço grande e despedaçado voou para dentro da lareira, deixando seu instrumento de escrever irregular como a flecha de Lorde Richard. Eu sabia disso quando fiz meus planos. Eu amo você. Em qual das vozes deveria confiar? — Nica, sabe fazer melhor do que isso! — Exclamou a Irmaã Marian, levantando a cabeça e parando de tirar os gravetos do dia do peê lo preto de Inocente. — Naã o vai ter uma pena amanhaã , se continuar assim. — Sim, Irmaã . A repreensaã o da Irmaã Marian confortou-a. Sentia falta dos dedos leves que tiravam terra de sua saia, e da voz suave que a censurava para parar de roer as unhas. — Nica, o que a aflige? — Nada, na verdade. — Dominica naã o tinha contado nada aà Irmaã Marian sobre o dia de hoje. Nada sobre os beijos, as flechas, ou as duá vidas. Preocupar-se com a vida e a virtude de Dominica naã o ajudaria na recuperaçaã o da freira. — Eu soá estava pensando, como se faz para saber em quem se pode confiar? — O que quer dizer?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Lorde Richard, por exemplo. Ele eá filho do Conde, mas... — Dominica interrompeu a frase no meio. — De algum modo naã o confia nele? — Dominica mergulhou a pena na tinta e deixou que ela vagueasse pelo pergaminho, sem ser dirigida. — A feá nas pessoas eá como a feá em Deus. Ela nos permite agir na auseê ncia de prova. Voceê tem esse tipo de feá em Garren? Dominica baixou os olhos. Duas palavras novas exprimiam seu pensamento no pergaminho. Garren + Dominica. A pena tremeu na sua maã o. Ela virou a folha ao contraá rio para esconder a evideê ncia de seus sentimentos. — Com sua licença. — A cabeça do meá dico apareceu no vaã o da porta, e ele se encaminhou para a cama da Irmaã levando um copo cheio de vinho. — Trouxe algo que a ajudaraá a dormir. — Ele colocou o braço atraá s das costas da Irmaã para que ela pudesse sentar e beber. — Naã o eá muito. A senhora eá muito pequena. A Irmaã Marian murmurou seus agradecimentos. — A tosse estaá dificultando o sono. — Haá alguma coisa mais que o senhor possa fazer? — perguntou Dominica. — A medicina por si soá naã o eá suficiente sem a ajuda de Deus. — O meá dico afagou-lhe o ombro, e escondeu a tristeza pela morte que vira nos olhos da Irmaã . — Deus ajuda os que teê m feá . Seraá ? Pensou ela. Por que Ele naã o ajudara um pequeno Garren que acreditava tanto? A Irmaã jaá respirava com mais facilidade. Embrulhando-a no cobertor de Gillian, Dominica falou: — Lembra como voceê costumava me agasalhar? Agora eá a minha vez. O vinho adormeceu a Irmaã , que segurava a maã o de Dominica. Ela parecia taã o perto da morte que o cobertor que a cobria parecia uma mortalha. Dominica estremeceu diante daquela imagem. Como morcegos que voam durante a noite, gritos de dor voavam pelo convento e ecoavam das paredes. Com seis anos de idade, Dominica segurava-se aà s saias pretas da Irmaã Marian, com medo de ser pega pela peste negra, caso a soltasse. Tantos jaá tinham morrido. — Venha — dissera a Irmaã Marian, pegando sua maã o. — Levante a cabeça. Ande ao meu lado. Elas caminharam pelo labirinto de corredores de pedra ateá o scriptorium. Em um paá tio perto da janela, havia uma folha abandonada. A Irmaã Marian estendeu uma folha pequena e limpa na frente de Dominica. — Esta podia ser uma paá gina do nosso livro de caê nticos, ou uma folha com as palavras de Nosso Senhor, ou um livro de oraçoã es. Tudo depende da criaçaã o dos dedos da copista. A Irmaã dobrou os dedos gorduchos de Nica em volta da haste de uma pena jaá sem plumas. — Esta eá uma pena. Com ela, voceê pode criar as palavras. Dominica passou a pena pela folha, acreditando que os traços pretos apareceriam. A folha continuava teimosamente branca. — Naã o eá maá gica — disse a Irmaã com um sorriso. Ela envolveu os dedos de Nica com os seus, e mergulhou a pena na tinta. — Agora escreva esta letra. — Ela apontou para uma pequena forma em uma folha grande. — Nessa folha. — Mas naã o sei como. — EÉ assim que se aprende. — Guiando a maã o de Nica, ela traçou um a tremido sobre a folha limpa. — Eu a estraguei — disse Dominica, as laá grimas ameaçando borrar mais ainda a bolha preta.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Naã o, naã o a estragou. — Eu naã o sei fazer isso. — Nem eu soube na primeira vez. E preciso pacieê ncia e praá tica. Agora, tente sozinha. Ela tentou. A tinta escorreu pela paá gina. As laá grimas de Nica ameaçavam fazer o mesmo. — Belo começo. Da proá xima vez, deixe a pena deslizar, em vez de empurraá -la. Agora, tente outra vez. Desta vez, ela bateu o excesso de tinta e fez um traço seguro, inclinado, e um cíárculo aà esquerda, ligado ao traço. Tomou um quarto da paá gina. Naã o escorreu nenhuma tinta. Ela sorriu. — Estaá muito bom — disse a Irmaã . — Mas soá temos esta folha. As melhores copistas enchem a paá gina com letras pequenas e uniformes. Aleá m do mais, as letras menores lhe daraã o mais praá tica. — Posso usar essa? — Mais tarde. Depois de praticar muitos anos. Agora, faça outra letra. Cantarolando, Nica mergulhou a pena na tinta e desenhou treê s letras. Duas delas estavam reconhecíáveis. — Estarei longe por um tempo. Continue praticando. Quando eu voltar, quero que me mostre que aprendeu a escrever as letras a e b. Um grito de morte penetrou seu santuaá rio. — Naã o me abandone. — Preciso fazer uma peregrinaçaã o ao santuaá rio da Abençoada Larina. — Quando vai voltar? — Logo que puder. — Como posso aprender sem voceê ? — Uma letra de cada vez. — A Irmaã apontou para cada uma na longa lista. — Esta aqui, depois esta, depois a seguinte. EÉ soá exercitar uma letra de cada vez. Depois, vou ensinaá -la a fazer palavras. — Ela olhou para a menina nos seus joelhos. — Naã o tenha medo. Lembra o que Saã o Bernardo disse? Dominica fungou. — "Cada palavra que voceê escreve eá um sopro contra o diabo." A Irmaã abraçou-a. — EÉ isto mesmo. Enquanto voceê faz o trabalho de Deus, Ele a protege. Nas semanas em que a Irmaã estava longe, a praá tica protegeu Dominica do medo. Ela aprendeu pacieê ncia e as letras a, b, c, d, e, f. Dominica traçou as letras, agora taã o familiares como todas as outras, com os dedos, no cobertor que cobria a Irmaã , que dormia intermitentemente. Haá muitos anos, Deus a trouxera de volta salva. A vida inteira ela naã o fez nada aleá m do trabalho de Deus. Por que Ele naã o a protegeria desta vez? Deus ajuda àqueles que acreditam. Mais dois dias, e eles estariam no santuaá rio. Mais dois dias, e estaria na hora do seu sinal. Se eá que haveria um. Seu coraçaã o palpitou loucamente quando ela percebeu que tinha duvidado de Deus. Distraíáda com Garren, tinha absorvido sua descrença. Como homem, ele era mais perigoso do que como diabo. Sabemos que um diabo questiona Deus. No desespero por sua famíália, ele tornara sua duá vida taã o compreensíável, ateá para ela. Talvez as suas afliçoã es estivessem matando a Irmaã Marian. Mas Deus naã o a abandonaria. EÉ oá bvio que receberia o seu sinal. Um sinal que qualquer um identificaria. Claro. Inconfundíável. Algo que provaria a sua feá . Algo que salvaria a Irmaã

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Marian. Algo que ateá Garren acreditaria. Ela provaria a Ele e a si proá pria que ela acreditava. Na auseê ncia de prova, Deus teria que lhe dar um sinal. Talvez, Ele precisasse de um empurraã ozinho. No dia seguinte, seguindo o rio ateá a costa, Garren tentava pensar em tudo: no caminho, em Richard, em William e em deixaá -la ficar com a mensagem. Procurou pensar em tudo, exceto no que admitira. E no significado daquilo. Eu amo você. Agora ele sabia. Agora Deus sabia. E agora Deus podia levaá -la como levara a todos que ele amou. Atraá s dele, a gritaria dos peregrinos abafava o canto dos paá ssaros. "Asas para voar como Larina, voar como Larina, voar como Larina." Como se santos voadores fossem paá reo para a maldade de Richard, pensou ele. Ou a minha. A concha de chumbo balançava acusadora no seu cajado. Durante toda a tarde, procurou pensar com loá gica sobre as suas escolhas. A Priora estava certa. Nica naã o tinha nascido para ser freira. Mas se ele a possuíásse, destruiria todos os seus sonhos. Ah, se William ainda estivesse vivo, ele poderia dar-lhe um presente final, reembolsaá -lo por tudo, de alguma forma. Talvez ainda sobrasse algum dinheiro para ajudaá -lo a começar uma vida nova. Mas para pagar a William o que devia, contudo, ele recompensaria seu assassino. E Nica terminaria sendo a amante de Richard, ou pior. O corpo de Garren doíáa de tanto desejaá -la. Ele ansiava por abraçar, dar carinho, fazeê -la feliz. Dar o que ela queria. Ele suspirou, O que ela queria era um lar no convento, por mais absurdo que isso fosse. Se ele voltasse para William de maã os vazias, precisaria enfrentar seu desapontamento. Tambeá m enfrentaria a raiva de Richard. Seria expulso e precisaria se fazer no mundo sozinho, pelo proá prio esforço, ainda que jaá estivesse mais fraco a cada ano. Mas se naã o a protegesse, Richard a teria mais cedo ou mais tarde. E de uma maneira mais cruel. E, neste momento, Garren naã o podia oferecer a ela nada aleá m do medo que sentia de que Deus a levaria embora como a todos os outros. — Eram aá rvores iguais a estas — disse a Irmaã Marian no fim do dia. O sol piscava atraveá s das folhas, e ela deixou que ele pousasse no seu rosto fraá gil, cada dia mais paá lido. — Foi nesta floresta que Larina correu. Garren naã o prestava muita atençaã o. Talvez, as plumas de Larina fossem mesmo um bom presente. Mas se Dominica algum dia descobrisse que ele iria roubar uma relíáquia, o pouco de confiança que ainda tinha nele desapareceria. Quem sabe, se ele voltasse para William com a pluma de ganso e dissesse que era a verdadeira. Por que naã o? Naã o faria nenhuma diferença mesmo ele dar seu uá ltimo suspiro em uma pluma de ganso ou ou tra, se eá que jaá naã o estava morto. Finalmente, as aá rvores do caminho ficaram para traá s. — Vejam. O mar! — Dominica gritou de alegria. Depois, abriu os braços e clamou para os ceá us. — Eu me coloco nas Suas amadas maã os. E, entaã o, começou a correr em direçaã o aà beira do penhasco, veloz como Santa Larina perseguida pelos javalis selvagens.

Capítulo Vinte e Um Projeto Revisoras

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Garren correu atraá s de Dominica com a pressa de quem estaá indo atraá s da sua proá pria vida. O relicaá rio golpeava seu peito a cada pisada, Dominica o superava, correndo a toda velocidade, como se estivesse possuíá da, nem parecia que estava em peregrinaçaã o haá dez dias. Como se naã o fosse parar na beira do penhasco. Garren acelerou a corrida. Proá ximo aos penhascos altos que descem para o mar, Dominica abriu os braços e rodopiou, dançou, girou, sem olhar onde pisava. Uma onda bateu contra as rochas, e uma rajada de gotíáculas cobriu seu cabelo cor de mel. Temendo chegar tarde demais, Garren orou. Salve-a, Deus, e deixarei que ela seja Sua. Dominica vibrava, jaá sem distinguir alto de baixo, mar de terra. Garren investiu para cima dela, e jogou-a ao chaã o a pouco menos de dois metros do penhasco. — Sua maluca! — gritou ele para o vento, deslizando as maã os por sua cabeça, acariciando seus ombros, explorando suas costas, investigando se havia algum osso quebrado. — Podia ter se matado. Garren virou-a para ele, envolveu-a com o corpo e ouviu sua respiraçaã o. Queria senti-la para ter certeza que ela estava ali. Dominica aninhou-se nele. A respiraçaã o estava irregular, os olhos fechados, mas ela estava viva. Viva. — Nunca mais me assuste assim — sussurrou ele, pressionando os laá bios na curva suave e quente de seu pescoço. A pulsaçaã o dela contra os seus laá bios. Dominica abriu os olhos com um sorriso atordoado, o vento soprando os cabelos no rosto. Garren saiu de cima dela, e ela se sentou. Naã o o via, Nem a nenhuma criatura da terra. — Por que me impediu? Eu ia voar. — Dominica piscou os olhos e sacudiu a cabeça, confusa, ateá que o viu pela primeira vez. — Ah, voceê tem razaã o. — Ela enfiou a maã o dentro da roupa, e jogou a mensagem amassada na maã o dele. — Ela podia ter caíádo no mar. Antes que ele pudesse tocaá -la, Dominica ficou de joelhos e, cambaleante, foi novamente na direçaã o do mar, Garren segurou sua maã o, mas sua força era quase paá reo para a dele, como se Deus a estivesse ajudando. Dominica estancou por um momento. — Deixe-me ir. Quero mostrar a voceê . — O vento salgado arrebatou sua risada, leve como uma pluma. Ela levantou o braço livre como se fosse uma asa, cheia de feá e sem nenhum medo. — O espíárito estaá aqui. Eu o sinto. Eu posso voar. Ele a puxou para os seus braços lutando para seguraá -la, para trazeê -la de volta aà realidade. — Nica, voceê naã o pode voar. Ningueá m pode voar. — Latina voou! — EÉ apenas uma histoá ria, Nica. As pessoas naã o podem voar de verdade. Como se vindo de muito longe, na direçaã o das aá rvores, Garren ouviu o grito de Simon, ou talvez de Jackin, muito fraco para chegar ateá ele contra o vento. Dominica era sua uá nica realidade. Enlouquecida, ela empurrou o peito de Garren com as maã os, desviando o corpo para libertar-se. — O que quer dizer? EÉ por isto que estamos aqui. E por isto que voceê estaá carregando as plumas dela. — De repente, ela se acalmou e acariciou o relicaá rio de prata amassado que ele trazia no pescoço. Envolveu-o com a maã o e encarou Garren. — Deê -me uma pluma. Assim poderei voar. — Garren soltou sua maã o do relicaá rio e bloqueou o caminho para o penhasco. — Elas naã o saã o das asas da santa. — Garren queria falar mais calmo, suave, mas precisou gritar acima do vento, e chocalhar o relicaá rio de prata diante do rosto dela, na tentativa de levaá -la a recobrar a razaã o.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — O que quer dizer? — A calma desapareceu, e um tremor tomou conta de todos os seus membros, como se ela realmente tivesse asas, e elas estivessem batendo para levaá -la dali. — EÉ claro que saã o. Eu as vi. Garren sentiu raiva. Raiva da feá tola, da Igreja com suas mentiras, de Richard e da Priora por levarem-no aà beira deste precipíácio. E dele mesmo. — Nica, elas saã o plumas. — O vento incessante levou as palavras e as jogou no rosto de Dominica. Ele a salvara. Continuaria mantendo-a salva. Naã o importava o que precisasse fazer. — Plumas. EÉ tudo o que saã o. Nada mais. Nada aleá m do que voceê veê . Ele a soltou soá para abrir o relicaá rio. O vento levou a pluma de ganso para o ceá u. Dominica gritou e pulou mas soá segurou o ar. As plumas voaram na direçaã o do mar. Garren pegou a maã o dela, mas, com a força da feá , ela o arrastou para o penhasco ao perseguir as inuá teis plumas de ganso. Elas giraram em um redemoinho de vento na beira do penhasco, dançaram ao lado de uma gaivota e desapareceram. Dominica o fitou com um misto de duá vida e de feá ardente nos olhos. — Como poê de jogar fora as plumas de Laríána? — Ainda naã o entendeu? — Ele envolveu suas maã os frias nas dele. — Eram simples plumas que eu catei na lama dos gansos. — Naã o. — Dominica afastou-se bruscamente, acenando as maã os para espantar as palavras dele. — Voceê me disse que eram de Larina. — Eu menti. Dominica esquivou-se como se ele tivesse jogado uma pedra. — O Salvador mentiu? — Eu nunca usei a palavra salvador. Foi voceê . — Que outras mentiras voceê contou? — Nica... — Era mentira que voceê me amava? — Naã o. — Ela precisava saber disso. — Por que acha que eu naã o a deixei pular e morrer? — Deveria ter deixado. Se eu naã o conseguisse voar, pelo menos teria morrido feliz. Mas teve que se fingir de Salvador outra vez. — Ela riu, agora num tom amargo como o dele. — Naã o basta voceê naã o ter feá ? Precisa destruir a minha tambeá m? — Deus nem sempre responde aà s nossas preces da maneira que desejamos. — Uma frase faá cil para um homem que naã o acredita que Deus responde alguma coisa. — Dominica caiu de joelhos, derrotada. Toda a força que a mantinha se esvaiu, e ele sabia que, se a tocasse, ela desmoronaria. Salve-a, Deus, e eu deixarei que ela seja Sua. Naã o, Deus naã o respondeu como ele imaginara. A feá de Dominica em Garren era como uma prece, pensou ela, ao observar uma onda que se elevava sobre o rochedo onde as gaivotas se ajuntavam. A resposta de Deus foi cruel. Em uma rocha acidentada, um paá ssaro cinzento abria as asas salpicadas de preto. Alçado pelo vento, pairou acima da rocha e foi forçado a retornar, sem conseguir subir. Finalmente, guardou as asas e ficou na rocha. Nem os paá ssaros conseguem voar contra o vento. Treê mula, Dominica fechou os olhos. Ela abraçou o corpo quente e agitado soá por haá bito, sem sentir conforto. Ou dor, ou raiva, ou alegria. Soá um vazio esmagador. Sem muita conscieê ncia do braço de Gillian em seus ombros, ou da voz do meá dico, Dominica deixou-se levar para o lado das aá rvores e ser colocada na carroça. Os braços da Irmaã

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Marian a envolveram, leves como as plumas perdidas. Dominica afundou o rosto no ombro em que chorara tantas vezes quando criança. Agora, a clavíácula era fraá gil sob a pele transparente. Garren tocou sua maã o, e ela o fitou. O rosto irregular e os olhos verde-mar opacos pareciam de um parente que se foi e eá lembrado. — Deixem o burro andar no seu proá prio passo — disse ele, guardando as reá deas na carroça. — Estaremos sempre aà vista. Devemos chegar ao santuaá rio antes do anoitecer. Gentil, pensou ela, por deixaá -la em paz. Ela o observou juntar-se aos outros, sempre proá ximo de Roucoud. Cada rosto que se virava lhe era familiar, mas naã o fazia mais parte do mundo dela. Gillian a fitava como se ela fosse um anjo; Ralf, como se tivesse visto Deus; e Simon, como se estivesse demente. O burro, paciente, seguia o caminho sem ningueá m segurar as reá deas. — Eu tentei voar, Irmaã . — Seu rosto estava ressecado das laá grimas ou da aá gua do mar. — Estava pronta para provar a minha feá , e Deus me faltou. Os dedos paá lidos e determinados da Irmaã viraram seu rosto para ela e obrigaram-na a responder aos olhos amados e cansados. — A força da sua feá depende das preces atendidas? — As palavras ofenderam. — Eu queria dar a minha vida a Deus, como voceê . — Qualquer vida pode ser dada a Deus. Eu dei a minha aà Igreja. — Deus naã o me deu o sinal que eu precisava — disse Dominica, engolindo as laá grimas. — Lembra-se quando me contou sobre Gillian e a corrente de ouro? Achou que um pedido desses era indigno. "Deus naã o eá um fornecedor de presentes do Dia de Reis", foram suas palavras. — O que eu quero naã o eá o mesmo! Quero servir a Deus. — Quer o que interessa a voceê . E se Deus quiser outra coisa? — A Irmaã continuou. — Achar que voceê sempre sabe qual eá a vontade de Deus naã o eá feá . EÉ orgulho. Estaá pressionando Deus como costumava pressionar a pena. — Mas soá posso difundir a palavra d'Ele como membro da Igreja. — Se acreditasse nisso, naã o pensaria em escrever as palavras de Deus para as pessoas terem acesso a elas sem ser atraveá s da Igreja. — Entaã o, talvez Deus esteja me punindo pela minha heresia. — Heresia eá uma palavra da Igreja, naã o de Deus. — E sem sentido, pensou Dominica. Se naã o haá nenhuma razaã o para a feá , naã o haá razaã o para heresia. A Irmaã Marian acariciou os cabelos de Dominica. Cambaleando com a carroça, sua menina via o mundo passar, exatamente como era antes. Terra, aá rvores e ceá u. Nada milagroso. — Eu pensei que Deus me deixaria voar... — Haá mais de uma maneira de voar — disse a Irmaã . — O pardal bate as asas ateá elas ficarem indistintas. A gaivota eá levantada pelo vento. Nem sempre, pensou Dominica. — Garren tem razaã o. Deus faz o que Ele quer, independente da nossa feá . — A sua feá naã o pode depender de ningueá m. Garren talvez naã o entenda a feá dele. Ele voa diferente de todos noá s. — Sua voz transformou-se num sussurro, como se ela naã o mais estivesse falando com Dominica. — Talvez, Deus aja atraveá s dele, mesmo que ele naã o acredite como voceê . — Jaá naã o sei em que eu acredito. — A Irmaã tentou confortaá -la. — Talvez eu tenha procurado incutir em voceê a minha feá , em vez de deixaá -la livre para encontrar a sua. Mas eu queria corrigir... Recostada contra as ripas de madeira da carroça cambaleante, Dominica estendeu a maã o para apertar a da Irmaã . — Voceê naã o fez nada aleá m de me amar a minha vida inteira. Naã o houve nenhuma

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford coerçaã o nisso. — Amanhaã , minha filha, quando chegarmos ao santuaá rio. Seu sinal pode estar laá . Dominica pegou as reá deas sem responder. Naã o procuraria mais sinais. Naã o pularia mais de penhascos. Ningueá m salvaria a vida da Irmaã . Ou a dela. Garren esvaziara seu universo de Deus. A irritaçaã o de Garren diminuíáa, e seu espanto aumentava. Ao reviver o momento em que achou que ela estava perdida, ele repetia as palavras mentalmente. Salve-a, Deus, e eu deixarei que ela seja Sua. E ela tinha sido salva. Tarde demais para argumentar que ele poderia teê -la alcançado sem aquela prece. Tarde demais para explicar a Deus que a queria agora para abraçaá -la, protege-la, e dar-lhe carinho. Deus sabia. E, por isso, a estava tirando dele. Naã o para a morte, como os outros, mas para uma vida onde ele a perderia do mesmo jeito. E porque a amava tanto, queria que ela conseguisse realizar seu desejo. Se estava disposta a morrer por isso, ele a deixaria viver para isso. Naã o podia competir com Deus, pois naã o tinha nada a lhe oferecer. Soá o seu coraçaã o. Frente aà vontade de Deus para Nica, sabia que a Priora ainda precisaria de um sinal. O que poderia convenceê -la para permitir que Nica entrasse na ordem? Riu. Simon e o meá dico o encaravam, como que se perguntando se ele tambeá m tinha sido tocado como Dominica. Garren fez um gesto com a maã o para tranquü ilizaá -los. Criaria uma prova em que ateá a Priora acreditaria. Quando voltasse, contaria que Deus tinha aparecido em uma visaã o e pedido que naã o tocasse na jovem e a mantivesse pura, pois Ele a escolhera para ser uma noiva de Cristo. Diria aà Priora que o proá prio Deus tinha descido e atrapalhado seus planos mesquinhos, transformando o coraçaã o de um increá dulo pecador para que fizesse Sua vontade. Ah, sim, pensou ele, reprimindo a dor de perdeê -la, seria um instrumento de Deus, afinal.

Capítulo Vinte e Dois — Santa Maã e de Deus! — A voz da viuá va ribombou no ouvido de Dominica, quando os peregrinos se agruparam na praia. Juntos observaram a aá gua que se estendia entre eles e uma pedra que mal tinha tamanho para ser chamada de ilha. — Naã o eá a Catedral de Santiago, eá ? Reprimindo seu proá prio desapontamento, Dominical cambaleou quando a Irmaã se apoiou nela. Os pedidos de Dominica e de Garren naã o a dissuadiram de percorrer o uá ltimo quiloê metro descalça. Agora, os peá s sangrando quase naã o a mantinham ereta. — Todas as vezes, venho aà Abençoada Larina como uma humilde pecadora — insistiu ela. Naã o mais humilde do que o santuaá rio de Larina, pensou Dominica. O Santuaá rio da Abençoada Larina confundia-se com a pedra que o apoiava, construíádo por maã os amorosas, poreá m naã o qualificadas. — Catedral? — falou Lorde Richard ríáspido. — EÉ uma pedra coberta de esteá reo. Ateá Garren parecia desanimado. Dominica compreendeu. Estava agradecida por Garren teê -la feito ver que sua feá era exagerada quando acreditava em milagres celestiais, e ela agora se questionava sobre os milagres terrenos. Onde estava o poder, ou autoridade da Igreja, que prenderia e levaria a julgamento Lorde Richard? — Bem-vindos, peregrinos. — Um irmaã o leigo, a cabeça com tufos de cabelo desalinhado, de perna dura, saiu mancando de uma cabana ruá stica. Um sorriso infantil vincou seu rosto redondo ao dirigir-se, cambaleante, para o grupo. — Irmaã Marian? EÉ voceê ?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford A Irmaã levantou a cabeça do ombro de Dominica, tateando aà procura das maã os do Irmaã o, cansada demais para abrir os olhos. — Irmaã o Joseph? Ainda estaá aqui? Dominica olhou para Garren, que pareceu entender sua preocupaçaã o. Este homem simples naã o era de quem eles precisavam. — Estaá doente? — Ele acariciou-lhe as maã os com seus dedos gorduchos. — Naã o tenha medo. A Abençoada Larina iraá curaá -la como jaá o fez antes. — Desta vez, vim por outros motivos, Irmaã o Joseph. — Precisamos falar com o responsaá vel pelo santuaá rio — falou Garren. — Onde ele estaá ? — Ora, no santuaá rio, claro — respondeu o Irmaã o, e o sorriso infantil enrugou de novo seu rosto redondo. — Pergunte a um tolo e teraá uma resposta imbecil — comentou Lorde Richard com uma risada sarcaá stica. Dominica levou um susto com sua crueldade, mas o sorriso gentil do Irmaã o Joseph naã o vacilou. Ela se aproximou de Garren e apontou para treê s pequenos barcos atracados na praia. — Poderíáamos pegar um barco e estar laá antes do anoitecer. Os ouvidos do Irmaã o Joseph eram aguçados, apesar de sua mente simples. Ele sacudiu a cabeça: — Naã o, naã o, naã o. Os barcos saã o para levar suprimentos. — O que devemos fazer? Nadar? — zombou Lorde Richard. — Arrastar-se — respondeu o Irmaã o Joseph, com um sorriso puro, e a Irmaã Marian concordou. — Quando a mareá estiver baixa. Dominica se arrastaria, entaã o, para entregar a mensagem. — E a que horas seraá a mareá baixa? — perguntou Garren, paciente. — Amanhaã ao meio do dia. Mas nosso santuaá rio eá pequeno. Soá podem ir treê s de cada vez. Deixe-me contar. — O Irmaã o Joseph caminhou por eles, tocando o nariz de cada peregrino com um dedo diferente. — Vai levar quatro dias para todos visitarem. Lorde Richard quase lambeu os laá bios. Dominica sentiu um calafrio. Mais quatro dias que ele teria para mataá -los. Naã o seria prudente esperar. — Talvez eu pudesse descansar agora — vibrou a voz fraá gil da Irmaã ao seu lado. Sentindo-se culpada por ter esquecido da Irmaã , mesmo que por um breve momento, Dominica virou para traá s. Garren, mais raá pido, segurou-a nos braços e dirigiu-se para a cabana. Ela estava mole de fraqueza. — Leve a Irmaã para o meu quarto — disse o Irmaã o. Dominica seguiu-o para dentro da cabana, passando por um banco de madeira lascado, onde havia inuá meras medalhas expostas para serem vendidas. Plumas de chumbo. Pesadas como seu coraçaã o. A cabana naã o era mais confortaá vel do que uma estalagem para peregrinos, e o quarto naã o passava de uma cela, sem sequer o conforto de uma lareira. Ao canto, uma vela redonda e larga, que nunca era acesa, estava assentada em um suporte de ferro bem ruá stico. Um amontoado de palha no chaã o estava posicionado de forma que o Irmaã o Joseph pudesse avistar o santuaá rio. — Ele me faz um sinal quando precisa de alguma coisa — disse o Irmaã o Joseph, enquanto acendia a preciosa vela e indicava com a cabeça o buraco quadrado, tosco, na parede de taipa. Dominica forrou a palha com seu proá prio manto antes de Garren deitar a Irmaã de frente para a pedra que ela tinha andado tanto para alcançar. — Vou cuidar dos outros — disse o Irmaã o Joseph, deixando-os a soá s. Dominica via em Garren o homem suave e firme, e naã o mais O Salvador. Mesmo assim, ele, de certa forma, a tinha salvado das ilusoã es tolas, pensou, e ela ainda naã o tinha agradecido.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Mesmo quando orava pela vida da Irmaã , Dominica naã o acreditava que Deus ouviria. Soá acreditava no que eles podiam fazer: entregar a mensagem que levaria um assassino aà justiça. — Ainda estaá com a mensagem? — perguntou ela. Ele afirmou sem tirar os olhos dela. — Dominica, quando voltarmos para Readington, haá uma maneira... — Jejuar? Naã o vou jejuar esta noite! — explodiu Lorde Richard atraá s deles. — Meus peá s estaã o sangrando! Descubra alguma comida para mim nesta choça. Garren se levantou, endireitando os ombros. — Preciso ir. Dominica encantou-se quando ele assumiu mais uma vez o fardo de líáder, perguntandose por que um ateu teria vindo. Logo que ele saiu, Gillian, delicadamente, veio ficar ao seu lado. Grata por seu oferecimento silencioso de ajuda, Dominica tratou de deixar a Irmaã mais confortaá vel. Retirou o veá u preto e desamarrou a touca de borda branca. Finos tufos de cabelo grisalho misturavamse aà palha grossa. Juntas, elas tiraram seu haá bito. Sem a roupa preta, coberta com a manta de Gillian, seu pequenino corpo parecia estar encolhendo ateá sumir. Inocente pulou para cima da manta, escondendo o focinho frio. O meá dico entrou, de maã os vazias. Naã o haveria nenhum vinho quente esta noite. Gillian fez espaço para ele tocar a testa da Irmaã e segurar os finos ossos de seu punho, onde um pouco de vida ainda pulsava. — Apoá s uma noite de descanso, ela estaraá melhor — disse Dominica, como se ainda acreditasse que as palavras podiam tornar aquilo realidade. — Se for a vontade de Deus. — Os olhos empapuçados do meá dico falavam a verdade. Amanhaã naã o seria melhor do que hoje. Gillian abraçou-a e deixou-a a soá s com a respiraçaã o difíácil da Irmaã , e os olhos melancoá licos de Inocente. Quando criança, Dominica sempre esparramava os dedos sobre a maã o da Irmaã Marian, querendo que o dedo meá dio criasse um sulco e um calo como o da Irmaã , onde a pena se acomodava. Agora, aà luz tremida da vela, via que aqueles mesmos dedos de sua maã o tinham crescido mais que os da Irmaã , e que a pequena protuberaê ncia ao lado do noá do dedo igualavase aà dela. O baralho das ondas tornava indistintos os murmuá rios que vinham do outro quarto, quando os outros começaram a dormir. Pelo buraco da parede, via-se o anoitecer. Somente o brilho fraco de uma lanterna perpeá tua, acima dos ossos de Larina, iluminava a escuridaã o laá fora. Dominica naã o percebeu que tinha dormido, ateá que as palavras da Irmaã a acordaram. Devido aos muitos dias de tosse, sua voz era quase irreconhecíável, mas as palavras eram taã o familiares quanto a missa. — Era uma manhaã de veraã o. Eu ainda era uma noviça, com a funçaã o de abrir o portaã o para os viajantes, mas, naquela manhaã , o sol apareceu antes de mim. Dominica sorriu. As palavras a levaram de volta aà infaê ncia, onde nada jamais mudava. — Sileê ncio, esta noite voceê estaá cansada demais para contar a histoá ria. A Irmaã continuou: — E eu fui ateá o portaã o e laá estava uma cesta coberta com um pano. — Maçaã s — concluiu Dominica, como de haá bito. — Como Moiseá s. — Coberta com um pano na cor azul de Readington. — Dominica ficou mais atenta. Certamente, tinha ouvido mal por causa das ondas. — Azul como os meus olhos. A histoá ria eá assim. — Eu naã o contei a voceê a histoá ria toda, Nica. — O que naã o me contou?

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Aquela mulher jovem e tola era eu. Devo estar cansada. Ou naã o estou ouvindo direito a voz fraá gil da Irmaã com o barulho do mar. Dominica inclinou-se e chegou mais perto. — O que quer dizer? — Eu sou a sua maã e. As ondas continuavam vindo, incontrolaá veis, mas certamente o mundo deve ter parado. Aquele barulho deixou-a tonta, como se tivesse chegado ao fim da terra e pudesse cair dali. — Minha maã e? — Dominica repetia como um papagaio. — Ah, sim, voceê sempre foi como uma maã e para mim... — Dominica. Voceê eá minha filha. — Dominica deitou a cabeça nos ombros da Irmaã , naã o, da sua maã e. A mulher que mais a amou no mundo. Agora sabia por queê . — O tempo todo. O tempo todo eu tive voceê . Voceê estava laá para mim, e eu naã o sabia. — Voceê sabia. AÀ sua maneira. Eu naã o pretendia contar a voceê mais do que aquilo. Sua vida, a vida da Irmaã , nada no mundo era o que ela pensava. Tinha uma maã e. Isto significava... — Quem era... — Dominica engoliu a seco. Naã o conseguia dizer o meu pai. — Quem era o homem? — John. Conde de Readington. — A Irmaã afastou um fio de cabelo da testa de Dominica. — Voceê tem os olhos dele. — O pai de Lorde Willíáam? — Tal como o filho, um homem grande e louro, forte e corajoso que admirava suas letras infantis ao soletrar a Oraçaã o do Senhor. Pater noster, qui es in coelis... — Mas como... — Dominica gaguejou, sem saber como perguntar. Uma laá grima da idade de Dominica escorreu dos olhos ateá o cabelo ralo da Irmaã Marian. — Ele tinha muito interesse no nosso trabalho. Mais do que um patrono. Quis aprender a escrever, e a Priora me escolheu para ensinar. Passamos muitas horas traçando as letras. Juntos. Juntos. Proá ximos. Proá ximos o suficiente para sentirem o espíárito mover-se entre eles. Como estivera com Garren, pensou Dominica. — Quando descobri que estava carregando voceê , ocultei sob um manto de peregrino, e vim ateá a Abençoada Larina pedir ajuda. Ela me disse para ficar com voceê . — Eu nasci aqui? Entaã o como cheguei ao convento? — John enviou uma ama de leite comigo, e foi quem a deixou no portaã o. Ele tinha muito orgulho por voceê saber escrever. Queria que voceê sempre tivesse um lar no convento. "Todos os que ali moram." Escreveu estas palavras por sua causa. O convento e todos os que ali moram. O lar que a vida inteira quisera sempre tinha sido seu. — Madre Julian sabe? — A Irmaã negou. — Lorde William? — Naã o. — O irmaã o dele? — Voceê foi um pecado soá meu. Pecado. Para Dominica, a palavra naã o combinava com a Irmaã , naã o importa o que a Igreja pudesse dizer. A Irmaã procurou a maã o da filha e apertou-a com uma força que surpreendeu Dominica. — Deve guardar o segredo, — A Irmaã ofegava querendo respirar. — EÉ perigoso... se acharem que a filha de Sir John quer... Readington. — Naã o vou contar a ningueá m. Prometo. — A promessa era pela reputaçaã o da Irmaã , naã o para sua proá pria segurança. Uma mulher oá rfaã , fruto de uma relaçaã o nada convencional, naã o

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford era nenhuma ameaça para Lorde Richard. Aleá m disso, ele jaá a queria morta mesmo. Naã o havia necessidade de dar-lhe mais motivos. Para ela, saber que Readington era seu lar, jaá era o suficiente. — Eu vim... para agradeceê -la novamente — continuou a Irmaã . — Voceê deve vir. Quando eu for embora. — Isso vai ser daqui a muito tempo. — Naã o eá hora de mentiras — retrucou a Irmaã . Dominica tentou orar. Sabia que a Irmaã tinha razaã o. Naã o haveria uma cura milagrosa. Deus jaá tinha respondido com um naã o. Dominica levantou-se do chaã o duro de terra. Se a morte estaá aqui, pelo menos podia suavizar o caminho da Irmaã para o ceá u. — Vou chamar o Irmaã o Joseph para fazer os uá ltimos ritos. — Certamente, Deus entenderia se um irmaã o leigo conduzisse os ritos em vez de um padre. — Naã o. Ela deve estar delirante, pensou Dominica, ajoelhando-se ao seu lado, soltando seus dedos delicadamente. Depois de uma vida taã o piedosa, deve querer os uá ltimos ritos. — Se morrer sem confissaã o, naã o poderaá ir para o ceá u. — Palavras em que ela naã o acreditava mais. Um resíáduo do treinamento que se sobrepunha aà experieê ncia. A Irmaã voltou a segurar a saia de Dominica. — Sem confissaã o. — Mas voceê se confessava todos os dias. — Nunca confessei isso. — Ele a perdoa. Todos que teê m arrependimento no coraçaã o saã o perdoados. — Eu naã o me arrependo. — A Irmaã caiu para traá s sob o manto, e olhou para o ceá u laá fora vazio de estrelas. — Deus conhece os meus segredos. EÉ Ele, e naã o a Igreja, que deve julgar a minha vida. — Mas voceê deu a sua vida aà Igreja! Este foi o sentido da sua vida. — Era o propoá sito. Voceê era o sentido. Eu queria que voceê fosse a freira que eu naã o pude ser. — Ela fechou os olhos e relaxou os dedos. —Talvez eu tenha feito pressaã o demais sobre Deus — sussurrou ela. Dominica enfiou a vela de volta no suporte. Resolveu deixar o Irmaã o Joseph dormir. — Direi que voceê fez sua uá ltima confissaã o a mim. Eu queria que você fosse a freira que eu não pude ser. Talvez eu tenha feito pressão demais sobre Deus. A peregrinaçaã o de Dominica nunca foi dela de verdade. Agora, tinha terminado em uma pedra vazia na beira do mundo. Aquela que fora seu modelo de vida, com a feá perfeita, vivera uma mentira. O que mais ela precisava para aprender? Ateá mesmo a feá perfeita naã o levava a nada. Naã o haá razaã o para ter feá em Deus. Nenhuma razaã o para fazer nada aleá m de existir ateá a libertaçaã o pela morte. — Cuide de Inocente. Quando eu for embora. — Naã o se preocupe. — Dominica acariciou-o, e eles ficaram unidos em um cíárculo. Com uma maã o segurando a Irmaã , e a outra Inocente, naã o sobrou nenhuma para enxugar a laá grima que pingava do queixo. — Noá s soá estivemos... juntos uma uá nica vez — falou a Irmaã . — Eu me apeguei a essa lembrança que me acompanhou todas as noites da minha vida. — Pater noster, qui es in coelis — começou Dominica — sanctificetur nomen tuum. Dominica adormeceu segurando a maã o da Irmaã , e acordou em um quarto escuro e frio, vazio da sua alma imortal.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Capítulo Vinte e Três Do lado de fora, as ondas rolavam uma apoá s a outra, exatamente como antes. Dominica olhou pelo buraco tosco da parede para ter certeza. Algumas nuvens ainda cobriam o horizonte, camuflando a aurora. Gaivotas dormindo ocupavam a pedra de Larina. Como o mundo podia parecer o mesmo quando tudo o que ela conhecia estava despedaçado? Dominica voltou a olhar para a Irmaã . Naã o, para o corpo que a Irmaã recuperaria com a ressurreiçaã o. Talvez estivesse enganada. Talvez ela naã o estivesse morta. Dominica chegou mais perto. Nenhuma respiraçaã o movimentava o peito da Irmaã . Deliberadamente, abriu a boca e engoliu o ar. Quem sabe, com a sua inalaçaã o, a Irmaã pudesse respirar de novo. Os peregrinos deveriam orar na noite anterior aà ida ao santuaá rio, mas, em vez disso, dormiam, irrefletidamente, desejando sair do mundo por algumas horas. Com a certeza de que retornariam. Com dedos indiferentes, Dominica tirou do saco o pergaminho, a pena e a faca. Pareciam peso morto nas suas maã os. Queria escrever palavras de louvor, elogios e recordaçoã es para a Irmaã , mas as palavras naã o vieram. Nunca mais pegaria uma pena. De repente, precisou sair do quarto. Mais tarde, enfrentaria as consequü eê ncias da morte, responderia a cada peregrino que se aproximasse para polidamente dizer bom-dia e perguntar se a Irmaã estava se sentindo melhor hoje. Agora, precisava gritar, chorar e soluçar onde os sons naã o acordariam ningueá m. Beijou a fronte fria da Irmaã . Estendido sobre a manta, Inocente naã o levantou a cabeça. — Cuide bem dela — murmurou para o caã o. Quando passou, peá ante peá , pelos peregrinos que dormiam, nem sequer olhou para ver Garren. Do lado de fora, encheu os pulmoã es de ar salgado, livre do cheiro da morte, e caminhou pela areia uá mida, apertando o pergaminho em uma maã o e a faca e a pena em outra. A mareá vazante encalhou os pequenos barcos de suprimento do Irmaã o Joseph no alto da praia rochosa. Os peregrinos se arrastam quando a maré está baixa, dissera ele. Hoje, apoá s uma noite de jejum e uma manhaã de confissaã o, estariam se arrastando pelas pedras molhadas para fazer sua prece diante da santa. Dominica jaá naã o orava para receber um sinal para entrar para a ordem. Naã o havia nada que a prendesse ao mundo que conhecia. Nem Deus, nem a Irmaã , nem a escrita. Ela guardou o pergaminho, a pena, e a faca no saco, e escalou o muro, aceitando os arranhoã es da pedra aá spera contra as palmas da maã o. Da uá ltima vez, Deus tinha afogado sua escrita nas aá guas. Desta vez, ela proá pria se encarregaria de acabar com as suas palavras. Pegou o pergaminho com uma maã o, e a faca com a outra. Estendeu o pergaminho e o golpeou com a faca. O couro rebelde resistiu, exceto por um pequeno talho. Ela golpeou outra vez, com mais força, e fez um buraco maior, Deixou a faca escorregar pela pedra, agarrou o pergaminho com as duas maã os e tentou rasgaá -lo. Finalmente, prendeu um lado na pedra sob a sola do sapato e puxou. Metade do pergaminho soltou na sua maã o. Ela o arremessou para a aá gua verdeacinzen-tada, monoá tona, e sem brilho. — Nica, o que estaá fazendo? Ela se assustou com a voz de Garren. Ele estava abaixo dela, zangado, em uma praia arenosa do outro lado da pedra. — Naã o faça isso — disse ele. Antes que pudesse alcançaá -la, ela lançou o outro pedaço,

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford que se afastou boiando na onda. — Nica, por queê ? Sua escrita eá parte de voceê . — Sinto muito. Voceê pagou um bom dinheiro por aquilo. — O dinheiro naã o eá nada. AÀ escrita eá voceê . — Dominica olhou na direçaã o da linha indistinta do horizonte. A escrita se foi. Tudo o que eu conhecia se foi. — A Irmaã foi ao encontro de Deus. — As palavras tremeram na sua garganta, e seus ombros balançavam. Ele a tomou nos braços, abrigando-a do vento. — Minha pobre Nica — murmurou ele, com seus laá bios afetuosos e quentes contra o cabelo dela. Seu toque preencheu um pouco do vazio sofrido. Garren penetrava seu ser. Garren que tinha estado ao seu lado, na sua respiraçaã o, na sua pele pelos dias e distaê ncias que passaram juntos. Garren que lhe trouxera alegria e duá vida. Dominica aconchegou-se mais, sentindo o prazer do seu calor, do seu cheiro de homem, a sensaçaã o comovente e perturbadora de estar proá xima dele. O peso no seu peito aliviou. — Mas mesmo sem a Irmaã , voceê naã o pode desistir de escrever. A escrita eá a sua vida. — A minha vida naã o eá o que eu pensava. — A de ningueá m eá . Eu pensava que era uma órfã sem nome, e queria viver para a glória de Deus. Mas sou uma bastarda de uma freira e um lorde. E agora, o que quero? Ela procurou os olhos verde-folha de Garren, querendo contar-lhe, dividir com ele o muá tuo amor por William, mas naã o podia revelar o segredo da Irmaã . — Se eu pudesse, a salvaria dos desapontamentos de Deus. Ela sorriu com uma sensaçaã o de paz e certeza que naã o sentia haá muitos dias e quiloê metros. Sabia o que lhe restava. Ser uma mulher. Viver um dia de cada vez. Aqui na terra. Soá uma vez. Uma vez para recordar todas as noites da minha vida. Aconchegada nos braços grandes de Garren, inclinou a cabeça para traá s aà procura dos olhos dele. — Talvez Deus queira que salvemos um ao outro. Ela o abraçou com força e correu as maã os para cima e para baixo pelas suas costas, amando cada centíámetro de vida que sentia quando ele reagia ao seu toque. Seus laá bios encontraram a curva do pescoço, sob a correia de couro que prendia o relicaá rio vazio, e o beijaram. Ele soltou um gemido que vibrou em seus laá bios. Ateá que Garren a afastou e pulou para fora da pedra. — Eu naã o posso. Ela o seguiu, descendo com dificuldade para a areia molhada. — "Carpe diem", voceê disse. A morte pode chegar amanhaã . Garren soltou-se dela. — O seu amanhaã eá no convento. — Deus me deu um sinal. Naã o devo me tornar uma freira. — Soá porque naã o pode voar? Haá uma maneira. Posso fazer a Madre Julian acreditar... — Deus nem sempre responde aà s nossas preces da maneira que desejamos. Compreendo isto agora. Voceê eá a minha resposta. Os olhos de Garren a acariciavam, repletos de desejo, desesperados, com uma dor que vinha de suas entranhas, onde ele jamais lhe permitira chegar. — E voceê eá a resposta aà s preces que nunca pude fazer — disse ele. — Mas a resposta veio tarde demais. — Naã o. O espíárito se move entre noá s. Eu o sinto. — Ele balançava os braços rebeldes, como se estivesse tentando fazer qualquer coisa, menos tocaá -la. — Voceê naã o pode desistir do seu sonho por causa de... — Garren fechou as maã os em punho, e abaixou os braços retesados. — ...por causa disso.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Isso. Uma palavra taã o pequena para o elo que ligara suas almas. Dominica deitou a maã o sobre o peito dele, querendo sentir seu coraçaã o bater. — Naã o, naã o por causa disso. — Voceê naã o pode. Naã o vou deixar. — Sua voz falhava de agonia. — Eu naã o vou embora enquanto naã o ceder. — Naã o. — Claro. — Nem agora, nem nunca. — Por queê ? — As laá grimas brotavam nos olhos de Dominica de um lugar profundo e precioso, dentro de seu corpo que clamava por ele. — Porque naã o eá a vontade de Deus. — Naã o me fale da vontade de Deus! — As palavras irrompiam da sua garganta. — Eu acreditei na vontade de Deus. Ateá pensei que podia moldaá -la. Agora eu sei. Ele naã o tem nenhuma vontade para mim. — Mas Ele tem. — Seriedade, tristeza e alegria confundiam-se no semblante de Garren. — Quando voceê estava tentando pular, prometi a Deus que, se Ele a salvasse, eu O deixaria teê la. Todo o ardor esvaziou-se do rosto de Dominica. E ela ouviu a gargalhada de Deus no grito das gaivotas que acordavam. Depois, cerrou as maã os e respondeu. — Naã o me importa que promessas voceê fez a Deus. — Vou dizer aà Priora que Larina deu um sinal a voceê . Ainda poderaá viver a vida que deseja. — Naã o haá nada naquela vida que eu queira agora. — Dominica sorriu com a tristeza da mulher madura que se tornara em treê s semanas. — Eu quero voceê . Mais do que a minha alma imortal. O coraçaã o de Garren bateu forte ao som daquelas palavras e as ondas corriam em direçaã o aà praia com a rapidez do sangue das suas veias. Por traá s da dor da morte da Irmaã , ele via uma centelha de vida nos olhos ardentes de Dominica. A cada morte, uma parte sua morrera junto, ateá ele pensar que apenas vivia. Naã o deixaria o mesmo acontecer com ela. Dominica esticou os dedos para tocar seu rosto. Ele naã o os afastou. — Por favor. Eu a salvei. Deus. Ela é minha. Ela se aproximou e acariciou sua barba, suas orelhas, e emaranhou os dedos no seu cabelo. Quando o beijou, ele sentiu o gosto do sal. Todo o desejo que Garren vinha sentindo ao seu lado explodiu. Ele a apertou, primeiro suave, depois mais forte, como se pudesse tornaá -los uma soá pessoa. Beijou sua boca amorosa, absorveu sua líángua e seus laá bios, sentiu o gemido no fundo da sua garganta, e devorou-a como se estivesse morrendo de fome e quisesse saborear o alimento vital. A mareá vazante passava por cima dos sapatos, sugando a areia sob os seus peá s. — Venha. — Garren levou-a pela maã o para um recanto coberto de areia seca, protegido do vento, fora da visaã o da cabana e da ilha. Depois, tirou seu manto e estendeu-o sobre a areia. Quando Dominica, nervosa, se atrapalhou com seu vestido, ele pegou suas maã os e beijou cada dedo. — Calma. Calma. — Ele falava para si mesmo, tanto quanto para ela. Os laá bios de Dominica curvaram-se em um sorriso que parecia mais experiente do que ele esperava. — Suave, naã o pressione. — O queê ? — EÉ o que a Irmaã Marian me dizia quando eu praticava minhas letras. Que eu fazia com muita força.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Naã o faça nada. — Ele deixou a boca demorar-se nos dedos dela, provocando-a ao passar a líángua na pele sensíável entre eles. Lambeu o pequeno calo no dedo meá dio onde a pena apoia, depois introduziu cada um dos dedos na boca, observando seus olhos arregalarem de choque, e entreabrirem de eê xtase a cada toque da sua líángua. Quando endureceu, pronto para ela, quis saber se os seus seios estavam intumescidos, se ela estava molhada de desejo como na noite em que se confessou. — Venha — disse ele. — Sente-se. Ela se sentou no manto, as pernas estendidas. Ele desamarrou sua saia, descobrindo-a parte por parte. Ela curvou um joelho, e a visaã o de suas pernas brancas como a lua, suavemente esculpidas daqueles dias de caminhada, quase o desmontou. Ele apoiou a maã o grande e quadrada no joelho dela e acariciou a parte interna de sua coxa com o polegar. Dominica estremeceu quando ele pressionou os laá bios na sua pele quente acima do joelho. Seus dedos emaranharam-se nos cachos da nuca de Garren. — Seu cabelo eá aá spero como um arbusto espinhoso — disse ela ofegante, deixando os dedos descerem da nuca e entrarem pela tuá nica. Ansiosos os dedos roçaram as costas nuas de Garren, provocando um calor que se estendia e pulsava entre as pernas dele. Em resposta, a maã o dele subiu por sua coxa e demorou-se na pele intocada proá xima aà sua parte mais íántima. Ela se aproximou mais da maã o dele, e ele a deitou suavemente sobre as costas e tomou seus laá bios de novo, maravilhado com a sensaçaã o daquele corpo pressionado inteiro contra o seu. — Vire ao contraá rio. Deite sobre o estoê mago. — Por queê ? — perguntou ele colado aà sua boca, sem querer soltaá -la. — Veraá . — Empurrou o ombro dele para traá s. Relutante em virar-se, ele se acomodou sobre o manto. — O que estaá fazendo? Dominica levantou a tuá nica dele, deixando suas costas expostas ao ar marinho, e encheu a maã o de areia. — Shh. Fique de olhos fechados. Garren sentiu-a esfregar a areia nos ombros, entre as omoplatas, descendo a coluna, depois tirar. Com um dedo delicado como uma pluma, ela desenhou traços ondulados da esquerda para a direita nas costas dele. Uma onda de calor desceu por seus braços e pernas, confortante e excitante. Ele aliviou o peso dos quadris, dando espaço ao seu membro duro, e deu uma olhadela. Pelos olhos semi-abertos, observou-a morder o laá bio em atitude de concentraçaã o. Com o uá ltimo traço, ele sentiu a pontuaçaã o de um beijo quente e uá mido abaixo da omoplata direita. — O que foi isso? — perguntou, apoiando-se nos cotovelos para olhar para ela que se deitou ao seu lado. — Escrevi: "meu amado eá meu, e eu sou dele." Garren abraçou-a, apertado em torno da cintura dela, e sentiu os seios macios em seu peito. Meu. — Lindas palavras — murmurou ele no seu ouvido. — Deus as escreveu. Surpreso, afastou-se para ver o rosto dela. — O queê ? — No Cântico de Salomão. Naã o teve que ler a Bíáblia no mosteiro? — perguntou ela, num sorriso. Ele nunca a tinha visto com tanta disposiçaã o para provocaá -lo, e alegrou-se com aquilo. — Ler nunca foi faá cil para mim. — Eu queria que noá s nos sentíássemos daquele jeito. — Ela o abraçou e o apertou bastante, tirando-lhe a respiraçaã o, e suas palavras abafaram-se contra o peito dele. — Soá uma

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford vez. — Uma vez, naã o — murmurou ele. — Sempre. Lamentando a aspereza de seus dedos e tudo o que jaá tinha passado por eles, Garren os deslizou pelas costas de Dominica, na curva da cintura, acima dos quadris, ateá o braço, e pelos seios, e sentiu o mamilo intumescido atraveá s da laã aá spera. Ela ofegava ao seu toque. Ela pressionou os laá bios contra os dele, e ele se perdeu nela, taã o perdido quanto estivera na neblina, ateá esquecer onde estava e quem era, e o que tinha prometido aà Priora, e ateá mesmo o que tinha prometido a Deus. Quando entrou nela, sentiu-se chegando em casa, e silenciou a voz no seu interior que sussurrava E se você a perder agora ? O grito entusiasmado das gaivotas acordou Dominica do que parecia ser um sonho maravilhoso. Nem o seu momento com Garren, nem o pesadelo da morte da Irmaã podiam ser reais. Mas Garren ainda estava deitado ao seu lado, tangíável, protetor. Ainda sentia na pele a sensaçaã o do seu toque. — Seus olhos estaã o diferentes — disse ela. — Os meus? — Garren fez uma expressaã o interrogativa. — Como? — Eles eram mais escuros. Como o musgo sobre o tronco de uma aá rvore. Agora, parecem o sol atraveá s das folhas verdes. — E os seus jaá naã o saã o taã o intensos a ponto de atingir um baá rbaro. Ela se deitou de novo, admirando o ceá u azul cinzento, escuro como o mar. — Eu poderia adormecer de novo neste instante. — Ele riu e a abraçou, cobrindo-a com o corpo, sussurrando no seu ouvido: — Provavelmente, porque quase naã o dormiu na noite passada. Estaá cansada demais para perceber que a areia estaá uá mida. Dominica estendeu um braço acima da cabeça. Onde as ondas naã o tinham chegado, pegou uma maã o cheia de areia seca e jogou por dentro da tuá nica sobre as costas nuas de Garren. — Naã o me importa se estamos cobertos de areia. Garren deu um grito, segurou os braços dela e virou-a de costas. Ela riu e o beijou, e ele correspondeu, e ela novamente explorou a pele dele com as maã os, feliz de ver que a areia ainda naã o tinha chegado aos pontos mais secretos. Depois, Dominica tentou ouvir algum barulho da cabana, e ficou surpresa e grata por ainda estar em sileê ncio, pois o dia jaá havia raiado. As ondas continuavam indo e vindo. Atraá s da parede, o santuaá rio ainda estava assentado na sua pedra. A Irmaã ainda se importara. Dominica levantou, abruptamente, sacudiu a saia amarrotada, e limpou a areia uá mida dos dedos dos peá s, da trança e da cabeça. Estava na hora de enfrentar a morte outra vez. E a vida. Mas, agora, vida significava Garren. — Precisamos enterraá -la de frente para o santuaá rio — disse Dominica. — Ela gostaria disso. Nica, sinto muito pela Irmaã . Eu tambeá m vou sentir sua falta. As laá grimas brotaram, finalmente, embaçando a linha entre o mar e o ceá u. Os soluços apertaram sua garganta, golpearam seu peito e torceram seu estoê mago, ateá ela naã o conseguir mais prendeê -los. Ela tremia nos braços dele, e enterrou a cabeça no seu peito. Garren acalentou-a sem palavras de falso conforto. Nada sobre uma eternidade com Deus. Ela naã o acreditaria nisso agora. Dominica chorou ateá a garganta ficar doendo, e os olhos ficarem quentes e inchados. — Ela compreendia nossas fraquezas, e nos amava mesmo assim — disse ele. — Porque tinha as suas proá prias fraquezas. — E agora, ela, tal como a maã e, reconhecia

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford a sua proá pria fraqueza por este homem. Dominica sentiu o cheiro forte e penetrante do mar misturado ao da pele quente de Garren. Ainda sentia uma umidade entre suas pernas e coxas, e, talvez, houvesse uma criança em sua barriga. Fechou os olhos para guardar a lembrança do calor daquele corpo pressionado contra o seu, enquanto a aá gua lambia a areia. Na beira do mar, ajoelhada na areia uá mida, Dominica mergulhou os dedos na aá gua, depois levou-os aos olhos quentes, que arderam do sal. Um batismo gelado para entrar em um novo mundo. Agora precisava fazer uma uá ltima coisa. Levar a mensagem de Lorde William para o padre. Ter a certeza de que Richard seria punido. — Hoje, enterraremos a Irmaã Marian. Amanhaã , levamos Lorde Richard para a justiça — disse Dominica. — EÉ perigoso demais. Irei sozinho — retrucou. — Preciso ir, porque fui testemunha das palavras dele. — E porque ele era meu irmaã o, mas isto naã o podia dizer.—E depois... — Eu vou cuidar de voceê . — Dominica aceitou.

Capítulo Vinte e Quatro Tremendo de frio sob a chuva fina, Dominica sentou-se no banco de madeira, esvaziado das plumas de chumbo. Com a mareá baixa, o fundo do mar se estendia ao longo do caminho ateá o santuaá rio, mas o Padre naã o veio da ilha, nem para enterrar a Irmaã . O Irmaã o Joseph deu de ombros. — Ah, ele nunca abandona a Abençoada Larina. Eu levo o que ele precisa. Alimento, velas, vinho. — Ele sorriu com um orgulho de criança. — Mas vou cuidar da Irmaã Marian. Cuido dela desde a primeira vez que esteve aqui. — E suspirou. — Haá muito tempo atraá s. Despidos de camisa e de vaidade, Garren e Jackin cavaram juntos o tuá mulo da Irmaã . Dominica confortava-se olhando a curva do ombro de Garren, recordando a sensaçaã o daqueles muá sculos sob os seus dedos. Quando ele virou de costas, sentiu como se as palavras que havia escrito devessem ficar gravadas para todos verem. "Meu amado eá meu, e eu sou dele." Todos se aproximaram dela com palavras de consolo. Os irmaã os Miller falaram em harmonia, a viuá va murmurou suas condoleê ncias. Ateá Ralf veio, com os olhos vermelhos, torcendo a tuá nica entre os dedos. — Pode escrever uma coisa para eu levar para a Abençoada Larina? Quero que ela saiba o que a Irmaã Marian fez por mim. E para dizer a Larina que ela tentou chegar. — Eu naã o posso escrever agora — negou Dominica. Não poderei nunca mais. Bom demais para sujar as maã os cavando, Lorde Richard aproximou-se arrogante para mentir. — Uma inspiraçaã o para todos noá s. — Dominica fitou aqueles olhos maus, as sobrancelhas estreitas e os dedos finos procurando alguma semelhança com o pai. Seu pai. — Voceê encontraraá conforto no santuaá rio. — Amanhaã , Garren e eu vamos caminhar ateá laá quando a mareá permitir. — E voltaremos para fazer com que você seja julgado. — Irei com voceê s. Estou ansioso para rezar pela recuperaçaã o do meu irmaã o. — Mas naã o pode! — Eles precisavam ter um tempo a soá s para explicar tudo ao Padre. — Quero dizer, a Irmaã seria a terceira, e agora... — Agora eu estarei com voceê s. Orando. — Dominica procurou por Garren nervosa. — Acho que o Irmaã o Joseph precisa aprovar.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford —Naã o se preocupe. Jaá falei com ele. — Richard apertou tanto o braço dela que mais parecia um beliscaã o. Gillian e a viuá va saíáram da cabana onde prepararam a Irmaã para o enterro. — Ela estaá pronta — disse Gillian. — Quer ficar sozinha com ela um pouco? — Dominica assentiu. Uma vela nova tremeluzia na escuridaã o do quarto uá mido. Inocente a viu entrar, mas naã o se mexeu. O corpo pequenino da Irmaã , embrulhado na mortalha feita de seu manto de peregrina, jaá estava menor, como se o seu espíárito tivesse ocupado um espaço fíásico. — Vim me despedir — começou ela para o quarto aá rido. — Sou uma mulher diferente daquela da noite passada. Naã o vou escolher o mesmo caminho que voceê , mas sei que vai compreender. Falar com a Irmaã em voz alta confortou-a. — E quero agradeceê -la. Por tudo. Ateá pela vida, mesmo sem saber o que faço dela agora. Ficou esperando por um som ou sensaçaã o de certeza. Nos braços de Garren sentira tanta segurança. Queria a beê nçaã o da Irmaã , mesmo agora. Mas se ela tinha ido ao encontro de Deus, naã o voltaria para Nica. Levantou-se, soluçando, para participar da cerimoê nia do enterro. Com os muá sculos tensos, Garren ficou deitado, com os olhos fechados e os ouvidos atentos, a ouvir o coro das respiraçoã es de cada um, antes de sair da cabana. Abriu um olho e observou o quarto. Naã o viu Dominica, que dormia na cela do Irmaã o Joseph. De onda em onda, o barulho do mar suavizava as tosses e os roncos. Somente Richard estava deitado de costas, com as maã os atraá s da cabeça, piscando para o teto. Durante o longo dia de escavaçaã o, e enchimento de tuá mulo, Garren observou a manobra de Richard para fazer parte do primeiro grupo que se iria ao santuaá rio no dia seguinte. Garren naã o o impediu. O tempo se esgotara. Se William tinha de ter sua pluma e sua justiça, precisaria ir ao santuaá rio esta noite. Sozinho. Deu mais uma olhada em Richard. Seu rosto relaxado estremecia com um ronco. Agora. Garren saiu furtivamente, segurando o relicaá rio na maã o, e, em seguida, colocou-o em volta do pescoço, antes de empurrar um dos pequenos barcos do Irmaã o Joseph para dentro da aá gua. A viagem levou mais tempo do que ele esperava. O vento competia com ele pelo controle do barco. Sensíáveis de tanto escavar, os ombros doíáam quando ele forçava os remos contra as ondas que rolavam para a praia, implacaá veis como os arcos dos arqueiros ingleses que batiam contra a muralha formada pelos homens do rei franceê s em Poitiers. Relembrando aquela manhaã , encheu-se de culpa, como as ondas ameaçavam encher o barco de aá gua. Eu quero você. Tudo tinha mudado. Naã o tiveram mais nenhum momento a soá s. Mal falara com Dominica durante o dia, temendo naã o conseguir enganaá -la, nem os outros. Se chegasse muito perto, era capaz de seguraá -la nos braços e clamar que ela era sua, naã o importando quem pudesse ver e ouvir. Amanhaã . Depois que a tivesse salvo de Richard. Dominica ficaria com raiva quando descobrisse que ele tinha ido sozinho, mas certamente entenderia quando William fosse justiçado. E naã o entenderia, nem mesmo agora, por que ele precisava profanar um santuaá rio. Garren duvidava se ele proá prio se entendia. Vou cuidar de você. Ele prometera. E iria, apesar de naã o saber como.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford O barco bateu na praia rochosa da pedra com um som de ossos esmigalhando. Ele o puxou para dentro das sombras assimeá tricas da lua, e se aproximou furtivamente da pequena porta de madeira. O abrigo ruá stico, em pedras da rocha em que se assentava, era pouco maior do que o tuá mulo da santa. A rocha da ilha formava o chaã o. Paredes de seixo rolado elevavam-se acima de onde ele podia alcançar, como se tentando imitar o teto de uma catedral. Os buracos em cada parede deixava entrar o barulho das ondas e a luz fraca da lua minguante. Uma laje polida, coberta de pedras, marcava o lugar de descanso da santa. Diferentemente de alguns santos, seu rosto naã o estava exposto para o povo. Tampouco, algum osso extraviado. Sem duá vida naã o havia nada que valesse a pena guardar, depois que ela se estraçalhou nas rochas ali embaixo. Uma pequena porta do outro lado levava aà cela do Padre. Garren deu um passo. Ficou tenso. Atento. Roncos. Mais altos que os da viuá va. Primeiro as plumas. Uma luz incerta oscilava em uma lanterna sobre a pilha de pedras onde a santa estava. Atraá s dela, havia pendurada uma pequena caixa de bronze facetada. Olhou atraveá s do pequeno vidro da porta. Dentro, havia alguma coisa felpuda. Soá uma pequena, prometera a William. O ar salgado esfriou o suor que brotava da sua cabeça. Soá uma pequena pluma que tinha prometido a um homem que provavelmente estava morto. Por que naã o tinha pegado mais penas de ganso? William, se eá que ainda respirava, nunca saberia a verdade. Mas quando o relicaá rio balançou, Garren teve a sensaçaã o de que Deus estava observando, e esperava que ele cumprisse sua promessa. Despertada por um barulho desconhecido, Dominica viu a lua que parecia um biscoito comido pela metade. Jaá deve estar na hora do uá ltimo caê ntico da noite. A Irmaã , naã o, Minha Mãe foi enterrada hoje. O Irmaã o Joseph falou as palavras do enterro. Depois, quando a terra cobriu a mortalha, Inocente enroscou-se feito uma bola ao lado do tuá mulo e recusou-se a sair dali. Agora, entaã o, Dominica dormia sozinha, sem o conforto da Irmaã e de Inocente. Ateá mesmo sem Garren. Eu vou cuidar de você. Naã o tiveram chance de ficar a soá s de novo depois da manhaã maá gica. Mas os olhos de Garren encontraram os dela quando ele percebeu o que Lorde Richard estava tentando fazer. Não se preocupe, diziam. Mas ela se preocuparia enquanto naã o entregassem a missiva ao Padre amanhaã . Depois, poderiam fazer planos para as suas vidas. Dominica tentou rezar pelas almas da Irmaã e de Lorde William. EÉ estranho pensar em rezar para sua maã e e seu irmaã o. Mas estava taã o vazia de palavras para orar quanto para escrever. Cansada de ficar deitada acordada, levantou, e se inclinou sobre as pedras aá speras do buraco da parede da cela para olhar para o ceá u cheio de estrelas que emoldurava a rocha de Larina. A lua minguante cintilava nas ondas pretas em movimento como estrelas brilhando na aá gua. Uma pequena forma preta pareceu balançar na aá gua, mas podia naã o passar de uma impressaã o provocada pelo luar e pelas ondas. Ela piscou. Ainda estava laá . Era um barco. Olhou novamente e reconheceu a silhueta familiar de ombros largos. Garren. O alíávio que sentiu deixou-a sem energia. Entaã o era isso. Agora entendia por que naã o devia se preocupar. Garren estava levando a mensagem para o Padre esta noite.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica sentiu uma pontada de decepçaã o. Tambeá m devia estar laá para vingar seu irmaã o. Agora, bem acordada, observou o barco balançar ateá desaparecer no santuaá rio. Teve a impressaã o de que a sombra dele se mexeu, mas sombra, luar e ondas se movendo confun diam seus olhos. Richard saiu da cabana, correu pela enseada e empurrou o segundo barco para dentro d'aá gua. Dominica abaixou a cabeça para que ele naã o a visse. Ateá que o som dos remos na aá gua sumiu. O barco de Richard ia em direçaã o do santuaá rio. Dominica segurou seu manto, sem parar de pensar como poderia manejar um barco e deter Lorde Richard. Deus a salvara das aá guas uma vez. Certamente, Ele a ajudaria em consideraçaã o a William. E a Garren. Dominica empurrou o barco e entrou na aá gua. O mar sorveu seu manto e encharcou sua saia. Ela lutava para conseguir entrar no barco, O sal fazia arder a palma da maã o que arranhara nas pedras. O barco balançava ao acaso. Ela tentou dominaá -lo, mas ele escapou e ficou aà deriva, carregado pelo vento e pela mudança da mareá . Dominica entrou em aá guas mais profundas, levada pelas ondas com seu manto ensopado. Fez força para naã o se lembrar dos momentos horríá veis no rio. Desta vez, naã o tinha nenhum Salvador. Precisaria salvar-se. E a Garren. Seus dentes rangiam, e ela puxou o barco de volta para onde a aá gua batia na sua cintura. Conseguiu se apoiar na lateral do barco e se jogar para dentro, caindo de rosto numa poça. Quando levantou a cabeça, viu que a mareá vazante a levava na direçaã o do santuaá rio. Sentou-se, de costas para o santuaá rio, observando a areia recuar e, toda atrapalhada, procurou os remos. Remava com um, depois com o outro para manter o barco alinhado com a cabana. Os remos deslizavam ao longo da borda do barco e furavam sua maã o com lascas de madeira. Dominica olhou com saudade para o muro de seixo rolado que escondia a pequena enseada onde ela e Garren tinham se deitado. Naã o era hora de sonhar. Se fosse muito para a esquerda, bateria nas rochas; muito para a direita, seria levada para o oceano. Dominica virou-se para ver se estava remando em linha reta. A sombra magra de Lorde Richard a aguardava. Naã o podia mais fazer a volta, pensou ela, levantando os dois remos. Deus, ou o destino, lhe dera esta oportunidade. Precisava ser corajosa e aproveitaá -la. Seus ombros doíáam, e uma ferida queimava sua maã o direita. O purgatoá rio naã o seria pior do que este ziguezague em direçaã o ao desastre, sem ter nada a que se ape gar aleá m da esperança. O barco fez um baque surdo ao bater na praia. Richard levantou a traseira do barco da aá gua, e Dominica foi jogada para a frente. A gargalhada estridente vibrou no seu ouvido. — Foi muita gentileza sua ter vindo. Economizou-me o esforço de procurar outra maneira de mataá -la. Dominica tentou gritar e avisar, mas Richard silenciou-a com uma mordaça, antes que ela conseguisse. — Quando terminar com ele, vou empurraá -la laá de cima. Vai ser encontrada morta. Como todos a viram tentar voar, vaã o achar que repetiu a tentativa. E, desta vez, naã o vai haver ningueá m para salvaá -la. Dominica deu um tapa no rosto dele, mas, em seguida ele segurou suas maã os. Em uma luta corpo a corpo, conseguiu colocaá -la no fundo do barco, amarrar suas maã os e, depois, os tornozelos. Pelo menos, deixei-o sem foê lego, pensou ela, observando o peito de Richard subir e

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford descer. Quem sabe naã o ajudei Garren com alguns minutos de vantagem. Lorde Richard desembainhou sua adaga, e enfiou-a cuidadosamente em uma pequena sacola. — Fique aíá — ordenou ele. As pedras faziam barulho com seus passos, ao entrar na pequena construçaã o onde uma luz tremeluzia. Com os dedos entorpecidos, Dominica começou a forçar a corda que prendia seus tornozelos. Mesmo acocorado precariamente nas pedras empilhadas sobre o tuá mulo de Larina, Garren naã o conseguia alcançar o relicaá rio pendurado. Uma gaivota o observava. Estranho, pensou, a esta hora, os paá ssaros dormem. Limpou na tuá nica a maã o escorregadia de suor e virou-se novamente para as plumas. Agarrou o pequeno fecho e o sacudiu. Encoberta por uma grossa crosta salgada de muitos anos, a caixa rangeu relutando em ser aberta. Inclinando-a para baixo, ele olhou dentro. Laá , havia treê s plumas. Uma era cinza como a pena de uma gaivota. A segunda, mais longa, estava sem as plumas para ser usada como pena de escrever. Finalmente, viu uma pequena e fofa pluma de ganso. Com os dedos treê mulos, estendeu a maã o para pegar a pluma de ganso. Uma brisa afastou-a. Garren fechou a pequenina porta com um tapa. As dobradiças quebraram e as outras plumas caíáram e sumiram na escuridaã o. Ele ficou de joelhos para procuraá -las pelo chaã o, pressionando as palmas molhadas no chaã o uá mido, tentando sentir uma pluma no meio da ter ra marcada pelos anos de pisadas de peregrinos. Atraá s dele, a grande porta de madeira rangeu. Com os sentidos aguçados de um guerreiro, Garren desembainhou sua adaga e levantou, examinando o pequenino coê modo como se fosse um campo de luta. Richard, de adaga em punho, entrou. Richard mostrou os dentes, mais um rosnado que um sorriso, e apontou a adaga para a porta aberta pendurada da caixa de bronze. A lanterna lançou uma luz de vela amarela e irregular nas paredes. — Ora, ora. Roubando relíáquias. O Salvador naã o eá taã o santo quanto finge ser. — O que o traz ao santuaá rio no meio da noite, Richard? Uma oraçaã o particular? — Garren elevou a voz. — Vou acordar o Padre. — Naã o se preocupe em gritar. Ele estaá desmaiado de tanto beber, como acontece todas as noites. — Entaã o voceê deve ter vindo me matar como matou o seu irmaã o. — Que acusaçaã o! — exclamou Richard. — Estou aqui para recuperar uma certa carta. — E estendeu a maã o. — Agora me deê . — Eu naã o sei do que estaá falando. — Claro que sabe. EÉ aquela que dizem ser do meu irmaã o me acusando de envenenaá -lo. E deixando tudo para voceê . EÉ uma histoá ria taã o traá gica. Um homem que todos chamavam de O Salvador estava planejando tomar a terra do homem que ele dizia ter salvo. — Ambos sabemos quem matou William pelas terras — afirmou Garren. — Sim, taã o traá gico, voceê chegou a seduzir Dominica para forjar a carta. Espantado por eu saber disso, naã o eá ? — Saber o queê ? — Garren deu um passo para a direita, com cautela, mantendo a pequena pilha de pedras entre ele e Richard. Precisava manter o controle.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Naã o sabia que era eu quem ia lhe pagar para deitar-se com Dominica, naã o eá verdade? A Priora naã o tem um vinteá m. — Voceê ? — Garren vestiu uma maá scara de surpresa por cima do seu oá dio. Deixe-o pensar que eá esperto. Deixe-o falar. Acompanhe o jogo. — Entaã o me deê meu dinheiro. Fiz por merecer. — Naã o viveraá para aproveitaá -lo. — A risada de Richard transformou-se em uma tromba. — Agora me deê a carta, ou vou tirar do seu cadaá ver. Ningueá m vai me culpar por matar um assassino. E a pequena escriba vai cair nas pedras depois de tentar voar outra vez. Nica. Ela dormia a salvo na cabana. — O que quer dizer? — Ela me seguiu ateá aqui. — Ele riu. — Acho que pensou que seria a sua salvadora desta vez. Os graã os de areia do chaã o queimavam contra a palma de Garren que empunhava a adaga. Ele conteve o impulso de pular na garganta de Richard. A líángua do homem a maculava. — Onde estaá ela? — Ah, entaã o voceê gostou de experimentaá -la? — Estaá com inveja, Richard? — Deixei que um pecador como voceê lhe tirasse a virgindade. Uma vez que ela se perdeu... — Ele deu de ombros. — Bem, um homem pode se sentir tentado. Vou deixar Richard falar ateá cansar, pensou Garren. E deu um passo para a direita. Richard fez o mesmo. A lanterna, agora firme, projetava sombras em volta do tuá mulo. Entrando e saindo das sombras, o rosto de Richard ficava branco, depois preto como a morte. — Naã o se prepare para uma luta longa, Salvador. Niccolo eá especialista em venenos. — A luz da vela fez cintilar a adaga. — Um arranhaã o seraá suficiente. Veneno. Garren estremeceu. Nem ao menos uma morte honrosa. — Entaã o vou levaá -lo comigo. Richard pulou, cantarolando, movimentando sua adaga em pequenos cíárculos. Naã o precisava esperar uma oportunidade para um bom golpe. Soá precisava de um toque que cortasse a pele dele. Garren recuou, os dedos doendo do esforço. Soá tinha uma chance, para Nica e para si. De volta ao ponto de partida, com Richard na porta, nenhum dos dois tinha feito nenhum movimento. Richard deu uma risadinha. — Espero que tenha lutado com mais bravura quando estava sendo pago, mercenaá rio. Entre os dois, a porta se abriu, e Nica entrou aos tropeços. Com as maã os amarradas e uma mordaça, ela olhou para Garren. E o coraçaã o dele parou quando viu que Richard a alcançaria antes dele. — Nica! Atraá s de voceê ! Richard prendeu-a pela garganta, e seu cotovelo parecia a mandíábula de um animal feroz. — Eu naã o falei para voceê ficar no barco? — A adaga de Richard pairou logo abaixo da orelha dela. — Naã o se mexa, Nica. Estaá envenenada — avisou Garren. Richard riu, mantendo a víátima presa. — Isto seraá perfeito. Vaã o encontraá -los juntos, mortos por Deus por profanarem o santuaá rio de Latina. — Ele encostou a boca na orelha de Dominica e sussurrou alto para Garren ouvir. — Que pena. Eu queria provar voceê primeiro. — Richard puxou a mordaça e poê s os laá bios em seu lugar. Garren investiu para cima dele, mas Richard se afastou, avisando com a cabeça para naã o fazeê -lo, e pressionou a adaga contra o pescoço de Dominica.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Dominica botou a líángua para fora, como se tentasse tirar o gosto dele da boca. — Onde estaá o Padre? Por que naã o mostrou a carta a ele? — Eu estava cumprindo uma promessa. Dominica inclinou-se para se afastar da adaga de Richard, mas seus olhos naã o saíáram de cima de Garren. — Voceê naã o acredita em promessas. E naã o manteá m as que faz. — Ela estaá certa, mercenaá rio. As suas promessas soá valem o ouro que voceê recebe por elas. — Ele apertou mais ainda o pescoço dela e se inclinou para sussurrar um segredo no seu ouvido. — Eu o peguei roubando as plumas de Larina. Impotente, Garren viu, no rosto de Dominica, a percepçaã o de tudo, depois a descrença. Ela olhou para o pequeno frasco vazio no pescoço dele. — Entaã o, as plumas eram para isso — murmurou ela. — Quem o pagou para trocaá -las pelas verdadeiras? — Ningueá m. — Por que eu deveria acreditar? — Mas voceê ainda naã o sabe qual foi a tarefa mais importante que ele recebeu, em troca de um bom dinheiro — falou Richard, com um sorriso de escaá rnio. — Acha que Garren eá algum santo? Vai saber o quanto ele eá santo. O mundo parou, e Garren podia ver cada pestana preciosa em volta dos grandes olhos azuis de Nica, e ele soube, impotente, o que Richard diria a seguir. — Voceê jaá sabia que William me pagou para ser seu peregrino — disse Garren, desesperado. O medo que apertava seu estoê mago era maior do que jamais sentira em batalha. Mesmo que salvasse a vida dela agora, poderia recuperar sua confiança? Ele apertou a adaga com mais força. Onde está o Padre? Preciso pensar. Richard só está tentando me confundir. Talvez pudesse confundi-lo e salvar Garren. Virou-se para Sir Richard, odiando a sensaçaã o de seu corpo contra o dele. Engoliu a seco, com a adaga fria contra sua garganta. — Garren eá inocente. Naã o sabe nada a respeito da mensagem de Lorde William. — Inocente! — gargalhou Richard, jogando o nariz taã o perto do rosto de Dominica que ela podia sentir o cheiro de seu haá lito azedo. — Inocente eá o cachorro. Um tremor tomou conta do corpo de Dominica. Naã o queria ouvir, mas suas maã os atadas naã o podiam cobrir seus ouvidos. Os laá bios de Richard roçaram sua teê mpora. Ela se afastou, mas naã o podia impedir as palavras dele. — O seu precioso Garren que a tocou, beijou e acariciou, fez isso por dinheiro. A humilhaçaã o deixou o rosto dela em brasa. — Estaá mentindo. — Dominica naã o pensou em negar as caríácias de Garren. — Quem lhe pagaria por isso? — Eu. — Por que ele faria alguma coisa para voceê ? — Ah, naã o sabia que era eu. Achou que era a Priora. Se houver algum problema, a Priora ameaçara. Entaã o ateá a Priora pressionou Deus. — Garren queria o dinheiro. Nunca quis voceê . — E ela sentiu frio, calor e azia como se tivesse tomado um pouco do veneno que Richard dava a William, e queria mesmo ter tomado. Visto atraveá s das laá grimas, Garren transformou-se numa figura irreconhecíável. — Nica, por favor, deixe-me explicar. Ele nunca quis você. Dominica pedira, implorara a Garren que a possuíás se. Porque acreditava nele, mesmo quando percebeu que naã o era o homem que ela pensava. Acreditou ateá que aproveitar o dia

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford fosse uma forma de viver. — E verdade? Voceê fez por dinheiro? — Dominica engoliu, e sua garganta pressionou a laê mina. — Nica, vou cuidar de voceê . Naquela eá poca, eu naã o conhecia voceê . — Voceê me conheceu ontem. — Você me conheceu quando nós nos amamos. Dominica fechou os olhos. Quando os abriu, era uma mulher diferente, e o mundo era infinitamente velho, e tudo a que sempre se apegara tinha acabado. Sabia que iria morrer nesta pequena choça suja de pedra que cobria os ossos de uma mulher morta. — Parece que eu fui taã o ingeê nua a seu respeito quanto Deus.

Capítulo Vinte e Cinco Garren estava derrotado, tenso, e queria nunca teê -la conhecido. Tinha destruíádo tudo que a sustentava e naã o lhe dera nada. Dominica naã o tinha nenhuma razaã o para acreditar nele. Deus deve estar rindo agora, pois conseguiu a vingança perfeita. — Nica, precisa acreditar em mim. — Por queê ? Ele mesmo naã o acreditava. — Quando noá s... quando eu... eu naã o estava pensando em... — Chega. — Richard puxou-a para o seu peito. Com as maã os atadas, Dominica parecia pronta para morrer como uma maá rtir amarrada ao pelourinho. — A peregrinaçaã o acabou. Deê me a mensagem. Garren enfiou a maã o na tuá nica e tirou o precioso pergaminho dobrado, manchado da viagem. Segurou-o contra a luz da lua, atraindo os olhos de Richard. — Tome-a. — Garren viu a faca desviar-se da garganta de Dominica. — Solte Dominica, e a mensagem eá sua. — Jogue-a no chaã o — ordenou Richard. — Mas se eu a colocar no chaã o, ela poderaá voar. — Garren deu um passo aà frente. Richard ainda estava a mais de um braço de distaê ncia. — Venha pegaá -la. — Naã o! Voceê prometeu a William. — Nica tentou livrar-se da maã o de Richard. Ele deu um passo atraá s e voltou a encostar a ponta da adaga sob a mandíábula dela. O coraçaã o de Garren oscilava. Garren abanava o ar com a mensagem dobrada, seduzindo Richard a tentar pegaá -la de novo, em vez de segurar Dominica. — O que estaá esperando? Ela estaá de maã os atadas. — Ela anda com os peá s, naã o com as maã os — retrucou Rjchard. — Vou vingaá -lo, se voceê naã o o fizer — disse ela. Fique calma, Nica. Deixe-me salvá-la. — Aqui, Richard. Venha pegar. Ainda segurando Dominica com a maã o esquerda, Richard mudou seu ponto de apoio ao esticar a maã o da adaga na direçaã o de Garren. Entre os dois, e sem muito equilíábrio, naã o podia atacar ningueá m. Agora. Garren investiu para as costelas de Richard. E errou. Dominica desvencilhou-se de Richard e bateu com as maã os ainda amarradas na barriga dele. Richard respondeu com um golpe da adaga e cortou o braço direito de Dominica. Fugindo dele aos tropeços, ela bateu na parede e caiu no chaã o. — Naã o se mova, Nica. — Nenhum dos dois sobreviveraá se ele falhar desta vez. — O veneno iraá se espalhar. Com a silhueta marcada pela luz da lua, Richard dançava de um peá para o outro,

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford cortando o ar vazio com a adaga ensanguü entada. — Assista aà morte dela. Depois irei mataá -lo. Garren forçou-se a olhar para Richard em vez de para Nica. Precisava aproximar-se o suficiente para uma estocada fatal. Rindo, Richard girou o braço da adaga em um enorme cíárculo e passou a laê mina a poucos centíámetros da gaivota cinza empoleirada na janela a leste. Com um grito, o paá ssaro abanou as asas e investiu. Assustado, Richard tentou afastaá -la de sua cabeça batendo com ambas as maã os. Garren agarrou sua chance. Jogou-se para cima de Richard pelo lado esquerdo. Combalido, Richard soltou o cabo da adaga, que se estatelou nas sombras. — Malditos! — gritou ele, mas recuperou-a antes que Garren pudesse atacar de novo. Um sorriso terríável exaltou seu semblante. — Aquela foi a sua uá nica chance, mercenaá rio. O grito de Richard chamou a atençaã o dele. A gaivota atacara de novo. Garras prendiam-se nos cabelos dele, e as asas batiam proá ximo aà s suas orelhas. Balançando uma maã o loucamente para afastaá -la, ele acertou, sem perceber, o corpo macio coberto de plumas. A ave voou para fora de seu alcance, depois investiu para ele, mergulhou e picou suas orelhas e o rosto, e atacou as maã os com as garras, ateá ele estar ensanguü entado com as pequenas espetadelas. Enlouquecido, Richard estava sozinho com o seu medo e o paá ssaro. Depois, como se ele fosse um galho de aá rvore em uma manhaã de maio, ela pousou no seu antebraço esquerdo, quieta. Em um instante, percebendo onde ela estava, levantou a adaga e deixou-a pairar sobre ela. A gaivota, sem medo, continuou imoá vel. Ateá que ele arremessou a laê mina na direçaã o dela. O paá ssaro bateu as asas e se afastou, e ele cortou o proá prio braço ateá o osso. Richard gritou diante da adaga cravada no seu braço. Caiu de joelhos e trincou os dentes com a dor que apenas começava. Enlouquecido, olhou para Garren. — Eu naã o quero morrer como ela. — Seus laá bios tremiam. — Por favor, me mate. A adaga de Garren estava frouxa em sua maã o. Eu deveria deixá-lo morrer. Certamente esta seria a vingança de Deus. Atraá s dele, Nica gemia. Sim, uma morte raá pida seria bom demais para o homem que matou William e destruiu a vida de Nica. O que poderia um Salvador fazer por este homem? Poreá m, quando as laá grimas de dor e apelo lavaram seu rosto, Garren descobriu que ainda lhe sobrava um pouco de piedade. A compaixaã o superou a vingança. — Voceê soá vai chegar no inferno mais raá pido. — Faça isso. Agora. Quando Garren desferiu o golpe, pensou que o inferno seria um lugar muito familiar para Richard. Naã o parou para pensar na sorte dele. Soltou a adaga eà ajoelhou-se ao lado de Dominica. O sangue encobria o rasgo na manga, abaixo do cotovelo direito. — Mantenha as maã os abaixadas, Nica. — Garren falou firme, mas naã o conseguiu acalmar seu coraçaã o agitado. — Deixe-me ver. Garren afastou a laã cinza, ensopada de sangue e examinou a ferida. Desamparado. Se Richard preferiu uma morte raá pida, mesmo um corte superficial significava um fim lento e doloroso. A morte tinha sido a coisa mais generosa para Richard. — EÉ verdade? O motivo de voceê ... de noá s... de voceê ter se deitado comigo? — Ela abraçou o peito dele. Os olhos de Dominica o acusavam de todos os seus erros, mas este era o maior. Desta vez, ele queria ser o seu Salvador. Queria que ela vivesse, mesmo que a perdesse depois para Deus. Mas naã o sabia como.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Seus pensamentos gritavam mais do que Richard. Deus, estou em suas mãos. Sua vontade será feita. Em vez de uma resposta, Garren ouviu o som das ondas e o arruino de um paá ssaro. Seu coraçaã o desacelerou e acompanhou o vaiveá m das ondas. Uma paz taã o tangíável como se um manto o cobrisse. A sensaçaã o silenciou o alvoroço da morte de Richard, bloqueou o olhar de dor de Dominica e aquietou seus medos. Ele olhou para a ferida de sua amada e soube o que devia fazer. Afastou a manga do corte e limpou o sangue. O corte voltou a sangrar. Ele levou os laá bios ao corte e sorveu, enchendo a boca com o gosto forte e doce, e depois, cuspiu. Outra vez. Sorvia e cuspia, tirando o sangue e o veneno sem pensar no que aconteceria a ele se o engolisse. — Voceê estaá certo, voceê sabe. — Garren quase naã o podia ouvi-la. — Naã o haá razaã o... para acreditar... em nada que naã o se pode ver. — Seus dedos escorregaram. Ela piscou, lentamente. Os olhos, ainda abertos, assumiram uma expressaã o vazia. Por um instante, Garren viu, neles, os olhos azuis de William. Voltou a sentir o cheiro do solo franceê s misturado ao sangue de seu amigo. E entendeu que ela precisava querer viver, como William quis, para ele conseguir salvaá -la do purgatoá rio, ou do ceá u, ou de onde quer que Deus quisesse levaá -la. Queria balançaá -la, mas em vez disso apertou seu ombro, temendo espalhar o veneno. — Nica, olhe para mim. Ela apertou os olhos, desorientada, como se naã o soubesse onde estava. — Voceê me chamou de O Salvador. Agora, vou salvar voceê . — A voz de Garren falhava, e ele pigarreou para limpar a garganta. — Mas voceê precisa me ajudar. Dominica balançou a cabeça, negando ajuda. — Por que eu deveria acreditar em voceê ? — Garren olhou para ela e viu que acreditava nela mais que em qualquer outra coisa que jaá teve na vida. — Voceê acreditou em mim quando nem sabia o meu nome. Tenha feá em mim agora que sabe tudo o que sou. Dominica fechou os olhos. Sileê ncio. Ele esperou, paciente. Queria continuar sorvendo o veneno, mas ela precisava estar com ele. Ela e Deus. — Nica? — Uma eternidade se passou. Ela naã o respondeu. Garren aproximou um dedo das narinas dela e tranquü ilizou-se ao sentir a respiraçaã o quente. Mas ele a estava perdendo. O espíárito que sentira no paê ntano estava indo embora. Ele precisava alcançaá -la, seguraá -la, trazeê la de volta. Garren levantou a maã o dela, levou-a aà boca e começou a fazer coá cegas com a líángua na pele sensíável entre os dedos. Dominica ensaiou um sorriso. Ele colocou na boca seu dedo meá dio. Dentro dele. Um. Taã o unidos como nesta manhaã , na areia. O sorriso dela ampliou-se. Garren sentiu a esperança correr seu corpo quando beijou o dedo dela. — Agora, vou sorver o veneno para fora do seu corpo, e voceê vai ficar deitada, imoá vel, e rezar para a Abençoada Larina. Um sorriso teê nue corou os laá bios de Dominica. — AÀ s vezes, Deus precisa de um empurraã ozinho. — Deê a Ele — ordenou ele num grito explosivo, e levou a boca de novo ao corte para evitar sua morte. Os gemidos de Richard desapareceram gradualmente. Garren voltou a ouvir o mar, em ritmo constante como as batidas do seu coraçaã o. Atraá s dele, o relicaá rio vazio rangia

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford acompanhando o barulho das ondas. Quando a respiraçaã o de Dominica estabilizou-se, ele levantou a cabeça para respirar fundo pela primeira vez. Empoleirada na beira da janela, contra o dourado do ceá u matinal, a gaivota inclinou a cabeça. Do lado de fora, suas companheiras gritavam, saudando o novo dia. Ela respondeu, depois levantou as asas e voou. Deixou treê s plumas no chaã o de terra. Garren fitou-as por um momento, incapaz de se mover. Uma era da asa, comprida, cinza, de ponta preta. A segunda, um tufo de penugem branca. A haste da terceira era nua, com uma franja de pluma na ponta. Garren estendeu a maã o para pegaá -las, justo quando o vento as soprou para a pilha de pedras que era o tuá mulo de Larina. Ele foi atraá s. Do outro lado, seis plumas agruparam-se no chaã o. Um som de peá s se arrastando no chaã o veio da cela do Padre. Eu o ouço, Deus. Ela pertence a Vós. Vou garantir isto desta vez. — Quem estaá aíá? — A voz vinha da cela do Padre. Com os dedos treê mulos, Garren abriu a tampa do relicaá rio vazio em volta do pescoço e pegou as treê s plumas mais proá ximas. — O que estaá acontecendo aqui? — disse o Padre. O sol jaá estava alto. Garren explicou ao Padre o porqueê de o sangue de um homem morto e de uma mulher ferida terem encharcado as pedras de seu santuaá rio. Com Dominica nos braços, ele explicou, mais de uma vez, a Batalha de Poitiers, o pedido de William, Richard, a visita no meio da noite e a adaga envenenada. O velho, com os olhos lacrimosos piscando contra a luz, desdobrou o pergaminho amarrotado e leu a mensagem treê s vezes. Finalmente, disse que Deus tinha escolhido sua proá pria puniçaã o para um Caim que mataria o irmaã o. Depois, com os dedos treê mulos reverentes, pegou treê s plumas no chaã o, devolveu-as ao relicaá rio e fechou o trinco. Garren naã o mencionou a gaivota.

Capítulo Vintee Seis Dominica naã o voltou ao santuaá rio. O Irmaã o Joseph fez um grande alarido em torno da ferida, e o meá dico amarrou uma atadura bem apertada em torno do braço. Ela resistiu aos apelos de Gillian para permanecer deitada a fim de se curar. Garren explicou alguma coisa sobre Richard ter ido ao santuaá rio para uma peniteê ncia secreta, e Deus, ao ouvir sua prece, teê -lo levado imediatamente. A viuá va fez um comentaá rio em voz alta de que naã o acreditava que Deus o tivesse levado para o ceá u. Ficou claro, contudo, que a Abençoada Larina tinha feito mais um milagre misterioso. Dominica naã o perguntou como Garren explicou sua ferida. Durante treê s dias, enquanto os outros completavam a peregrinaçaã o, ela se levantou com o sol e sentou-se na pequena praia que Garren e ela tinham compartilhado. Inocente seguia seus passos. AÀ s vezes, falava com a Irmaã e explicava sua decisaã o de naã o retornar para o convento. — EÉ como se eu fosse um paá ssaro. — Inocente ouvia atento com sua uá nica orelha. — Um paá ssaro que cresceu mais que o ninho, e descobriu o ceá u inteiro. O toque de Garren trouxe-a para este mundo, de alma e de corpo. Ele a pegou nos braços e levou de volta ao barco, murmurando palavras de conforto. Que a levaria para casa. Que resolveria tudo com a Priora. Que ela teria a vida que desejava. E Dominica queria dizer-lhe Eu quero uma vida com você, mas era uma oá rfaã , e ele era um cavaleiro que tinha feito tudo por dinheiro, mesmo que agora lamentasse. Estava claro que ele a queria no convento. Fora do seu caminho. Eles naã o ficaram mais a soá s. E, em uma manhaã triste da festa de Saã o Pedro e Saã o Paulo, Dominica, com o braço

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford latejante pendurado ao lado do corpo, juntou-se ao grupo silencioso e fatigado que retornaria para casa. Eles voltaram a Tavistock em dia de mercado. Dominica naã o quis enfrentar as barracas com os outros. Apoá s o jantar, o calor do alto veraã o conduziu-a para o paá tio, onde os caê nticos das veá speras ecoavam das pilastras. Ela tinha fugido dele por esse claustro, de tudo o que a fez sentir, para se abrigar no scriptorium onde renovou sua promessa. A promessa que quebrara, como Garren quebrara a dele. Subitamente, ele apareceu emoldurado sob o arco, os ombros largos preenchendo o espaço entre as colunas. Os olhos e o corpo de Dominica viam-no agora. Os cachos rebeldes de cabelo aá spero. A sensaçaã o dos laá bios suaves abrindo os seus. A pele quente das costas sob a sua maã o. Dominica fechou os olhos para interromper a lembrança, e tentou agradecer a Deus pelo que tinha, sem pedir nada mais. — Pedi a voceê para ter feá em mim — falou ele abruptamente, como se tivessem acabado de conversar. Ela concordou com a cabeça. — Apesar do que Richard disse. — E eu confiei, naã o foi? — Merece saber o que fiz. E por queê . — Dominica passou a maã o pela superfíácie do banco, ao lado de onde estava sentada, sua pele ansiando por ele. — Quer sentar? Garren naã o quis, encolhendo-se como se ela fosse uma chama. — Sabe que prometi levar a mensagem de William. E que ele queria me pagar por isso. — Soube disso haá muito tempo. — Eu devia muito a ele. Sabe por queê . — Dominica fechou os olhos e viu o parque dos veados. — A jornada seria um presente meu para ele. A feá de William era taã o forte quanto a sua — continuou Garren. — E prometi que voltaria com uma pluma para ele. Da santa. — Entaã o Lorde Richard estava certo. — Dominica naã o entendeu por que naã o ficou desapontada. Qual era a diferença, afinal, entre a pluma de uma gaivota e a de uma asa de santa? — Voceê foi laá roubar as relíáquias. — Para William. Eu achei que a esperança poderia... — Garren respirou fundo — manteê -lo vivo. — Mas voceê naã o tem feá . — Mas eu acreditava na feá que ele tinha. — E o resto da sua confissaã o? Lorde Richard naã o mentiu, naã o eá ? Sobre... — engoliu a seco, as palavras tristes. — Por que voceê me amou? — Eu queria dar esse presente a William. — Suas palavras pareciam pedras que ele precisava levantar. A Priora me ofereceu dinheiro. Disse que voceê naã o tinha vocaçaã o. Agora que Dominica naã o podia mais suportar, ele se sentou ao seu lado e envolveu suas maã os, sem deixar que as retirasse, sem deixaá -la desviar os olhos da confissaã o que faria. — Eu queria tirar algueá m de Deus — sussurrou ele. — Deus tinha tirado todo mundo de mim. — E o dinheiro poderia ser suficiente... — Mas depois, quando conheci voceê ... — Fui eu que me entreguei a voceê . — Voceê estava perturbada. Eu nunca deveria ter... — Garren soltou as maã os dela e enterrou o rosto nas dele. — Eu sinto muito, Dominica. Eu naã o vou contar a verdade aà Priora. Vai ter o que deseja. — O que eu quero eá ... — Você. Não. O que eu quero é que você me queira também.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Solafide. — O queê ? — Uma líángua estrangeira ecoando. — Soá a feá , Dominica. A sua feá trouxe o seu sonho para voceê . Nunca a feá trouxera uma vitoá ria taã o insíápida. — Eu joguei aquele sonho no mar com o meu pergaminho e a minha pena. Garren cobriu as maã os unidas de Dominica com as suas, um gesto fraternal como suas palavras. — Vai voltar a escrever. — Eu naã o tenho pergaminho nem pena. Garren tirou de dentro da tuá nica o relicaá rio de prata amassado e abriu. A caixa delgada continha treê s plumas. Ele tirou uma e deu a ela. — Isto eá para voceê . Da Abençoada Larina. Sem fala, Dominica pegou a pluma. A haste lisa amarelada, haá muito sem as plumas, naã o recebia tinta haá muito, muito tempo. Menor que uma pluma de ganso, encaixou-se perfeitamente na sua maã o. Maravilhada, ela fitou a pena, depois Garren. — Como assim, da Abençoada Larina? Ele fez uma busca dentro do saco e retirou uma pequena folha de pergaminho usado, uma faca e um tinteiro de chifre, e depositou-os sobre o banco. — E estes veê m de mim. Dominica pegou um de cada vez e colocou-os na maã o como se fosse um metal precioso. — Escreva, Dominica. — Garren levantou-se e jogou o saco sobre os ombros. — Deus naã o queria que voceê abandonasse os seus sonhos. Com os dedos apertando a pena, a felicidade minguou perante a dor de perdeê -lo. Ela sorriu, triste. — Entaã o, agora Deus fala com voceê ? . — Sobre voceê , Ele fala. Antes que ela pudesse dizer algo, Garren se foi. Dominica segurou apertado o tinteiro de chifre e a pena. Depois, deixou-os de lado e pegou o pergaminho e a faca. Queria segurar tudo bem apertado e ao mesmo tempo, temendo que desaparecessem como Garren. O pergaminho usado jaá estava riscado com linhas caprichadas, e a tinta velha cuidadosamente raspada por um meticuloso antigo dono. Deus, eu não sei imaginar a vida sem o convento. Só sei que é para onde eu preciso ir. Não posso mais dizer o que deve fazer. Você me diz. Ela mergulhou a pena na tinta e escreveu. Para a Irmaã . Para Garren. Para Deus. Obrigada. A Priora passou a primeira segunda-feira de julho de joelhos, em peniteê ncia, igual a todas as segundas-feiras, desde a partida de Lorde Richard. A freira aliviou o peso no joelho esquerdo entorpecido. Treê s ave-marias, e Deus poderia perdoaá -la. Naã o sabia, poreá m, se algum dia ela se perdoaria. — Madre Julian, os peregrinos chegaram. — Estranho, pensou ela, esforçando-se para levantar do banco de oraçaã o de madeira. A voz da Irmaã Agnes naã o mostrou nenhum entusiasmo. — Que dia feliz, Irmaã Agnes. Traga a Irmaã Marian ateá aqui. — Falaria com Dominica mais tarde. — Naã o posso. — O que quer dizer com isso? A Irmaã Agnes choramingou. Laá grimas correram pelo seu rosto. — A Irmaã Marian estaá morta.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Madre Julian fez um sinal-da-cruz com os dedos treê mulos. — Como isso aconteceu? — Naã o sei. Dominica estava com ela. Madre Julian suspirou. Estava na hora de encarar seus pecados. — Traga a garota ateá mim. Sem ter sido convidado, o mercenaá rio a acompanhou. Veio recolher seu pagamento, sem duá vida, pois o mereceu. Ela percebeu isso no instante em que os viu juntos, taã o proá ximos que couberam lado a lado no vaã o da porta. Mas teria sabido de qualquer modo. Uma sensualidade abrandava a energia inquieta que antes animava cada movimento da garota. Naã o era mais virgem. Lorde Richard ficaraá satisfeito, pensou a Priora, estremecendo, mas o pecado eá meu. A garota naã o suportaraá a puniçaã o. — Bem-vinda ao lar, Dominica. — A Madre abraçou-a como a criança que ela era antigamente. — Sinto muito pela Irmaã Marian. — Priora — começou Garren —, devo contar-lhe... — Agora, naã o — disse ela, balançando a cabeça por cima do ombro da moça. — Meu cordeiro estaá de volta. — Mas Deus me deu um sinal... — Estou certa de que foi um sinal para Dominica entrar para a ordem. Garren ficou boquiaberto. Depois, sorriu. — Exatamente, Madre Julian. — Ele me mandou um sinal parecido. — Ela precisaria resolver o problema com Lorde Richard de alguma forma. O mercenaá rio pareceu aliviado. Que bom. Talvez ele naã o peça o dinheiro. Madre Julian segurou Dominica aà distaê ncia de um braço. A garota cresceu? O haá bito mais novo da Irmaã Marian naã o chegaria perto dos tornozelos, mesmo se elas descessem a bainha, e naã o tinham tempo nem dinheiro para fazer um novo. — A Irmaã Marian a veraá do ceá u quando fizer os votos na proá xima semana. — Eu naã o vou entrar para a ordem. — Voceê cumpriu sua promessa, minha querida. Naã o faço objeçaã o. — Ela reconheceu uma humildade nova, como a sua proá pria, suavizando aqueles olhos azuis rebeldes. Tambeá m pensou ter reconhecido mais alguma coisa. Ou talvez uma outra pessoa, mas naã o conseguia identificar quem. — Nica, isto eá o que voceê sempre quis... — Deus me deu um sinal, Madre Julian. Naã o foi o que eu esperava. Deus age de maneiras misteriosas, pensou a Priora, sentindo-se levemente culpada pelo seu alíávio. Ela afundou na cadeira e fez um sinal com a maã o. — Sente-se, minha filha. Conte-me. — Mais tarde. Talvez. De laá bios apertados, Garren olhou para a garota como se ela fosse o Santo Graal. Entaã o, eá assim, pensou a Madre. Seraá que ela sabe? — O que vai fazer, minha filha? Como vai conseguir sobreviver? — Certamente ela naã o esperava voltar para trabalhar como criada. Seria uma pena Lorde Richard teê -la afinal, se bem que, na verdade, naã o era mais problema seu. Talvez o mercenaá rio a quisesse. Naã o como esposa, claro. — Primeiro, eu vou orar pela alma de Lorde William. Pedir perdaã o pela responsabilidade que tenho por sua morte. — Morte dele? Mas Lorde William estaá vivo. — A maá scara de maturidade da garota caiu. Um sorriso amplo rasgou o rosto do mercenaá rio.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford — Mais um milagre. Garren agarrou a maã o de Dominica e beijou-lhe os noá s dos dedos. Teriam que resolver isso entre eles, pensou a freira. Dominica teria sorte se o pegasse, se bem que ele naã o tinha nada aleá m do que trazia nas costas, — Lorde William começou a melhorar pouco depois que voceê s partiram — disse a Madre. Ou depois da partida de Lorde Richard. — Precisamos veê -lo. Madre Julian gritou um aviso quando saíáram. — O Conde naã o eá mais o homem que era. Dominica corria na frente, mas o mercenaá rio se virou. — Madre Julian, eu tambeá m naã o sou. E a Madre pensou que muitos milagres tinham acontecido nessa peregrinaçaã o. — Lorde Richard jaá estaá no castelo? — Ela precisaria responder a ele agora. — Estou certa de que ele ficaraá satisfeito com a recuperaçaã o do irmaã o. — Lorde Richard estaá morto. Seja feita a vontade de Deus. Madre Julian fez o sinal-da-cruz. Mais um resultado de seu pecado. Pai, perdoe-me por minha alegria com a morte dele. Ela olhou para o mercenaá rio. Como poderia pagar-lhe com a moeda de um homem morto? — As díávidas dele morreram junto — disse Garren. Ah, Deus, pensou a Madre, quando fazia o sinal-da-cruz, desculpe-me por minha falta de feá no resultado do seu grande plano. Naã o havia bandeiras pretas de luto tremulando sobre os baluartes de Readington. Firmemente segura pelos braços de Garren, sobre o lombo do galopante Roucoud, Dominica naã o tinha mais foê lego para perguntar se, agora, ele acreditava nela. Deixaria o convento para traá s. Em Exeter, Deus lhe mostrara um outro caminho. Mas Garren pegara sua maã o. Bem na frente da Madre Julian. — Garren! Bem-vindo ao lar! — Um homem alto, macilento, de cabelos claros, caminhou para a ponte, impaciente, de braços bem abertos. Seu irmaã o. Garren ajudou-a a descer. William envolveu-o em um abraço. Eles bateram nas costas um do outro, se afastaram pasmos, como se ambos tivessem ressuscitado, e abraçaram-se outra vez. Dominica pestanejou, surpresa. Wiliiam estava vivo. Talvez Deus tivesse um plano, afinal. Garren afastou-se para olhar para ele, ainda segurando o braço de Wiliiam. — Como voceê estaá vivo? Wiliiam sorriu, uma coá pia desbotada de seu pai, o cabelo menos louro, os olhos naã o taã o azuis. — Logo que Richard partiu, Niccolo parou o veneno. Atraá s dele, um italiano de laá bios grossos deixava pacientemente Inocente cheirar suas botas de couro macio. Era a primeira vez que Dominica via o homem aà luz do sol. Ele mostrou os dentes em um sorriso estranhamente simpaá tico. — Ele tentou mataá -lo! Por que estaá ao seu lado? — Ele me deu uma quantidade de veneno para enganar Richard, mas naã o o suficiente para me matar. — Soá pela graça de Deus — respondeu Garren. Wiliiam abraçou os ombros de Garren. — Teve suas razoã es. Foi ele quem cuidou da minha recuperaçaã o. Pediu perdaã o. Garren corou. — Quem de noá s naã o precisa de perdaã o? Dominica esperava que ele olhasse para ela para implorar seu perdaã o mais uma vez.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford Sim, ela diria a ele. Sim e sim, novamente. Wiliiam virou-se para a estrada vazia. — Onde estaá o meu irmaã o? — Morto. Um ligeiro pesar passou pelo rosto de Wiliiam. — A vingança da Igreja foi raá pida. — Naã o taã o raá pida quanto a de Deus. Wiliiam fez um ar surpreso. — Vejo que Deus nos deu longas histoá rias para contar, meu amigo. — Deus deu a voceê mais uma coisa. — Garren abriu o relicaá rio amassado e pinçou a pequena pluma com o polegar e o indicador. — Um paá ssaro deixou isto no santuaá rio. — Ele colocou a felpa na maã o calosa de Wiliiam, e fechou os dedos ainda manchados sobre ela. -EÉ ...? Garren confirmou, fechando a tampa cuidadosamente sobre a pluma remanescente no relicaá rio, e devolveu-a para dentro da tuá nica. Ele tilintou alegremente ao lado da sua concha de chumbo. — Para lembraá -lo de que milagres ainda acontecem. — Segurando a pluma, Wiliiam fitou Dominica pela primeira vez. — Dominica, desculpe-me por naã o saudaá -la adequadamente. Onde estaá a Irmaã Marian? No convento? Ela quase caiu em prantos. Talvez as laá grimas ocultassem seus segredos. — A Irmaã Marian morreu olhando para o santuaá rio. — William levou a maã o direita fechada aà testa, ao peito e aos ombros. A dor vincou seu rosto. — Ela seraá lembrada pelos Readington. Sei que sentiraá falta de sua presença no convento, mais do que qualquer outra pessoa. — Wiliiam olhou para Dominica como que esperando uma palavra sua. — Sinto muita falta dela, Milorde — começou ela, lenta. Os olhos de Garren naã o se afastavam dela, como se as palavras fossem para ele, em vez de para Wiliiam. — Mas naã o voltarei para o convento. — O que vai fazer? — perguntou Garren. — Voceê salvou o meu presente e a minha vida. — E a minha alma, pensou ela. — Conheci um escriba em Exeter que precisa de ajuda. Um homem bom, com os olhos fracos devido aà idade. Veê as letras embaçadas na folha. — Dominica escreveria, se bem que muito pouco seria relativo aà s palavras de Deus. — Isto eá absurdo — falou Garren num tom aá spero. — Naã o vou permitir que voceê viva sozinha na cidade. — Naã o estarei soá . Vou morar com a famíália dele. Voceê mesmo disse que Deus quer que eu escreva. — Eu quis dizer que voceê devia copiar a Escritura no convento de Readington. — "Eu quis dizer?" Entaã o naã o era o que Deus queria. Você me queria fora da sua vida. — Naã o eá verdade! — Eu disse a voceê que seria uma uá nica vez. E voceê quis garantir isso. — Eu arruinei a sua vida, a sua feá , arruinei tudo! — Voceê naã o arruinou a minha vida. Voceê me deu vida. Como deu vida a William. — Quero reparar isso. — Mas eu naã o quero a sua culpa. Quero o seu amor! — As palavras de Dominica ecoaram no sileê ncio. William e Niccolo viraram de costas, fingindo serem surdos. — Naã o sou o mesmo homem que saiu deste castelo. Sei que precisamos de feá para nos dar coragem para agir. A feá eá taã o forte quanto o proá prio Deus.

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GRH – A águia e o anjo – Blythe Gifford O sangue de Dominica ficou quente diante das palavras dele, mas elas naã o mudavam seu futuro. O homem que naã o tinha feá pegou sua maã o. — Precisa entender. Sobre o que Lorde Richard falou. EÉ verdade que eles me ofereceram dinheiro. Mas quando a conheci, eu a quis... — Ele se atrapalhou. — Por voceê . Quando Deus a salvou de novo, eu fiz uma promessa de ir a Compostela. — Acredita tanto assim? — Garren confirmou. — Venha comigo como minha mulher, Nica. Escreva um guia para os peregrinos. Dominica naã o parava de sorrir. — Noá s poderíáamos ser um instrumento de Deus e divulgar a Sua obra pelo mundo. Garren estremeceu e apertou a maã o dela. — Naã o tenho nada para oferecer a voceê depois que a peregrinaçaã o terminar. — Voceê tem, sim. — William pigareou. Eles se viraram, juntos, surpresos por naã o estarem a soá s. Garren a abraçava. — Garren, quando pensei que ia morrer, eu quis que voceê tivesse as minhas terras. Jaá que estou vivo por sua causa, quero que voceê tenha a posse do castelo e das terras de White Wood. — Jaá devo a voceê muita coisa. Ateá mesmo essa jornada. — Voceê me deu a vida. Nada se compara a isso. A felicidade no rosto de Garren quase fez Dominica chorar. Finalmente, ele tinha o lar que sempre quis. Mas isso significava que ela naã o teria. Um castelo exigia uma dama, naã o uma oá rfaã . Ela se afastou, jaá sentindo falta dele. — Congratulaçoã es, Síár Garren de White Wood. Estou certa que Lorde William o ajudaraá a encontrar uma dama de acordo. — Quando ofereci a terra, supus que voceê seria a dama, Dominica. — E o sorriso de seu irmaã o a fez conjeturar se mais algueá m conhecia o segredo da Irmaã . — Diga sim, Nica, e a nossa peregrinaçaã o juntos nunca vai ter fim. Voceê tem feá em mim? Dominica respondeu sim, com olhos e coraçaã o. — Credo quia absurdum est. — Conte-me. O que isso significa? — "Acredito porque eá impossíável." Tenho feá em voceê . Feá suficiente para voar.

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