Blythe gifford rumores na corte (hm 161)

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Uma aliança duvidosa... Lady Cecily despreza os reféns franceses mantidos na corte. Tratados como convidados de honra, não passam de escroques no jogo de sedução. Pior: Cecily teme que a princesa seja corrompida. Fadigado pela guerra, tudo o que o cavaleiro Marc de Marcel deseja é voltar para casa. Descrente de que seu resgate será pago um dia, ele faz um acordo arriscado com a tentadora Cecily. Marc manterá a princesa a salvo, se Cecily o ajudar a fugir. Um pacto que abrirá caminho para o escândalo!


– Cecile. Je veux t’embrasse. Je peux? Era a primeira vez que Marc pedia para beijar alguém, mas Cecily estava tão fragilizada que qualquer avanço seria uma traição maior do que aquelas que ela o acusava. Dessa vez, a decisão estava nas mãos de Cecily. Depois não poderia dizer que ele ou o bobo da corte a tinham forçado a beijar. Numa atitude inesperada, um milagre, ela ergueu a cabeça e sorriu. Marc cobriu os lábios dela com a delicadeza de uma benção. Foi um gesto de carinho e não de desejo, como se o beijo pudesse expressar o que ele não conseguiria com palavras.


Nota da Autora

PARA A maior parte dos filhos da realeza, o curso do amor verdadeiro não só “nunca fluiu naturalmente”, mas também nem é esperado que aconteça. Tipicamente, um casamento real era mais como a assinatura de um tratado do que uma celebração de amor. Mas o rei Eduardo III, que governou a Inglaterra durante a maior parte do século XIV, tinha uma preferência pela filha mais velha. E o romance dela com um prisioneiro de guerra francês – ou um refém – é uma das histórias de amor mais surpreendentes da Idade Média. Hoje em dia, a simples palavra “refém” causa arrepios de medo. Mas durante a guerra medieval entre França e Inglaterra, um elaborado conjunto de regras, com bases econômicas bem definidas como em um acordo de cavalheiros, regia a captura dos prisioneiros em batalhas. O refém era mantido sob custódia até que um resgate fosse pago, mas era tratado de acordo com a nobreza de sua posição, assim como se esperava que também se portasse de forma condizente. Em troca, alguns combatentes franceses mantidos na corte do rei inglês recebiam um tratamento, digamos, “régio”, em todos os sentidos. Cecily, condessa de Losford, não tem simpatia pelos reféns franceses, os quais ela considera responsáveis pela morte de seu pai, e portanto, desaprova o namorico da princesa com um deles. Numa tentativa de pôr fim aos Rumores na Corte, ela forma a mais improvável das alianças com Marc de Marcel, um refém francês que há muito tempo descobriu que, para alguns de seus companheiros, a honra nada mais é do que uma fachada. No entanto, enquanto tentam manter a princesa inglesa e o lorde francês separados, Cecily e Marc acabam se tornando perigosamente próximos, até que, por fim, terão de escolher entre as exigências da honra e os desejos do coração.


Blythe Gifford

RUMORES NA CORTE

Tradução Silvia Moreira

2015


Capítulo 1

Smithfield, Londres – 11 de novembro, 1363

MON DIEU, como essa ilha é fria. O vento gélido afastou o cabelo da testa de Marc de Marcel e penetrou na cota de malha pela gola. Ele deu uma olhada para os cavaleiros do outro lado do campo, imaginando qual seria seu oponente e quem enfrentaria seu amigo francês. Bem, não faria nenhuma diferença. – Derrubarei qualquer um do cavalo – murmurou ele. – O código de conduta dita que a luta deve consistir de duas partes, a primeira com três golpes com a lança – disse o lorde de Coucy –, a segunda com três golpes com a espada. Só então o vencedor será declarado. Marc suspirou. Era uma pena as justas terem se tornado tão enfadonhas. Ele bem que gostaria de matar outro maldito inglês. – Isso é desperdiçar a força do cavalo, e a minha. – É melhor não ofender aqueles que nos capturaram, mon ami. Se cooperarmos, nossa estada aqui será bem mais tolerável. – Somos reféns. É impossível tornar nossa estada tolerável. – Ah, as damas têm esse poder. – De Coucy inclinou a cabeça na direção da arquibancada. – Elas são très jolie. Marc olhou na direção das damas, sentadas à direita do rei Eduardo. Impossível de distinguir uma da outra. A rainha devia ser aquela vestida com uma capa lilás com bordas de pele, enquanto as outras vestiam tons similares de violeta e cor de canela, pareciam um borrão colorido… com uma exceção.


Uma dama de cabelo escuro adornado com um arco de ouro olhou na direção dele com os braços cruzados e o cenho franzido. Mesmo à distância, ele reconheceu que ela estava tão aborrecida quanto ele, como se estivesse desprezando tudo e todos. – Bem, o sentimento é mútuo. Marc deu de ombro. Les femmes Anglaise não eram de sua conta. Havia dois outros monarcas visitantes ao lado do rei inglês Eduardo, supervisionando a liça do torneio. – Quero impressionar les rois e não as damas. – Ah, um cavaleiro sempre tenta impressionar as damas – disse o amigo de cabelo escuro, com um sorriso. – Essa é a melhor forma de espantar os homens delas. Marc se encantara com a habilidade daquele jovem, Enguerrand, lorde de Coucy, em matar o inimigo com um machado; ele era igualmente competente em entoar uma chanson para as damas em seguida. Marc o tinha ensinado a lutar, mas não a cantar. – Como é que você consegue cumprimentar e sorrir para seus captores? – Isso é para manter a honra da cavalaria francesa, mon ami. Enguerrand estava falando em preservar a ideia de que os cavaleiros cristãos viviam de acordo com o código de conduta. E Marc bem sabia que era uma falácia. Os homens falavam em fidelidade aos princípios, mas faziam o que bem entendiam. – A honra francesa morreu em Poitiers. Durante a Batalha de Poitiers, os comandantes franceses, inclusive o filho mais velho do rei, fugiram covardemente, deixando o monarca para lutar sozinho. Enguerrand balançou a cabeça. – Não lutamos mais por isso. Mas Marc lutava ainda, apesar de a guerra já ter terminado e a trégua, assinada. Ele era refém dos les Anglais, preso naquele lugar estrangeiro gelado. O ressentimento chegava quase a estrangulá-lo. O arauto interrompeu os pensamentos dele ao dar as ordens aos dois grupos. Enguerrand lutaria primeiro contra o maior cavaleiro do grupo oponente. Pelo menos seria uma luta digna contra o inimigo. Para ele sobrara um rapaz mais novo. Se não tomasse cuidado, ele seria capaz de matá-lo. Qual seria seu humor de hoje? Estava cuidadoso? POR TODOS os santos, como está frio! Lady Cecily, condessa de Losford, percebeu sua respiração se condensar enquanto olhava para o campo do torneio. A liça estava enfeitada com bandeirolas e faixas vermelhas, azuis, douradas e prateadas. A festa de cores se estendia também às capas dos cavaleiros e aos paramentos dos cavalos. Era um espetáculo digno da realeza. Eduardo III reinava com toda a majestade depois da vitória contra a França. Cecily ergueu o queixo, esforçando-se para manter a postura digna de sua posição. É o seu dever. Ela ainda ouvia a voz dos pais na memória. – Não é, Cecily? Ela olhou para Isabella e imaginou o que a filha do rei devia ter dito. A princesa estava acompanhada por outras seis damas. Mas era ela que sempre se distraía.


– Estou certa de que tem razão, milady. – Esta era sempre uma boa resposta. – É mesmo? – A princesa sorriu. – Achei que você não ligasse para os franceses. Cecily suspirou. Isabella adorava brincar quando percebia que ela estava distraída. – Lamento, mas eu não estava ouvindo. – Eu disse que os franceses parecem ferozes. Cecily acompanhou o olhar da princesa. Do outro lado da liça, havia dois franceses montados em seus cavalos, ainda sem o elmo. Um deles ela nunca tinha visto. Era um cavaleiro alto, louro e esbelto. Tal qual um leopardo. Uma fera que podia matar alguém com um salto. – Ele é bonito, você não acha? Cecily corou, envergonhada por Isabella ter percebido que ela olhava para o refém francês. – Não gosto de homens de cabelo claro. Isabella não escondeu o sorriso. – Estou falando do moreno. Ah, aquele que ela mal tinha olhado. Se bem que não faria diferença qual era o cavaleiro em questão. Cecily desprezava ambos. Apesar do código de conduta, ela não entendia por que o rei permitia que reféns franceses participassem do torneio. Afinal, eles eram apenas um pouco melhores dos que prisioneiros comuns e deviam ter os privilégios negados. – Eles ficarão mais bonitos quando forem derrubados de seus cavalos e cobertos de lama. Isabella e as outras damas gargalharam com o comentário. A Rainha Philippa franziu a testa para que elas contivessem a alegria exacerbada. Cecily sorriu. Ainda bem que tinha respondido à pergunta com uma brincadeira. O que as outras não sabiam era como ela falava sério. Na verdade, era uma pena que as justas tinham se tornado tão tediosas e cerimoniosas. Ela bem que gostaria de ver sangue francês derramado. – Eu gostaria de saber quem vai enfrentar Gilbert – disse Isabella. Cecily olhou para a extremidade oposta da liça onde Gilbert, agora chamado de sir Gilbert, empinava-se sobre o cavalo com esperança de ganhar. O amuleto dela, um lenço de seda violeta, flutuava na ponta da lança dele. Do lado oposto estava o cavaleiro francês louro, coberto por uma cota de malha e pela armadura prateada, montado num cavalo de guerra, parecendo assustador. Ela não sabia muito sobre batalhas, mas a maneira como estava empertigado, segurando a lança, passava a impressão de alguém confiante e seguro, possível de perceber através da armadura. – Tenho certeza de que Gilbert pode derrubar qualquer um deles – disse ela. – Não seja tola – Isabella comentou como se não acreditasse. – Este é o primeiro torneio de Gilbert. Ele será abençoado se não derrubar a lança. Por que você deu a ele seu amuleto? – Ele me pareceu tão desamparado. – Cecily suspirou. Isabella franziu o cenho. – Você está considerando ele como marido? – Gilbert? – Cecily começou a rir. – Ele é mais um irmão. Gilbert tinha começado como escudeiro do pai dela. Ele era apenas dois anos mais velho que Cecily. Além disso, quando o rei selecionasse um marido para ela, não seria apenas um mero cavaleiro de classe baixa, mas sim alguém poderoso e confiável o suficiente para ter a chave de Londres. Mas quem? Lembrando-se do assunto, ela inclinou-se para o lado e cochichou no ouvido de Isabella:


– Seu pai falou alguma coisa sobre o meu casamento? Desde a morte do pai, Cecily havia se tornado uma herdeira elegível. Estava com quase 20 anos e já tinha passado da hora de ela e o Castelo de Losford serem entregues a um homem escolhido pelo rei. – Os convidados reais dominaram a atenção do meu pai – Isabella respondeu, meneando a cabeça. – O rei de Chipre, Jerusalém, não sei bem de onde ele é, quer levar meu pai para uma Cruzada. – Ela girou os olhos. – Imagine só! Na idade dele! Já é um esforço supremo ele conseguir liderar a final do torneio de hoje. Cecily teve vontade de dizer que ao menos o rei estava vivo, mas segurou a língua. – Além do mais… – Isabella massageou os dedos frios de Cecily – … não quero que você vá embora logo. Mas na verdade não era tão “logo” assim. Fazia três anos que o pai de Cecily tinha morrido na luta contra os franceses. E a primeira missa anual da morte de sua mãe ocorrera há menos de dois meses. Já havia passado o período de luto. E ainda assim… Cecily sorriu para Isabella. – Você só precisa de uma companhia para suas aventuras. Isabella estava com incríveis 31 anos, com tempo de sobra e dinheiro para se divertir como quisesse na corte, e também não era casada. – Faz muito tempo que você está de luto. Acho que deveria se divertir um pouco mais antes de se casar. As trombetas soaram anunciando a próxima justa. O arauto proclamou as regras para o combate simples, mas Cecily não se animou. Ao contrário, franziu o cenho para os cavaleiros franceses. Deus não devia ter permitido que eles vivessem quando seu pai havia morrido. O ESTANDARTE vermelho, branco e azul de De Coucy tremulava com a brisa. Ele sorriu para Marc, demonstrando o quanto estava ansioso pela luta. – Que dia glorioso! O rei acha que nos impressiona! Mas é ele que ficará impressionado, n’est pas? Marc abriu um sorriso irônico. Os dois já haviam lutado lado a lado por muitas vezes. As memórias aumentaram as expectativas deles. – Você vai derrubá-lo na primeira ou na segunda vez? Enguerrand colocou o elmo e ergueu a luva numa breve saudação, mostrando três dedos para Marc. Marc riu. Enguerrand não deixava nunca de ser um cavaleiro perfeito, bem diferente dos outros amigos franceses. Mesmo assim, Marc seguiu o amigo com o olhar, como se sua total atenção assegurasse o resultado. Mesmo já tendo um título, terras e uma posição garantida como líder, Enguerrand tinha a aparência de um jovem aprendiz. No primeiro ataque, Enguerrand atingiu em cheio o escudo de seu oponente. No segundo, permitiu que o outro tocasse seu escudo, mas, virando-se em seguida, deixou claro que tinha sido um golpe fraco que não rendeu muitos pontos. Apesar de ter uma técnica bem superior, ele lutou de forma a fazer o oponente achar que tinha acertado o golpe. Por fim, no terceiro ataque, Enguerrand desferiu um golpe perfeito que arremessou a lança do outro para o meio do campo.


Os escudeiros correram para ajudar seus senhores a desmontar, entregando-lhes as espadas para a próxima fase de combate. Mais uma vez Enguerrand fez o combate parecer uma dança intrincada. O primeiro golpe foi certeiro, mas ele não derrubou o oponente. No segundo, ele se deixou abater, deixando evidente que não havia sido nada sério. No terceiro, ele derrubou a espada do oponente, forçando-o a se dar por vencido. Os espectadores aplaudiram de pé, foi uma ovação maior do que Marc esperava de seus raptores. Enguerrand voltou para o lado do amigo com o elmo na mão e um sorriso no rosto. Ele havia dito que derrubaria o oponente em três golpes e cumpriu com a palavra. – Muito bem, meu amigo – cumprimentou Marc. – Se bem que o último golpe foi demais. Enguerrand riu. – Só se eu tivesse a intenção de matá-lo. Marc olhou para o jovem cavaleiro que o enfrentaria. O rapaz estava perdido dentro da armadura e parecia ter acabado de ganhar as primeiras esporas. – É um insulto ter de lutar com um menino. – Marc viu o pequeno e corajoso lenço violeta na ponta da lança do outro cavaleiro. – Você disse que preciso impressionar as damas. Será que a dona daquele lenço ficará impressionada se seu amuleto terminar pisoteado pelos cavalos? – Comporte-se, mon ami. Marc suspirou. Esperava-se que ele lutasse como De Coucy, bem o suficiente para honrar sua posição, seu amigo e seu país, mas não o suficiente para machucar o anglais. Assim ditava o código de conduta. Por um breve momento, ele sentiu pena do jovem cavaleiro. Ainda lhe restavam algumas migalhas de cavalheirismo. Muito poucas, porém. Ele podia vencer as duas fases sem muito esforço e permitir que o oponente saísse de campo com o orgulho intacto. No entanto, homens costumam dizer uma coisa e fazer outra. Eles são capazes de fazer um juramento de lealdade e deixar seus postos durante uma batalha. Juram proteger uma mulher, mas, em vez disso, as violentam. Eles não ligam para a honra, apenas fingem. Algumas vezes parecia que a vida era uma enorme dissimulação, todos fingindo ser o que não eram na realidade. Marc estava cansado de fingimentos. E estava disposto a protestar da única maneira que podia. Não mataria o rapaz, isso não. Mas se divertiria fazendo-o passar vergonha. O alazão de Marc começou a se movimentar, batendo os cascos contra a terra dura e fria. Quando o juiz deu sinal para que a batalha começasse, ele esporeou o cavalo e seguiu em frente. CECILY SE recusou a aplaudir a vitória do primeiro francês, até Isabella cutucá-la, dizendo: – Você não acha que o francês moreno lutou como um mestre? – Como você pode dizer alguma coisa boa de um francês? – indagou Cecily, aplaudindo muito contra a vontade. – Você fala como se ele fosse infiel. Esqueceu-se que meu pai tem sangue francês? Sim, o sangue francês que corria nas veias reais tinha dado ao rei Eduardo o direito de conclamar o trono da França. Cecily já não tinha esse vínculo. Homens como aqueles cavaleiros, talvez até mesmo algum deles, podiam ter tirado a vida de seu pai. E quando este faleceu, logo em seguida sua mãe também se foi… Ela suspirou, Isabella a censurou, e continuou a prestar a atenção no campo. O guerreiro francês


louro, que usava uma capa azul e dourada e ainda estava com o elmo cobrindo seu rosto, parecia ameaçador, talvez nem fosse humano. Esperava que ele não machucasse Gilbert. Ora, claro que não, não estavam numa guerra, mas sim num torneio. Teoricamente, não devia haver mortes numa competição, pelo menos não com muita frequência. O juiz deu o sinal para que a disputa começasse. Cecily rezou pela segurança de Gilbert e aguardou para mais um prolongado torneio de lança e espada. Os cavalos galoparam, levantando tufos de grama. De um lado, os animais paramentados com capas azuis e douradas; do outro, verdes e brancas. Gilbert parecia meio desequilibrado sobre o cavalo, enquanto o francês cavalgava com uma postura tão sólida e impenetrável quanto as muralhas de Windsor. Ela segurou a respiração como se isso fosse ajudar. Eles estavam indo rápido demais. E se o francês de fato… As lanças se tocaram tilintando no ar. Alguma coisa voou pelo campo. Uma ponta de lança? Uma luva? O cavalo de Gilbert empinou e ele foi jogado de costas no chão. A capa verde e branca estendida no campo se assemelhava ao capim de primavera. Cecily levantou num salto. Será que ele tinha se machucado? Ou teria acontecido alguma coisa pior? Outra perda não, por favor… O francês recuou com o cavalo para que o animal não pisoteasse o garoto por acidente. O escudeiro de Gilbert disparou na direção de seu amo; o cavaleiro se sentou, e sem ajuda, removeu seu elmo. Sem a proteção da armadura, envolto pela sombra do oponente altivo ainda sobre o cavalo, ele parecia jovem, magro e destreinado. Mas, graças a Deus, ileso. – Temo que seu lenço não tenha adiantado – disse Isabella, arqueando as sobrancelhas. – Não foi uma disputa muito justa. Como isso estava evidente, o francês devia ter sido mais cavalheiro e poupado a vergonha a Gilbert. – Acho que ele não liga muito para cortesias. Mas o amigo… Enquanto Isabella falava, o cavaleiro francês, o guerreiro que Cecily gostaria que fosse decapitado, virou o cavalo e saiu do campo. Dessa vez ninguém aplaudiu. Castelo de Westminster – Naquela mesma noite Cecily estava no palanque do cavernoso Salão Nobre do Castelo de Westminster e dali observava enquanto os criados circulavam com tochas entre os presentes. A luz tremeluzente sombreava o rosto das pessoas, mas, mesmo assim, ela estudou um por um, avaliando qual deles faria parte de seu futuro. Será que o escolhido para seu marido seria o conde alto de West Country? Ou talvez o atarracado Barão de Sussex, que recentemente havia perdido a esposa? Notar a presença dos reféns franceses misturados aos outros a deixava de mau humor. Ela não estava nem um pouco disposta a trocar delicadezas com os assassinos de seu pai. Pelo menos o cavaleiro que havia vencido Gilbert naquela tarde não havia nem ousado aparecer. Determinado a impressionar os reis convidados com toda pompa e circunstância de sua corte, o rei Eduardo desafiava a escuridão da noite. A mesa do alto do palanque estava repleta de candelabros de bronze, que ostentavam dezenas de velas.


Ainda assim, as memórias de Cecily pareciam surgir das sombras. Quando seu pai ainda era vivo, ele costumava se sentar à mesa do rei. E quando sua mãe participava dos eventos, as duas costumavam comentar baixinho sobre os vestidos das damas. Sua mãe certamente teria gostado do vestido escarlate que lady Jane vestia… – Cecily? Você está me ouvindo? – Desculpe-me. O que foi? – indagou ela, inclinando-se para ouvir o sussurro de Isabella. – Ouça, meu pai tem boas notícias da Escócia – disse Isabella, franzindo o cenho. – Ele está generoso e menos tranquilo que o normal – Isabella sussurrou. – É capaz de ele prometer sua mão para o primeiro lorde disponível antes de a noite terminar. Cecily empertigou-se e olhou ao redor. – Ele falou com alguém em particular? – Não que eu saiba. – Isabelle balançou a cabeça. Cecily não sabia com quem se casaria, mas sabia que seria um inglês leal e forte. O rei escolheria alguém em quem confiasse da mesma forma como havia designado a seu pai o Castelo de Losford, o Guardião do Canal, a fortificação mais importante de toda a Inglaterra por manter os inimigos longe da costa. O futuro noivo teria de ser alguém que colocasse as responsabilidades acima de tudo. Da mesma forma que ela. Ela havia crescido sabendo que essa sempre seria sua obrigação por ser filha única do conde de Losford e única herdeira das terras e do título. Ela sempre soube que se casaria com alguém designado pelos pais e pelo rei. – Você está pensando nele? – A pergunta de Isabella trouxe Cecily de volta ao presente. – Penso no meu pai todos os dias. – Não que ela o visse todos os dias enquanto ele ainda vivia. Como todos os homens, ele passava a maior parte do tempo na guerra contra a França. – Eu estava me referindo a quem poderia ser seu marido. Cecily achou o comentário estranho vindo de alguém que estava solteira há tanto tempo. Sem falar que seu pai também não tinha se apressado em lhe arrumar um marido. Apesar de já ter passado da idade de casar, o mundo dela se restringia aos pais, ao castelo da família e à corte. Ela ainda não está pronta, sua mãe sussurrara ao ouvido do pai. Cecily sentiu como se o chão tivesse lhe sumido dos pés quando perdera os pais. Ela ainda não tinha certeza se, ao se casar, seu mundo voltaria de novo a ser o que era. – Aceitarei quem o rei escolher. – Era essa sua obrigação. – Bem, meu pai exige que um homem tenha bons resultados nos torneios – disse Isabella. – Hoje, ele ficou mais impressionado com os reféns do que com quaisquer dos homens dele. Cecily respirou aliviada; pelo menos os reféns não eram elegíveis a seu marido. – O cavaleiro francês moreno se portou de acordo com o código de conduta, já o louro foi uma desgraça – admitiu ela de mau humor. – Talvez, mas meu pai disse que seria bom contar com um guerreiro como ele numa batalha. Aquela era uma constatação surpreendente para um rei que tinha como modelo para si mesmo e para sua corte os ideias do rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda. – Olhe – chamou Isabella. – Ali está ele. – Quem? – Aliviada pela mudança de assunto, Cecily seguiu o olhar de Isabella. – Ali… perto do fogo. O cavaleiro francês moreno. O cavaleiro em questão estava ao lado do amigo louro diante de uma das lareiras, pouco adiante de


onde elas estavam. Os dois pareciam bem à vontade, como se estivessem em casa em vez do salão real. – É hora de conhecê-lo – disse a princesa. – Vá até lá e traga-o até aqui. Quero parabenizá-lo pela vitória de hoje. – Eu me recuso a falar com aquele homem – Cecily respondeu, pensando no cavaleiro louro. Como ele se chamava mesmo? Na confusão e no barulho do torneio nem ela, nem Isabella, tinham ouvido o nome dos cavaleiros. – Principalmente depois da maneira como ele tratou Gilbert… Isabella contraiu os lábios, Cecily franziu o cenho e as duas começaram a rir. – Pobre Gilbert. Nos momentos seguintes à disputa, Gilbert não parecia estar machucado. Mas havia chegado ao salão naquela noite com algumas marcas roxas e saído mais cedo, mancando. Cecily ficou aliviada de não precisar fingir-se interessada na terrível performance dele. – Peça a outra dama, ou então, a um pajem – disse ela, parando de rir, sabendo que seria um insulto bem apropriado para o francês. Isabella balançou a cabeça. – Não me importa como você vai fazer, a escolha é sua, mas traga o amigo dele aqui. Cecily suspirou, desceu do palanque e atravessou o salão. Quanto mais avançava, maior era seu ressentimento. Ela morava na Inglaterra, obedecia a um rei inglês e frequentava a corte inglesa, mas ainda assim, a música que dominava o salão era francesa. Seguia passos franceses quando dançava. Até mesmo falava algumas palavras em francês. Não era de se estranhar que os reféns se sentissem tão à vontade. Mesmo estando do outro lado do Canal, eles podiam se dizer em casa. Isabella tinha razão. Os dois países dividiam a cultura, a língua e até mesmo, em alguns casos, o sangue. Mesmo assim, não era o suficiente para impedir que se matassem uns aos outros. Quando ela se aproximou dos dois franceses, o moreno se afastou. Ela parou e pensou em escapar também, mas já havia ido longe demais. O olhar dela cruzou com o do cavaleiro louro. Agora não tinha mais como dar as costas e sair andando. Ele se recostou na parede parecendo à vontade, mas, conforme ela se aproximava, sua postura foi mudando, e apesar da música e do ambiente alegre, ele se retesou como se estivesse pronto para uma luta. Cecily parou, esperando que ele a cumprimentasse fazendo uma vênia, mas o rapaz se limitou a baixar o olhar em silêncio. – Segundo as regras da boa educação, um cavaleiro deve cumprimentar uma dama – disse ela por entre os dentes. O cavaleiro deu de ombros. Será que nada afetaria a postura daquele bárbaro silencioso? – Faço parte da comitiva real. – Isso quer dizer que devo me curvar não só para a realeza, mas também para aqueles que os servem? – Não sou uma criada – ela retrucou à sugestão humilhante. Como ele podia ter confundido uma dama usando um vestido de veludo lilás com uma criada? Aquilo só podia ser provocação. E o pior é que ele tinha alcançado o objetivo. Ela fechou as mãos em punhos e se forçou a dar de ombros também. – Você acaba de provar que a cavalaria francesa é superestimada. O cavaleiro empertigou-se como se as palavras dela o tivessem atingido. – Marc de Marcel, às suas ordens – disse ele, inclinando levemente a cabeça, um gesto perfeito de zombaria.


– Ser um cavaleiro implica muito mais do que boas maneiras. Um cavaleiro devia permitir a um oponente mais fraco manter sua honra num torneio. Ao observar o vestido dela, Marc fez uma expressão impossível de ser decifrada. – O amuleto que ele carregava era seu. Pelo tom de voz dele ficou implícito que ele insinuava que ela e Gilbert… Isso não significa o que você está pensando. – Eu confirmaria mesmo que não fosse meu. Cecily estava com dificuldades até para respirar com aquele olhar tão penetrante a observando. O brilho de ódio do olhar dele era igual ao dela. Ou talvez significasse mais do que ódio. Talvez estivesse mais relacionado a uma fome… Marc forçou um sorriso. – Você teria agido da mesma forma se eu tivesse caído do cavalo. Cecily corou, admitindo que ele tinha razão, e envergonhada por ser tão rude quanto ele. Uma condessa devia ser superior a esse tipo de fraqueza. Ela reassumiu a postura de uma nobre e mostrou um interesse educado ao perguntar: – Faz tempo que está aqui? Marc reassumiu a expressão fechada. – Faz semanas, mas parecem anos. Seu rei permitiu que conde d’Oise fosse enviado para casa, mas exigiu que um substituto ficasse em seu lugar. C’est moi. Agora que já respondi, você pode se retirar. – A filha do rei gostaria de conhecê-lo. – Era mentira, mas uma boa razão para ela estar ali. – Ela se interessa muito pelos prisioneiros de seu pai. – Apenas pelos mais bonitos, pensou Cecily, mas não disse nada, virando-se e rezando para que ele a seguisse. Ele a acompanhou. Isabella reprimiu o sorriso ao vê-los se aproximar. Cecily tinha receio de ser alvo de comentários jocosos por ter trazido o homem que havia jurado desprezar. – Cavaleiro Marc de Marcel, milady. Ele chegou recentemente à corte. Marc se curvou numa vênia bem mais respeitosa do que tinha usado com Cecily. – Um refém pode ter a honra de ser apresentado a seu captor, milady? – disse ele com certa ironia, como se a pergunta tivesse dois significados. Bem, Isabella iria gostar, tanto que já estava prestes a rir. Tudo pelo espetáculo, claro. Uma princesa e uma condessa tinham de ser perfeitas. Mas as conversas triviais e a vontade de se divertir de Isabella tinham mantido Cecily fora do desespero. Entretanto, não era Isabella que mantinha a atenção de Marc, e sim Cecily. – Pode sim. Na verdade, é preciso – disse Isabella chamando a atenção de Marc para si. – E seu amigo… – Ela inclinou a cabeça na direção do outro cavaleiro que havia voltado ao salão –… ainda não se apresentou. E acredito que ele esteja há mais tempo na Inglaterra do que você. Como se a tivesse ouvido falar, o cavaleiro moreno se aproximou do grupo. Parecia que estava esperando ser requisitado. A bem da verdade, os dois pareciam ter planejado tudo aquilo. Tanto que, ao chegar, Enguerrand não pediu permissão e nem esperou ser apresentado; foi logo dizendo: – Enguerrand, lorde de Coucy. E foi tudo o que ele disse. Nenhuma outra explicação foi dada, como se o nome dele bastasse. Houve uma época em que a família tivera terras ali. Isabella inclinou a cabeça, cumprimentando-o em silêncio. Não havia necessidade de ela se


apresentar. Todos sabiam que ela era a filha mais velha e favorita do rei. As trombetas dos menestréis começaram a tocar, abrindo o baile. Isabella se levantou e estendeu a mão a Enguerrand, forçando-o a levá-la para dançar. E ele não titubeou. Cecily olhou em desespero pelo salão, esperando que alguém a resgatasse. Afinal, ela devia dançar a primeira música com alguém que pudesse ser seu marido, e não com um refém. Bem, Marc a poupou do constrangimento e não a convidou. Ela contraiu os lábios e tentou ser gentil: – Você é do Vale de Oise? Marc franziu o cenho, como se não tivesse gostado de ouvir o nome de sua terra. – E lá não se dança? – Nem sempre. Quando les maudits dão uma pausa na guerra. – A quem você está se referindo? – Ela perguntou, piscando. – É assim que chamamos os ingleses. – Por quê? Será que eles blasfemavam contra os ingleses a toda hora? – Porque os ingleses fazem o mesmo em toda frase que dizem. Cecily procurou não rir. Ele tinha razão, o pai dela costumava praguejar daquele jeito. Era possível até que ele repetisse o comportamento centena de vezes no meio de uma batalha. Assumindo a postura imperial de uma princesa, ela estendeu a mão a ele. – Mostre-me se você sabe mesmo dançar. – Isso faz parte do castigo dos reféns? – Não – retrucou ela. – Isso é um privilégio. – Então, mademoiselle, preciso saber o nome da minha parceira. Cecily ficou envergonhada por ter se esquecido do detalhe, mas a vergonha foi logo substituída pela raiva. Ela procurou se conter, contudo, pois, caso contrário, agiria como uma moça comum. – Lady Cecily, condessa de Losford. A surpresa no rosto dele valeu o esforço que ela havia feito para ser agradável. Marc olhou para a cabeça descoberta de Cecily e desviou o olhar para trás dela, esperando que o conde aparecesse. – Sou a dona do título – disse ela, com orgulho e tristeza ao mesmo tempo. Ela era a única a ostentar a posição porque não havia outro membro de sua família. E o manteria enquanto um marido não fosse escolhido. Marc meneou a cabeça discretamente e, ao contrário da sua reação inicial, estendeu a mão sem hesitar. Cecily foi invadida por uma onda de surpresa, ou talvez havia sido uma sensação mais profunda e desconhecida, quando colocou a ponta dos dedos sobre a mão dele. Ela achou que fosse tocar a pele macia como a de todo cavaleiro depois do fim da guerra. No entanto, havia calos naquela palma e os nódulos dos dedos estavam raspados. Talvez ele tivesse se machucado durante o torneio, mas ao passarem perto de um tocheiro, ela viu que as mãos dele tinham cicatrizes antigas. Os dois se uniram aos outros casais na pista de dança. Não muito longe de onde estavam, Enguerrand e Isabella sorriam e cochichavam como se a noite tivesse sido preparada para o divertimento de ambos. Ele não parecia nem um pouco ressentido por ser um refém, enquanto Marc continuava emburrado e em silêncio quando a música começou. Enguerrand e Marc eram amigos, mas não podiam ser mais diferentes. A dança fazia com que os casais estivessem sempre em movimento, segurando as mãos no alto, por isso era impossível de se conversar. Mesmo assim, Marc se movimentava da mesma forma como falava,


conciso e com precisão, fazendo apenas o necessário. Cecily chegou a pensar se ele se divertia em algum momento. Bem, estava claro que ele não estava se divertindo com ela. Assim que a música terminou, ele soltou a mão dela e Cecily suspirou, deixando transparecer o quanto estivera tensa nos últimos minutos. Marc continuou diante dela, olhando ao redor, procurando uma maneira de se afastar. Enquanto isso, Cecily pensou que aquele inimigo podia, se quisesse, desfrutar do bom vinho do rei, de uma farta refeição e se deleitar com a música dos menestréis, vivo e confortável, enquanto o pai dela jazia no cemitério. – O que você fez para ter a honra de ser substituído por outro refém? – indagou ela, quebrando o silêncio. – Honra? – Você foi derrotado na guerra, matou meu… meus conterrâneos e ainda assim o rei o recebe em sua corte com fartura de comida e bebida. Acho que isso é um castigo generoso para quem perdeu. – Uma prisão não muda por ostentar tapeçarias na parede. – Mas você está a salvo e livre para fazer o que quiser. – E se eu quiser voltar para casa? Mas o pai dela jamais voltaria. – É preciso pagar uma pena. Nós os conquistamos! Cecily deixou as palavras escaparem e notou como Marc mudou de expressão. – Não! Não fomos conquistados e nunca seremos. Fomos traídos por covardes. Lorde de Coucy e eu não estávamos entre eles. Nós teríamos lutado até que o último maudit morresse. Dessa vez ele tinha praguejado de verdade. – Então, você odeia os ingleses – disse Cecily, usando palavras brutas com as quais ele devia se identificar. – Da mesma forma como você odeia os franceses – Marc respondeu. – Disso eu duvido. – Cecily estava tão irritada que conseguiu manter a voz firme. – Bem, já que você nos detesta e desdenha da hospitalidade do rei, espero que sua estada aqui seja breve. Marc fez uma vênia, mas não por respeito, e sim por zombaria. – Pelo menos nisso estamos de acordo, milady.


Capítulo 2

MARC FICOU observando a condessa se afastar mais tempo do que gostaria, com a atenção toda no movimento cadenciado dos quadris dela. Enguerrand terminou de dançar com a filha do rei e, ao se aproximar do amigo, seguiu seu olhar. – Ah, ela é adorável, não é? La belle dame de Losford. Repare no pescoço longilíneo, na maneira como meneia a cabeça, e aquele cabelo escuro… – Enguerrand continuou descrevendo a beleza de Cecily. Marc se deixou levar pela visão de abraçá-la e roubar-lhe um beijo que apagaria a expressão de desagrado do rosto dela quando o viu antes mesmo de terem sido apresentados. Claro que se isso acontecesse, ela o chamaria de mais desonrado ainda. Se bem que se ela soubesse tudo o que ele tinha feito e tudo o que estava disposto a fazer, sequer se lembraria da impressão que tivera dele. Ele se forçou a desviar o olhar dela e deu de ombros. – Não tenho interesse nenhum nos maudits, sejam eles homens ou mulheres. – Mas era mentira. Cecily havia causado emoções tão distintas quanto o fogo e a água… sim, ele estava interessado, mas de um jeito não muito correto. Enguerrand balançou a cabeça. – Seu tom de voz é tão amargo que chegaria a talhar o leite, mon ami. – Como é que você aguenta isso? Sim, o rei inglês era bem hospitaleiro e o cárcere deles estava mais para um castigo generoso, conforme Cecily havia dito, criado pelo senso comum de honra que exigia que um refém se submetesse ao rei vencedor de acordo às regras do cavalheirismo que ele pretendia seguir. Mesmo assim, Marc se ressentia da falsidade. – Pardon? – Enguerrand perguntou, confuso. Marc suspirou. A explicação seria longa.


– Como você pode ser tão generoso com seus captores? De Coucy já estava na França há três anos e por isso talvez já estivesse acostumado. – É melhor se dar bem com a maior quantidade de homens que puder. – E mulheres também? – Bien sûr. Avec les femmes todas – De Coucy respondeu rindo. Para ele, era tão fácil encobrir os pecados de um guerreiro com o charme de um cortesão, enquanto para Marc era tão difícil. Mas o mundo era assim. O código de conduta dizia uma coisa, mas os nobres faziam outra, como se já fosse algo aceitável desrespeitar a ética. – Às vezes um ataque sutil obtém mais sucesso do que um ataque de frente – disse Enguerrand, abaixando o tom de voz. – O que você quer dizer com isso? Marc percebeu que por trás do sorriso do amigo havia um plano. – Se… eu me tornar amigo de lady Isabella, ela pode persuadir o pai a devolver minhas terras, n’estce pas? Marc já tinha ouvido Enguerrand falar sobre suas terras inglesas, lugares com nomes estranhos como Cumberland e Westmorland. Eram propriedades ao Norte, perto da Escócia, onde a bisavó de Enguerrand tinha se estabelecido quando ficou noiva. A propriedade havia sido confiscada pela a Coroa Inglesa anos antes. – Por que o rei Eduardo cederia uma propriedade a um refém? Enguerrand sorriu e encolheu os ombros. – Como posso saber se não tentar? Enquanto isso, os meses se tornam mais longos. Eu soube que a princesa organiza festas para seu círculo de amizades. Não é melhor aproveitar a noite do que ficar confinado àquela torre gelada? Ah, aquele era o verdadeiro Enguerrand, iludindo-se ao achar que era um convidado em vez de prisioneiro. – Não pretendo passar mais tempo na corte. – Nem mesmo na companhia da adorável condessa? – Principalmente com ela. Mas a atitude de Marc contrariava suas palavras, pois seu olhar corria pelo salão até encontrar a dama de vestido lilás. Ela havia despertado uma sensação nova, um misto de raiva e desejo. Algo perigoso e que seria melhor evitar. – Você não precisa de mim nessa batalha – disse ele, virando-se de costas para o salão. – Essa noite, não, mon ami. Mas logo chegará a hora. E então…? – Enguerrand ergueu uma das sobrancelhas aguardando a resposta. Dever. Honra. Um pouco mais do que palavras vazias. Mas lealdade? Um homem não era ninguém sem ela. – Quando precisar, basta avisar. – Agora mesmo. – Enguerrand colocou a mão sobre o ombro de Marc, virando-o para o salão lotado. – Cante. Dance. Divirta-se e faça amigos. – Deixo essa tarefa para você, mon ami. Enguerrand acenou com a mão e se afastou rindo. Ele se movimentava pelo salão, meneando a cabeça e sorrindo como se estivesse em casa no Château de Coucy. E por que não deveria? Assim como De Coucy, havia outros reféns franceses que viviam a certeza de que algum dia o resgate seria pago,


haveria uma troca de dinheiro e eles voltariam para um castelo semelhante àquele para cantar e dançar. Não era o caso de Marc. O conde d’Oise havia prometido voltar, ou enviar o resgate, ou mandar outro substituto até a Páscoa. Marc teria de ficar na Angleterre por seis meses apenas. A não ser que o conde conseguisse agir mais rápido. Relembrando da conversa, Marc lembrou que o conde não o olhara nos olhos ao descrever seus planos e promessas. As opções e o tempo de execução tinham ficado muito vagos. Então, por que viera? Por que aceitara ficar como refém nas mãos do inimigo? Era o débito da lealdade. Seria a chance de rever o amigo, que já estava na Inglaterra por três anos. Teria vindo na tola tentativa de provar a honra? Naquela noite, havia apenas uma pessoa cuja amargura combinava com a dele: a condessa de Losfort. CECILY FICOU contente em saber que Gilbert já tinha se recuperado no dia seguinte, ainda mancando, mas inteiro. Sentindo-se culpada por ter feito troça dele com Isabella, ela se aproximou dele depois da missa da manhã, mas não o fitou nos olhos. – Lamento não ter correspondido à honra que você depositou em mim – disse ele, enquanto caminhavam da abadia ao castelo. O cabelo de Gilbert cortinou-lhe os olhos quando ele abaixou a cabeça. Ele parecia jovem como um escudeiro, embora fosse apenas dois anos mais velho do que ela. Admitir a derrota, contudo, fazia dele um homem que se lamentava não por ela em si, mas por tê-la desapontado. – A falha não foi sua, mas de Marcel – respondeu ela. – Ele violou as regras do torneio. Ela achou melhor não dizer que havia dançado com Marc na noite anterior. Recordou-se da mão cicatrizada, que refletia uma pessoa rude, mas confiante. Implacável, até. A lembrança a fez corar por um instante, mas ela logo se recuperou, reassumindo a dignidade do título que ostentava. Gilbert estava tão compenetrado em disfarçar seu desapontamento que não percebeu o rubor nas faces dela. – Eu não estava bem preparado. Foi uma boa lição. – Você não está bravo? – Ela estava. Era bem mais fácil canalizar o ressentimento para a raiva. O ódio continha um poder maior, enquanto a mágoa era uma ferida aberta. – Sim, bravo comigo mesmo – confessou ele. – Eu me sairei melhor na próxima vez. – Não pense mais nele – disse Cecily, meneando a cabeça, mas ciente de que ela mesma não deixaria de pensar em Marc. AS CELEBRAÇÕES do torneio terminaram nos dias seguintes. Os reféns retornaram à torre e a corte iniciou os preparativos para a mudança a Windsor, visando as festas natalinas. Cecily afastou o francês rude de seus pensamentos. Bem, na realidade, ela pensava uma vez ou outra nele porque toda vez em que encontrava Gilbert tinha de ouvir a descrição da justa em detalhes e a forma como ele reagiria diferente caso lutasse contra Marcel de novo. Era como se ela mesma revivesse uma ou duas vezes sua justa particular com Marcel, mas seria apenas para se reprimir, como sua mãe faria, por ter não mantido a dignidade e a paciência. Mas claro que não o veria mais. No entanto, jurou que manteria a calma caso o encontrasse novamente. Uma semana mais tarde, Cecily viu o alfaiate desembrulhar o vestido de Natal de Isabella, mas


estava com a cabeça em outras coisas. Apesar de sua família passar a data na corte desde que ela se lembrava, era sempre sua mãe que planejava tudo. Cecily a havia ajudado, claro, mas seria a primeira vez em que tomaria todas as providências sozinha. Faltavam apenas três semanas. Ela teria de resolver os detalhes sem contar com a ajuda de ninguém. Era preciso demonstrar que, além de herdeira, ela seria também uma esposa competente. O grande problema, porém, é que ela não sabia nem por onde começar. – Não é lindo? – Isabella se esforçou para levantar o vestido, pesado demais por causa das peles. Os tecidos em que o vestido estava embrulhado empilhavam-se aos pés de Isabella em seu aposento. – Foi feito para uma rainha – respondeu Cecily. – Nem tanto – disse Isabella, estendendo o vestido ao alfaiate, que, com todo cuidado, o estendeu sobre a cama. – Minha mãe também tem peles nas mangas. – Ela deslizou a mão pela roupa, acariciando o tecido. – Mas foi meu pai que pagou por este vestido. Cecily mordiscou o lábio inferior ao se lembrar de que não tinha pai para cobri-la de presentes. Nem mãe para aconselhá-la ou dizer qual vestido lhe cairia melhor. De vez em quando, ao ouvir a porta se abrindo, ela achava que tinha ouvido os passos de um ou a voz da outra…. – Preste atenção, Cecily! A voz de Isabella a trouxe de volta ao presente. – Sim, milady. – O que você vai vestir? Ah, sim, providenciar uma roupa era uma das tarefas que ela devia ter feito. – Eu… não sei. Não tenho nada novo. Como ainda estava de luto, não tinha encomendado nada para o Natal, a não ser os vestidos que as damas da corte costumavam combinar. – Talvez ninguém note. – Não seja boba! Você tem de se aprontar para um casamento e não para um funeral. Cecily examinou o que estava vestindo. Mesmo não usando roupas de viuvez, ela preferia roupas escuras, a menos que tivesse de vestir as cores reais. – Eu podia pegar um dos vestidos da minha mãe. Quem sabe o verde? Minha mãe dizia que eu ficava bem de verde. – É um tom forte demais, não está na moda. Eu achei que isso fosse acontecer. – Isabella meneou a cabeça e acenou para o alfaiate. – Por isso mandei fazer algo para você. Cecily arregalou os olhos quando viu a sobrecapa com extremidades de pele, que deixaria qualquer vestido antigo com aparência de novo. – Não sei o que dizer. Isabella riu. – Não diga nada, prove, sua tola. Com ajuda do alfaiate e de uma criada, Cecily passou a sobrecapa pela cabeça. A peça serviu fácil e tinha uma abertura do ombro ao quadril, revelando o vestido de baixo e destacando as curvas da cintura. Cecily colocou as mãos por baixo da capa, o forro de zibelina pinicava. Ela tentou nem imaginar quanto a capa teria custado. Isabella não era de economizar, e volta e meia excedia o valor da mesada. O rei reclamava quando isso acontecia, mas não deixava de cobrir os débitos da filha.


– Não sei como agradecer, milady. Isabella acenou para que os criados se retirassem. – Esse será seu último Natal solteira! Agradeça-me aproveitando bem a roupa! Último ano solteira e primeiro longe da mãe. Fazia três anos que o pai de Cecily tinha falecido, mas menos de um que sua mãe se fora. Já era tempo de ela mostrar à corte que estava pronta para enfrentar o futuro e assumir as obrigações, em vez de ficar choramingando pelos cantos. Não podia haver lágrimas nessa estação. Pensando nisso, Cecily rodopiou, balançando a saia. – Então você acha que devo cantar, dançar e sorrir para todos os homens até a véspera do Dia de Reis! – exclamou sorrindo, forçando uma expressão de alegria. Mas Isabella riu e bateu palmas. – Isso mesmo! Quando a estação terminar todos os homens da corte estarão esperançosos de serem escolhidos como guardião de Losford. Até mesmo os reféns! De repente Cecily imaginou o olhar de Marcel e ficou furiosa. – O quê? – Meu pai convidou alguns deles para nos acompanhar a Windsor. – O sorriso aberto e radiante de Isabella ficou mais tímido. – Incluindo o lorde de Coucy. Cecily mordiscou o lábio. Como poderia sorrir com os assassinos de seu pai dançando e cantando a seu lado? Isabella não percebeu a tristeza momentânea da amiga. – Lorde de Coucy é muito bom dançarino. E bonito também, você não acha? – Penso o menos possível nos franceses. – Mas ela não estava se referindo ao refém moreno. Sentindo o rosto corar, ela virou para que Isabella não percebesse. – Haverá outros reféns além dele? – Você está se referindo a outro francês? – Ora, há algum de outra nacionalidade? – Você está interessada em alguém em particular? Talvez o amigo louro do lorde de Coucy? Como é mesmo o nome dele? – Marc de Marcel. Mas, não estou interessada em ninguém – ela respondeu, fingindo desdém. Será que Isabella conseguiria ler seus pensamentos? – De Marcel, isso mesmo! Seria uma ótima distração para você. – Não! Mas Isabella fingiu não ouvir o protesto e emendou: – É perfeito! Um para cada uma de nós. – Não poderia ser mais inconveniente. – Por isso mesmo! Eles serão os companheiros ideais para a estação. Nós nos divertiremos e depois os deixaremos de lado. Além disso, nossos pretendentes ficarão enciumados. – Isabella riu e, puxando uma fita de uma pilha, deu um laço e jogou-o para cima, depois chutando-o ao cair no chão. – É assim que faremos. Enquanto isso, lorde de Coucy pode dedicar só a mim durante as próximas semanas. E De Marcel ficará com você. Cecily pensou em Marc e na possibilidade de ficarem sozinhos e estremeceu. Mesmo num salão repleto de gente ele quase a havia devorado com um simples olhar. O que aconteceria se ficasse próxima dia após dia de um homem que havia dito que não ligava para a honra? – Lorde de Coucy parece ser um homem que segue regras, enquanto De Marcel despreza qualquer


código de honra. E se você confiar na pessoa errada? E se…? – Cecily parou de falar, pois continuar seria um insulto. A expressão de Isabella provou seus temores. De repente, ela voltou a ser uma princesa, franzindo a testa assumindo toda a realeza do pai. – Não me entenda errado. Eu jamais permitira alguma coisa a mais. Cecily baixou a cabeça. – Claro que não, milady. Não podia haver sequer uma insinuação que as duas não fossem castas. Ao decidir continuar solteira, Isabella havia escolhido uma vida de renúncias tão rígida quanto a de uma freira. Quanto a Cecily, um marido não esperaria apenas sua herança, mas também sua pureza. – Estaremos em segurança, Cecily – disse Isabella, relaxando a testa. – Teremos um pouco de romantismo para levantar nossos ânimos. Vou me certificar de que Marc de Marcel também seja convidado para ir a Windsor. – Convide-o se quiser, mas não espere que eu perca meu tempo com ele. Não. Marc de Marcel era a última pessoa que ela queria ver na próxima estação. MARC ACORDOU de repente e espiou pela janela da Torre de Londres para a fria manhã e estremeceu. Os carcereiros não se preocuparam em gastar dinheiro com lenha para aquecer os reféns franceses. – Levante-se, mon ami! Você ouviu o que eu disse? Marc coçou os olhos e fitou o amigo. – O que você vai fazer? – perguntou, certo que não tinha ouvido direito. Era cedo demais para alguém já estar acordado e falante. – O que você disse? – Fomos convidados para participar do cortejo do rei. Vamos celebrar o Noël no Castelo de Windsor. As palavras não fizeram sentido para Marc, mesmo depois de terem sido repetidas. – Você está louco? – Louco eu estaria se recusasse o convite da princesa. Ah, sim, a princesa que De Coucy via como a chave para recuperar suas terras. Mas não foi ela quem ele vislumbrou naquele momento, e sim a condessa que havia se intrometido em seus sonhos. O cabelo escuro, o rosto bem delineado, o brilho de ódio em seus olhos… Sim, de Coucy era mesmo um fou. Mas Marc não tinha nada com isso. – Aceite o convite, mas não conte com minha companhia. – Ela foi bem específica ao pedir que eu levasse você. Que estranho. Cecily não havia demonstrado nenhuma vontade de vê-lo de novo. Qual seria o motivo do interesse da princesa? – Pourquoi? – Talvez ela não queira que eu fique isolè – De Coucy respondeu, encolhendo os ombros. Marc deu risada. Era um absurdo pensar que seu companheiro tão amigável se sentisse isolado. – Você não precisa de mim para conseguir o que quer com lady Isabella. – Não é pecado algum divertir-se no cativeiro. Talvez não fosse mesmo, mas para Marc a única alegria que havia encontrado na Inglaterra tinha sido voltar a ver o amigo de longa data. Enquanto a maioria dos homens tinha esposa e família, Marc tinha apenas Enguerrand.


– Se eu não o conhecesse tão bem, poderia pensar que você só pensa em diversão. Enguerrand era um homem de extremos. Ele lutava e dançava com a mesma intensidade. E a guerra havia acabado. Por enquanto. – E você nem pensa em se divertir. Marc nunca fora acostumado com conforto e divertir-se lhe parecia ainda mais distante depois de ter perdido a guerra. Dançar e cantar dava a impressão de que as mortes na guerra tinham sido apenas ilusórias, como se fosse possível os mortos ressuscitarem e compartilharem da festa. – Não pretendo festejar a vitória do inimigo. – É verdade, iremos celebrar o Noël. Vamos festejar com carneiro inglês e vinho de Gascon durante algumas semanas. Só isso já vale a pena. Este tinha sido o insulto final. Marc sabia que o custo diário de comer e beber na Inglaterra seria acrescido ao resgate, como se tivesse de pagar por ser um refém. – A proposta é tentadora, meu amigo, mas a comida inglesa me faz mal para o estômago. – Você prefere ficar nesta torre fria e mastigar carne dura? Eram muitos os reféns para serem mantidos dentro dos portões da cidade e a abadia estava lotada, por isso, ele e Enguerrand tiveram de ficar nos quartos úmidos e escuros da Torre de Londres. O inverno prometia ser rigoroso, o vento gelado atravessaria as paredes. O frio seria bem pior se passasse o Natal sem a presença de Enguerrand. Mas pior ainda seria precisar sorrir de alegria na companhia dos les maudits. Se concordasse pareceria mal-agradecido. Mas mesmo assim… – Sim, eu prefiro. Enguerrand suspirou, decepcionado. – A princesa ficará désolée. – Melhor ainda, assim você poderá consolá-la. – Marc se virou e puxou as cobertas. – Joyeux Noël, mon ami. Três missas seriam celebradas no dia de Natal. Talvez ele se levantasse a tempo de assistir uma delas. E se os guardas exagerassem nos festejos, talvez um prisioneiro pudesse vagar pelos salões sem ser notado. Talvez ele ousasse até ir mais além. CECILY OUVIU risos através da porta dos aposentos de Isabella e devia ter parado, mas estava apressada, distraída e tinha notícias importantes, por isso bateu na porta e a abriu em seguida como já havia feito várias vezes. Mas, dessa vez, Isabella estava ao lado de lorde de Coucy. Os dois estavam perto demais e a fitaram com um ar de culpa. Cecily olhou ao redor e viu que eles estavam sozinhos. Os dois estavam ali sem companhia, rindo e tão próximos que poderiam ter… Cecily abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada. – Ah, a bela condessa – disse De Coucy, fazendo uma vênia e abrindo uma distância segura da princesa. – Isso me lembra de que me afastei por tempo demais, milady. Os guardas devem estar me procurando. Ele se despediu com a deferência apropriada e parou diante de Cecily fazendo uma vênia com o joelho mais dobrado. Outra mesura, um sorriso e saiu como se nada estivesse errado. Como se um jovem refém francês tivesse o direito de ficar tão próximo à filha do rei sussurrando-lhe bon mots ao


ouvido. Cecily fulminou Isabella com o olhar. Rir e dançar com um cavaleiro era permitido nos salões, em público. Ao som da música e regados a vinho, muitos casais se beijavam e abraçavam, desfrutando um momento de paixão, mas sempre com o público como testemunha da indiscrição. Pelo menos tinha sido assim que a mãe de Cecily havia dito. Indiferente ao espanto de Cecily, Isabella não a repreendeu e nem perguntou por que ela estava ali, limitando-se a movimentar-se com a confiança real de alguém cujo comportamento nunca era questionado. – Sinto dizer que você terá de passar as Festas sem seu francês mal-humorado – disse Isabella assim que a porta do quarto se fechou. – Pardon? – Lorde de Coucy veio confirmar a presença dele, mas não a do amigo. – Ele está doente? – Não que a ideia a desagradasse. – Não. – Isabella deu de ombros. – Ele recusou o convite. Embora não fosse uma reação racional, Cecily sentiu-se ligeiramente insultada. Era indiferente se o convite tivesse partido dela ou não… ninguém recusava um convite do rei. – Como ele pode fazer isso? – Não importa. – Isabella não tinha ficado indignada, pois estava mais interessada na presença de De Coucy. – Você encontrará outra pessoa mais interessante para flertar durante as Festas. Cecily resmungou baixinho. Isabella estava convencida de que a companhia masculina era essencial para divertir-se durante as Festas. Mas Cecily devia se preocupar com seus prováveis pretendentes. Não seria nada bom ser vista rindo, dançando ou mesmo muito perto de um cavaleiro refém. Ainda assim, a recusa de Marcel para passarem o Natal juntos azedou seu humor, tal qual o vinho que fica muito tempo fermentando. Nesse instante, ela se lembrou da razão de ter ido procurar Isabella. – Tenho novidades. O rei da França voltará à Inglaterra. – Isso quer dizer que o recado do meu pai surtiu o efeito desejado. – Isabella arregalou os olhos e sorriu em seguida. – Ele escreveu algo relacionado à honra entre os reis. – Isso inclui os filhos? Quando o rei Jean teve permissão para voltar à França, vários nobres vieram para a Inglaterra a fim de substituí-lo, incluindo dois de seus filhos. Um ano mais tarde, um deles fugiu e voltou para a França. Comportamento digno de um francês, teria dito o pai de Cecily. De Marcel certamente não era muito melhor. – Você sabe quando ele chegará? Será que virá a tempo de comemorar as Festas? Mais um francês para entreter? Cecily resmungou de novo. – Não sei, por quê? – Precisamos recebê-lo com toda a honra. Lord de Coucy ficará feliz com a novidade. Nossa, será um Natal inesquecível! Lá estava Isabella falando em De Coucy de novo. Cecily franziu o cenho, enquanto Isabella falava sem parar. Mas não havia razão para se preocupar com a princesa e o refém. Mesmo assim, Cecily se preocupava.


Capítulo 3

– MARC! ECOUTE! Tenho novidades. Marc tinha um maço de gravetos nas mãos e por um instante pensou em jogá-los na cabeça de Enguerrand ao invés de alimentar o fogo. Nas últimas semanas, Enguerrand só falava do progresso de sua campanha para recuperar as terras da família Coucy em Londres. Àquela altura, Marc estava ansioso para que o amigo partisse logo para Windsor e o deixasse em paz. – Poupe meus ouvidos, amigo. Já ouvi tudo o que interessava. – Não, nem tudo. Pelo tom de voz de Enguerrand e a expressão de espanto, Marc passou a crer que alguma coisa havia acontecido de fato. – O que há de errado? – O rei Jean. Ele vem para a Inglaterra encore. Marc balançou a cabeça, certo de que não havia ouvido direito. – Como? – O rei atravessará o Canal e se entregará de novo às mãos do rei Eduardo até que o resgate seja pago. – Enguerrand deixou-se cair no banco ao lado do amigo, com o olhar fixo no fogo. – Por quê? – Para restaurar a honra que o filho perdeu. Marc ainda não estava acreditando na história. A honra e os tratados negociados depois da Batalha de Poitiers estabeleciam que o rei devia permanecer como refém até que o resgate de três milhões de coroas fosse pago. Pelo que se dizia, a quantia representava mais do que o dobro da renda anual do país inteiro. As negociações haviam começado bem antes de Marc vir para a Inglaterra. Por fim, decidiu-se que o rei voltaria para a França para ajudar a levantar quantia do resgate, mas quatro duques, inclusive dois


filhos do rei Jean, foram forçados a tomar seu lugar como reféns. Na época, Marc havia questionado a honra do Duque d’Anjou por ter voltado para a esposa, mas achava tolice o rei se render ao inimigo de novo. Não havia razão para tanto. Nenhuma razão além da honra. Ah, sim, tratava-se do rei que Marc vira em campo em Poitiers, lutando até mesmo quando muitos já haviam fugido. – Este é um comportamento típico do rei Jean. Pelo menos alguém ainda era honrado. – Foi ele que mandou o recado ao rei Eduardo – disse Enguerrand. – “Se a honra e a boa-fé desaparecerem do resto do mundo, tais virtudes ainda devem existir nos lábios e nos corações dos príncipes.” Boa-fé. Honra. Estas eram as razões que tornavam o aprisionamento de um refém uma obrigação sagrada, pois eles ficavam presos não só pelo resgate, mas também por uma promessa feita de um cavaleiro para outro. Pensando nisso, Marc se lembrou de que De Coucy fazia parte do grupo de reféns que havia sido trocado pelo rei. Se o rei voltasse para a Inglaterra, mesmo se o resgate ainda não tivesse sido totalmente liquidado… – Isso significa que você pode voltar para casa – disse Marc com uma pontinha de inveja. A Inglaterra sem Enguerrand seria muito fria e sem graça. Enguerrand assentiu com a cabeça num misto de perplexidade e espanto. – Sim. Para casa. Marc sentiu ciúmes do amigo. Ele não conhecia outro lar que não fosse o de De Coucy. – Você soube alguma coisa do que será do restante de nós? A situação de Marc não fazia parte do mesmo acordo de De Coucy. Ele era apenas um pobre substituto parcial do conde d’Oise, capturado por um cavaleiro inglês que havia vendido sua cota do resgate para o rei, um homem bem-sucedido que poderia esperar anos pelo pagamento total. – Não, só ouvi falar do rei – Enguerrand respondeu, balançando a cabeça. Mas o rei já havia provado que a honra devia reger todos os acordos. Marc havia trazido para a Inglaterra parte do pagamento do resgate do conde. Aliás, ele estava ali como garantia de que o pagamento total seria feito. O conde havia prometido resolver o assunto, no mais tardar, até a Páscoa. Marc estava inseguro e inquieto, chegou a pensar em escapar durante as Festas, quando até o próprio filho do rei havia desaparecido. Mas com aquelas novidades, suas dúvidas e planos tornaram-se impróprios. Ele não podia desonrar a própria promessa e macular seu exemplo de cavalheirismo que era o rei. – Quando ele vem? – Ele vai celebrar o Natal em Paris e depois deve cruzar o Canal. Então o rei Jean estaria em Paris no final do ano. Não havia dúvidas de que o conde d’Oise seria tão honrado quanto o rei e enviaria o restante do valor do seu resgate pela comitiva real. Ou então se entregaria também, como o rei havia feito. Para Marc, não importava como se daria aquela troca: o importante era que ele estaria livre. – Logo teremos muito o que fazer – disse Enguerrand levantando-se e dirigindo-se para a porta. Marc jogou os gravetos no fogo, tremendo de frio. Talvez devesse ter aceitado o convite para ir a Windsor. A época das Festas seria longa e fria.


– PRECISO DE um vestido novo para receber o rei Jean – disse Isabella. – Será que ele se lembra do que você estava usando na última vez que a viu? – Cecily sorriu com a esperança de que Anne de Stamford ainda estivesse na corte. Apesar das diferenças, elas tinham trocados sorrisos quando a princesa e condessa de Kent escolhia peças para seu guarda-roupas. O que teria acontecido a Anne? A última notícia que Cecily tivera dava conta que ela havia entrado para um convento. Talvez tenha sido melhor. A vida era muito difícil para uma moça defeituosa. – Como você deve saber, a moda mudou desde então – Isabella prosseguiu. – Temos tempo suficiente para organizar uma recepção real. O ressentimento de Cecily partiu seu coração. – Uma recepção para um refém? – Para um rei – respondeu Isabella, empertigando-se e igualando-se na posição real. Boa lembrança. Apesar de a filha do rei parecer fútil e volage, nem ela, nem Cecily jamais se esqueceriam de sua posição social e de suas obrigações. – Falei com Enguerrand – disse Isabella. – Segundo ele, o rei deve ir a Canterbury primeiro antes de vir para a corte. Então, nós decidimos que… Enguerrand. Nós. – Nós? – Sim, Enguerrand e eu. Como ele também estará em Windsor, pedi ajuda para organizar uma recepção real. Não era muito certo que a princesa tomasse decisões por conta própria, mas era muito pior quando se aconselhava com um refém. Ela fazia parte da realeza e era solteira. As únicas pessoas que poderiam repreendê-la seriam o rei e a rainha da Inglaterra. – Não podemos organizar a recepção sem ajuda de um refém? Uma coisa era convidar Enguerrand e Marcel para passar o Natal em Windsor, mas outra bem diferente era deixá-lo participar da organização de uma cerimônia real. – Ele é o lorde de Coucy e merece ser tratado de acordo com sua posição – disse a princesa num tom único da realeza. Ah, claro, havia uma hierarquia até mesmo entre os reféns. De Coucy era um lorde de posição significativa na França. Claro que ele não seria tratado como um simples cavaleiro. Não seria tratado como Marc de Marcel, por exemplo. Mesmo assim… – Você não se preocupa com o que essa participação pode se tornar…? – Cecily precisava corrigir a pergunta para não insultar a princesa de novo: – Isso não aumentará as esperanças dele? – Esperanças de quê? – indagou a princesa, erguendo uma das sobrancelhas. Cecily corou. Ela temia pela luxúria que a proximidade dos dois podia gerar. Era difícil controlar um homem e uma mulher excitados. Pelo menos era isso que dizia sua mãe. – O que estou dizendo é que se vocês passarem muito tempo juntos, ele pode ficar mais ousado. – Não se preocupe. – Isabella acenou a mão num gesto de desdém. – Enguerrand é um perfeito cavalheiro. Já De Marcel havia provado que era raro um cavalheiro na França. Homens como ele talvez não se curvassem num cumprimento ou antes de uma dança. Ou de um beijo. – Mesmo assim, não acho que seja prudente tratá-lo como um inglês. Isabella respondeu com uma risada sonora.


– Estamos na época do Natal. Qual a razão de ser prudente? Para evitar um desastre. Isabella era extravagante e cabeça dura. Ela já tivera vários namoricos, mas até onde Cecily sabia, nunca tinha ido além de um beijo escondido ou um abraço apaixonado. Nenhum rapaz a tinha colocado em perigo, mas foram dispensados com facilidade. Mesmo assim, a maneira como Isabella falava daquele francês, as desculpas que criava, era preocupante. Eles ficariam juntos durante três semanas na corte, divertindo-se durante as Festas. Era uma época onde as pessoas perdiam a cabeça, quando a ordem natural das coisas era invertida deliberadamente. E se o relacionamento avançasse além do apropriado? Cecily podia continua questionando Isabella sem irritá-la, mas precisava ter muito cuidado. O melhor a fazer seria ficar alerta para garantir que nada inconveniente acontecesse. Mas seria difícil agir sozinha. Quem mais poderia ajudá-la? Marc de Marcel. Em princípio, ela relutou, mas pensando melhor, eles podiam compartilhar o mesmo objetivo, por mais impossível que pudesse parecer. Marc antipatizava com os ingleses tanto quanto ela desaprovava os franceses. Na certa ele não gostaria que seu amigo ficasse de namorico com uma princesa inglesa. Se bem que ele havia recusado o convite de ir para Windsor. – Bem, se o rei francês merece uma recepção real, De Coucy precisará de companhia – Cecily falou como se fosse um comentário irrelevante. – Talvez o amigo dele precise ser convencido a comparecer. Isabella ficou exultante. – Você repreende meu interesse no lorde de Coucy, mas está aceitando finalmente minha sugestão. Só que ele recusou nosso convite. Não. Ele não podia recusar. Ela não permitiria. – Sendo assim, preciso persuadi-lo. – Pelo que vi, esse leopardo só rosna. Será só isso que ele sabe fazer? – Terei tempo para descobrir, não é? – indagou Cecily, rangendo os dentes. Tudo o que ela teria de fazer seria convencer Marc da urgência do problema sem difamar a princesa. E, para tanto, tinha de convencê-lo de que a culpa seria do lorde de Coucy. CECILY ESPEROU uma semana, quando a princesa estava ocupada, e chamou Marcel para vê-la em Westminster. Assim que ele entrou, ela percebeu que Isabella estava certa ao compará-lo a um leopardo. Ele era tão ameaçador quanto um felino pronto para dar o bote em sua presa. As feições dele eram bem marcadas, o corpo musculoso. Não havia nada que sugerisse um homem delicado ou gentil. Em cada parte visível do corpo dele havia uma cicatriz ou algum traço mais marcante. Mesmo assim, ele chamava a atenção dela… – Por que estou aqui? Por que me mandou arrastar até sua presença como se eu fosse um prisioneiro prestes a ser executado e sem nenhuma cortesia? – Mas você é um prisioneiro – retrucou ela, apesar de se sentir culpada. O ódio que reluzia nos olhos dele quase a levou a pedir aos guardas que o soltassem, mas, em vez de dizer alguma coisa, ela simplesmente acenou para que eles esperassem do lado de fora da sala. Será que ele a enfrentaria com o olhar quando estivessem sozinhos? Cecily imaginou se conseguiria respirar direito. Afinal, ele já havia avisado que tipo de homem era. Apesar de todo o conflito, ali estava ela, sozinha com ele, da mesma forma como encontrara Isabella e Enguerrand. Mas tinha de ser assim,


pois não queria que outras pessoas soubessem de seus temores em relação à princesa. – Lorde de Coucy tem frequentado bastante a corte nas últimas semanas – disse ela, endireitando os ombros e erguendo o queixo. – Ele é um cortesão tão habilidoso quanto é um cavalheiro. – E você não? Marc deu de ombros, franziu o cenho, mas não respondeu. Olhando para as mãos entrelaçadas, Cecily deu alguns passos e reassumiu a compostura antes de encará-lo de novo. – Lorde de Coucy tem passado muito tempo com lady Isabella. Temo que os dois… – Não. Ela não devia mencionar a princesa. – Talvez lorde de Coucy esteja esperançoso de que… digo, ele pode ter desenvolvido… quero dizer… – De repente ela própria não sabia o que queria falar. – Tendresse – disse ele num tom que não expressava carinho. – Sim, exatamente. – E agora, o que dizer em seguida? Não podia revelar que tinha receio de que Isabella… não. Antes de tudo, não podia permitir que Marc a aborrecesse tanto. Você é uma condessa. Ele é um refém e um cavaleiro que deve se curvar diante de você. Ela ergueu a cabeça. Pelo visto, De Marcel não se curvava para ninguém. Entretanto, a boca dele insinuava um sorriso. E isso sim a deixou brava. – Imagino que você desaprove tal proximidade tanto quanto eu. – Moins. – Oh, não imagino que goste menos do que eu – disse ela, erguendo a sobrancelha. Dessa vez, ele ampliou o sorriso. – Mas tudo está dentro do código de conduta, n’est-ce pas? Nada sério. Ora, De Coucy devia estar honrado por ter recebido a atenção da segunda dama real. – É ela que não está levando a sério. Mas eles estão… – O que e como dizer sem se comprometer? – … passando muito tempo juntos. – Você está se preocupando demais. Será? Na verdade, Cecily estava brava com o joguinho de sedução que Isabella praticava com um refém. Mas pior ainda era imaginar que o francês não estivesse enaltecido com toda a atenção que recebia da princesa. – Ela é uma princesa real! – exclamou ela, furiosa. – Divertir-se com um… um… – A família De Coucy é uma das mais respeitadas na França. Agora ela o havia enfurecido, reduzindo a chance de ele ajudá-la. Assim, respirou fundo e disse: – Perdoe-me – pediu ela, por mais que lhe desagradasse. – Percebo que somos ambos leais aos nossos amigos. Mas há muito mais coisa envolvida nessa questão. Na semana passada, eu os vi… eles estavam sozinhos e… muito perto um do outro. Finalmente ela conseguiu surpreendê-lo. – Imbécile! Cecily meneou a cabeça sem saber se ele se referia a De Coucy ou à princesa. – Isso mesmo. Precisamos fazer alguma coisa. – Nós dois? – Acho que temos o mesmo objetivo, não? Você já percebeu que ele está sendo leviano. E seria péssimo para ele… – Agora precisava confessar: – Preciso de sua ajuda.


Marc ficou boquiaberto e piscou algumas vezes. – Pardon? – Votre aide – repetiu ela, elevando o tom de voz. – Assistance. – Sei o que quer dizer. Não sou surdo. Mas, pela expressão em seu rosto, ajudá-la era a última coisa na Terra que estava disposto a fazer. – E, então, vai me ajudar? – ela indagou e segurou a respiração. Marc a fitou de uma maneira diferente, como se a estivesse vendo pela primeira vez, tentando analisá-la como uma pessoa além de uma simples femme Anglaise. – O que quer que eu faça? – exigiu ele, por fim. Cecily sabia que ele ainda não havia concordado. – Quero que aceite o convite para participar das Festas em Windsor. Ela não soube explicar a reação que viu. Desapontamento? Estratégia? – Por quê? O que isso adiantaria? – Se agirmos juntos, talvez possamos mantê-los afastados. As festividades natalinas durarão mais de 15 dias. Nesse período, tudo vira de cabeça para baixo. Haverá muitas oportunidades para… – Ela não conseguiu parar de falar e corou, enquanto ele a fitava. O sorriso dele não era de um cavalheiro. – Oportunidades para quê? De repente, Cecily não pensava mais em Isabella e Enguerrand, mas sim nela mesma com Marc, beijando-o em algum recôndito escuro do castelo… – Para confusão, cavaleiro. Oportunidades para confusão – disse ela em tom firme. – Mas ela é filha do rei. Finalmente ele havia entendido a grande preocupação de Cecily. – Isso mesmo. – Ainda faltava deixar claro que De Coucy levaria toda a culpa se algo acontecesse. – Será um perigo se lorde de Coucy não for cuidadoso. Marc continuava com a mesma postura inflexível, mas parecia estar considerando a proposta. Faltava confirmar com um sim. Cecily relanceou o olhar para a porta. Já fazia tempo que estavam ali sozinhos. Para decidir logo, ela se aproximou e baixou o tom de voz, sabendo que ele não obedeceria uma ordem sua, mas talvez um pedido: – Por favor. Diga que irá a Windsor para ajudar seu amigo. Marc mudou a expressão do rosto. Ah, amizade era algo que ele entendia muito bem, algo que significava muito. Ele suspirou. – Você é tão implacável quanto alguns cavaleiros que enfrentei em campo. Uma nesga de orgulho passou pelos olhos de Cecily, apesar de o elogio não ter sido muito apropriado para uma dama. – O que eu ganho com esse acordo? – indagou ele, indiferente a uma possível reprimenda. Enquanto aguardava a resposta, ele estreitou a distância que os separava. Ela se recusou a dar um passo atrás, ou olhar para baixo, mas sentia-se assediada pelo olhar dele. O risco do possível acordo era iminente. Na tentativa de ajudar Isabella, ela estava arriscando a própria pele. Afinal, estavam todos curiosos para saber quem seria o escolhido para seu noivo. – Você ganhará a satisfação de evitar que seu amigo sofra um desastre! – Dito isso, ela conseguiu


abrir uma boa distância entre eles. – Não é o suficiente? Bem, ela estaria perdida se ele não aceitasse, pois não imaginava o que poderia oferecer a um homem, a não ser o que não deveria dar nem em sonho. Marc aproximou-se de novo. Cecily sentiu como se uma onda de desejo a fizesse submergir, alternando sensações de frio e calor. Oh, se Isabella sentisse o mesmo por De Coucy, não adiantaria nada intervir. – Não é suficiente, condessa. Já vivo como seu prisioneiro e agora quer que eu seja uma marionete? O ódio dele quebrou o encanto de segundos antes. Cecily ficou aliviada porque era mais fácil lidar com a raiva, mesmo porque uma condessa podia senti-la, mas medo, não. – Estou ajudando você a cumprir algo que seria impossível conseguir sozinho. Não espere muitos mercis. – Espero que me ajude a voltar para a França. Cecily ficou feliz por não precisar enfrentar aquele homem numa batalha. – Como posso ajudá-lo? Só o rei tem poder para lidar com os resgates e acordos. – Eu aviso quando chegar a hora. O que ele queria dizer? Ela estava prometendo algo que não fazia a menor ideia do que seria. Bem, mas talvez ele se referisse a um futuro distante. – Então, farei o possível… quando chegar a hora. – Isso não era bem uma promessa. Em silêncio, Marc a fitou como se quisesse adivinhar os pensamentos dela. Será que ele tinha acreditado? Será que deveria acreditar? – Até nossos reis pediram uma trégua – disse ela. – Não podemos fazer o mesmo? Ela deixou de dizer que a trégua tinha sido estabelecida apenas porque o rei da Inglaterra havia derrotado o rei da França. E, ainda assim, o soberano da França era Jean, e não Eduardo. – D’accord – concordou Marc finalmente, como se ambos selassem o plano com um aperto de mãos. Nas circunstâncias, aquilo era o mais próximo que conseguiriam chegar de uma trégua. Depois que os guardas levaram Marc, ela considerou o que havia prometido. Ajudá-lo a voltar para a França? Não podia haver solução melhor do que mandar os dois de volta o mais depressa possível. Era o ideal. No entanto, a norma era que um refém só podia voltar para casa quando o resgate fosse pago, ou que fosse substituído por outro. Com exceção da escolha desonrada que o rei da França havia tomado. Cecily enfiou as mãos nos bolsos da capa forrada de pele e contraiu o maxilar de frio. Impossível que Marcel achasse que ela de fato o ajudaria a fugir. Antes ela o faria morrer de frio. – DECIDI IR para Windsor também – Marc disse a Enguerrand naquela tarde, enquanto jogavam xadrez diante do fogo. Enguerrand o encarou, surpreso. – Não sei se me surpreendo mais por você ter mudado de ideia, ou por ter inventando outra desculpa. Marc deu de ombros e empurrou o peão para o próximo quadrado do tabuleiro. – Quero saber o que fez você mudar de ideia – disse Enguerrand recostando-se na cadeira e cruzando os braços. – Sei que lady Isabella não foi a responsável. Foi então que Marc percebeu que o amigo sabia muito sobre Isabella e seus planos.


– Não mesmo. A amiga dela, a condessa, me convenceu. – A condessa? Não achei que você a tivesse impressionado tanto. – Eu não, mas você sim. – Moi? – Ela está preocupada que você tenha desenvolvido uma tendresse em relação a lady Isabella. – Marc ficou atento à reação do amigo para confirmar as suspeitas de Cecily. – Ah, isso quer dizer que meu plano está dando certo. – Isso mesmo, tanto que ela teme pela segurança de lady Isabella na sua companhia. – A salvo de De Coucy? – Enguerrand fez uma cara de surpresa e piscou logo em seguida. – Ah, por que a preocupação? Podia não ser perigoso, mas Marc tinha percebido como isso era importante para Cecily. Ela era tão leal à amiga quanto ele a Enguerrand. – Ela está tão preocupada que rogou que eu fosse para Windsor, a fim de ajudá-la a manter você e a princesa separados. – E como exatamente você pretende fazer isso, mon ami, bien sûr? – Enguerrand abriu um sorriso maroto. Marc sorriu com a cumplicidade forjada durante anos de amizade. Claro que ele não atenderia ao pedido da condessa, mas ajudaria o amigo. – Você sabe que não sei usar subterfúgios. Talvez eu seja mais prejudicial do que útil. – Você pode me ajudar mantendo lady Cecily ocupada. Marc blasfemou baixinho. – Como vou fazer isso? Nem eu, nem ela simpatizamos um com o outro. – Você descobrirá um jeito. Não deixe que ela descubra que meu interesse em lady Isabella é a influência dela, e não a virtude. O resto será consequência. Quando eu obtiver minhas terras de volta, a condessa não terá mais com o que se preocupar. Por sua vez, Marc sabia que as preocupações dele estavam só começando.


Capítulo 4

Castelo de Windsor – Dezembro de 1363

NUMA TEMPESTUOSA tarde de dezembro, Cecily deixou Londres para ir a Windsor repleta de memórias. Aquele seria o primeiro ano que passaria as Festas sozinhas. Ela havia ficado grata quando Gilbert se ofereceu para acompanhá-la, porém, o assunto era apenas a derrota no torneio e como poderia se redimir perante o rei. – Você estava sentada ao lado do rei – disse ele, quando estavam chegando a Windsor. – O que ele disse sobre mim? Cecily engoliu em seco. Não havia como mentir. – Sinto dizer que ele ficou desapontado. Gilbert meneou a cabeça ao ouvir exatamente o que esperava. – Não o culpo. Aqueles guerreiros adquiriram experiência na guerra, enquanto eu não. – Você serviu meu pai na França! Você foi… – Você estava lá quando ele morreu. Mas ela não conseguiu completar a frase. – Eu era apenas um escudeiro. Nunca fui um guerreiro numa batalha. A única experiência que tive foi essa falsa luta. Quero fazer alguma coisa importante. Algo tão significante quanto a vida e a morte. Cecily se comoveu com a eloquência de Gilbert. – A guerra terminou. Você pode continuar vivo e em segurança. Gilbert a fitou como se ela fosse uma criança, ou uma mulher não muito inteligente. – Não quero ficar em segurança. Quero provar minha coragem. O rei de Chipre está convocando cavaleiros para uma nova Cruzada. Acho que vou me alistar. – Para morrer na guerra também? – A pergunta foi mais incisiva do que ela pretendia. Gilbert entendeu a dor dela e respondeu:


– Não foi você que enterrou seu pai. Cecily virou o rosto e olhou na direção do castelo. – Claro que enterrei. Ela se lembrava de cada detalhe daquele dia. O corpo havia sido trazido para Londres num caixão de pedra lacrado. Era um dia lindo de verão quando a missa do funeral foi realizada. A brisa do mar soprava dentro da igreja, balançando o tecido preto sobre o esquife. – Você estava lá. – A efígie não foi terminada. Cecily se contraiu ao ser acusada de ter deixado a dor impedir que cumprisse um dever. Você não o enterrou. Na verdade, não havia enterrado nenhum dos dois. Sua obrigação era ter mandado esculpir a imagem dos pais numa efígie, como se eles tivessem se transformado em pedra depois da morte. Era seu dever completar a tarefa pela honra dos dois. A mãe dela havia começado a trabalhar na efígie do pai logo após a morte dele. A pedra havia vindo de Tutbury e ela havia escolhido o melhor escultor de alabastro de Nottingham. Quando a obra estava para começar, a mãe havia espalhado os desenhos sobre a mesa, mas Cecily não conseguiu enxergar nada através das lágrimas. Vejo que ainda não está pronta, disse a mãe dela, suspirando. Pode ir, faço isso sozinha. Cecily havia saído para caminhar pelos desfiladeiros, enquanto a mãe escolhia o melhor desenho para servir de base para o escultor. Peter, o escultor, era um artista muito cuidadoso. Segundo a mãe dela, o trabalho progredia bem lentamente. Cecily se recusava a olhar. E, no começo daquele ano, três anos após a morte do pai, a mãe anunciou que o trabalho estava pronto. Pouco depois, ela saiu para uma caça ao javali, a primeira depois da morte do conde. Ela estava acompanhando um grupo da corte e havia voltado a sorrir. Mas nunca mais voltou. E somente agora a dor de Cecily havia se abrandado. Ela devia ter assumido o controle de tudo, mas foi muito difícil encarar a escultura na pedra fria e os desenhos que o escultor havia feito de sua mãe, tanto que não havia mexido em mais nada desde então. Uma fraqueza que não estava à altura da condessa de Losford. Mas não foi essa a desculpa que ela deu a Gilbert. – O rei precisava dos trabalhos do escultor. Você sabe disso. De fato, nos últimos anos tinha sido difícil encontrar um escultor ou carpinteiro fora dos muros de Windsor. O rei havia convocado todos para trabalhar na reconstrução do castelo e puniu qualquer um que ousasse afastar um deles, oferecendo um pagamento maior. – Eu o emprestei para o rei. No entanto, não havia dúvidas de que o rei teria aberto uma exceção e deixado o artista terminar a efígie de um antigo amigo. – Isso já faz três anos – Gilbert comentou. – Mas faz menos de um ano que minha mãe morreu. – Não adianta esperar, ela não voltará mais. – Gilbert ergueu uma das sobrancelhas. – Eu sei. – Mesmo assim, ela sentia que mandar esculpir a imagem da mãe numa pedra seria o mesmo que admitir a irreversibilidade da situação. Minutos depois eles atravessaram os portões do Castelo de Windsor e ela não precisou continuar com as justificativas. Vários criados apareceram para cuidar dos cavalos e das bagagens. Era a primeira


manifestação de boas-vindas ao Natal igual a todas, mas naquele ano havia uma diferença. Você será a condessa um dia, minha querida, responsável pela honra do nome da família. E pensar que ela não tinha cumprido a primeira tarefa de terminar a efígie dos pais. Mas agora se sentia pronta e capaz de assumir o manto dos Losford ao aceitar aquele que o rei escolhesse para ser seu marido. Deixando os baús com os criados, Cecily e Gilbert correram para dentro do castelo. Ela respirou fundo, feliz por não estar morrendo de frio. Já aquecida diante da lareira, tirou a capa e colocou a mão sobre o braço de Gilbert. – Vou procurar saber se posso usar o escultor. – Quando? – indagou ele, sem sorrir como o esperado. Ah, Gilbert já não era mais o jovem que ela se lembrava. Ele falava como um homem que a faria cumprir com o prometido. A ousadia da pergunta podia ser desculpada, pois ele amava os pais dela também. – Logo. Antes da véspera da Noite de Reis. Depois da efígie pronta, os pais dela finalmente descansariam em paz. Mas ela jamais perdoaria aqueles que tinham tirado a vida de seu pai. Homens como Marcel. MARC CAVALGAVA ao lado do amigo no meio dos cavaleiros do rei quando as muralhas do Castelo de Windsor assomaram no horizonte. Marc já havia visto muitos castelos em seu país, a começar pela fortificação da família De Coucy, um dos mais seguros da França. Mas não esperava que les maudits os impressionassem tanto com uma construção tão magnífica. – Bem localizado – comentou Enguerrand ao se aproximarem das muralhas. Marc o teria descrito como impenetrável. Assim como o Château de Coucy, o Castelo de Windsor ficava no alto de uma colina cercada por um rio. A proximidade com as altas escarpas tornava uma invasão impossível. Algumas paredes pareciam ter mais de um século de idade, deviam ter sido construídas quando o bastardo normando francês tinha atravessado o Canal para se tornar o regente da Inglaterra. O interior do castelo era igualmente surpreendente. Marc observou algumas paredes revestidas de pedra recém-cortadas. Por mais que o aborrecesse, tinha de admitir que o rei era um bom construtor, porém, estava certo de que o dinheiro para erguer tudo aquilo provavelmente viera da França. Ele não esperava uma recepção real de boas-vindas, mas Isabella os aguardava com toda gentileza, agindo como se o castelo fosse dela. Enguerrand a cumprimentou de acordo, como se ela fosse a convidada de honra. Marc entregou seu cavalo ao mestre do estábulo e ficou a uma certa distância do casal, permitindo que eles trocassem sorrisos e sussurros. Olhando ao redor, localizou a condessa, enrolada numa capa para se proteger do fio, observando-os também. Quando ela seguiu na direção do casal para interrompê-los, o vento levantou sua capa. Marc postouse diante dela, bloqueando-lhe a visão e evitou que a capa dela saísse voando. Ela o fitou com a boca entreaberta. Lábios tentadores. A maneira como balança a cabeça… o cabelo escuro estava preso para trás evidenciando o maxilar bem desenhado e o pescoço longilíneo parcialmente coberto por camadas de lã. Marc a encarou novamente, fechou a capa dela e soltou os braços ao longo do corpo. Era preciso dominar as mãos para não se aproximar muito e não parecer deveras ousado.


– Esta ilha é o lugar mais frio em que já estive. – É verdade. Este é o pior inverno que já passei – disse ela, estremecendo. – O frio chegou em setembro e ainda não nos deixou. – Bem, pelo menos concordamos que o clima da Angleterre é horrível. Cecily sorriu. – Você culpa os ingleses pelo frio? Marc queria mesmo culpá-los por tudo, mas a proximidade com Cecily despertou um desejo inesperado. Mon Dieu. Será que ele já não tinha problemas suficientes? Ele tentou dizer alguma coisa, mas precisou dar uma tossidela antes. – Nem mesmo o rei pode controlar o que Deus nos envia. As palavras dele a remeteram ao luto, mas ela se recuperou e tentou olhar por cima do ombro dele. – Você precisa sair da minha frente. Não consigo ver o que eles estão fazendo. Em vez de obedecê-la, Marc bloqueou-lhe a visão totalmente. Afinal, estava ali para proteger o amigo e mantê-la afastada em vez de ajudá-la. – É melhor você não ser muito evidente. Cecily suspirou. – Eu sei, mas a princesa… – Cecily! – chamou Isabella. – Attende! – Venha – Cecily o chamou, virando-o para trás. – A princesa irá levá-los até seus aposentos. Cecily apressou o passo para alcançar o casal e impedi-los de conversar a sós. Marc demorou-se de propósito, assim, quando ela olhou para trás procurando-o, Enguerrand e Isabella se esgueiraram, desaparecendo para dentro de uma torre no centro do pátio do castelo. Cecily foi forçada a esperá-lo à porta para entrarem juntos na torre de pedra, fugindo do vento frio. Mais alguns passos e começaram a subir pela escada em caracol. As paredes protegiam contra o vento, mas também deixavam a sensação de clausura. Marc se sentiu como se ainda estivesse preso em Londres. – Você está nos levando para os aposentos dos hóspedes ou para a prisão? – Se não fosse por mim, você ainda estaria na Torre de Londres. Até há pouco tempo, aqui ficavam os aposentos reais. Você devia se sentir honrado. – Você está sempre me dizendo que devo me sentir honrado com coisas que não são tão importantes para mim. Um pouco mais acima, a princesa e Enguerrand se mostravam bem próximos. Um risinho feminino ecoou pelas paredes de pedra, prova de que Enguerrand estava mais perto de atingir seu objetivo. Cecily tinha razão em se preocupar. Mas ele estava ali para mantê-la ocupada para que o amigo conseguisse o apoio de Isabella para recuperar suas terras. Para tanto, era preciso fazer com que Cecily achasse que ele estava ali para ajudá-la a mantê-los afastados. Marc suspirou. Sua vontade era estar numa guerra contra um inimigo de força superior. Seria bem mais simples. Ele a segurou pelo braço para retê-la um pouco mais. Se estivesse numa batalha, teria de atrasar a chegada do inimigo para que Enguerrand se adiantasse o máximo possível. – Estamos ficando para trás – ela reclamou, franzindo o cenho. Infelizmente ele não podia segurá-la e impedi-la fisicamente de continuar. Não, era preciso ser sutil. O problema era que Marc de Marcel não sabia ser sutil.


– Não podemos separá-los à força – disse. – Precisamos de uma estratégia como se estivéssemos num campo de guerra. – O plano era você afastar seu amigo de lady Isabella. Foi por isso que eu o trouxe aqui – ela protestou. Marc rangeu os dentes, desejando voltar a Londres. – Mas para isso preciso saber mais sobre a princesa. O som dos passos de Isabella e Enguerrand ficava cada vez mais distante. Exasperada, Cecily suspirou. – Ela é a filha mais velha e a favorita do rei, muito generosa e amorosa com amigos, família e os pobres. Ela gosta de se divertir de todas as maneiras possíveis. Marc ainda não tinha ouvido nada que diferenciasse a princesa de outros homens e mulheres nobres que conhecia. – Por que ela ainda não casou? Aquela era uma dúvida que já havia passado pela mente dele antes, mas perguntar de um jeito tão direto assustou até ele mesmo. Ele não era muito afeito a fofocas reais, mas a informação seria importante. O casamento certo, com o regente certo, asseguraria uma aliança inquebrável. Pelo que conhecia do rei Eduardo, ele não teria deixado a oportunidade passar. Cecily parou num dos degraus e abaixou o tom de voz: – Houve muitos pretendentes. Eu mesma não conheci todos. Até que ela encontrou um nobre de Gascon por quem se interessou. – Ela escolheu o próprio marido? Cecily respondeu que sim, meneando a cabeça. Marc olhou para cima e não viu mais o amigo e a princesa. – Eu não sabia que ela era viúva. A informação podia mudar tudo. Uma mulher que já havia sido tocada por um homem… – Ela não é viúva. O rei aceitou a escolha dela e todos os preparativos foram feitos, mas na hora de embarcar… ela não conseguiu. – Ela se recusou? – indagou Marc. Aquilo estava além de sua compreensão. A corte do le roi Anglais era muito estranha. – E o rei permitiu? – Como a escolha tinha sido dela, o rei deixou que ela mudasse de ideia. – Cecily esboçou um sorriso triste. – Lady Isabella está acostumada a fazer o que quer. Ninguém diz não a ela. – Nem mesmo o rei? Não que Marc soubesse muito sobre o comportamento feminino, mas, pela sua experiência, mulheres eram submissas e obedientes. Talvez les femmes Anglaise fossem diferentes. – Os pais dela são muito amorosos. Dão tudo o que ela precisa, ou quer. – Cecily balançou a cabeça, melancólica. – Então ela consegue tudo o que deseja? Cecily respondeu, encolhendo os ombros. – E você? Seus pais satisfizeram todos seus desejos? Ela meneou a cabeça e abriu um sorriso rápido e tristonho. – Até a morte deles. Por um breve momento ele se arrependeu do que havia dito. Ele também havia perdido os pais havia anos. Será que os tinha amado? Nem isso ele lembrava.


– Você também não se casou – ele quis saber, interessado mais do que deveria na resposta. – Só porque o rei ainda não escolheu um marido para mim. Espero que a decisão seja tomada durante as Festas. Sou a única herdeira do título, ela havia dito na noite em que haviam se conhecido. Algum nobre ganharia o prêmio de receber ela e o título. Alguém muito superior a um humilde cavaleiro. Marc imaginou quem seria o escolhido, mas se recusou a admitir o ciúmes que o invadiu. – E agora? – indagou ela com uma voz que ele identificou como “tom de condessa” – Já falei sobre lady Isabella. Qual é o seu plano? Marc precisava convencê-la de que estava tramando alguma coisa. – Talvez a empolgação dele diminua quando souber que ela é caprichosa e voluntariosa. – E talvez mais perigosa do que De Coucy suspeitava. – Não menospreze a princesa! – Cecily o repreendeu com veemência. – Quer que eu conte a ela coisas ruins sobre lorde de Coucy? – Você não encontrará nada para dizer. Ele é admirado até pelos inimigos. – Lady Isabella não tem inimigos! Ela é filha do rei. – Se não quer que eu fale mal dela, como devo fazer para diminuir o interesse dele? Os dois chegaram ao alto da escada a tempo de ver Enguerrand entrando num aposento seguido por Isabella. – Precisamos fazer alguma coisa – disse Cecily, puxando a manga da túnica de Marc, sem tirar os olhos da porta aberta. De repente, ela sorriu e o encarou. – Já sei! Você poderia entretê-la enquanto estiver aqui. – Como? – Assim ela não terá muito tempo para passar com o lorde de Coucy. Mal havia começado e o plano já fracassava. – A princesa pode se divertir por horas com um dos lordes mais eminentes da França. Não será a mesma coisa com um cavaleiro sem terra. – Ah, mas o amor é assim na corte francesa! O lorde sem terra sempre se apaixona por uma dama nobre. Pelo menos foi isso que Isabella me disse. Será que ela sabia o que realmente significava um lorde sem propriedades? – E você estaria disposta a entreter lorde de Coucy? – Ora, claro que não – respondeu ela com desdém. – Devo ficar noiva em breve. Não posso ser vista na companhia de um refém francês. Isabella saiu para o corredor e, olhando por cima do ombro, sorriu e acenou para De Coucy ainda dentro do quarto. Marc ergueu a sobrancelha e olhou para Cecily. – Você culpa De Coucy pela insensatez – disse baixinho, enquanto a princesa se aproximava. Pela sua experiência com mulheres, ela parecia tão envolvida quanto ele. Ou talvez até mais. – Acho que lady Isabella também é culpada. – Como pode dizer uma coisa dessas? – Cecily perguntou, erguendo a voz para ser ouvida. – Você dividirá o aposento com lorde de Coucy. Assim dizendo, ela vestiu a pose de condessa e se aproximou da princesa, que, com o olhar perdido e o sorriso vago, não parecia ter notado a presença de Marc. Isabella demonstrava já haver escolhido com quem passaria a estação.


Para ele restavam três longas semanas de comemorações, quando deveria fingir que interferia nos planos de Enguerrand para ajudá-lo. Suspirou. Aquele Noël seria tudo, menos joyeux.


Capítulo 5

COM OS reféns acomodados, Cecily deixou a torre para ir cumprimentar a Rainha Philippa. Isabella havia dito que as reformas haviam acabado, mas quando Cecily entrou na nova ala na parte superior do castelo, os vidraceiros, pintores e carpinteiros ainda trabalhavam e sujavam os corredores. – Pensei que a reforma tinha terminado – disse ela, depois de fazer uma vênia. Era evidente que os trabalhos ainda continuavam. O escultor também estava ocupado, e certamente não poderia ser dispensado. Apesar da promessa feita a Gilbert, Cecily se sentiu aliviada. A rainha dispensou os pintores, que trabalhavam nas paredes de sua sala de estar. – As paredes externas e o Salão Nobre estão prontos. Meus aposentos e os do rei, quase. Infelizmente, a mudança ainda não começou na ala onde estão seus convidados. Eduardo planeja construir duas outras… – Ela acenou na direção dos muros externos. – Enquanto isso, nossos hóspedes ficarão mal acomodados. Cecily conteve um comentário mordaz. Os outros convidados não teriam de se espremer em quartos menores se De Coucy e De Marcel não estivessem nos melhores aposentos. – Venha conhecer a minha ala – a rainha convidou. Philippa a conduziu para a pequena capela, o quarto de dormir e o anexo para se vestir, incluindo as vidraças das janelas, todas elas decoradas com o brasão de armas real com os lírios franceses e os leopardos ingleses. Parecia que Marcel e seu rei tinham invadido o coração da Inglaterra e ela não pudesse escapar dele de jeito nenhum. – E aqui é um lugar para dançar – disse a rainha, chegando ao último cômodo. – Minha mãe adoraria. Ela amava dançar… – Cecily olhou ao redor, encantada, e mordiscou o lábio. Uma condessa não deve chorar. Nem mesmo quando alguém tira a vida de seu marido. A rainha parou e a fitou. – Esse será o primeiro Natal sem ela, não é?


A compaixão da rainha fez com que Cecily se sentisse uma criança de novo. Foram inúmeras as vezes em que passara as Festas com seus pais e a família real. Agora, só lhe restava a segunda opção. – Eu também sinto falta do meu filho Eduardo – disse a rainha. – Mas ainda o verá. O filho da rainha estava vivo, mas encontrava-se ausente. O príncipe e a noiva, Joan, condessa de Kent, haviam partido para a Aquitânia em julho, numa das fronteiras da França, sob o domínio do reinado inglês, pelo menos. Cecily imaginou se a casa de Marc seria muito longe dali. – Mas não verei os outros… – Sinto muito, Vossa Graça. – Cecily sentiu-se culpada por reclamar de sua perda quando a rainha havia perdido seis dos 12 filhos. Mas a figura maternal da esposa do rei a ajudou a se esquecer da dor. – Eu não devia ter comentado. A rainha afagou a mão de Cecily. – Seus pais não iriam querer que você passasse o resto de sua vida de luto. Cecily bem sabia que seus pais ficariam horrorizados em vê-la triste como se estivesse doente. Nenhum dos dois tinha muita paciência para tristezas ou lágrimas. Mesmo assim, ela havia passado os três últimos anos lamentando a perda. – Eu sei, Vossa Graça. Eles teriam me dito para deixar as emoções de lado. Mas até então, ela não tinha conseguido. – Você lembra muito sua mãe. Cecily murmurou um agradecimento e forçou um sorriso, sabendo que não era verdade. – É um orgulho saber que pensa assim. – Sei que os últimos três anos foram difíceis, minha querida, mas a vida continua – disse a Rainha Philippa, e contraiu os lábios. – Precisamos providenciar seu noivado. É muito arriscado e perigoso uma mulher viver sozinha. Cecily piscou várias vezes seguidas. O escândalo que havia sido o casamento do príncipe provavelmente deixou a rainha mais preocupada com comportamentos semelhantes. – Posso assegurar que não há nada com o que se preocupar, Vossa Graça. – Sim, sei que você não faria nada que desapontasse seus pais. – Claro que não! – exclamou Cecily, retesando o corpo. Claro que a rainha não temia por sua castidade. – Assim como Isabella não a decepcionará. A rainha esboçou um sorriso rápido. – O rei esteve muito preocupado com assuntos de estado, mas agora ele está pensando num possível marido para você. – Estou pronta para casar com o homem que o rei escolher, Vossa Graça – disse Isabella, determinada. Sua esperança era de que, quando seu futuro marido morresse na guerra, ou por doença, ela não passasse muito tempo de luto. Seria difícil demais suportar mais perdas na vida. A Rainha Philippa a estudou um pouco antes de perguntar: – O que você acha do lorde de Coucy? Cecily ficou chocada com a pergunta, imaginando se o rei estivesse considerando De Coucy, ou qualquer outro francês, como seu marido e guardião de uma das fortificações mais importantes do reinado. Apesar do espanto, ela escolheu cuidadosamente as palavras de sua resposta, já que não sabia a razão da pergunta. – Ele me pareceu habilidoso e cavalheiro durante a justa.


Apesar de o amigo dele ter se comportado bem diferente. – Isabella tem insistido para que Eduardo restaure as terras dele. – A rainha suspirou. – Será que um francês deve receber terras que meu pai morreu para salvar? Isabella não tinha contado nada, talvez porque soubesse que ela seria contra. A rainha pousou a mão sobre a de Cecily. – Às vezes é preciso esconder nossos sentimentos e perdoar, minha querida. Ah, a doce rainha, cujo bom coração havia protegido muitos da ira do marido. – Sim, claro, Vossa Graça. – Cecily engoliu o nó na garganta. Mas não perdoaria. Jamais. – Cecily, quero que esteja sempre ao lado de Isabella durante essa estação. Ah, agora estava tudo claro. A rainha não estava preocupada com o comportamento de Cecily, mas sim da própria filha. Será que a diversão de Isabella estava óbvia? Bem, claro que sim, ainda mais porque Isabella estava intercedendo junto ao rei a favor de De Coucy. A situação estava pior do que Cecily havia imaginado, o que justificava o apelo desesperado que ela havia feito a Marcel. – É o que pretendo, Vossa Graça – Cecily respondeu, sorrindo. – Ela está determinada a fazer com que eu me divirta antes de casar. – Temo que fomos muito egoístas querendo que ela ficasse bem próxima a nós. – Mas ela está feliz. Sei que está, Vossa Graça. – Mas ainda está sozinha. Cecily não tinha justificativa para isso. As duas ficaram em silêncio. A rainha estava pensativa, perdida em pensamentos, talvez relacionados às alianças e oportunidades perdidas. Se Isabella tivesse se casado com o rei de Castela, ou com o conde de Flanders, ou com o rei da Boêmia, talvez o rei Eduardo ficasse com o trono e o ouro da França. O momento de reflexão se dispersou quando a rainha voltou a falar: – Venha. Deixe-me mostrar a Torre da Rosa. Quando a pintura terminar, será um lugar lindo. A rainha não tocou mais no nome de Isabella. MESMO DEPOIS de deixar a rainha, Cecily voltou a considerar seus temores em relação a Isabella. Sua obrigação agora não se limitava apenas a proteger a princesa do francês e suas bobagens; também devia evitar que a rainha se preocupasse com a filha. Além disso, precisava impedir que De Coucy se apossasse de terras inglesas. Será que Marc de Marcel estava ciente do assunto das terras? Será que ele queria mesmo manter a princesa e o conde separados? Ou, quem sabe, ele não estaria fingindo ajudá-la? Determinada a descobrir, ela procurou Marc pelo castelo e o encontrou conversando com o tratador de cães de caça. Antes de entrar no canil, ela respirou fundo. Tudo o que estava relacionado à caça a remetia à morte de sua mãe. O javali foi de encontro ao cavalo de sua mãe e ela caiu. Aconteceu tudo rápido demais. Não pudemos fazer nada. De Marcel se levantou ao vê-la se aproximar; o tratador fez uma vênia e se afastou. – Precisamos conversar – disse ela, quando ficaram sozinhos com os cachorros. – Seu amigo, De Coucy, quer o controle sobre terras inglesas. Marcel empalideceu. – A propriedade pertencia à família de De Coucy e são dele por direito.


– Ah, então você sabia. – Isso não é crime. – Você acha justo ganhar terras na clandestinidade já que não as conquistou durante uma batalha? – Lutei pelo meu rei e pelo meu país. Não quero nada seu. – Mesmo assim, você matou meu pai! – gritou ela. Em vez de se sentir culpado ou envergonhado, conforme ela esperava, Marc ficou chocado. O grito fez os cachorros começarem a latir. Era bem provável que os animais tivessem se comportado da mesma forma quando a mãe dela foi encontrada. O tratador voltou correndo e os silenciou, olhando para Cecily sem entender o que havia acontecido. Sem maiores explicações, ela inclinou a cabeça para a porta, convidando Marc a se retirar. – O que você quis dizer? – perguntou ele assim que passaram pela porta do canil, abrigando-se do vento atrás das paredes. Ela deu uma tossidela, tentando engolir a raiva e voltar a falar num tom de voz normal. – Eu disse que você lutou tempo suficiente para matar meu pai. Parecia um absurdo repetir aquilo. – O conde? – O brasão dele era vermelho com três losangos. – Cecily ergueu o queixo, orgulhosa. Marc franziu o cenho, tentando lembrar, e balançou a cabeça por fim. – Nunca o encontrei no campo de batalha. Cecily ficou indignada. Como ele podia não entender? – Ele foi morto por um francês. – Bem, era o que ela supunha, já que ele havia falecido na guerra. – Em qual batalha? Sou do Vale de Oise. – Que diferença faz? – Os homens de Borgonha são diferentes daqueles da Picardia ou da Normandia. – Para mim, são todos iguais. Um de vocês matou meu pai. – Não fui eu. Grande diferença. – Você é francês. – Seu rei também se diz francês. Um rei que insistiu em tirar a França de seu regente de direito! – Marc gritou, apossando-se do ódio dela. – Se quer saber quem matou seu pai, pergunte ao seu rei! Veja a ganância dele pelo poder! – Eu me recuso a dar ouvidos às suas blasfêmias. Você não sabe nada sobre o rei. Marc percebeu que havia gritado e procurou conter a raiva, fechando as mãos em punhos e respirando fundo, mas não perdeu o tom austero: – Não preciso conhecê-lo. Isso vale para todos os homens, reis e camponeses. Mesmo aqueles que se vangloriam de serem cavalheiros são cruéis e só pensam em si mesmos. – Você também é assim? Um laivo nostálgico passou pelo semblante de Marc como se ele tivesse deixado de ser o que gostaria. – Você tem alguma dúvida, lady Cecily? Não, ela não tinha. Durante toda a vida ela fora cercada por expectativas de honra e dever. E Marc de Marcel violava a ética que Cecily conhecia. Marc podia não ter matado o pai dela, mas não havia dúvida que ele havia tirado a vida de muitos com a mesma crueldade. Marc de Marcel podia ser comparado a uma fera selvagem.


– Quer dizer que você sabia que De Coucy queria a ajuda de Isabella para recuperar as terras dele. – Esse é mais um pecado dos quais você me acusa? – Não se pode confiar num homem que viola o código de ética em pequenos detalhes para executar feitos maiores. – Isso quer dizer que nosso trato está desfeito? Cecily teve vontade de responder que sim, dar as costas e nunca mais falar com aquele homem. Entretanto, a rainha havia pedido a ajuda dela e, apesar de não gostar, nem confiar em Marc, ele era seu único aliado. – Não – disse ela. – Não posso permitir que… Marc não contestou, ou questionou, mas não deixou de encará-la. O olhar dele refletia um misto de exigência, paixão e dor que surpreendeu Cecily. Apesar de toda a intensidade do momento, o silêncio só foi interrompido pelo barulho da chuva e da neve. Ela respirou fundo, procurando se acalmar. Marc não havia admitido se sabia ou não dos propósitos de De Coucy, mas àquela altura não tinha importância o que ele queria ou não, pois a rainha estava preocupada com os desejos de Isabella. – Você está realmente preocupado com o relacionamento de De Coucy e lady Isabella? – Sim – ele respondeu sem hesitar. – Então estamos de acordo. – Cecily ficou com a impressão de que tinha feito um juramento mesmo sem querer. – Só nesse assunto. Os cachorros voltaram a latir dentro do canil, assustando-a. Os animais não estavam de saída para caçar um javali, mas sim para realizar exercícios diários. Ela relanceou o tratador, feliz por ele não ter olhado na direção deles, reparando que ainda estavam juntos. – Eu o vejo essa noite. – Cecily acenou com a mão e começou a andar na direção da Torre Redonda sem olhar para trás. MARC FICOU observando-a se afastar, ainda furioso. Por mais que quisesse dirigir a raiva a ela, era seu comportamento que o tirava do sério. Você ainda é o mesmo? Sim, e por isso mesmo sabia o que estava acontecendo. Um dos cachorros pulou nas pernas dele com as patas cheias de neve e um graveto na boca. Marc sorriu, pegou o graveto e o atirou longe antes de acenar para o tratador e voltar para o castelo. Ele não havia tirado a vida do pai daquela mulher, mas havia assassinado outros homens. Afinal, o que esperar de um guerreiro? Mesmo assim, ele sabia que aqueles homens tinham esposas, mães e filhas que chorariam sua morte. Ele não havia pensado nisso na época, mas agora, reconhecer a dor no rosto de Cecily era o mesmo que olhar para cada um dos entes queridos daqueles que haviam morrido por sua espada. Houve uma época em que ele tivera ilusões, e talvez ainda as tivesse. Mas não guardava nenhum arrependimento. Nenhum cavaleiro devia se arrepender das atitudes tomadas pelo dever. Não se pode confiar num homem que viola o código de ética em pequenos detalhes para executar feitos maiores. Lady Cecily não conhecia os guerreiros que se enfrentavam numa batalha. O código de conduta


acobertava a verdade, a honra era apenas fachada e traída indiscriminadamente. Quando se deparavam com inimigos que não eram nobres, a honra não servia para nada. Mas ela não saberia nada disso. Envolvida em veludo, música e histórias contadas pelos reis, lady Cecily devia ter ouvido apenas conversas adequadas às damas da corte. Ela devia saber que a ética proibia a violação da virtude de uma dama nobre e que essa proteção nunca se aplicava às esposas dos criados. Mas Marc conhecia a verdade. Quando ele e Enguerrand haviam cavalgado lado a lado para combater a insurreição camponesa, ele havia testemunhado pecados tanto dos cavaleiros quanto dos camponeses. Pecados que ainda assombravam seu sono. Ele havia conseguido o título de cavaleiro, mas não o merecia mais do que seu cavalo ou sua armadura. Em algumas situações, ele até teria dado razão aos camponeses, que precisavam dar um porco para pagar o resgate de um soberano, que depois viria para cobrar os filhotes. Por outro lado, não desculpava o rebelde que havia queimado um cavaleiro vivo diante de sua família inteira. Mas será que uma brutalidade dessas justificava que De Coucy tivesse tirado a vida não de um, mas de centenas de camponeses que não possuíam sequer uma espada para se defender? Claro que não. Marc havia visto até que ponto de crueldade um homem podia chegar e restavam-lhe poucas esperanças. Ele era um deles e seria igualmente culpado se tivesse apenas testemunhado tanta selvageria. E agora ele se via forçado a mentir para proteger um amigo. Um amigo com a reputação de um grande cavaleiro. Alguém que parecia não ter dúvida de nada. Na verdade, Marc desconfiava que, assim como De Coucy, Isabella também conhecia as regras do jogo. Não havia dúvida que ela usava a possibilidade de obter as terras dele de volta como um doce para chamar a atenção de uma criança. No final da estação, o flerte terminaria, sem nenhum arrependimento e deixando um gostinho agradável na boca. Marc tinha de evitar que a princesa bisbilhoteira soubesse da verdade e terminasse o jogo antes da hora. Seria esse um comportamento que desonraria o código de ética de um cavaleiro? Se fosse, era algo tão ínfimo que nem merecia uma confissão. Dessa vez, a paz escondia perigos que ele nunca imaginara. NAQUELA NOITE, Cecily chegou ao Salão Nobre junto com Isabella, preocupada se Marc cumpriria o que tinha sido combinado ou não. Ele havia vindo à corte sem muita vontade e depois da briga daquela tarde, ficou parecendo que um acordo entre eles não passava de uma bobagem. O rei e a rainha estavam ausentes e a princesa e seus convidados tomaram conta do salão. Os convidados mais exaltados ainda não tinham chegado. Seria um encontro informal, mas Isabella tinha organizado tudo como se fosse receber os reis. Ela experimentara e rejeitara três vestidos para a ocasião antes de escolher um azul, mas não sem antes perguntar à Cecily e outras cinco damas se a cor lhe favorecia. Ficou claro que a princesa estava mais interessada do que de costume em De Coucy. Cecily tinha de dar a impressão de que seu luto havia passado e que estava pronta para cumprir com sua obrigação. Seria uma noite de vigília constante. Tomara que pudesse contar com a ajuda de Marc. Era a primeira vez que Cecily entrava no Salão Nobre do Castelo de Windsor depois da reforma. Ela fez uma pausa, lembrando-se de que estava com a mãe no Natal anterior. Desde criança ela acompanhara os pais à celebração das Festas com o rei. Alguns dos menestréis ainda eram os mesmos, ano após ano. Ela também testemunhara o crescimento da princesa. Mas esse ano…


Bem, naquele ano ela havia se transformado numa condessa e se comportaria como tal. Convencida disso, ela respirou fundo e entrou no salão lutando contra as memórias. O espaço era grande e poderoso e a deixou sem palavras, mas por admiração e não tristeza. As comemorações de final de ano traziam lembranças, embora aquele ambiente renovado fosse completamente diferente do que guardava na memória. Ela olhou ao redor como se fosse uma estranha, assim como Marcel. A reforma do salão foi uma ideia do rei, o mais poderoso do mundo cristão, que a deixou orgulhosa de ser inglesa. O teto era bem alto. As janelas grandiosas alinhadas lado a lado davam vista para o jardim interno. Era um lugar lindo onde ela nunca havia estado. Ali ela criaria novas memórias ao lado do marido e dos filhos. – Você está vendo ele? – Isabella perguntou num sussurro. Não era preciso perguntar a quem a princesa se referia. – Ainda não, milady – Cecily respondeu, voltando de seus pensamentos e olhando ao redor. Depois de um suspiro, Isabella abriu um sorriso falso e se movimentou pelo salão com toda sua realeza. Dever. Era esse o legado dos pais dela e o juramento para honrá-lo. Passados alguns minutos da chegada da princesa ao salão, os dois franceses apareceram. De Coucy estava bem à vontade e, cumprimentando os conhecidos, misturou-se à multidão. Já Marcel esquivouse para perto das janelas com uma expressão de desconforto, como se preferisse estar num campo de batalha. Cecily suspirou e seguiu na direção dele. Uma pessoa tão sisuda jamais conseguiria divertir uma princesa. Ele não demonstrou nenhuma alegria quando Cecily se aproximou. Talvez ela tivesse que enfrentar outra disputa de palavras. Mas, para sua surpresa, ele se curvou para cumprimentá-la. Não tinha sido um gesto muito natural, mas pelo menos ele estava se esforçando. – Você está pronto para começar? – indagou ela, sorrindo como se estivesse falando sobre trivialidades. Marc deu de ombros, contrafeito. – O que De Coucy disse sobre a princesa? – Ela insistiu. – Ele não fica tagarelando sobre mulheres comigo. A resposta foi um choque para Cecily, lembrando-a que pouco conhecia do mundo masculino dos guerreiros. Ela podia passar horas com a mãe, ou mesmo com Isabella, rindo, fofocando, observando as roupas e maneirismos de toda a corte, coisas que aparentemente os homens não notavam. Se ela contasse a De Marcel que a princesa havia trocado de vestido três vezes naquela noite, ele teria achado que nenhum deles lhe servira. – Acho que você se preocupa muito. A rainha também. Mas, claro, ela não podia dizer isso. – Deixe-me explicar. Você a vê logo ali? Marc se empertigou como se estivesse se preparando para uma batalha. – Agora, observe. Viu como ela relanceia o olhar pelo salão, mesmo enquanto conversa com os convidados? Marc respondeu meneando a cabeça. – Ela está procurando por ele. Naquele exato momento, De Coucy atravessou o campo de visão de Cecily. Atentos a ela, viram quando a princesa o notou e começou a abrir caminho para chegar até ele. – Não se esqueça do plano – Cecily sussurrou. – Você prometeu.


Mas Marc já não estava prestando atenção e sequer se dirigiu à ela antes de sair andando. – Fique aqui. Marcel chegou antes de Isabella ao lado de De Coucy. Os dois cochicharam alguma coisa e olharam na direção de Cecily. De Coucy abriu um sorriso largo e a cumprimentou com um sinal de cabeça. Quando ela se deu conta, ele já estava a seu lado, contando uma história qualquer. A música começou em seguida, mas ele estava bem longe da princesa para convidá-la a uma dança. Como em um piscar de olhos, Marc fez uma vênia para a princesa e a convidou para dançar, enquanto Cecily ficava sozinha com De Coucy. Cecily mal acreditou no que via, mas estava tudo acontecendo como planejara. Entretanto, não esperava pela estranha sensação que invadiu seu coração ao ver Isabella dançando com Marc. Ele estava se portando muito melhor e sorria bem mais do que quando a tinha convidado para dançar. Não, ela se recusava a admitir que estava com ciúmes. De jeito nenhum. Devia estar agradecida por Marc estar seguindo o planejado. – Ele é un bel homme, n’est-ce pas? Cecily corou achando que De Coucy tinha notado que ela não tirava o olho do casal na pista de dança. Claro que ela olhava para a princesa e não para De Marcel, mas não queria que De Coucy notasse. – Eu não tinha notado – mentiu ela. Claro que havia notado bem, tanto quanto havia percebido que ele parecia mais à vontade com a princesa do que com ela. – Mas ele não está acostumado a tudo isso… – De Coucy gesticulou com a mão e inclinou a cabeça como se estivesse incluindo toda a corte, a abundância da festa e até a Inglaterra. Por outro lado, aquele era o ambiente em que Cecily vivera durante toda sua vida. – Por quê? – indagou ela, imaginando que se De Coucy falasse sobre Marc não estaria pensando em Isabella. Pelo menos, assim ela quis acreditar. – Por que um homem é assim? Por causa de onde nasceu? Ou a vida que levou? Por que você é assim, lady Cecily? Uma mulher très belle, mas ainda solteira. Ah, De Coucy era muito charmoso, por isso tinha atraído a atenção de Isabella. Para não revelar mais sobre o amigo, ele havia decidido flertar com ela. – O rei tem afazeres mais importantes em mente. – Por mais tentador que fosse, ela não confiaria nele. – Você o conhece bem, não? – Somos amigos de infância. Ele veio para De Coucy quando tinha 7 anos e eu quase 2. Cecily decidiu fazer mais algumas perguntas inocentes. Ele teria de ser educado e responder, e enquanto isso, esqueceria Isabella. – Então seu pai o adotou? – Meu pai morreu no mesmo ano que Marc chegou. Meu tio era meu guardião, mas estava longe. Marc foi como um irmão mais velho para mim. – De Coucy meneou a cabeça. – Os pais dele não eram vivos. Cecily se contraiu para evitar sentir compaixão e solidariedade. Ela não queria nutrir nenhum tipo de sentimento em relação a Marcel, ou a qualquer outro francês. Mas foi difícil saber que ele havia sofrido a mesma perda que ela e permanecer indiferente. De alguma forma, ele deixou de ser inimigo para se transformar numa pessoa. – Como ele suportou perder o pai e a mãe?


– On fait ce qu’on doit –respondeu ele, inclinando a cabeça na direção da pista de dança. As pessoas fazem o que devem fazer. Esse código ela conhecia. A música terminou e De Coucy se afastou com tamanha facilidade que a ela não restou fazer nada a não ser observá-lo seguir na direção de Isabella. Foi por pouco que ela não deixou escapar palavras de solidariedade quando De Marcel se aproximou. Mas a dor dele era tão antiga que ele provavelmente acharia estranho se ela mencionasse alguma coisa. De Marcel não estava mais sorrindo como minutos antes, enquanto dançava com Isabella, mas reassumira a expressão sisuda, ressaltando a ruga entre as sobrancelhas. Cecily desistiu de falar. – A princesa só falou de Enguerrand durante toda a música – disse ele. Cecily sentiu um arrepio subir pela espinha, mas não era de frio apenas, pois, enquanto estivera com Enguerrand, ela só havia falado sobre Marc.


Capítulo 6

AO LADO de Cecily, depois de ter dançado com Isabella, Marc observou o anão, um dos bobos da corte, circular pelo Salão Nobre como se fosse o dono do mundo. E como era época de Natal, ele provavelmente chamaria a atenção de todos mesmo. Enguerrand tinha razão quando dissera que o fogo da lareira do salão era bem mais forte do que o do quarto deles. Na certa, a mesa seria mais farta também. Marc sentiu uma onda nostálgica de bem-estar. Como seria ter sua própria lareira? Durante 17 anos ele havia compartilhado o fogo de outros homens. Do outro lado do salão, De Coucy e a princesa estavam diante da lareira bem próximos um do outro. Ciente do “plano” de Cecily, Enguerrand alternava de lugar com Marc ao lado da condessa. A troca foi feita de maneira tão sutil, que ela não notou quem passava mais tempo ao lado de Isabella, que tinha outras tarefas também. De Coucy não se demorou muito com ela e Marc não precisou dançar de novo. Depois do tempo obrigatório ao lado de Cecily, De Coucy ficou livre para tentar se aproximar mais de Isabella, mas sempre com o cuidado de distribuir sorrisos aos outros convidados para não parecer muito óbvio. Marc não tinha a mesma habilidade, tanto que conversou com poucas pessoas. – Eles nem se dão ao trabalho de fingir que estão jogando – Cecily murmurou ao lado dele, sem desviar a atenção da princesa. – Eles se olham como se não houvesse mais ninguém no salão. Cecily estava tão perto de Marc que sua respiração chegou a acariciar o pescoço dele. Marc se virou no mesmo instante, a tempo de ver os cílios dela que emolduravam os olhos verdes misteriosos cheios de preocupação. O que aconteceria se ele a beijasse? Será que aquele olhar aflito se tornaria sensual? Mas ele cedeu à tentação, como se tivesse baixado a viseira do elmo, e desviou o olhar a Enguerrand a tempo de vê-lo mover o cavaleiro no tabuleiro de xadrez para que Isabella pudesse capturá-lo com a rainha.


Teria sido um movimento inconsequente ou sábio? Conhecendo bem o amigo, ele concluiu que havia sido uma manobra estratégica. – Você gosta dele, não é? – Cecily indagou – Como? – indagou ele, e os olhares se cruzaram. Cecily o encarava em vez de prestar a atenção no casal à mesa de xadrez. Desde quando ela o estaria observando? – Lorde de Coucy. Vocês se conhecem há tanto tempo que imagino que goste dele tanto quanto gosto de lady Isabella. Marc gostava do amigo sim, caso contrário, não faria parte daquele ardil, mas parecia que a pergunta de Cecily estava mais relacionada a sentimento do que lealdade. – O comportamento dele me afeta. – Porque vocês são franceses? – Porque eu o ensinei. Talvez fosse um pecado para De Coucy se orgulhar por ser muito conhecido por suas habilidades com a lança e a espada. – Ainda não o vi dançar com destreza ou cantar bem. – Estou me referindo à arte da guerra e não gracejos na corte. – E nem as decepções da corte. Ensinar a guerrear era bem mais fácil, pois os objetivos eram claros, e o inimigo, mais fácil de ser identificado na maioria das vezes. – Enguerrand tem o dom de encantar as pessoas. – E você não. Aquilo não tinha sido uma pergunta e sim uma constatação. Mas ela estava certa. Ele nem tentava ser agradável, mas as palavras dela o atingiram e não deveriam, pois eles nem se gostavam. Odiavam-se, na verdade. Ele devia se limitar a aproveitar o bom vinho do rei, distrair Cecily para que não interferisse nos planos de Enguerrand e aproveitar as semanas desfrutando a comida e a hospitalidade. Afinal, não se importava com o que les maudits pensavam a seu respeito. Aquela moça em especial. Entretanto, o aroma dela se infiltrava até o cérebro dele. Quando dançara com a princesa, sentira o perfume pesado, doce demais. Já Cecily rescendia às flores do campo que brotavam por entre as rochas de um penhasco depois da chuva. O perfume era uma mistura provocante e perigosa que incluía notas de tristeza, força, altivez e carinho. – Não mesmo – disse ele por fim. – Sou um guerreiro. Do outro lado do salão, Isabella chamou o bobo da corte e sussurrou algo no ouvido dele. O anão era todo enrugado, como se sua pele tivesse sido feita para um homem mais alto. Marc inclinou a cabeça na direção de Cecily e indagou: – Todos os bobos da corte são velhos? – Aquele em especial parecia estar a serviço do rei havia anos. – Ele é ágil e tem raciocínio rápido para a idade. – Cecily franziu o cenho. – No meu país os bobos da corte podem responder ao rei. – Os bobos da corte são respeitados na França? – Não como você está pensando – respondeu ele, encarando-a. Cecily baixou o olhar, envergonhada. – Eu não quis provocar. Mas esse não é o palhaço do rei. – Não? – O rei não quer que ninguém o contradiga – disse ela, meneando a cabeça. Marc sorriu, aceitando o que ela dissera como uma boa desculpa.


Observando de longe, parecia que o bobo tinha se afastado de Isabella, que sorriu sem jeito para Enguerrand. – Isso não está cheirando bem – comentou Cecily, respirando fundo. – O que está querendo dizer? – Marc estava concentrado em Cecily, enquanto ela prestava atenção no casal. Antes de ela responder, o bobo da corte subiu em cima da mesa do palanque e sinalizou para os menestréis pararem de tocar. Todos ficaram em silêncio, aguardando com expectativa. Lady Isabella bateu palmas para chamar a atenção. – Vamos começar as brincadeiras! O bobo da corte está no comando e deve ser obedecido como se fosse o rei. Ouviram-se risinhos abafados, mas ninguém protestou, já que o bobo tinha a aprovação do rei. Aquilo tudo fazia parte da diversão esperada na época das Festas. – Mas se ele for o bobo de Isabella… – Marc comentou arregalando os olhos. Cecily consentiu com um sinal de cabeça e apertou os lábios. – Isso não foi ideia do bobo. – Ela gesticulou, abrangendo todo o salão. – Mas sim de Isabella. Ela dará as ordens. Isabella estava usando um subterfúgio para satisfazer suas vontades sem que fosse responsabilizada. Enguerrand gostaria de saber, pensou Marc. E, ao olhar para Cecily sorrindo, imaginou que ele também se divertiria. Cecily imaginou o que ele estava pensando e corou. – E agora – continuou o bobo com a voz rouca pela idade –, abrace a dama a seu lado. As pessoas começaram a rir. Parecia que o bobo havia lido os pensamentos de Marc. E não apenas os dele, pois Isabella e Enguerrand não hesitaram em se abraçar rapidamente. – Devemos obedecer também – Cecily sussurrou. – Isabella irá reparar se não entrarmos na brincadeira. Marc achou que Isabella não iria prestar atenção em ninguém além do lorde de Coucy. Mas não estava nem um pouco preocupado com isso quando tratou de puxar Cecily pela cintura contra seu corpo, esperando que as roupas não a deixassem perceber a protuberância em sua calça. Para sua sorte, Cecily não estava reparando nele. Na realidade, ela havia virado o pescoço para olhar para o outro lado do salão. Conforme ela se mexia, seus seios roçavam no peito de Marc, que desejou estar com uma armadura para permanecer indiferente. – Você está vendo onde eles estão? – perguntou ela baixinho, com o corpo rígido nos braços dele. Por ser mais alto, ele não teve dificuldades em olhar pelo salão, mas com tantos casais se abraçando, foi difícil distinguir alguém. Ele balançou a cabeça de forma negativa. – Você deve odiar isso tanto quanto eu – disse ela depois de um suspiro. Marc meneou a cabeça, nada interessado no que aquela femme Anglaise odiava. Sendo sincero, ele não pensava em nada. A paixão havia dominado seu corpo, indiferente se aquela mulher pertencia aos Valois ou aos Plangenet. Se ela fosse outra pessoa, ele teria cedido ao desejo e a beijado. – Vire-se para que eu possa ver o outro lado do salão – ela sussurrou. Marc estava pronto para obedecer, quando a voz do bobo se fez ouvir: – Não se mexam! Não se mexam! – Você está vendo alguma coisa? – perguntou ela, olhando para cima. – Você acha que…


– Agora, movimentem-se! – gritou o bobo. Marc suspirou e se afastou rápido demais. – Fiquem de costas um para o outro e prendam-se pelos braços! – ordenou o bobo. Marc reconheceu o riso de Enguerrand mesclado com o da princesa no meio do burburinho. Quando os casais tinham se separado, ele havia visto Enguerrand de costas para a princesa. Maldito seja por tantos sorrisos. Antes de se virar, ele olhou para o rosto de Cecily. Era bem delicado, apesar da linha pronunciada do maxilar que lhe conferia um ar de teimosia. Mas foram os olhos sob as sobrancelhas bem desenhadas que prenderam sua atenção. Os lábios dela estavam comprimidos, mas de repente ela entreabriu a boca… Antes de perder o controle, ele se virou de costas. Cecily fez o mesmo, esperando que ele enlaçasse os braços dela. Todos os casais estavam com as costas coladas e o peito para a frente. Ele não podia vê-la, mas imaginou que ela estaria com os seios bem evidentes… – Agora, pulem! Os dois hesitaram por um momento antes de pularem juntos. Nem todos os casais tinham conseguido a façanha. Alguns não saíram do lugar, outros tropeçaram e alguns acabaram caindo sob o riso dos outros. O coração de Marc se acelerou, obviamente por causa do pulo. – Parem! Senhores, virem a cabeça para a esquerda! Marc virou e vislumbrou o pescoço de Cecily, descendo o olhar até o decote do vestido… – Senhoras, virem a cabeça para a direita! De repente os lábios dele estavam quase roçando na testa dela, à distância de um beijo… ao redor, todos riam, alguns tensos, outros se divertindo. Marc comprimiu os lábios numa linha e, distanciandose um pouco, viu que ela fazia o mesmo. – Não é suficiente termos perdido a guerra? Você precisa nos humilhar também? – perguntou ele, sussurrando ao ouvido dela. – Não acho que a humilhação tenha sido dirigida a você especificamente – respondeu ela no mesmo tom de voz. – A dor pertence a todos. – Agora, cavalheiros, digam um segredo ao ouvido de sua dama! Marc ficou tentado a dizer a verdade a Cecily. Não se preocupe. Você tinha razão. De Coucy está interessado apenas em recuperar as terras dele e não em Isabella. A virtude da princesa está a salvo. Será que ela sorriria se soubesse? Será que o vinco, que maculava a pele alva da testa dela, desapareceria? Não, claro que não. Mas ela ficaria muito brava e correria para desmascarar De Coucy. Se isso acontecesse, as terras dele continuariam nas garras do rei Eduardo e os dois deixariam de ser convidados para voltarem a prisioneiros. – Não estou ouvindo nada! – gritou o palhaço. – Se não quiser contar um segredo para sua dama, então diga em voz alta para todos nós! Houve um burburinho geral. Marc precisava pensar em alguma coisa inofensiva para dizer. Ela não o conhecia, portanto, qualquer coisa que dissesse seria um segredo. – Odeio legumes – disse ele rápido; contaria uma bobagem, inventaria algo, mas nunca falaria um segredo verdadeiro. Um minuto de silêncio.


E Cecily começou a rir a valer. Riu tanto que precisou puxar os braços dele para se curvar para a frente. Será que ela já havia experimentado um ataque de riso? Talvez não, mas estava rindo dele. – Não é tão comique – reclamou ele, escondendo o riso como se fosse um garoto de 5 anos, empurrando o prato de comida. Cecily não respondeu, mas ele a ouviu tossir para parar de rir. – Aposto que você não vai rir tanto quando confessar alguma coisa para mim. De repente, Marc ficou ansioso para saber qual segredo ela lhe diria. Mas só porque a informação podia ser útil e talvez o ajudasse a tirar a atenção dela de Enguerrand. Não, era melhor admitir o que sentia, pois não costumava mentir para si mesmo. – Não tenho nenhum segredo – disse ela às costas dele sem rir. – Agora, damas, é sua vez! – Viu? – disse ele, triunfante como um galo. Ninguém desobedecia ao bobo, que, pelo rosto enrugado, parecia estar na corte havia muitos anos e mostrava uma força de vontade maior do que qualquer um no salão. – Primeiro soltem os braços e virem um para o outro. Marc ficou imóvel por alguns instantes. Tinha sido difícil compartilhar um segredo quando estavam de costas, mas olhar para ela para ouvir… o quê? Eles soltaram os braços e viraram-se devagar. Marc a fitou, mas Cecily estava olhando para baixo, como se também estivesse relutante em contar um segredo frente a frente. – Segurem-se pela cintura. Ela levantou o olhar e percebeu que Marc também estava sem jeito. Enquanto estavam de costas pareciam protegidos de certa forma, mas frente a frente e tão próximos, seriam como dois enamorados. Entretanto não estavam tão à vontade quanto um casal apaixonado. Cecily desviou o olhar. Apesar de seus braços ao redor da cintura dele, ela estava rígida como se não quisesse tocá-lo. Sem saber o que fazer, Marc demorou a decidir o que fazer até apoiar a mão no ombro dela, parte sobre as mangas e alguns dedos sobre a pele macia. O decote do vestido revelava a curva sensual do pescoço de Cecily. Se ele se inclinasse um pouco mais, os seios dela… – Senhoras! A voz do bobo o trouxe de volta. Eles estavam em um salão cheio de gente, mas as pessoas só tinham olhos para o parceiro. Ninguém prestava atenção nele. – Digam ao seu parceiro o que mais gostam nele. Cecily levantou a cabeça e arregalou os olhos verdes, surpresa. Marc sentiu por não ter dado tempo de ela compartilhar nenhum segredo. – Então? Está vendo alguma coisa que lhe agrade? – disse ele, contrariado por estar ansioso pela resposta, mas não deixou de inflar o peito. – Seu cabelo. – Meu cabelo? Um homem esperava ser admirado pela força, bravura e habilidade com a espada. Mas não o cabelo! Em choque, ele passou a mão no cabelo. Nunca tinha prestado atenção nele, a não ser quando passava tempo sem tomar banho e começava a coçar. Para seu espanto, os fios estavam sedosos, mas os cachos, desordenados. – O que tem meu cabelo?


– Eu tinha de dizer alguma coisa, então falei a primeira coisa que vi – disse ela, dando de ombros e desviando o olhar. Marc sentiu alguém cutucar-lhe a perna. Olhou para baixo e viu o bobo da corte. – Coloque a mão de volta no ombro dela, de onde não devia ter tirado. Marc baixou a mão devagar, apoiando a mão inteira sobre a pele nua do ombro dela. – Damas, coloquem a mão no lugar onde mais gostam do parceiro. Cecily corou e ele também sentiu a temperatura do corpo subir. ELE PRENDEU a respiração quando ela ergueu a mão, entremeando os dedos num cacho louro. Era um cabelo macio, talvez a única parte suave que ele possuía. Cecily percebeu a temperatura quente da testa dele. Próximos. Os dois estavam próximos demais. Será que os amantes se acariciavam assim na cama? Cecily deslizou a mão pelo rosto dele, delineando as linhas acentuadas com a ponta dos dedos, como se assim pudesse perceber o que havia por trás daquele maxilar quadrado com lábios beligerantes, ou captar um brilho daqueles olhos castanhos que a fitavam. A proximidade era forçada, mas ela teve a sensação de que estavam sozinhos. Mesmo com tantos casais ao redor, ela só tinha olhos para ele. Se o bobo da corte pedisse de novo que ela contasse um segredo, ela poderia dizer… – Damas! – O bobo da corte ordenou como se eles fossem animaizinhos treinados. – Inclinem-se para a frente. Ela obedeceu e Marc a puxou para mais perto num toque tão íntimo quanto a mão dela no rosto dele. – Mais perto. Os dois obedeceram e estreitaram ainda mais a distância que os separava. – Perto o suficiente para cochichar. Cecily se aproximou apoiando-se nele. Os lábios de Marc ficaram perigosamente próximos… – Agora sussurrem o que gostariam que seu parceiro fizesse. A pouca distância e o perfume dele a embriagaram a ponto de levá-la a mexer os lábios como se dissesse beije-me. E foi o que ele fez. Protegida pelos braços fortes, aquecida pelos lábios carnudos movendo-se sobre os dela, Cecily se rendeu. Marc tinha gosto de vinho francês, tão intoxicante quanto o beijo, e todo o resto parou de existir, deixando apenas os dois num mundo onde só existiam dois amantes. Ou pelo menos era assim que ela imaginava. Até que o riso alto dos demais a trouxe de volta à realidade. Ela se afastou num repente e colocou a mão na boca, como se pudesse apagar o que acabara de acontecer. Você não faria nada que desapontasse seus pais. Mas ela havia acabado de beijar um homem, um refém francês diante de toda a corte. Quantas pessoas teriam visto? Risinhos sem graça e gritinhos ecoaram pelas paredes de pedra do salão, seguidos de rosnados masculinos e gargalhadas. Algumas das damas mais perspicazes haviam pedido para que seus parceiros pulassem, rissem ou cantassem. Cecily não havia ouvido nada, mas viu mais de um casal se beijar. Inclusive Isabella e Enguerrand.


Ela olhou para Marcel de novo e o viu franzir o cenho. Será que ele havia se arrependido, ou estaria bravo que nem ela? Principalmente por causa da brincadeira boba de Isabella que a tinha forçado a beijar, algo que jamais teria feito por vontade própria. Não, ninguém tinha visto e esperava que o beijo da princesa e Enguerrand também passasse despercebido. Mas era a época das Festas onde o mundo virava de cabeça para baixo. Cecily temia não apenas por Isabella. – Agora, afastem-se um do outro! – gritou o bobo da corte. A ordem foi muito bem-vinda e ela se afastou, aliviada. Marc não se mexeu e tampouco desviou o olhar dela. O que ele estaria pensando? Estaria concluindo algo a respeito dela? O tórax dele levantava e abaixava rápido como se ele tivesse terminado uma corrida, porém os olhos continuavam a reluzir a raiva e o orgulho misturados. – Sinto muito – disse ela, e era verdade. Tinha de ser verdade, embora seu coração ainda batesse em descompasso, mas talvez por ela ter pulado e rodopiado, claro. – Eu não devia… – Ele balançou a cabeça. – O que você ia me dizer? – Como? – Você ia me contar um segredo, antes que o bobo da corte mudasse a brincadeira. Eu queria que você me beijasse. Claro que ela não podia confessar, mas o que dizer? – Não gosto de caçadas, principalmente ao javali. – Por quê? – Marc perguntou, sem ter entendido direito. Seria doloroso demais para ela responder. – Por que você não gosta de legumes? Outra pergunta, mas dessa vez o encanto foi quebrado. Ele deu de ombros e os dois se viraram para observar o ambiente. As outras pessoas ou se aproximavam mais de seus parceiros, ou se afastavam com pressa. Feliz com a confusão que tinha causado, o bobo da corte saltou pelo salão e os menestréis voltaram a tocar, encerrando a brincadeira. Cecily olhou para Isabella e Enguerrand e os viu sorrir sem jeito. Isabella tinha um semblante que ela jamais tinha visto antes. Se a princesa e Enguerrand olhassem para eles, o que pensariam? Provavelmente enxergariam algo que não deveriam. Enquanto Marc a beijava, ela havia se esquecido do passado, da tristeza, bem como do futuro e das obrigações que tinha. Havia vivido apenas o momento presente. O beijo… não devia ter deixado que as emoções a tirassem do prumo. Afinal, tinha sido apenas uma brincadeira natalina que Isabella planejara sem qualquer importância. Mesmo assim… o que de fato tinha significado para Isabella? E para ela mesma? O bobo não a tinha poupado. Na verdade, ela se sentia a boba da corte. Um homem como De Marcel não pararia para fazer uma reverência, dançar ou beijar. Talvez ele não parasse antes de possuir algo que acima de tudo pertencia ao futuro marido dela, quem quer que fosse.


Capítulo 7

MARC OBSERVAVA ao redor ao lado de Cecily, sentindo-se como se alguém o tivesse derrubado do cavalo. Quando a havia abraçado e beijado, teve a sensação de que não havia mais ninguém por perto. Era perigoso demais enlevar-se tanto por uma mulher, especialmente aquela. Não podia se esquecer de que estava ali por causa de um amigo, caso contrário, não teria razão nenhuma para conversar com a condessa. Era melhor concentrar-se em outra coisa. – Onde a princesa pôs a mão? – perguntou ele, enquanto estudava Enguerrand e Isabella a fim de descobrir a conexão entre eles. Pelo menos assim não pensava que quase havia perdido a cabeça com a mulher a seu lado. Ainda o perturbava a intensidade do desejo que o levara a beijá-la. E se pudesse, não pararia só nisso. Que raiva do bobo da corte e do tolo Enguerrand, que na certa tinha incentivado a brincadeira. – Acho mais importante saber onde lorde de Coucy colocou a dele. Cecily havia recuperado o tom gélido de voz, lembrando-o do quanto se odiavam. Uma raiva que evitou que ele colasse mais o corpo ao dela e… Marc respirou fundo para se recuperar e proteger-se como se estivesse com seu escudo. – Nós brigamos para defender a honra, enquanto somos ignorados e eles se divertem. – Numa das raras vezes, ela sorriu com sinceridade. – Desculpe-me, nem sempre sou tão cruel. – Não acredite no que ela diz – disse a princesa, aproximando-se dos dois na companhia de Enguerrand. – A língua dela é tão afiada que pode penetrar o escudo de um cavaleiro. Se bem me lembro, a primeira vez que ela se referiu a vocês foi para dizer que queria vê-lo na lama. Marc sabia a que momento ela se referia, pois sentira o olhar rancoroso de Cecily mesmo estando longe. Agora havia descoberto a razão. – Ela se decepcionou, então – comentou ele. Cecily ficou furiosa. Marc sorriu, percebendo que era mais fácil provocá-la do que arrancar um


sorriso. Depois olhou para Enguerrand, esperando um sinal de que o plano estava dando certo. Mas o amigo só tinha olhos para Isabella. – Bem, agora vamos todos cantar na refeição da noite – disse Isabella. – Como assim? – Marc indagou. Isabella começou a rir. – Temos de proporcionar diversão por três semanas. Cada convidado deve fazer alguma coisa: cantar, dançar ou nos divertir de outra forma. Já não bastava comparecer às Festas, Marc ainda teria de ser sociável. Mais: tinha de cantar ou dançar e agir como o bobo da corte. Ora, ele era um homem da guerra e não um menestrel itinerante. – Sei que você canta muito bem – disse Isabella, olhando para Enguerrand com admiração. Em seguida fitou Marc com indiferença: – E você, o que sabe fazer? – Boa pergunta – disse Cecily. – Tem algum outro talento além de derrubar jovens cavaleiros de seus cavalos? Ah, ela possuía uma língua bem afiada quando queria. O tom áspero familiar tinha voltado, aquele em que demonstrava a opinião dela de que não se podia confiar no inimigo. Isso não o desagradava e serviria como um lembrete. – Prefiro que os outros cantem – disse ele muito a contragosto, como se falasse de guerra. – Agradecemos sua consideração – Enguerrand comentou rindo. Era uma alegria proporcionada por bastante vinho e pela companhia da mulher certa. – A voz dele parece o coaxar de um sapo. Marc, que não tinha medo de enfrentar espadas e flechas, gostaria de ter cumprido a ameaça e ficado em Londres, comendo carne ruim e deixando Enguerrand cortejar a princesa sozinho. Isabella riu com a crueldade digna da realeza. – Estou certa de que você pensará em alguma coisa. Cecily mediu Marc dos pés à cabeça. – Quem sabe uma fantasia? Um disfarce. Vestir algo diferente, uma máscara, e circular pelo salão brincando. Será que haveria alguma coisa pior? Ele respirou fundo para protestar, mas Cecily o beliscou de leve no braço para que não dissesse nada. Isabella bateu palmas de alegria. – Perfeito! Meu pai vai adorar. Cecily, lembra quando seu pai vestiu uma batina de monge? Nem minha mãe o reconheceu. Eles se divertiram muito, mas quando ela o descobriu acabou lhe dando uma bronca! Marc já sabia que o pai de Cecily era próximo da família real. Uma pessoa em quem o rei confiava a ponto de brincarem juntos… Cecily ficou paralisada ao ouvir a menção ao pai. Como não respondeu, Isabella olhou para Enguerrand. – Uma fantasia, oui – ele concordou, apesar da estranheza do momento. – Qual será seu disfarce, mon ami? Cecily recuperou-se da tristeza repentina e disse: – Será uma surpresa. – Cecily levantou a mão para o alto, para se desculpar pelo que diria a seguir: – Uma coisa é certa, não posso transformar esse homem num monge. Ela sorriu em seguida como se quisesse se esquecer tanto da morte quanto dos beijos. Isabella lançou um olhar cético para Marc.


– Ela disse que não gostava de homens louros. Pelo visto, mudou de ideia. Cecily corou até a raiz do cabelo, e Marc desejou ser moreno. – Está vendo? – Isabella perguntou a Enguerrand. – Ela não negou. – Nada disso – Cecily interferiu. – Eu ainda prefiro homens de cabelo escuro. Pelo olhar forçado e o sorriso falso dela, até mesmo Marc percebeu que ela havia mentido. A julgar pelo riso de Isabella, ficou claro que ela compartilhava com a opinião dele. – Bem, você não pode querer este aqui – disse ela, entrelaçando o braço ao de Enguerrand. – Venha. Precisamos preparar nossa surpresa para o evento. Assim que eles saíram, Cecily soltou o braço de Marc. – Minha intenção não era dar uma desculpa para os dois confabularem a sós. – O que você estava pensando? – indagou ele, mais ríspido do que pretendia. – Pensei em salvar você do constrangimento. Pelo visto, eu não deveria ter me importado. Será que ele devia agradecer? Havia muito mistério entre os dois. Marc conhecia as regras de uma batalha, ou de um torneio, e em quem confiar. Mas na corte, ele não sabia nada sobre aquela mulher. Absolutamente nada. Cada passo dado era uma ameaça de tombo. – Não quero me vestir como o macaco do menestrel. – Você estará invisível. A maioria das pessoas não vai adivinhar ou se importar em saber quem está por trás da máscara. – Como vou inventar um disfarce e uma história em uma semana? – Com a minha ajuda – ela ofereceu delicadamente, mostrando-se bem diferente da mulher de língua afiada que vinha sendo até então. Marc deu uma tossidela para agradecê-la. – Quanto tempo levaremos para arrumar uma fantasia? – perguntou ele, direto. – Meses. Mas Isabella tem razão quando diz que o rei adora fantasias. Faz anos que ele prepara uma para o Natal. Deve ter sobrado alguma coisa por aqui – disse ela, gesticulando para os quartos do castelo. Bom, pelo menos ele não precisaria cantar. – Je vous remercie – disse ele com grande esforço. – Não me agradeça ainda. Talvez nos decepcionemos – disse ela, balançando a cabeça. Ele já estava decepcionado. NA MANHÃ seguinte Cecily se encontrou com Marc e o bobo da corte. – Temos de encontrar alguma coisa que combine com a história que vamos contar – disse ela, perscrutando o quarto repleto de baús. Ela havia se comprometido com a fantasia e com a história e já não tinha mais tanta certeza de que tinha sido uma boa ideia. – Tudo isso é roupa extra? – perguntou ele, olhando para os baús de madeira empilhados quase até o teto. – Acho que ninguém sabe o que tem aí. Isabella disse que as fantasias antigas foram empacotadas, mas com a reforma no castelo, ela não soube dizer onde estavam exatamente. – A família real não usa nada do que está aqui? – indagou ele num misto de espanto e incredulidade. – Você não tem roupas que não usa mais? – Isabella piscou sem acreditar no que ouvira.


– Trago comigo tudo o que tenho. Cecily o olhou e percebeu que ele dizia a verdade. Foi a primeira vez que ele havia mostrado um pouco de si, deixando claro que sua vida tinha sido bem diferente da de Cecily. – Mas um rei retém a riqueza e o poder por seu povo. Estou certa que o rei Jean faz o mesmo – disse ela, tentando esconder a culpa. – Acho que você também deve ter pilhas de baús sem abrir – disse ele, sorrindo de lado. Tinha, de fato, mas havia deixado muita coisa em casa. Depois da morte da mãe, ela não entrava em alguns quartos e nem sabia o que se encontrava neles. Os bens dos pais, herdados por ela, estavam intocados. Faltava-lhe coragem para olhar. Marc estava certo ao insinuar que ela podia viver sem nada daquilo. – Sim, eu tenho. Mas minhas coisas não nos ajudarão agora, vamos usar algumas das peças desnecessárias que estão aqui. – Cecily apontou para um baú no topo de uma pilha logo diante deles. – Ajude-me a descer aquele ali. Sem muito esforço, Marc esticou os braços, pegou o baú e o colocou no chão. Cecily se sentou no chão e abriu a tampa. Ali havia vestidos, túnicas vermelhas e verdes, cores remanescentes da infância. Marc se agachou ao lado dela e ergueu uma capa azul com capuz, com as extremidades brancas e um sol bordado em fio de ouro. Cecily levou a mão à boca. – Você reconhece isto? – Meu pai usava uma igual. O rei escolheu esta capa para um torneio. – O pai dela havia participado de um torneio ao lado do rei e tinham vencido. – O restante da corte usou vermelho e verde, mas as pessoas mais próximas ao rei usaram essa cor. Ela correu a mão pelo veludo da capa, lembrando-se do dia em que havia sentido a mesma textura ao abraçar o pai antes de ele montar em seu cavalo. Jamais esqueceria o orgulho que sentira. Ela puxou a capa da mão de Marc, recolocou-a no baú e fechou a tampa. – Não vamos encontrar nada aqui. – Nada além de memórias difíceis de encarar. – Por favor, pegue outro baú. No entanto, Marc continuou imóvel, fitando-a, questionando… apoiando-se nele cada vez mais. Bem próximos. As respirações ofegantes… ninguém os veria ali. Se ela entremeasse os dedos no cabelo dele de novo… – Quando seu pai morreu? A voz dele era gentil, mas a pergunta a atingiu como uma espada afiada. Cecily pousou as mãos no colo. – Faz mais de três anos, perto da Páscoa. Foi uma época em que a vitória devia ter prevalecido sobre a morte. – Soube que os ingleses se referem a esse período como a Segunda-Feira Negra. Foi nesse dia? Era o mesmo nome que ela usava. Época dos horrores sussurrados. – Foi mais ou menos, acho – disse ela, envergonhada por não saber a data exata. Ela havia recebido tão mal a notícia, que a mãe a poupou dos detalhes. – Se aconteceu nesse dia, duvido que seu pai tenha sido morto por um francês. É mais provável que tenha sido a vontade de Deus. Cecily se mexeu desconfortável. Dizia-se que o rei Eduardo havia parado sua campanha de guerra por vontade divina. Alguns diziam que ele tinha deixado de buscar o trono francês por ter considerado


a Segunda-feira Negra um sinal dos desígnios de Deus. De um jeito ou de outro, ela não estava disposta a profanar a memória de seu pai com um francês. – Acredito que toda morte é pela vontade de Deus – disse ela, apontando para outro lado do quarto. – Vá. Veja se encontra alguma coisa daquele lado, enquanto continuo procurando por aqui. UMA HORA mais tarde, Cecily se arrependia por não ter trazido uma criada. Os baús estavam cheios de roupas de lã e linho. Sapatos velhos e esquecidos. Alguns tapetes puídos. Nada de valor. Toda a prataria, ouro e joias estavam armazenados em outros lugares. Ali só haviam coisas esquecidas, mas que não seriam jogadas fora. Ela puxou uma faixa grande de lã que podia ser… alguma coisa, mas para alguém menor que Marcel. – Veja isto – disse Marc do outro lado do quarto, segurando dois bastões, cada um com uma cabeça de cavalo de tecido surrado na ponta. – O que é isso? Brinquedo de criança? Cecily sorriu ao ver os cavalinhos de brinquedo e se aproximou. – Foi feito para criança, para os pajens do rei. Cecily pegou um dos brinquedos e passou a mão na cabeça de cavalo de tecido. Faltava uma das orelhas. – Podemos usar isto. – Sim, usamos cavalos numa batalha. A bem da verdade, ela não queria usar nada que remetesse à guerra. – Não vai dar certo. Somos apenas dois e não um batalhão. Evidentemente Marc só sabia falar e pensar em guerra, por isso ela havia se antecipado: para não deixá-lo escolher a fantasia. – Podíamos encenar uma justa de brincadeira – disse ela, olhando para o teto e esperando ouvir um protesto ou um grunhido. Mas, para sua surpresa, Marc sorriu. – Eu saberei representar bem – afirmou ele como se já estivesse pronto para derrubar o oponente do cavalo de novo. – Mas não podemos levar a sério. O rei prefere rir nessa época do ano. Fora as cerimônias religiosas do Natal, o restante era só diversão. Cecily se ajoelhou diante do baú. Marc havia encontrado um tesouro em capas antigas, máscaras, até mesmo uma cabeça de coelho falsa, grande o suficiente para servir em um homem, com buracos no lugar dos olhos. – Animais! – Ela gritou, animada. – Podemos encenar uma justa entre animais. Juntos eles inspecionaram o baú e descobriram mais duas cabeças. Cecily levantou a do coelho. – Não serei um coelho. Cecily deixou a máscara de lado e segurou outras duas. – Você precisa ser alguma coisa. Escolha. Marc olhou de uma para a outra avaliando como se estivesse prestes a tomar uma decisão de guerra. – Esta é um veado – disse ele, apontando para a mão esquerda dela, que segurava uma máscara com uma galhada. – Mas e esta outra? Cecily estudou a máscara antes de decidir: – Um bode? – Eu me recuso a me fantasiar de coelho ou de bode – disse ele, cruzando os braços em sinal de


teimosia. Ela jogou as duas máscaras no colo dele. – Você seria uma imitação perfeita de um jumento. – O jumento é um animal lerdo e não aceita ordens. – Foi isso que eu quis dizer – disse ela, erguendo uma das sobrancelhas. Em seguida, levantou-se e bateu as mãos para tirar a poeira, brava por Marc tê-la irritado tanto. Um beijo, raiva… ele a havia exposto a sentimentos que uma condessa devia esconder. – Você não quer minha ajuda. Então, seja quem quiser, ou então fique em um canto coaxando como um sapo. Para mim não faz diferença alguma – disse ela, virando-se para sair dali o mais rápido possível. Sempre se arrependia de passar alguns minutos ao lado dele sozinha. – Espere! Ela não deu ouvidos. – Espere! – disse ele mais alto. – Parece que só terei ajuda se eu fizer o que você quer. Cecily parou e virou-se para trás. – O que quer dizer com isso? – Você nunca pede minha opinião. – Eu perguntei, mas você não gostou das opções. – Isso não quer dizer que não posso achar outra coisa. – Já está tarde. Não temos mais tempo. Sem contar que você nunca vestiu uma fantasia. – Não, mas isso não quer dizer que preciso ser um jumento. – Um sorriso finalmente. – Se bem que Enguerrand já me acusou da mesma coisa. Cecily começou a rir também. – Quem sou eu para discordar do lorde de Coucy? Marc ainda estava sentado no chão, rodeado de fantasias, e ergueu duas máscaras de animal, olhando de uma para a outra. – Acho que usarei a máscara do veado – disse ele, resignado. – E agora? Qual é o próximo passo? Bem, era uma ideia; ainda que dita com insegurança, era algo que valeria a pena fazer. – Agora temos que inventar uma história para encenar. Mas a peça não terminaria como De Marcel esperava.


Capítulo 8

MARC ENTROU no Salão Nobre vestindo a cabeça de veado, mas se sentindo um jumento. Também feliz por estar com a cabeça totalmente coberta: seria impossível reconhecê-lo. Lady Cecily tinha montado a fantasia com uma dedicação digna de um guerreiro em combate. A simples cabeça de cavalo num bastão agora se transformara em parte de uma armação leve de madeira, no formato de um cavalo de batalha. Coberto com um tecido brilhante, lembrava um cavalo paramentado. A armação se encaixava nos ombros de Marc e ia até a cintura, de tal forma que, quando ele andava, parecia estar montado num cavalo. Eles haviam ensaiado, mas faltou tempo para terminar a fantasia. Agora, preso naquela armação, que balançava a cada passo, era preciso tomar cuidado para não trombar nas pessoas ou nas paredes. Os ensaios do torneio tinham transcorrido normalmente, mas agora parecia impossível repetir a atuação. Teria sido mais fácil cantar. Ele olhou através do buraco da máscara, mal conseguindo ver o que estava à sua frente. Cecily estava do outro lado do salão, vestindo a máscara do coelho e um sobretudo para esconder o corpo. Estava irreconhecível. Um pajem a acompanhava carregando uma tocha, próxima demais das orelhas dela. Marc ficou de sobreaviso, pronto para se livrar da fantasia em segundos e correr para acudi-la se fosse o caso. Por sorte, o pajem se distanciou e o perigo passou. Marc continuou andando. A armação de madeira balançava demais e ameaçava cair a toda hora. As pessoas começaram a rir. Será que estavam se divertindo como Cecily pretendia, ou porque ele parecia o bobo da corte? Ou talvez estivessem alegres pelo efeito do vinho e enfeitiçados pelo espírito das Festas e nem reparavam nele. Amaldiçoado roi Anglais que insistira em promover uma festa tão ridicule. Bem, já que estava ali, era melhor atuar como haviam planejado, “andar” uns três passos na direção


um do outro, fingir alguns meneios e por fim curvarem-se numa respeitosa reverência. Do outro lado do salão, Cecily começou a andar devagar e com passos duros. Marc avançou mais um pouco. A armação de madeira balançava para frente e para trás, mais parecendo um navio à deriva. De repente alguma coisa o atingiu, mas ele não soube precisar o quê. Frustrado pelas semanas que passara preso, ele se forçou a dar mais alguns passos, para pelo menos ali romper as barreiras do cativeiro. Cecily vinha em sua direção, numa velocidade bem maior do que nos ensaios, e em vez de passar cavalgando graciosamente por ele, ela forçou a cabeça de seu cavalo de pau para dentro da armação de madeira quebrada em volta dele, acabando de destruí-la. Pego desprevenido pela força do golpe, ele perdeu o equilíbrio, pisou no tecido rasgado e espatifou-se no chão, completamente abatido, como se tivesse realmente sido derrubado de um cavalo numa arena de torneio. A máscara impediu que ele batesse a cabeça no chão, mas os chifres voaram para longe. Ele ergueu a cabeça do meio da fantasia destroçada e tirou a máscara. Houve uma ovação de risos e palmas. Não havia dúvida de que as pessoas vibravam e se divertiam. O oponente ergueu os braços como se tivesse vencido e tirou a cabeça de coelho. Para surpresa de Marc, não era a condessa de Losford, e sim sir Gilbert. Gilbert havia se vingado finalmente. Marc tentou se mexer, mas sentiu a perna presa. Não estava quebrada, porém, apresentava uma enorme mancha roxa. Procurando se recompor, ele tentou se levantar, afastando a fantasia do caminho. Ele estava pronto para saltar com os punhos em riste para começar a luta. Mas não conseguiu nem se levantar. – Estamos quites agora – disse Gilbert com um sorriso de satisfação, estendendo a mão para ajudá-lo. O rapaz tinha sido mais generoso do que Marc esperava, ou que provavelmente merecia. Para um vencedor, era bem mais fácil perdoar. Ele devia ter se lembrado disso quando Gilbert caiu na lama no último torneio. Assim, pensando melhor, ele aceitou a ajuda e acabou apertando a mão de Gilbert para alegria dos presentes. – Foi ela quem planejou tudo, não foi? – Marc indagou, terminando de tirar a fantasia. No entanto, uma sensação estranha o consumia, algo que ele se recusava a chamar de ciúme. Cecily o desprezava tanto que havia tramado para que ele fosse humilhado em público. Gilbert evitou olhar para Marc, abaixando a cabeça. – Eu não devia ter permitido. Mas Gilbert também não havia merecido ser humilhado durante o torneio. Marc o havia empurrado deliberadamente. Talvez existisse justiça na corte. – E eu não devia ter levado nossa justa como se fosse uma batalha. – Mas você era o melhor – revidou Gilbert. – Você me ensinou uma lição que guardarei sempre na mente. – Eu também precisava de uma lição. Agradeço por ter me perdoado. Gilbert deu de ombros e fitou Marc. – Ela não perdoou você. Marc viu Cecily saindo pelo outro lado do salão. CECILY LEVANTOU na manhã seguinte com a consciência pesada. Ela havia participado da justa de brincadeira e rira muito junto com os demais, antecipando a alegria que seria Gilbert se vingar de Marc.


Entretanto, quando o viu cair, chegou a pensar em ir até ele com receio que tivesse se machucado. Mas ficou envergonhada demais ao ver Marc e Gilbert darem-se as mãos. Marc tinha tido um comportamento mais digno que ela. Será que havia pensado que ao humilhá-lo poderia mudar o resultado da guerra? Isso traria seu pai de volta? Você é a responsável por manter a honra da família. E em vez disso ela havia permitido que a emoção a influenciasse mais do que o dever diante de Marc de Marcel. Ele era um guerreiro orgulhoso, estava preso, e mesmo assim ela o humilhara por uma ínfima gratificação pessoal. Ah, mas ele merecia pelo que tinha feito com Gilbert. E por tê-la beijado. Mas nada disso era desculpa. Se seus pais estivessem vivos certamente a teriam repreendido. Sem falar que seu futuro marido, independente de quem fosse, podia descobrir aquela armação e duvidar se ela merecia o papel e o título que havia herdado. Bem, tratava-se apenas de especulações e ela tinha mais o que fazer. Assim, tirou a coberta e se levantou. Tinha decidido finalmente manter a promessa feita a Gilbert e pedir que o escultor fosse dispensado da reforma para construir a efígie de seus pais. Apesar da dor, ela não podia mais adiar a tarefa. Se não, como explicaria ao futuro marido ter demorado tanto com aquela tarefa simples? Naquela tarde, a rainha reuniu algumas mulheres para ouvirem um menestrel contar histórias sobre o rei Arthur e sua corte. Cecily viu a oportunidade de fazer o pedido e deixou para sair da sala por último para poder ficar a sós com a rainha. – Gostaria de pedir que Vossa Graça intercedesse junto ao rei a meu favor. Se a reforma tiver terminado, eu gostaria de saber se Sua Graça liberaria Peter, o escultor, para terminar a efígie dos meus pais. – Ah… – A rainha segurou o queixo de Cecily e a estudou. – Você está pronta para enfrentar isso? A rainha não permitiria que ela virasse o rosto. Cecily meneou a cabeça e mordiscou o lábio, recusando-se a chorar. – Tem certeza, querida? – indagou a rainha, içando uma das sobrancelhas. – Ainda estou de luto, Vossa Graça. – Seu luto não passará nunca. Eu entendo o que está sentindo. – A voz da rainha era firme, mas delicada ao mesmo tempo. – Mas está na hora de seguir em frente. – Sim, Vossa Graça – disse Cecily, engolindo o pranto. Talvez ela tivesse adiado para que sua vida não mudasse mais. Mesmo que não estivesse preparada, sentiu-se aliviada depois do pequeno esforço de ter falado no assunto. – É por essa razão que quero terminar a efígie. A rainha meneou a cabeça e recolheu a mão. – Vou falar com Edward. Espero que o escultor termine sua efígie depois das Festas. – Se ele voltar para o castelo depois da Noite de Reis, na primavera talvez, quando eu me casar… – Ela não completou a frase. Toda sua atenção devia estar no casamento e no futuro marido. Talvez ele a deixasse tão lânguida com seus beijos como De Marcel… Cecily se reprimiu na mesma hora. Não tinha nada que ficar pensando no cavaleiro francês. Tomara que o futuro marido não cultivasse emoções selvagens nada dignas para uma condessa. Seria bem


melhor se fosse um casamento por obrigação, como havia sido o de seus pais. Não conseguiria suportar a perda de uma pessoa amada novamente. – Sinto muito, mas não tenho nenhuma novidade sobre isso. – A rainha tomou as mãos de Cecily nas suas. – Talvez minha filha tenha razão em dizer que eu me preocupo muito. Aproveite as Festas. O futuro e seu casamento não tardarão a chegar. – Sim, Vossa Graça. – Talvez ela também estivesse se preocupando demais. O fato de Isabella ter insistido em trazer De Marcel para Windsor só havia causado problemas. – Quais são os planos para amanhã? – perguntou na tentativa de animar a conversa. – Caça ao javali – disse a rainha. A notícia roubou as boas intenções de Cecily em amenizar a conversa. Ela apertou as mãos da rainha, temendo que suas pernas fraquejassem. – Achei que não existissem mais javalis – disse ela numa voz fraca. – O caçador jura ter visto um na floresta na semana passada. Eduardo insiste que eu inclua uma caçada nas festividades. Cecily meneou a cabeça, mas não disse nada. A mãe de Cecily sempre fora dócil e obediente, com exceção deste gosto por caçadas. As mulheres costumavam participar apenas de caça ao veado, poucas participavam de uma caça ao javali. Ainda havia muito poucas que compartilhavam da paixão de sua mãe. – Eu pretendo ficar aqui perto do fogo. Você gostaria de me fazer companhia? A assertividade da rainha e o tom seguro de sua voz acalmaram Cecily. Ela já não gostava de caçadas antes de a mãe morrer, tanto que nem participara daquela em especial, e agora menos ainda. Na verdade, não se lembrava nem da última vez que andara a cavalo. Além do mais, ela não tinha nenhuma obrigação em participar. Ninguém a julgaria mal se preferisse se aconchegar ao lado do fogo em companhia da rainha, ouvindo música. Ninguém além dela mesma. – Agradeço o convite, Vossa Graça, mas vou participar da caçada. – Tem certeza? – Como a senhora mesmo disse, preciso aproveitar a estação. Não que ela fosse se divertir de fato, mas não podia se deixar vencer pelo medo, que, assim como o luto, já devia ter terminado. Lembrou-se que seus pais permitiam que ela escapasse das responsabilidades. Ela não está pronta, diria sua mãe sussurrando, imaginando que Cecily não ouviria. Será que estará algum dia?, responderia o pai. O fato é que ela devia estar pronta e tinha de provar a si mesma. E para Marc. Não podia mais ter medo de um animal. Ou de qualquer homem. Especialmente de um cavaleiro francês. OS HOMENS se reuniram para a caçada bem no início do dia. Marc cobriu os ombros com uma pele extra. Pela primeira vez em muito tempo ele não achou ruim levantar antes de o sol raiar. Ali, ao ar livre, longe do confinamento do castelo, ele se sentia completo de novo. Já havia esgotado sua cota das brincadeiras da corte. E da condessa de Losford. Ele a havia evitado desde a festa a fantasia, duas noites antes. Segundo Gilbert, a condessa não o havia perdoado. Bem, o sentimento era mútuo. Não havia mais o que dizer a ela, pelo menos nada de


cavalheiresco. Marc estava pronto para passar o dia armado na companhia de homens. Lutar com um javali não era muito diferente do que com outro cavaleiro. Não havia disfarces e nem motivos escusos numa caçada. Tratava-se apenas de vida ou morte. E quando o alvo era um javali selvagem, haveria morte na certa. O animal era grande e possuía presas capazes de rasgar um homem. Marc esfregou os braços debaixo da capa e montou no cavalo, ansioso para começar logo. De Coucy, sociável mesmo àquela hora da manhã, circulava entre os outros com um sorriso no rosto. Isabella não tinha vindo. Ainda bem, assim ele e o amigo estariam longe das tentações femininas. O rei surgiu ao lado dele e puxou as rédeas do cavalo. – Você é De Marcel. Marc não esperava que o rei se aproximasse dele e nem que o conhecesse pelo nome, tanto que demorou a se recompor para responder: – Votre Majesté. – Em vez de inclinar a cabeça numa saudação formal, ele encarou o rei nos olhos. – Foi uma atitude honrada permitir que o jovem Gilbert se vingasse. Apesar do frio, Marc sentiu o rosto queimar. – A ideia foi de lady Cecily. – Você é tão competente para caçar um javali quanto num torneio? – Dizem que sim – Marc respondeu com um sorriso orgulhoso. – Ótimo. Então me acompanhe. O convite era um elogio mesmo vindo do rei inimigo. – Eu já lutei ao lado do le roi, mas nunca caçamos juntos. – Então você sabe que a lança de um cavaleiro é tão mortal quanto a de um rei – disse Eduardo. Apesar do ódio daquelas terras e das pessoas, Marc sorriu disposto a mostrar para o rei a fibra dos homens da Picardia. Em seguida, uniu-se ao grupo que acompanharia o rei, enquanto Eduardo conversava com o caçador, fazendo planos para o dia. Observando-o de longe, Marc admirou a postura do rei. Se ele havia conduzido seus guerreiros com a mesma competência como organizava uma caçada, então sua vitória era compreensível. O dia prometia ser muito bom. Um dia de caça o faria esquecer da condessa, do beijo e do falso torneio. Era disso que ele precisava. Enguerrand e ele estavam confinados havia muito tempo num mundo onde havia apenas frivolidades femininas para passar o tempo. Mas bastou se convencer de que não pensaria mais em Cecily quando a viu chegando. Ela estava tão agasalhada que não se viam suas curvas, mas ele reconheceu o olhar penetrante, o mesmo que o impressionara à distância no dia do torneio. – Mulheres podem participar da caçada ao javali? – Ele perguntou ao rei. Caçar um veado ou uma lebre era bem diferente. Mas, para abater um javali, o caçador e sua lança precisavam ficar frente a frente com o animal e, se não o acertasse na primeira vez, não haveria uma segunda chance. Definitivamente ali não era lugar de mulher. O rei olhou para a condessa e franziu o cenho. – A mãe dela costumava participar e acabou morrendo numa caçada. Desde então, não vi Cecily participar. A mãe dela morreu durante uma caça ao javali.


Marc se impressionou ao imaginar a cena brutal. Homens estavam acostumados a presenciar mortes horríveis de companheiros ou inimigos durante a guerra, mas nunca de uma mulher. Nunca. Marc se desculpou e foi ao encontro de Cecily. Ela parecia determinada ao que estava prestes a fazer, mirando-o como se o desafiasse a dissuadi-la. – Você disse que não gostava de caçadas. O que está fazendo aqui? – perguntou ele. – Não preciso da sua permissão. – E não a teria mesmo. – As mulheres francesas se acovardam atrás das muralhas dos castelos? Cecily voltara a ser a mulher que ele conhecia, aquele que o desafiava a cada palavra. No entanto, a sensação era de que ela não se dirigia a ele, mas a si mesmo, como se a determinação pudesse eliminar o medo. Se controlar o medo exigia tanta atenção, seria difícil se concentrar na caça ao javali. Era uma combinação perigosa. – O rei me contou o que houve com sua mãe. Cecily segurou as rédeas com tanta força que o cavalo reclamou abaixando e levantando a cabeça. – Faz quase um ano – disse ela, como se o tempo fosse capaz de curar sua dor. Sem saber o que fazer, Marc olhou na direção do rei e voltou-se para ela. – Você não deveria cavalgar sem alguém a seu lado. Cecily sorriu com um carinho que ele não conhecia. Foi uma boa recompensa pela oferta. Mas ela inclinou a cabeça, cumprimentando outro cavaleiro. Só então Marc percebeu que o sorriso não era para ele. – Sir Gilbert irá me acompanhar. Gilbert postou-se ao lado de Cecily cheio de orgulho, como se a trégua depois da festa a fantasia tivesse terminado. Sem uma razão convincente, Marc se sentiu como se o rapaz o tivesse derrubado do cavalo de novo. – Tome conta dela – disse ele, ao virar o cavalo e seguir até o rei.


Capítulo 9

CECILY RESPIROU aliviada quando Marc se afastou, surpresa com a própria reação. – Você está bem? – Gilbert indagou. Ela assentiu com a cabeça. – Eu não devia tê-la provocado – comentou ele, franzindo o cenho. Talvez De Marcel esteja certo. É muito cedo. A efígie, a caçada, tudo pode esperar mais um pouco. Em um primeiro momento, Cecily pensou em concordar. Vamos lá, Cecily. Mostre a eles a força de uma condessa. Pensando assim, ela balançou a cabeça negativamente. – Estou pronta. Depois de ter visto Marc, ela se forçou a fingir uma coragem que não tinha. Não podia vingar o pai com uma espada, mas sim honrar a morte da mãe com sua coragem. E Marc de Marcel seria testemunha. Ela provaria a ele que nenhum homem ou mulher poderia superar os ingleses. – Não se preocupe – assegurou ela, colocando a mão enluvada sobre o braço dele. Gilbert havia sido carinhoso e gentil em acompanhá-la, sabendo do esforço que ela teria de fazer. – Vou ficar bem atrás dos outros. Os dois se uniram ao restante do grupo. Os cascos dos cavalos batiam na terra através da neve num som surdo. O ar que saía dos pulmões deles transformava-se no mesmo instante numa nuvem de vapor condensado. Era um grupo pequeno, e ela, a única mulher. Cecily e Gilbert decidiram cavalgar perto do rei, mas não tanto quanto Marc. Ela havia ficado chocada ao saber que Marc tinha sido convidado a acompanhar o rei daquela distância mínima. – Se tivesse eu sido o vencedor do torneio, estaria cavalgando ao lado de Sua Graça – murmurou Gilbert.


Cecily ficou esperando o ressentimento por Marc renovar suas forças. Mas, para sua surpresa, um novo sentimento invadiu seu coração. Parecia uma espécie de orgulho mesclado ao desejo, algo que sugeria um dos pecados mortais. Era difícil olhar para os braços dele e não se lembrar de como tinha sido bom ser aninhada por eles, ou reparar naquela boca bem desenhada sem lembrar a sensação dos lábios úmidos cobrindo os seus num beijo ávido. Marc também a observava de longe. Será que os olhos dele reluziam de raiva ou desejo? Antes que ela pudesse decifrar, ele se inclinou e falou alguma coisa no ouvido do rei, que se virou na direção dela. – O vento está muito frio – disse o rei em voz alta. – Não precisa nos acompanhar. O rei estava preocupado, ou atendia um pedido de Marc? Mas não era o vento que os preocupava. – Se um cavaleiro cai do cavalo, ele se levanta e monta de novo, Vossa Graça. Está na hora de eu aprender a fazer o mesmo. O rei pensou por um instante e meneou a cabeça. Logo em seguida, o grupo seguiu na direção da Floresta de Windsor. As horas se passaram e eles continuavam a cavalgar até quase o limite da floresta, sem que ainda tivessem encontrado a presa. Cecily lutou contra o alívio que sentiu. Talvez não existissem mais javalis na Inglaterra. Quem sabe ela já não teria provado ser corajosa o suficiente por pelo menos ter tentado. Entretanto, o líder dos caçadores não teria levado o grupo inteiro numa jornada tão longa por nada. O rei não ficaria satisfeito se não levasse para o castelo um javali, que seria servido na noite de Natal com uma maçã na boca, sobre uma travessa dourada. Cecily procurou ficar atrás dos caçadores para se proteger enquanto o tempo passava. Gilbert, por sua vez, preferiu cavalgar mais perto do soberano, ainda frustrado por De Marcel ter ganhado a melhor posição ao lado do monarca. Ao que tudo indicava, a vingança em forma de brincadeira não tinha sido suficiente. Em um dado momento, Cecily viu Marc quase se desequilibrando sobre o cavalo ao olhar para trás onde ela estava. Ela sorriu e acenou com a mão enluvada, assegurando que não podia estar em posição melhor. No entanto, quando os cachorros começaram a latir, ela segurou a respiração. O javali havia sido localizado. A caçada começou. Este era o momento que a mãe de Cecily mais gostava. No ano anterior, numa situação semelhante, a mãe dela teria esporeado o cavalo, seguindo o rastro da presa sem hesitar até que… Os caçadores saíram a galope na frente, até Gilbert os acompanhou. Cecily tentou segui-los, mas o medo impediu que segurasse as rédeas com firmeza, ou que cutucasse com força as ancas do cavalo, tanto que o animal se recusou a correr. O grupo inteiro passou por ela, sumindo pela floresta. Covarde. Você não merece o título deixado por seus pais. Os latidos dos cães e o rufar dos cascos dos cavalos foram sumindo até que Cecily se viu sozinha no meio das árvores e da neve. Durante longos minutos ela permaneceu na sela, prestando atenção, até que só conseguia ouvir o farfalhar das folhas ao sabor do vento. Desanimada, ela desmontou e se sentou num tronco caído, fechando bem a capa revestida de pele ao redor do corpo. Gilbert havia partido sem titubear ou olhar para trás e não sentiria falta dela até que o javali fosse abatido. Dali ela podia ver a trilha deixada pelos cavalos. Se a seguisse, podia voltar para o castelo sozinha. As damas ainda estariam reunidas ao redor da fogueira e ela podia se juntar a elas, justificando que havia voltado por causa do frio. Curvando-se para se proteger do vendo gélido, ela olhou para cima. O céu cinzento estava branco,


um dia típico de inverno, e provavelmente a neve aumentaria. Os latidos dos cachorros agora estavam mais audíveis, mas seria impossível precisar de qual direção vinham. Cecily achou que era melhor voltar logo antes que a neve cobrisse a trilha. MARC OUVIU os uivos dos cachorros com a mesma alegria que ouvia o som de um trombeta de guerra. Saiu galopando, correndo com o rei, feliz que Cecily estava mais para trás em segurança com Gilbert. A caçada demorou muito, pois o javali era ágil e estava sempre muito à frente a uma distância que nem os cachorros conseguiam alcançá-lo para o golpe final. A um determinado momento, o líder dos caçadores fez uma pausa para confabular com o rei. Com a calma restabelecida, Marc olhou para trás e se surpreendeu ao ver Gilbert junto com os outros homens. Ele perscrutou os arredores, na esperança de vê-la surgir, mas o que viu foi apenas árvores e muita neve. – Onde ela está? – Marc perguntou, aproximando-se de Gilbert. – Não sei. – Gilbert olhou ao redor, confuso. – Como você pode dizer que não sabe? Você devia ter ficado com ela. – Você já tentou dizer à lady Cecily o que fazer? Que jovem tolo. Ele não fazia ideia dos perigos escondidos até nas florestas reais. – Ela pode ter caído do cavalo, ou… – O rei saiu de novo… Gilbert esporeou o cavalo e se juntou ao grupo, deixando Marc e a tarefa de cuidar de Cecily para trás. Marc ficou esquecido e sozinho. O céu estava completamente encoberto pelas nuvens. Ele não estava familiarizado com a floresta e com a quantidade de voltas que tinham dado atrás do javali, e não saberia qual trilha seguir para voltar. Seria inútil procurá-la por conta própria, pois acabaria se perdendo também. Pelos sons dos cavalos e dos cachorros, parecia que a caçada estava terminando. Assim que o javali fosse morto, ele organizaria um grupo de busca. Na certa o rei ficaria tão preocupado quanto ele com o desaparecimento de Cecily. Depois de dar uma última olhada para a floresta, ele esporeou o cavalo e alcançou o grupo de caça. Quando os encontrou, o javali já estava preso numa armadilha. Era um animal jovem e forte, mas a corrida o tinha esgotado. Seria uma morte rápida. Um dos cachorros se aproximou muito e o javali o espetou com sua presa, arremessando o cachorro para longe. Um dos caçadores soltou os outros cachorros que atacaram o javali, mordendo-o nas orelhas, nas pernas e encurralando-o. Marc, Enguerrand, Gilbert e o resto do grupo continuaram em seus cavalos, enquanto o rei desmontou e pegou uma lança das mãos de um cavalariço. A honra de matar tinha de ser do monarca. Ele se aproximou do animal esperando uma brecha para atacar. A lança podia atingir o javali perto das patas, mas a pele era muito grossa e talvez não fosse possível matá-lo. O golpe mais certeiro teria de ser no pescoço, mas, para tanto, o rei precisaria esperar o momento adequado para atacar. Quando ele decidiu avançar um pouco mais, o animal, pressentindo a morte, driblou os cachorros e saiu em disparada na direção por onde tinha vindo. Ou seja, onde estava Cecily. Marc virou o cavalo e seguiu o javali. CECILY OUVIU os latidos dos cachorros se aproximando. Ela levantou a cabeça e sentiu o corpo dolorido. Quanto tempo havia ficado ali sentada, tentando reunir forças para voltar a subir no cavalo? Para ela


parecia que tinham se passado horas em silêncio, achando que a caçada teria terminado. De qual direção eles estavam vindo? Ao perscrutar os arredores, o que ela ouviu não foram os latidos, mas sim algo bem mais perigoso: o arfar de um javali, que batia os cascos na terra. Ela se levantou no mesmo instante. O cavalo dela não estava longe, mas fora do alcance, pastando sob uma árvore onde havia um lote de grama sem neve. O javali grunhiu mais alto, chamando a atenção do cavalo, que levantou a cabeça, movimentando as orelhas para frente e para trás, e disparou sozinho para dentro da floresta. Os latidos e o rufar dos cascos dos cavalos do grupo de caça ficaram mais altos, como se anunciassem a morte inevitável. De repente um cavalo surgiu do meio das árvores. Marc pulou da sela num segundo já com a espada em punho. Mas, antes de dizer alguma coisa, o javali avançou na direção de Cecily. – Não se mexa – ordenou Marc. Mesmo se quisesse, ela não conseguiria se mexer, de tão apavorada que estava. Seus olhos mantinham-se fixos no animal ferido e exausto, a respiração condensando-se ao sair das narinas alargadas. Os latidos dos cachorros estavam cada vez mais perto. Sabendo que ainda era caçado, o javali reuniu suas últimas forças e correu na direção de Cecily, mas acabou empalado pela espada de Marc. O animal desviou de Cecily e seguiu na direção do cavaleiro. A espada havia sido projetada para matar um homem e não um javali. A lâmina ainda estava fincada no peito do animal e o mataria com o tempo, mas, enquanto isso, qualquer coisa que estivesse ao alcance das presas afiadas corria perigo. Marc puxou a adaga do cinto e avançou na direção do animal.


Capítulo 10

MAIS TARDE, Cecily não saberia explicar o que havia acontecido. Os minutos se arrastaram indefinidamente enquanto ela, Marc e o javali ficaram imóveis. Não demorou muito para que os cachorros, os cavalos e o caos invadisse a pequena clareira. O javali correu em desespero na direção de Marc. Um cavalariço ágil ergueu a lança para o rei, mas Cecily a pegou antes e com uma coragem que devia ter vindo dos céus, avançou e acertou o javali no peito. À beira da morte, o animal ainda conseguiu tirar a arma da mão dela, mas, diferente da espada, a ponta da lança penetrou na pele grossa do javali. O animal ainda tentou dar alguns passos, mas acabou caindo no chão. Morto. Cecily cambaleou e achou que também fosse cair. O espírito que havia se apossado dela para ajudar abandonou-a com a mesma pressa como havia chegado. Por sorte, Marc estava por perto e a amparou com os braços fortes. Ele a levou de volta ao tronco e com a ajuda dele ela se sentou com dignidade em vez de deixar-se cair. – Ça va bien? – perguntou ele. Ela se sentiu reconfortada com a voz dele e olhou para as mãos, movimentou os dedos e esticou as pernas. Sim, estava viva e intacta. Durante todos os meses de luto, primeiro pelo pai, depois pela mãe, Cecily nunca tinha pensado em sua própria mortalidade. Para ela, havia apenas os longos anos de vida que teria pela frente, em que poderia alcançar as expectativas de todos. Mas poderia ter morrido naquele dia de forma tão rápida e inesperada quanto sua mãe. – Devo minha vida a você – disse Marc, fitando-a sem o cinismo de costume. – Você também arriscou a sua vida para me salvar – disse ela, meneando a cabeça.


Assumir o fato violava toda a impressão que tinha dele. Ela só queria pensar nele como um francês que podia ter ou havia tirado a vida de seu pai. De uma hora para a outra, ela perdeu a noção do mundo em que vivia. Isso era tão terrível quanto enfrentar a morte. Um dos pajens correu com o vinho. Gilbert estava pálido e balbuciando desculpas. De Coucy olhava ao redor à procura do cavalo dela, enquanto o rei pediu que providenciassem uma maca para que ela fosse levada de volta ao castelo. – Não precisa – Marc se antecipou. – Ela volta comigo. – Você pode? – O rei perguntou a Cecily. Ela segurou firme na mão de Marc para se levantar. A pergunta do rei significou muito para ela, que se empertigou, sentindo que pela primeira vez podia se valer do título. – Posso, sim. Marc só soltou a mão dela depois que a ajudou a montar. NAQUELA NOITE, quando Marc chegou ao Salão Nobre, sozinho, vários dos presentes o parabenizaram. Dentre eles havia outros reféns, nobres e até mesmo aqueles que ainda não haviam se dignado a falar com ele. Todos lhe deram tapinhas nas costas e levantaram cálices para saudá-lo. Marc tentou explicar para alguns que havia outras pessoas no grupo e que Cecily havia salvado a vida dele e a dela, mas ninguém lhe deu ouvidos. Seria bom se ela estivesse ali também, pois certamente não o deixaria receber elogios sem merecer. Mas ele sabia que não a veria naquela noite. Ela não havia dito uma palavra sequer durante o retorno da caçada. Depois que ele a ajudara a descer do cavalo, Cecily tinha desaparecido sem falar nada. Por certo ela iria cair na cama e talvez só levantasse na noite de Natal. Mesmo passadas algumas horas, Marc ainda podia sentir o calor do corpo dela tão próximo ao seu sobre a cela do cavalo. Ela ia na frente e tinha a medida certa para caber entre os braços dele. Não trocaram nenhuma palavra, mas não foi necessário. Antes de desmontar, ao chegarem ao castelo, ele vivenciou um breve delírio de não a soltar e mantê-la bem próxima para protegê-la contra todo o mal… O encanto se quebrou no segundo seguinte e ele desceu do cavalo para ajudá-la a fazer o mesmo. E como se ela tivesse lido os pensamentos dele, saiu apressada com a capa forrada de pelos esvoaçando atrás de si. Ela parecia tão calma quanto se tivesse passado a tarde diante de sua própria lareira. Como se seu título lhe oferecesse o privilégio de transitar livremente entre a vida e a morte. Isabella surgiu no salão trazendo Cecily, e ambas dirigiram-se até Marc. – Acho que precisamos agradecer você por ter salvado lady Cecily – disse Isabella. – Ela o agradeceu a contento? Marc ficou sem entender e olhou para Cecily procurando uma explicação, mas, em vez de fitá-lo, ela olhou por cima dos ombros dele. – C’est moi – ele começou – que devo um merci. Eu tentei, mas não consegui abater a presa. Foi a lança de lady Cecily que matou o javali. Não foi essa a história que ela contou? Isabella ergueu uma das sobrancelhas. – Ela não entrou em detalhes. Sendo assim, você, como cavalheiro que é, deve fazer uma reverência agradecendo-a.


Cecily franziu a testa em reprovação, mas a princesa a ignorou e inclinou a cabeça, esperando o gesto de Marc. As insinuações, os truques de linguagem e os maneirismos com sorrisos e piscadelas substituíam palavras. Todos esses estranhos joguinhos despertavam sentimentos frágeis demais para serem expostos em público. – Um homem sempre agradece por sua vida – disse ele na esperança de que menear a cabeça fosse o suficiente. – Uma mulher também – disse Cecily, levantando o olhar para ele. – Se esse cavalheiro não tivesse se colocado bravamente diante do javali, eu não estaria aqui. Marc aguardou que ela dissesse mais alguma coisa, que descrevesse todo o drama para que todos ali soubessem que ela quase havia morrido como a mãe. Mas ela continuou quieta. Se antes havia evitado o olhar dele, agora o encarava fixamente. Marc também fez o mesmo, incapaz de olhar noutra direção… – Vão, vocês dois. Agradeçam um ao outro e poupem meus ouvidos. – Isabella apontou para a porta. – A lareira da torre do portão está acesa e não há ninguém lá. – Ela sorriu. – Mas não fiquem longe por muito tempo. Cecily chegou a abrir a boca para protestar, mas a filha do rei já tinha virado as costas e partido. Assim, como se tivessem acabado de receber uma ordem, os dois permaneceram imóveis e em silêncio. Cecily já não o encarava mais, passeando o olhar para todos os cantos. Finalmente, como se tivessem combinado, os dois saíram caminhando lado a lado do Salão Nobre. Marc a seguiu pelas curvas dos corredores, nas escadas, até chegarem a uma saleta na torre do portão, ladrilhada de vermelho e amarelo e aquecida pelo fogo da lareira. O único som era o crepitar da lenha. Cecily decidiu esperar Marc começar a falar. – Recebi ordens para agradecer encore. Sendo assim, obrigado – disse ele. Pronto. Obrigação cumprida. No entanto, ele cogitou se a ouviria dizer que estava feliz por ele estar vivo, ou se ela agradeceria pelos esforços dele, ou se simplesmente o visse como um homem. Mas ela não fez nenhum gesto e nem disse nada. Nenhuma palavra ou um olhar de esguelha. Ela estava com a atenção fixa na escuridão através da janela. Por fim, limitou-se a erguer um pouco os ombros como sinal de pouco-caso. Marc a segurou pelos braços e a virou de frente para ele, forçando-a a encará-lo, desejando que ela tomasse alguma atitude. – Sua mãe morreu durante uma caçada – disse ele num desabafo, mas não saberia como se expressar de outra forma. – Você quase perdeu a vida hoje. E ainda assim não demonstra… nada. A resposta de Cecily era sempre a postura rígida. Ela havia sentido um frio na espinha quando ele a segurou, mas logo se recuperou e se fechou de novo. – Sou a condessa de Losford. O que sinto, ou deixo de sentir, não é de domínio público. Especialmente você. Ela sentiu não ter dito alto o que pensara. – Bem, eu sinto… estou feliz por estar viva e por você também. Em vez de soltá-la, Marc a puxou para mais perto a fim de fitá-la no fundo dos olhos como se quisesse desnudá-la. – É mesmo? Você não sente gratidão? Marc se arrependeu do que havia dito no mesmo instante e percebeu o semblante dela se transformar, expressando toda a dor e insegurança que ele esperava.


– Sinto, sim – ela respondeu, fitando-o. – Mas estar viva por sua causa me parece uma traição. Marc a soltou, dando-lhe mais espaço. – Vi muitos homens caírem num campo de guerra por golpes que podiam ter me matado. Nenhum deles me inveja por estar respirando. – Talvez não. Mas estou certa de que o invejaram, sim. – Cecily comprimiu os lábios. Marc conhecia aquele gesto e sabia que ela estava deixando de dizer tudo o que queria. De súbito, o ambiente acolhedor da sala a fez mudar. – Você se lembra da morte de seus pais? Você presenciou? – Ela indagou. Foi uma mudança estranha de assunto. – Meu pai faleceu em Crécy. Marc tinha 11 anos na época e era muito novo para lutar. – E sua mãe? – Não me lembro dela muito bem. – Ela e o irmão dele haviam morrido no parto. – Eu também não presenciei a morte dos meus pais – disse ela baixinho como se estivesse falando consigo mesma. – As pessoas costumam ter histórias para contar dos últimos momentos com seus entes queridos. Mesmo aqueles que morreram por causa da Peste Negra tiveram algumas horas para se preparar na presença de um padre e familiares, realizando todos os ritos. – Ela balançou a cabeça. – Eu nem pude ver minha mãe. – Encolheu os ombros. – Disseram que foi para minha proteção. Teria sido muito pior se ela tivesse visto o corpo e sentido a angústia? Os olhos de Cecily expressavam toda a dor por trás da força do título que procurava ostentar. – Sempre fui muito protegida, acho. Marc entendeu que ela estava sendo sincera. Cecily fora mantida por trás de muralhas para que não sofresse os constantes golpes da vida. Marc segurou as mãos dela, desejando ser um escudo protetor, embora soubesse que seria impossível. – Ninguém pode se proteger da morte, ou da vida. Acreditando no que ouvira, os traços de dor, pesar e determinação se esvaíram do rosto de Cecily, deixando-a mais vulnerável. Nesse instante, Marc percebeu que ela não o via mais apenas como um inimigo. – E nem de você, Marc de Marcel. Ao ouvi-la, as barreiras de ódio que ele havia construído contra les Anglaise, contra ela, desmoronaram. Sucumbindo à vontade de proteger o coração e o corpo de Cecily, ele a abraçou com força. O coração dele retumbava tão alto que ela provavelmente ouviria quando encostou a cabeça no peito largo a procura de conforto. – Cecile. Je veux t’embrasse. Je peux? Era a primeira vez que ele pedia para beijar alguém, mas ela estava tão fragilizada que qualquer avanço seria uma traição maior do que aquelas que ela o acusava. Dessa vez a decisão estava nas mãos dela. Mais tarde, não poderia dizer que ele ou o bobo da corte a tinham forçado a beijá-lo. Numa atitude inesperada, um milagre, ela ergueu a cabeça e sorriu. Marc cobriu os lábios dela com a delicadeza de uma bênção. Foi um gesto de carinho e não de desejo, como se o beijo pudesse expressar o que ele não conseguiria com palavras. Algo como… – Esse foi um “obrigado” muito sincero – disse Isabella, interrompendo-os. Cecily retesou o corpo e Marc a soltou. Isabella e Enguerrand estavam abraçados à porta e sorrindo. Marc pensou melhor sobre o significado daquela sala vazia e a lareira acesa. Não fique aqui por muito


tempo. Notou a garrafa de vinho sobre uma mesinha e o banco acolchoado com almofadas. – Nós já terminamos – disse Cecily como se nada tivesse acontecido, mas tão distraída pela interrupção que não notou que estava num ambiente onde Isabella e Enguerrand planejavam se divertir com jogos particulares. E saiu sem sequer franzir o cenho. Nem Enguerrand, nem Isabella prestaram atenção na presença de Marc. Isabella serviu uma taça de vinho e levou-a aos lábios de Enguerrand. Cecily havia dito que Enguerrand sentia uma tendresse por Isabella, mas agora estava claro que a preocupação dela não era com os sentimentos de De Coucy. Agora, vendo os dois juntos, ficou tudo mais claro. Isabella havia abusado da bebida. Impressionado pela cena, ele tratou de sair dali. Apesar dos avisos de Cecily, Marc havia considerado o flerte de Enguerrand como uma brincadeira inofensiva, algo que o divertiria durante o cativeiro. No entanto, ele teria as terras de volta, um prêmio que certificaria sua vitória. Mas não seria digno morrer por isso. Marc sentiu o desejo percorrer seu corpo ao pensar em Cecily. O beijo tinha sido apenas um carinho, mas, e se não tivessem sido interrompidos? Imaginou o cabelo dela solto, a capa caindo no chão e os lábios sedentos esperando pelos dele. Haveria mais um beijo, dois, três, e cederiam à paixão. Uma criada podia levantar a saia, mas nunca uma condessa solteira. E o que dizer de uma princesa? Inimaginável. Um namorico público era uma coisa. Mas, e se numa noite próxima, num quarto mais recluso que aquele, lady Isabella oferecesse mais do que beijos? E se num momento de loucura, depois de muito vinho e quando simples beijos já não satisfizessem, a princesa se esquecesse de sua posição e se oferecesse mais? Que homem embriagado pelo desejo recusaria? Nem mesmo o lorde de Coucy. E depois do momento de puro devaneio, quando o sol se levantasse no dia seguinte e eles olhassem um para o outro e percebessem o que haviam feito, seria uma ruptura na vida de ambos. O rei Eduardo tinha sido amável até então, mas mudaria completamente ao descobrir que sua filha havia sido desonrada. O homem que se deitasse com a filha do rei não teria permissão para ficar impune. O fato podia ser usado como uma arma. Talvez numa noite depois de uma bebedeira, ele podia contar o que havia acontecido a qualquer um. Não, o segredo tinha que ser bem enterrado, assim como o protagonista da cena de amor. CECILY NÃO conseguiu dormir naquela noite. As visões da princesa surpreendendo-a nos braços de Marc não a deixavam em paz. Depois de muito virar e revirar na cama, acabou repreendendo-se pelo momento de fraqueza. Só então lembrou-se que havia deixado Isabella e Enguerrand sozinhos no quarto e ficou preocupada. No entanto, preferiu não comentar nada ao encontrar Isabella na manhã seguinte. Se bem que depois do que havia acontecido, ela não poderia criticá-la por roubar alguns minutos a sós com seu cavaleiro. A liaison amoureuse de Isabella não a cegou a ponto de não ter reparado em Cecily. – Fico feliz que você esteja finalmente se divertindo com alguém tolo e inapropriado. – Da mesma forma como você? – A pergunta afiada valeu tanto para Isabella quanto para Cecily. – Você está preocupada com o meu cavaleiro ou com o seu? – Ora, ele não é meu.


– Mas ele salvou sua vida! E você a dele! Você tornou realidade um poema de um dos menestréis da corte! Aquilo era a última coisa que teria passado na mente de Cecily. – Não somos nada disso! E se meu futuro marido souber dessas fofocas? – Ele vai achá-la mais desejável ainda! – Isabella balançou o dedo indicador. – Chega de cara triste. Quero ver você e Marc de Marcel se divertindo. Só de imaginar, Cecily começou a rir. – É mais fácil empurrar uma rocha montanha acima do que fazer De Marcel rir. – Bem, a tarefa fará você esquecer o passado. Permita que esse cavaleiro charmoso a anime. Cecily achou que o comentário a deixaria furiosa, mas não foi o que aconteceu. Marc ainda continuava a ser o inimigo, mas depois de ter vencido a morte, ela já não via as coisas como antes. O sol parecia brilhar mais forte naquela manhã. Talvez tivesse sido muito severa com Isabella e consigo mesma. Afinal, tinha enfrentado o medo e participara de uma caçada. Acima de tudo: havia fincado a lança no javali, matando-o. Não havia problema algum em ser honrada por sua façanha com um beijo de um cavaleiro atraente. Contanto que ele não se aproximasse muito… Isabella percebeu a dúvida mesclada com a esperança estampadas no rosto de Cecily. – Você tem uma oportunidade diante de si – disse, colocando a mão no ombro de Cecily. – Não recuse se alguém lhe oferece um doce. – Um doce que derreterá em poucos segundos na boca. Cecily duvidou que a lembrança dos lábios de Marc sobre os seus duraria muito tempo. – É melhor ter alguma coisa para saborear do que ficar com um gosto amargo na boca – disse Isabella, ansiosa. – Você só tem essas semanas de Festas para aproveitar. Depois, a sorte irá embora. Será que Isabella tentava convencer Cecily ou a si mesma? Mas divertir-se com Marc era tentador. Uma hora ou outra estaria casada, presa às responsabilidades e bem longe de outros sentimentos para o resto da vida. Será que voltaria a ver Marc de Marcel de novo? Ela sentiu uma pontada no coração só em pensar. – Bem, são apenas alguns dias… – Isso mesmo. – Isabella sorriu, considerando o assunto resolvido. – Agora vá procurar seu cavaleiro. Enguerrand está chegando. Enguerrand de novo? – Aqui? Outra vez? O que seus pais pensarão depois que… – Cecily ansiava por perguntar, mas não ousou verbalizar. – Você está se referindo ao casamento do meu irmão? Cecily assentiu com a cabeça. O príncipe havia se casado há menos de dois anos sem a permissão da igreja. Foi preciso uma intervenção papal e meses de espera para que os pecados fossem apagados. – Seus pais não ficarão preocupados? Cecily sentiu uma pontinha de ciúmes de Isabella por ter uma família para cuidar dela. Além do mais, ela sabia que a família era muito mais importante para Isabella do que uma tendresse temporária. – Minha mãe não se conforma por não ter feito nada, se é que fosse possível… Isabella meneou a cabeça e suspirou, como se assim o pensamento doloroso se esvaísse. – Não se preocupe por minha causa. – Com os olhos reluzindo de novo, ela apertou as mãos de Cecily com carinho. – Agora vá encontrar seu cavaleiro. Cecily não saiu para buscar Marc. Tinha uma coisa mais importante a fazer. Depois de ter enfrentado


um javali, precisava se encontrar com Peter, o escultor.


Capítulo 11

NA MANHÃ seguinte, Marc acordou antes de Enguerrand, o que era um mau sinal. Depois dos acontecimentos da noite anterior, os dois não tinham falado sobre a princesa, a condessa ou dos beijos. Toda vez em que ele pensava em perguntar alguma coisa, via-se diante de uma faca de dois gumes. A princesa é mais importante do que suas terras? Você tem ideia do risco que está correndo se ela… Não, era melhor nem pensar. Seria impossível piorar a situação. Os dois amigos voltaram a se encontrar mais tarde diante de um tabuleiro de xadrez que Isabella havia emprestado. Enguerrand foi o primeiro a tocar no assunto. – Bem, mon ami, você não está desenvolvendo uma tendresse por uma certa Anglaise? – O quê? Quem? Enguerrand riu a valer na tentativa boba de Marc em esconder a verdade. – Eu havia dito que a adorável condessa é linda, não? – Acho que ela é muito fria. – Não foi o que vi na noite passada. Ela parecia… – Surpreende-me saber que você prestou atenção em outra pessoa que não a princesa – Marc o interrompeu, movimentando o peão para a casa seguinte do tabuleiro. Ele não estava disposto a revisitar a noite anterior e nem a responder perguntas indesejadas. – Fiquei com a condessa apenas para distraí-la e não atrapalhar seus planos. – Ah, entendo… Marc aguardou os próximos comentários, mas Enguerrand não continuou. – Ela acha que você pode ferir o coração da princesa. – Ah, é mesmo? – Enguerrand movimentou a torre, evitando olhar para o amigo. – Quem sou eu para conhecer o coração de uma mulher? A resposta foi honesta, mas não era a que Marc esperava.


– Sei que você só está preocupado em recuperar suas terras. – Não foi uma pergunta, mas Marc segurou a respiração esperando o que o amigo diria. – Bien sûr, mon ami. Mas isso não impede que eu passe momentos agradáveis. A resposta foi rápida demais. – Você tem certeza? Penso nos riscos, se o namorico for longe demais… – Sua insinuação é um insulto para nós dois. – Enguerrand parou de sorrir, e bateu com uma das suas peças de xadrez no peão de Marc. Ali estava a resposta. Claro que não era a que ele esperava. Mas mentira quando Enguerrand o questionara sobre Cecily. Foi uma negação tão evidente que Enguerrand nem fingiu acreditar. E, agora, no que acreditar…? – Xeque! Marc piscou, perplexo. Enguerrand havia bloqueado qualquer movimento seu no jogo. Tudo porque tinha se distraído pensando em outras coisas. A vitória fez De Coucy voltar a sorrir do jeito que Marc esperava. – Aceite e aproveite sua vida aqui o máximo possível – Enguerrand aconselhou dando um tapinha no ombro do amigo. Diversão. Marc não encarava a vida como um meio de diversão, mas sim de conquistas e triunfos. Ele jamais se perderia na luxúria como prêmio por algo que ele não havia feito. – Divertir-se como um refém? – Por que não? Você deveria agradecer a Deus pela bênção de poder passar algumas horas na companhia de uma nobre mulher adorável. Presentes como a paz e a beleza devem ser recebidos de braços abertos. Eu aproveito. Enguerrand havia acertado em parte, pois Marc não tivera um minuto de paz depois de ter conhecido Cecily. – Eu preferia poder viajar de volta para casa. Você não? Se ele fosse o amigo não pensaria duas vezes. Enguerrand morava num imenso castelo localizado no alto de uma colina rochosa, quase tão bem defendido quanto o de Windsor. Já a vida de Marc era pular de um quarto emprestado para outro, lutando as batalhas de seus anfitriões, e não as suas. Mas essa era a realidade da maioria dos cavaleiros. De vez em quando ele divagava como seria defender as próprias terras. – Claro que sim, mas aqui estou em companhia da nata da cavalaria. Alguns desses homens logo partirão em uma Cruzada. Quem sabe um dia eu não participe de uma nobre expedição. Não posso desgostar daquilo que representa o objetivo pelo qual lutamos. Enguerrand ainda vivia o sonho de honra mesmo depois de tudo o que já tinha passado. Para Marc, era o mesmo disfarce que uma cabeça de veado. Mesmo assim, quando nutria pensamentos nostálgicos com Cecily, chegava até a acreditar em uma vida que permanecia apenas na imaginação da maioria. Enguerrand deu um empurrão no ombro dele e o trouxe de volta à realidade. – Venha. Não podemos perder o jantar. Será o ultimo antes da ceia de Natal – disse, passando a mão na barriga. Marc se levantou, relutante. O que diria Cecily quando o visse? E o que ele diria também? Melhor seria se ficassem em silêncio.


CECILY RECEBEU Peter no salão no final da manhã. Percebeu, então, que não o via há meses. Ele era um homem que havia devotado toda sua vida em transformar pedras em objetos de arte. Dono de um físico atarracado, ele próprio parecia uma escultura feita de pó de rocha. A poeira misturada com fuligem de metal estava enrustida debaixo das unhas e já tinha acabado com as linhas dos dedos. Até mesmo o cabelo dele estava tão branco quanto o alabastro. – Faz muito tempo que não nos vemos – disse ela, depois de um breve suspiro. – É verdade, milady – ele respondeu e meneou a cabeça. – Você fez um bom trabalho aqui em Windsor. A rainha me disse que o rei ficou muito contente. Peter esboçou um sorriso doce, mas cheio de orgulho. – Fico honrado. – Já que seu trabalho aqui terminou, tenho permissão para pedir que volte e termine… – Cecily engoliu em seco. Concluir a frase seria declará-los mortos mais uma vez – … a efígie. – Milady já escolheu os detalhes finais dos desenhos? Desenhos. Cecily mal lembrava o que havia visto. Desenhar a efígie de seu pai havia sido um processo longo e doloroso. Sua mãe havia encomendado a pedra e esperou meses para que fosse trazida do Norte da costa. Depois veio outra longa espera para encontrar o melhor escultor, que foi trazido de Nottingham para começar a trabalhar no monólito que cobriria a efígie na igreja. Cecily tinha sido poupada da maior parte do processo, mas a mãe pediu ajuda na escolha do projeto final. Contudo, foi difícil para Cecily encarar a tarefa. Ela reagira como uma criança em vez de uma mulher adulta, e correu para o quarto para enterrar a cabeça no travesseiro. Ainda lembrava de como sua mãe havia ficado brava, desapontada, e a fulminara com o olhar. Você foi criada para ser uma condessa que não se acovarda perante a dor, esquecendo-se do dever. Você não merece o título que um dia será seu. Agora Cecily reconhecia que havia sido egoísta e infantil, esperando que a mãe a consolasse, sem perceber que a dor de uma esposa que perdera o marido era muito mais profunda. Seguindo a obrigação, ela acompanhou a mãe, avaliando os projetos, fechando os olhos para algo que não queria encarar. Ao lado do túmulo do pai, como se já estivesse esperando, havia outra pessoa: a mãe. Mas quando Cecily começou a chorar de novo, sua mãe dispensou a ajuda e terminou o trabalho sozinha. – Minha mãe já não escolheu tudo? – Para seu pai, sim – respondeu Peter. – Ela sabia como seria a efígie dela, mas preciso que a senhorita aprove. – Faz tempo que não vejo os desenhos. – Na verdade, ela nunca os tinha visto de fato, nem quando os guardara, por isso não se lembrava de nada. – Eu o aviso antes de voltar a Dover. Cecily ignorou o olhar confuso de Peter antes de sair. Onde estariam os desenhos? Será que os tinha trazido a Windsor? Bem, cedo ou tarde ela teria de procurá-los e se forçar a tomar uma decisão… mas ainda não estava pronta para a tarefa naquele dia. ENFIM CHEGAVA a noite de Natal, quase esquecida em meio aos festejos na corte. Em vez de jogarem dados, ou se divertirem com as cambalhotas do bobo, o grupo sombrio dos membros da corte se dirigiu à capela para assistir à Missa dos Anjos.


Marc disfarçou um bocejo. Ele era tão religioso quanto a maioria. Sabia que a vontade de Deus era suprema e que ao homem só restava rezar por boas venturas e procurar pecar o menos possível. Conhecia também homens que tinham visto a mão de Deus diante de seus olhos. Alguns acreditavam que tinha sido Ele a enviar a tempestade de granizo que caíra sobre a Inglaterra na Segunda-Feira Negra. Cecily havia dito que o pai morrera nessa época. Marc imaginou se ele teria visto e o que tinha achado. Para Marc, boa parte do que tinha visto na vida e na guerra parecia mais obra do diabo do que de Deus, mas não cabia a ele julgar. Ele se limitaria a observar os rituais e ouvir a opinião de homens mais sábios a respeito. Mas estava tudo diferente naquela noite. Ele estava sob um céu desconhecido, abatido por um vento tão frio que chegou a temer transformar-se em gelo. De onde estava via cada uma das estrelas de Deus brilhando no céu escuro, observando-as como os anjos deviam ter observado os pastores. Ele se mexeu desconfortável, imaginando o que os seres celestiais haviam visto. Você devia agradecer a Deus, Enguerrand o tinha aconselhado. Um beijo. Agora dois. E ele queria mais. O desejo era tamanho que tinha sido melhor vê-la apenas de longe desde então. Enguerrand passeava pelos jogos da corte, dançava no ritmo, sabendo bem a hora de parar. Mas Marc não gostava de jogos. Ele era um guerreiro que acreditava que a vitória significava a vida, e a derrota, a morte, ou algo pior. Ao entrarem na capela dedicada ao santo padroeiro da Inglaterra, as conversas silenciaram. Marc não tinha visto Cecily durante o dia inteiro e naquele momento ela estava ao lado de Isabella como de costume. Enguerrand percebeu para onde o amigo olhava. Nenhum dos dois pensava em Deus. Quando os cânticos da missa começaram, Marc reconheceu as palavras em latim que ouvira durante a vida inteira; continuavam incompreensíveis, mesmo ditas com sotaque. De onde estava, ele viu Cecily com a cabeça baixa e percebeu que ela tremia, mordiscando os lábios e em seguida enxugando o rosto com as costas da mão. Ela estava chorando. Marc sentiu um aperto involuntário no coração. Será que ela era tão pura e boa que se emocionava ao ouvir o relato da chegada de Cristo ao mundo? Ou as lágrimas tinham outro motivo? Memórias. Perdas. Você não demonstra nada, dissera a ela depois da caçada como se tivesse acusando-a. Mas na noite passada, ele havia visto um laivo de dor através dos olhos dela e compreendeu sua impassibilidade. Ela havia perdido o pai e pouco depois a mãe. Até mesmo um guerreiro experiente choraria. Ele tinha perdido o pai há tanto tempo que já não se lembrava mais do rosto dele, e da mãe não tinha recordação nenhuma. Além disso, ele havia perdido companheiros de armas em rebeliões contra camponeses ou contra les maudits. Perdas são inevitáveis e não têm fim. Marc havia ficado mais rígido com o tempo, mas Cecily continuava com um bom coração. As feridas eram recentes, mas, segundo dissera, ela havia sido protegida de muita coisa. Atrás da aparência empertigada de uma nobre e do sorriso forçado, ela também sofria, chorava e enlutava. E sem os pais ela havia se tornado tão solitária quanto ele. Depois da missa, eles se prepararam para enfrentar a noite gelada que poderia até congelar as lágrimas de Cecily. – Venha conosco – Enguerrand sussurrou ao ouvido dele. – Vamos participar da primeira refeição do dia.


O estômago de Marc estava roncando. Ele não havia comido ou bebido nada e ainda faltavam horas para a ceia de Natal. – Eu não sabia que haveria um banquete real. – Trata-se de uma festa particular com Isabella, Cecily e poucos outros – explicou Enguerrand, esboçando um sorriso. O convite despertou outro tipo de fome. Enquanto as demais pessoas voltavam aos aposentos, Enguerrand conduziu Marc por uma escadaria que levava a uma das alas reais recém-terminadas e entrou num pequeno e luxuoso cômodo pintado como se fosse um jardim de flores. A princesa Isabella e uma dúzia de homens e mulheres já estavam ali. Era de fato uma reunião bem íntima, onde as formalidades da corte tinham sido postas de lado. Enguerrand saiu na direção da princesa. Cecily viu Marc e arregalou os olhos, surpresa. – Eu não esperava vê-lo aqui – disse ela, quando ele se postou a seu lado. A voz dela estava mais amena do que de costume, mas as lágrimas já haviam secado. Marc ficou sem saber o que fazer, ou dizer, pois conhecia muito pouco as mulheres e suas necessidades. Como não tinha mãe, ou irmã, ele fora morar no castelo dos De Coucy, uma casa cheia de homens que só falavam em guerra. Será que ela estava feliz em vê-lo? Ou não? O que sinto, ou deixo de sentir, não é de domínio público. Ele podia dizer que também não a esperava ver, ou talvez perguntar alguma coisa sem muita importância, mas nada relacionado ao coração. – Você sempre passa as Festas na corte? – Ao fazer a pergunta, Marc percebeu que até então não a imaginava fora daquele ambiente sob os cuidados do rei. Ela suspirou, aparentemente aliviada com a mudança de assunto. – Bem, nós… – Ela gaguejou. Mais uma vez Marc a havia lembrado de momentos ruins sem querer. Cecily balançou a cabeça a fim de afastar a dor da perda. – É costume passar o inverno inteiro na corte. A corte era bem longe do Castelo de Losford, em Dover. Bem longe da proteção impenetrável da ilha. Era improvável haver invasões quando sopravam os ventos gelados do inverno. O conde de Losford podia ser poupado de sua eterna vigilância de seu castelo durante o Natal. Por sua vez, Marc, se tivesse um lar, não o deixaria em nenhuma época do ano. Toda a solenidade da missa desapareceu quando o grupo se sentou à grande mesa. Logo as travessas de comida começavam a chegar. Havia peixe assado, grelhado, cozido e temperado. Aquele era o alimento mais comum antes de um dia de festas. Logo estavam todos conversando e rindo, mas Cecily e Marc, sentados lado a lado, permaneciam em silêncio. Marc achava que provavelmente ninguém olharia na direção dos dois. Mesmo se estivessem trocando palavras, ninguém prestaria a atenção. – Você cresceu perto do mar? – indagou ele, rompendo o silêncio. Um pajem que levava uma tocha passou por eles e Marc viu que Cecily sorria ao se lembrar de casa. – Eu via o mar todo o dia. – O Rio Oise não é tão grand. – Que coisa boba de se dizer. Bem, ele não era bom em jogar conversa fora. Ainda bem que Cecily estava entretida em suas lembranças de casa para notar sua falta de habilidade.


– O nascer do sol lá é muito lindo. Nem sempre é possível ver, mas quando o tempo está claro, parece que o sol surge de dentro do mar. Marc resmungou sozinho. Ora, o nascer do sol não era para ser compartilhado, e sim para dormir. – Só levanto com o raiar do dia para ir à guerra. Cecily sorriu, percebendo o desconforto dele. – Você não gosta de levantar cedo? – Um guerreiro aprende a dormir quando é possível. Mais uma vez, ele se arrependeu do que havia dito, por receio de que ela se lembrasse do pai de novo. Por sorte, o sorriso dela provou o contrário. – O nascer do sol visto das ameias do castelo é lindo. Você devia ver um dia. – Eu gostaria muito. Cecily corou e virou o rosto. Marc fez o mesmo. Na verdade, ela estava perplexa consigo mesmo por ter convidado um inimigo para visitar sua casa. Como podia ter sido tão relapsa? Marc tinha a desconfortável habilidade de fazê-la se esquecer do que não deveria. Ela jamais devia ter feito um convite para que ele visitasse o castelo que guardava a costa britânica. Marc perscrutaria o lugar com olho de guerreiro e identificaria as fraquezas do lugar e segredos que nem ela própria sabia. Enquanto o rei não escolhesse seu futuro marido, ela era a responsável pela proteção do Castelo de Losford. As perguntas de De Marcel, no entanto, eram sempre sobre ela e não sobre o castelo, e tampouco sobre a condessa. Na realidade, ela quisera apenas compartilhar a alegria de se ter uma casa. Havia sido um erro, e precisava mudar o assunto logo. – Por que falar sobre Dover? – perguntou ela, olhando para uma travessa. – Você está no castelo mais bonito do mundo cristão. Marc olhou das paredes até o teto. – Vejo que seu rei constrói a força com muita beleza. Será que Marc havia feito alguém elogio a alguém sobre a ilha? Bem, ela não tinha ouvido. Talvez o clima das Festas tivesse suavizado ambos. – Você parece surpreso. – Ele destruiu apenas terras francesas. – Destruição é uma palavra estranha para descrever uma batalha. – Não estou falando de guerra. – Então, qual é o assunto? Apesar da pergunta direta, Marc sabia que ela não gostaria de ouvir sua opinião. Mas era melhor que ela continuasse vendo-o como um inimigo do que como um amigo. Antes de responder, ele a estudou enquanto escolhia bem as palavras. – Os ingleses destruíram terras francesas não só para lutar, mas também para arrasar cidades e campos para que nenhum homem ou animal sobrevivesse. Cecily franziu o cenho. Ouvira poucas histórias da guerra de seu pai, mas uma devastação assim tão perversa não parecia ato de um cavaleiro cristão. – Meu pai jamais cometeria tamanha violência. Marc não entendeu a surpresa dela num primeiro momento e sentiu pena. – Ah, minha pobre condessa. Você não faz ideia do que acontece além das muralhas de um castelo. Sempre fui muito protegida.


A cada dia passado, Cecily se convencia que não tinha consciência de tudo o que precisava saber. Será que tinha agido como criança por muito tempo, esquivando-se das obrigações? Teria sido este o motivo que seus pais a haviam afastado do árduo trabalho de se cuidar de uma casa? Ela sempre acreditara que haveria tempo para tanto. Amanhã. Semana que vem. Ano que vem. Mesmo assim, não podia revelar suas fraquezas diante daquele homem. E menos ainda algum detalhe sobre o castelo. – Acho que é você que não sabe como os ingleses são bravos e nobres. Cecily achou que o havia provocado o suficiente para iniciar uma discussão. Mas Marc se limitou a suspirar. – Nem sempre os franceses agem da maneira mais correta. O pesar contido naquelas palavras a calou. A refeição terminou. Os convidados reverenciaram a princesa e se retiraram. Ela e Marc foram os últimos a sair, com exceção de De Coucy. Cecily parou à porta, aguardando-o, mas ele gritou do outro lado da sala. – Mon ami! Vamos receber o rei Jean no dia de Santo Estêvão, oui? Marc concordou e Cecily rangeu os dentes, recuperando a raiva de sempre. O rei da França voltaria à Inglaterra e seria recebido com festa, enquanto o conde de Losford jazia numa tumba fria. Cecily teria de se apegar àquela raiva para não se render a Marc de Marcel. Marc trocou algumas palavras com o amigo, e em seguida acompanhou Cecily pelos labirintos de corredores e escadas. Ela relanceou o olhar por cima dos ombros e viu que De Coucy não os seguia. – Ele ficou sozinho com a princesa. O lorde é confiável? – Bien sûr – respondeu Marc num tom indignado. Cecily corou ao se dar conta de que havia exposto uma fraqueza de Isabella. – Mas você mesmo acabou de admitir que os franceses nem sempre respeitavam a honra. – De Coucy é um homem honrado. – Então deve ser o único de seu país. – Não, nosso rei também é. Era a primeira vez que Cecily o ouvia falar com tamanha reverência. – Seu rei pode ser honrado, mas está voltando porque o filho fugiu. As linhas de expressão no rosto de Marc se aprofundaram. – O Duque d’Anjou envergonhou o pai quando fugiu para o solo francês. Nem sempre um homem se orgulha de seu filho. Ou da filha. Se bem que ela havia tentado… – Ainda assim – continuou Marc –, o rei se sacrificou para fazer o que é certo. São poucos os homens que admiro tanto. – Nunca o vi reverenciar alguém como o seu rei – disse ela, surpresa. – Você devia tê-lo visto lutando em Poitiers. “A Batalha de Poitiers havia acontecido há muito tempo. A Inglaterra saiu vitoriosa. O pai de Cecily havia voltado para casa todo sorrisos e com resgates recebidos. Na época, todos acharam que a paz finalmente se estabelecera para sempre. – O que houve? – Seu pai não contou?


Cecily balançou a cabeça negativamente. – Um pai não costuma dividir histórias de guerra com a filha de 12 anos. – Além de outras coisas que seus pais tinham evitado que ela soubesse. – Então, eu conto. É uma história que todos deviam saber. Eles atravessaram correndo a ala superior tremendo de frio e entraram na torre. Marc parou ao pé da escadaria, pois não poderia contar a história andando. Os fatos mereciam a atenção total de ambos. – Sente-se aqui – pediu ele. A escadaria estava vazia e iluminada por apenas uma tocha presa à parede. Os outros haviam voltado correndo para a cama, sabendo que teriam de levantar de novo em poucas horas para assistir à próxima missa. Cecily se sentou na pedra fria e aguardou. – Éramos um batalhão grande de guerreiros. Todos acharam que seria uma batalha fácil, mas atacamos uma base muito bem defendida. – Eles tinham um comandante melhor. Toda a Inglaterra sabia que, fora o rei, seu filho Eduardo era o melhor guerreiro do mundo cristão. Marc franziu o cenho, mas inclinou a cabeça ligeiramente. Será que havia concordado com o comentário? – Pelo menos ele foi mais corajoso. Os comandantes franceses covardes recuaram e deixaram o rei desprotegido. Cecily já havia acusado os franceses de muitos pecados, mas não podia imaginar um comportamento desses de um cavaleiro. – Você tem certeza? Estava lá? Marc respondeu que sim com um sinal de cabeça e suspirou. – Eu tinha acabado de me tornar cavaleiro e ainda era bravo e tolo. Mas vi quando os homens que protegiam o rei começaram a correr. Tentei alcançá-los, mas eles estavam longe demais e havia muito mais soldados les maudits. Não consegui alcançá-los… Marc abaixou a cabeça, evitando que ela visse seus olhos, e clareou a garganta antes de prosseguir: – O rei continuou lutando depois que seus homens o haviam deserdado, sem esperança nenhuma de vencer, acompanhado apenas por seu filho, o pequeno Philippe, que mal tinha idade para ser um escudeiro e não fugiu como os outros. – Ele é digno de admiração – elogiou ela com certa má vontade. – O rei foi cercado pelo inimigo como se fosse um guerreiro qualquer e não um soberano. “Onde está meu primo?”, ele indagou. “Onde está o príncipe de Gales?”. Um rei tinha de se render a alguém com o mesmo título de nobreza, digno de aceitar suas luvas. Mesmo assim, les maudits estavam mais interessados em prendê-lo para poder exigir o resgate. Cecily pensou em dizer que ele estava mentindo. Nenhum cavaleiro inglês teria se portado daquela forma. Mas Marc era tão enfático em seu discursos quanto era com a espada. – O que aconteceu depois? – No final, um cavaleiro francês, exilado e que lutava pelos ingleses, se apresentou e prometeu que o levaria à presença do príncipe. Só então, o rei se rendeu com toda a honra e entregou suas luvas. A imagem que Cecily vislumbrou era inquietante. O valente rei francês e seu filho enfrentando os ingleses, que avançavam sobre eles como cães famintos procurando restos de comida. Não tinha sido à toa que seu pai havia escondido as verdades sobre a guerra. – Agora entendo a razão de sua admiração – disse ela como se estivesse se desculpando.


Quando os olhares se cruzaram, ela enxergou através do escudo que ele mantinha para se proteger do resto do mundo e viu um homem que já havia se desapontado muito na vida. Nem sempre os franceses agem da maneira mais correta. De repente, Cecily se envergonhou por ter achado que ninguém mais havia sofrido tanto quanto ela. – Acho que eu estava cega. Marc sorriu com tristeza e não com a satisfação de vitória que ela esperava. – Acabei de provar isso, n’est-ce pas? Talvez ele tivesse conseguido mesmo, ou então ela havia sido protegida da verdade do mundo que podia ser bem decepcionante. Claro que ela não podia sequer imaginar o caos dominante entre a vida e a morte. Será que ela também não tinha enxergado verdades sobre seu pai? Ninguém nunca havia contado as condições da morte do pai dela. Por quê?


Capítulo 12

E ASSIM Cecily atravessou o dia de Natal. Houve uma missa ao amanhecer, outra ao meio-dia e finalmente foi servida a primeira refeição num clima da melhor festa do ano, repleta de risos e memórias. À mesa estavam as maçãs assadas temperadas que a mãe dela gostava tanto. Os menestréis entoaram a canção da morte do javali que abria a festa. O pai dela costumava cantar com o rei na única apresentação do ano. Cecily sorria e meneava a cabeça em resposta aos risos ao redor, mas à medida que as canções continuavam e as velas se consumiam, a tristeza pesou em seu peito. Esse era o primeiro Natal que ela passava totalmente sozinha e com a cabeça cheia de dúvidas. Odiava Marc por isso. Já era difícil o suficiente saber se estava preparada para dirigir o Castelo de Losford. Até então se mantinha com a cabeça erguida e rodeada por aqueles que a conheciam desde a infância e a protegiam das dúvidas com pesar. Ninguém a questionara ou a forçara a fazer alguma coisa contra a vontade. No entanto, aquele homem, um cavaleiro inimigo, que não chegava a ser um nobre, tinha colocado várias dúvidas em sua mente. Pela primeira vez ela percebeu que o mundo estava lotado de atos covardes, cruéis e ignóbeis. A guerra era bem diferente do que haviam contado a ela. Será que seus pais queriam protegê-la até que tivesse idade suficiente para saber? Ou julgaram-na incapaz de enfrentar a verdade? Será que ela estará pronta algum dia? Ela não tinha visto muito Marc naquele dia. A família real, vestida em cores vivas e combinadas, desejou e recebeu felicitações pelo Natal; não houve nenhum momento com a intimidade da reunião do dia anterior. Cecily não teve nenhuma oportunidade de ficar sozinha com Marc. Mas as dúvidas persistiam em persegui-la. Durante todo o período de luto pelo pai, ela nunca soube e nem questionou como ele havia morrido. Talvez nem quisesse saber na época, bem diferente de


agora. Gilbert teria de lhe contar. Quando a noite chegou, ela chamou Gilbert para conversar e ele a seguiu por um dos corredores. Ele já havia bebido o bastante para estar corado e sorridente, mas mudou de expressão ao perceber o quanto Cecily estava séria. – O que houve de errado? – Soube ontem como foi a Batalha de Poitiers. Como nós… como o rei francês foi preso, violando a honra que devíamos ter mostrado. Gilbert olhou para o lado. O silêncio e o semblante triste confirmaram as desconfianças dela. – O que houve com meu pai? Ele foi… ele fez…? – Não – Gilbert respondeu antes que ela completasse a pergunta. – Seu pai ficou perto do príncipe. Ele era um homem honrado, Cecily. Nunca duvide disso. Foi um alívio saber que o pai não tinha feito parte daquele incidente. O homem que mantinha em seu coração era verdadeiro. Mas ainda havia questões não respondidas: – Conte-me sobre a outra batalha. – Qual delas? – perguntou ele, piscando rapidamente. – A batalha em que meu pai morreu. Gilbert ficou confuso e triste, revivendo cenas na mente que ela não podia ver. – Seu pai foi corajoso – disse ele por fim, como se não tivesse mais nada a dizer, ou se isso fosse tudo que ela precisava saber. E por um bom tempo, foi mesmo o suficiente. – Sei que ele foi um bravo – disse ela, procurando parecer convicta. – Quero saber o que aconteceu. Bravura, bem diferente da covardia que Marc havia falado. E a maneira como ele descrevera a vitória inglesa sobre os franceses… será que os franceses haviam sido cruéis com seu pai? – Ele sofreu? – Se ele sofreu? – indagou ele, confuso. Cecily procurou discernir se o espanto dele era por causa do excesso de vinho ou se aquela não era uma questão que um guerreiro levaria em consideração. – Ele morreu rápido, ou…? – Ela mal conseguia falar direito. Era difícil imaginar o pai caído ferido e esquecido por horas. A morte da mãe pelo menos tinha sido rápida, apesar de inesperada. Bem, pelo menos era essa a história que ela ouvira. – Deus foi misericordioso? Eram perguntas que ela nunca havia feito até Marc apresentá-la à realidade de uma guerra. O conflito havia acontecido do outro lado do Canal, longe de tudo, tanto a vitória quanto a derrota haviam sido suavizadas pela distância. Você não faz ideia do que acontece além das muralhas de um castelo… – Não foi uma batalha. – Como? – Ele não morreu numa batalha. – Não entendo… – Ninguém tinha dito isso a ela. Durante todo o tempo ela havia culpado os franceses pela morte de seu pai. – Ele morreu de alguma doença? O rosto de Gilbert expressava a agonia que devia ter sido o momento. – Foi a tempestade.


– O quê? – A tempestade da Segunda-Feira Negra. Até a descrição era fria. Ela já ouvira falar na mudança súbita do tempo naquele dia, ocorrida com a mesma rapidez que as pragas tinham varrido o Egito. E que o rei acreditou que Deus queria que a paz com a França se estabelecesse. Mas ninguém nunca tinha dito a ela que seu pai havia morrido por causa da tempestade. O que mais estariam escondendo? – Conte-me tudo – ela exigiu num tom severo, sem dar chances de ele recusar. Gilbert suspirou. – Foi um inverno terrível. Os franceses se acovardaram atrás das muralhas de Paris, recusando-se a nos enfrentar, então o rei decidiu levar seu exército para um território amigável no verão. A Páscoa já tinha passado. Era primavera quando começamos a marchar, mas o clima ainda era de verão, quente e ensolarado. Os ânimos estavam melhores, podíamos ver os pináculos de Chartres não muito longe e então… A alegria e a esperança que ele descrevera se dispersara. Até aí ela sabia. E, com as mãos fechadas em punhos, ela segurou a respiração para ouvir o restante. – Então o céu escureceu e esfriou. Da mesma maneira inesperada que Deus partiu o Mar Vermelho, o granizo caiu do céu. As pedras de gelo, grandes como ovos e duras como rochas, caíram sobre nossas cabeças. Muitos dos homens, os arqueiros principalmente, que não vestiam armaduras, mas casacos de couro, foram atingidos. Uma pedra atrás da outra… O relato foi suficiente para que Cecily imaginasse o caos que se instalou. Os homens morreram apedrejados por granizo caído do céu. – Mas meu pai vestia uma armadura. Ele estava protegido – disse ela, embora imaginasse o final da história. Sabia que ele havia… – Ele tinha tirado o elmo. Quando eu o encontrei, havia fendas na cota de malha que o desnudaram… Ela fechou os olhos procurando evitar a visão, mas Gilbert contava suas memórias. – Ele estava vivo quando você o encontrou? – perguntou ela num sussurro. Gilbert meneou a cabeça em silêncio. – Por quanto tempo? – Ela o segurou no braço e sacudiu. – Por quanto tempo ele viveu? A expressão de Gilbert foi mais enfática do que palavras. – Ele só morreu no dia seguinte. A notícia abalou Cecily, que agora teria que arcar com o fardo do conhecimento. O conde de Losford tinha sofrido antes de morrer. E ferido tivera de esperar chegar sua hora. Ele não havia morrido heroicamente, lutando por seu rei, mas por uma chuva de granizo, como se Deus estivesse se vingando. Ou, pior, não estivesse cuidando dos seus. A mãe de Cecily tivera que arcar com o peso sozinha porque a filha não podia parar de chorar para olhar os desenhos da efígie, por ser fraca e não merecedora do título que ostentava. Você não faz ideia… Marc tinha razão. Suas noções eram idealistas e preconcebidas, mas nenhum conhecimento da vida real e da falta de organização na qual seu amado pai havia vivido. Por ser protegida e muito cuidada, ela achava que a vida e a morte se desenrolavam igualmente para todos. As mortes de seu pai e de sua mãe provaram que não existe nada preestabelecido. Por ter ficado


totalmente desequilibrada e perdida, ela havia concentrado toda sua fúria sobre os franceses, com a falsa noção que eles deviam pagar por sua dor; como se assim o mundo voltasse a ser justo e organizado de novo. E agora era preciso enfrentar a verdade nua e crua. Tudo que ela acreditara era falso, ou ao menos incompleto. Sua mente estava confusa numa miscelânea entre o bom, o mal, o certo e o errado. Como devia viver dali em diante? Como desempenharia suas funções e as expectativas de seus pais? Como saberia o que fazer? – Ele estava em paz no final? Alguém providenciou um padre para a extrema-unção? A morte da mãe dela também havia sido súbita, mas pelo menos havia um padre presente para prover o conforto da igreja. Mas Cecily não tinha pensado em nada disso quando da morte do pai. Na verdade, ela nem considerava a hipótese de ele morrer na guerra. Como Deus podia permitir que seus guerreiros morressem? – Sim. Ele confessou e foi absolvido – disse Gilbert. A resposta a confortou um pouco. – E quanto aos outros? Quantos morreram? – indagou ela, lembrando-se dos arqueiros que não vestiam armaduras. – Muitos homens e cavalos perderam a vida, mas seu pai foi o único nobre a morrer. Cecily sentiu-se solidária às várias filhas, esposas e mães daqueles homens desconhecidos que portavam arcos longos para proteger terras inglesas. Marc tinha razão quando dissera que ela não sabia nada sobre a guerra e muito menos daqueles que seguiam a pé, e não a cavalo. Agora ela assumia que sua arrogância estava baseada em conceitos falsos, e que culpara erroneamente os franceses pela morte de seu pai. Ela devia pedir desculpas a Marc. Pedir desculpas a um francês… sim, o mundo estava de ponta-cabeça. PARA MARC, as festividades do Natal pareciam infindáveis. Já havia anoitecido e ninguém havia se recolhido para dormir. Sem poder falar com Cecily, o tempo parecia se arrastar. Enguerrand também não estava muito à vontade. Isabella estava presa às responsabilidades reais, mas, em vez de cantar, dançar ou jogar charme aos demais, ele estava sentado, olhando para a princesa de longe. Marc nunca o tinha visto daquele jeito. Ele é confiável? O que teria acontecido depois que ele e Cecily tinham saído na noite anterior? Marc conhecia Enguerrand melhor do que qualquer outra pessoa. Sabia quando ele assumia a liderança, quando estava cansado, faminto, bravo ou contido. Mesmo assim, Marc não soube identificar a expressão do rosto do amigo ao olhar para a princesa. Seria nostalgia, ou alegria? Enguerrand estava diferente. E isso era perigoso. Diferente de Marc, De Coucy era um líder e não um solitário, um homem tão habilidoso com a espada quanto na conversa que conseguia ganhar a confiança de qualquer um. Das mulheres também. Mas das mulheres em geral, e não apenas de uma em particular. O jeito que ele agia com Isabella era diferente. Seria difícil que outras pessoas notassem, pois ele não deixava de ser gentil, conversando com todos. Mas ele sempre voltava para o lado de Isabella. E Marc sabia por quê. Enguerrand já havia assegurado que não tinha nenhum envolvimento com a princesa, que a única finalidade do flerte era rever as terras que pertenciam à família dele, além de tirá-los da rotina do cativeiro. Tudo não devia passar de um ardil calculado.


Entretanto, Marc observava o amigo e concluíra que não era só isso. Não mais. Toda vez que olhava, Enguerrand estava melancólico e com o olhar fixo na princesa. Marc olhou na direção dela tentando adivinhar o que o amigo via. Isabella estava linda e refinada, mas pálida. Com o tempo, era provável que ela ficasse rechonchuda como a mãe. Ela não se movia com a mesma graciosidade de Cecily. Ela ria demais, diferente de… – Venha – chamou Cecily, pousando a mão no ombro dele. – Preciso falar com você a sós. Marc pensou como justificaria sua saída para Enguerrand, mas acabou concluindo que sua ausência não seria notada. Assim, ele se levantou e seguiu Cecily pelo corredor. – Para onde estamos indo? – Eu divido uma sala com duas damas de companhia de Isabella. Elas ainda estão no salão. Ele não discutiu e os dois desceram em silêncio pelos corredores, através da ala fria, e depois subiram a imensa escadaria que levava aos aposentos da Torre Redonda e chegaram a uma sala distante do quarto que ele dividia com De Coucy. Cecily esperou Marc entrar e fechou a porta. O quarto rescendia a água de rosas. Eles estavam sozinhos, o que permitia várias possibilidades, mas o tom de voz dela excluiu a maioria: – Preciso pedir desculpas aos franceses, mas em especial a você, a quem mais ofendi. – Por quê? – Marc ficou boquiaberto, surpreso. – Você estava certo, não foi um francês que matou meu pai – disse ela, insegura. – Ele ficou doente? Era uma possibilidade, embora muitos não admitiam. – Ele foi atingido pela chuva de granizo. Deus o puniu por algum pecado que não imagino qual seja. A postura de Cecily, o queixo altivo e o olhar determinado começaram a fraquejar. Os lábios dela começaram a tremer antecipando as lágrimas. Ah, não se tratava apenas de pesar ou dor, mas também da descoberta de que guerreiros galantes só existiam na imaginação dela. Agora ela sabia que a crueldade dos homens, do mundo ou até mesmo Deus podia alterar a ordem natural das coisas. A justiça do mundo não passava de uma ilusão e a recompensa de alguém que sempre cumpriu seus deveres podia ser uma morte injusta. Marc já sabia disso, assim como todos os homens que iam para a guerra. Até as mulheres francesas tinham consciência dessa dura realidade porque havia batalhas muito próximas, por todos os lados. Castelos eram incendiados. Bens eram roubados. Mulheres desonradas. Entretanto, Cecily, assim como muitos que ali viviam, tinham sido poupados até com a ciência do que acontecia do lado de fora dos portões dos castelos. O campo de guerra ficava a quilômetros de distância, longe da visão. A guerra pouco ameaçara a fortaleza de Losford. Cecily vivera ali, protegida e cercada por guardas, muralhas, roupas bonitas e mimada pela família. Ela só tivera noção do mundo externo quando perdeu os pais. Marc sentiu um misto de sentimentos, arrependimento por ter sido o responsável a abrir os olhos dela e com inveja de ela ter sido poupada por tanto tempo. Enquanto ele enfrentava os percalços, ela só via a beleza. Quem poderia julgar qual dos dois tivera mais sorte? Seria a dama protegida, ou o guerreiro sem ilusões? – A guerra é cruel – disse ele, puxando-a para mais perto e sabendo que palavras não a confortariam. – Fui uma tola ao culpar você – disse ela, meneando a cabeça. – Afinal fomos nós que atravessamos o Canal. A admissão foi tão grandiosa que ele ficou sem saber o que dizer. No entanto, os franceses já tinham tentado invadir a ilha de Cecily antes e talvez voltassem a atacar


novamente. Os homens estavam sempre procurando guerra, mas Marc só saberia responder por ele. Quando sentia raiva, queria bater em alguma coisa, e seria melhor se fosse num campo de batalha. – Saber como seu pai morreu ajudou em alguma coisa? Às vezes o conhecimento provia uma sensação de finalização. – Não – ela respondeu e o encarou com um olhar vazio. Marc tinha ouvido falar naquele dia fatídico. Havia visto o que restara depois da chuva, as carroças abandonadas no campo ainda presas aos cavalos, que tinham morrido congelados em pé. Seria impossível que uma filha dedicada achasse conforto diante daquela visão. – Você não podia sequer ter imaginado a verdade de uma guerra. Não era uma pergunta, mas a constatação de um fato. Algo em que ela podia ser ridicularizada por ter sido tão ingênua. – É tão óbvio, não? O máximo que imaginei foi um torneio de grandes proporções. Meu pai como líder, os estandartes tremulando com o vento… Na posição dela, era mesmo óbvio que pensasse que qualquer francês devia saber que um escudo vermelho decorado com três losangos pertencia a Losford. Mas, num campo de batalha, era tudo muito diferente. – E descobrir que ele não faleceu num combate… – A voz dela estava trêmula – … mas morreu assim. Como posso suportar isso? A agonia dela era verdadeira, mas ele não estava solidário. Outras pessoas haviam sofrido e morrido, mas ela sentia apenas por sua perda, e não chorava pelos demais. Marc começou a andar de um lado para o outro da sala, incapaz de ficar parado. – Você age como se a vida pudesse fazer uma pausa e o mundo parasse aguardando sua recuperação. Você não é a única a perder uma pessoa amada. A morte está em todo lugar, acontece todo dia. – Marc não estava pensando apenas na guerra, mas nos outros dias, quando muitos tinham perdido a vida com a praga nas crianças, nos velhos, com alagamentos e toda sorte de ameaças que pairavam sobre todos. – Todo mundo já perdeu alguém. – Você também? A pergunta o atingiu como um soco. Ele chegou a abrir a boca, mas não respondeu. Em vez disso, notou que Cecily tinha mudado o semblante. Parecia que agora ela o via como alguém que também sofrera e tivera suas próprias paixões. Ele queria que ela visse o mundo e não ele. – Sei que você perdeu sua mãe e pai. Alguém mais? – perguntou ela, bem baixinho. E pensar que ele a tinha julgado egoísta por só pensar na própria dor; agora, era ele que relutava a compartilhar a dor. Por onde começaria? Até onde lembrava? – Minha mãe, meu pai e um irmão recém-nascido. Perdi mais irmãos de armas que posso contar. – Marc respirou fundo, criando coragem para continuar: – E uma mulher. Cecily ficou visivelmente chocada. – Você não está de luto por ela? – Ela indagou como se as outras pessoas não tivessem tanta importância. – Claro que sim. – Algumas vezes em que visitara a igreja, Marc se lembrava daquela mulher, viva, e do bebê e os imaginava no céu. Será que ele tinha sido bom o suficiente em vida para unir-se a eles? Talvez fosse melhor não saber. – Mas minha vida não terminou com a morte deles. – Acho que eu não teria a mesma força que você para sobreviver a perda de tantas pessoas queridas. Marc hesitou, mas tocou-a no braço. Ela se encolheu, e o fitou.


– Como ela era? Fazia tanto tempo… ele se esforçou para lembrar. Ainda era muito jovem, não havia se tornado um guerreiro, mas estava pronto para ir ao campo de batalha como escudeiro. Cheio de si e confiante em sua masculinidade, tinha certeza de que era merecedor de honra e glória. Tão ingênuo quanto Cecily. E de repente, ele se lembrou da mulher. – Ela era loura, de olhos azuis. – Adorável e rechonchuda. Aqueles olhos refletiam como espelho tudo o que ele queria ver em si mesmo. Cecily interrompeu o breve silêncio: – Vocês se casaram? Marc corou, envergonhado de confessar sua fraqueza. A moça tinha se oferecido e ele havia aceitado. Ora, que outro guerreiro faria diferente? A Igreja estabelecia normas, havia a ética da cavalaria, mas a realidade era outra. A diferença nunca era mencionada, ou surpreendia, ou valia a pena notar. Ele deu uma tossidela antes de responder: – Ela não podia se casar comigo. E eu fui para a guerra. Mesmo assim, depois de uma noite ou duas com ela, ele teve esperanças de que ela o aguardasse voltar como um cavaleiro. Ele chegou a imaginar vê-la passando na rua. Talvez pudesse torná-la sua amante. Na época, por ser jovem e tolo demais, ele não soube avaliar os próprios sentimentos. Talvez Cecily entendesse nas entrelinhas, mas ele acabou confessando o que nunca verbalizara antes: – Houve uma época em que eu pensava nela a todo instante. Durante toda a campanha, cavalgando pelo país, a imagem dela não lhe saía da mente. Ele imaginava que ela havia se tornado uma dama linda, culta, alguém por quem lutar. Sonhava também que ela se embelezava a cada dia e o amava cada vez mais. No entanto, quando as batalhas terminaram com a vitória dos ingleses, quando muitos de seus conterrâneos provaram ser covardes, ele voltou para casa na esperança de encontrar a mulher que tinha crescido mais na sua imaginação do que quando a tivera nos braços. Ele queria conforto e enxergar-se através dos olhos dela como o homem que almejava ser. Sua maior esperança era que o amor e a fé dela pudessem apagar tudo o que ele havia visto na guerra. – Você a encontrou de novo? A voz de Cecily o trouxe de volta do devaneio. – Apenas uma vez. Ele não poderia contar mais além disso. Na verdade, quando encontrara a moça de sua juventude vira o quanto tinha se enganado. Ela não era loura de olhos azuis como ele lembrava. E também não o olhava com admiração e nem sabia falar com maneiras gentis. Não. Ela era filha de um moleiro, simples e muito magra. Se antes o desejara, hoje tinha medo só de olhar para ele. Não havia sonhado com ele durante a ausência, mas sim se casado com o açougueiro e estava grávida. Será que ela achou que ele havia morrido? Será que ela havia pensado nele algum dia? Em qualquer das hipóteses, a volta de Marc significava a revelação de uma aventura juvenil. Marc entendeu que o marido dela não sabia de nada. Quando a reviu, ele a estudou por longos minutos antes de reconhecêla e descobrir que a imagem que carregou durante meses era completamente diferente. Foi estarrecedor reconhecer que tinha se enganado por tanto tempo. Cecily também viveu se enganando.


– E você a perdeu – disse Cecily. – Imagino que tenha achado que ela lhe arrancou o coração do peito. Cecily estava imaginando que a moça estivesse morta, sem saber que se tratava apenas de uma mulher que só existiu na mente dele. Mas não deixava de ser verdade, porque para ele, a filha do moleiro estava morta junto com todas as ilusões. – Vocês tiveram um filho? Marc se contraiu. Sim, a mulher do açougueiro estava grávida. Algum tempo depois ele soube que a criança inocente havia morrido. – Sim, mas não era meu. – Marc achou que não podia ficar diante de Cecily sentindo pena de uma mulher que não tinha amado. – Eu achei que a conhecia. Mas o fato é que imaginei uma pessoa que eu gostaria que ela fosse. Cecily devia ter ficado surpresa, ou não ter acreditado. Mas, em vez disso, apenas meneou a cabeça. – Acho que fiz a mesma coisa. Eu enxerguei o que queria ver. Minha visão de mundo era impossível. – Ela suspirou e balançou a cabeça como se estivesse olhando para um bebê inocente. – Dieu est mon droit! Deus está do nosso lado, devemos ser sempre vitoriosos. E mesmo assim as coisas acontecem sem que eu saiba a razão. A voz dela estava pontuada pelo desespero e pela liberdade do conhecimento e Marc finalmente viu o quanto ela era vulnerável por trás do escudo protetor que criara. Essa era a dúvida que ela havia escondido até o momento certo de contar. Ele então percebeu que a via como ela era e a conhecia. Os sentimentos que ela despertava eram tão vulneráveis quanto sua dor. – Cecily, eu gostaria… – disse ele, sussurrando ao ouvido dela. Quando ela o encarou, ele viu o brilho do desejo naqueles olhos verdes. Sorriu, imaginando que nunca havia ficado tão feliz em apenas ver uma pessoa. Talvez sua visão fosse tão limitada quanto a de Cecily, mas ele enxergava apenas as coisas ruins, como se a alegria e a beleza residissem longe de suas fronteiras. Ah, se não tivesse sido tão cego… Agora, da fenda que se abrira entre o horror da guerra e a dor do cativeiro surgia um brilho, um lindo raio de sol. Só então ele tomou consciência de que tudo o que ansiara estava bem diante de seus olhos. Mais uma vez ele deu uma tossidela para clarear a garganta e afastou um cacho do rosto dela. – A vida pode não ser fácil, simples ou justa, mas este momento é só nosso. E ele mal sabia o quanto desejava aquela proximidade. Cecily sorriu e inclinou a cabeça, oferecendo os lábios. MARC A beijou, e mesmo que estivesse esperando, ela se surpreendeu. Mais tarde tentaria se enganar dizendo que o beijo fazia parte do disfarce, mas não havia ninguém ali para testemunhar. Podia também ser um gesto de desculpa pela maneira como o havia tratado, ou talvez ela quisesse conforto para esquecer o que havia descoberto. Mas se recusava a admitir que gostava dele… poucos segundos depois, não pensou em mais nada. Ela se deixou envolver pelos braços dele e embarcou para um mundo silencioso onde só as sensações importavam. Parecia que todo o ódio havia sido consumido pelo fogo da paixão e se transformado num sentimento igualmente forte. E muito mais perigoso. Durante muito tempo ela havia tentado não se envolver, não se abrir e não tocar ninguém. Agora


duvidava se aquela ansiedade era por ele ou seria por qualquer outra pessoa. Não saberia explicar e não tinha mais importância. Será que eles haviam escorregado para o sofá? Os beijos ávidos desciam pelo seu pescoço? As mãos dele estavam trêmulas ao segurar os ombros dela, alternando entre a força e a gentileza ao acariciar sua pele. Seguindo seus instintos ela o enlaçou pelo pescoço, puxando-o para mais perto e aprofundou o beijo, ciente de que podia se perder nas carícias e se esquecer das memórias e dos medos, sendo apenas Cecily e não mais a condessa. Ao se deitarem, ele a cobriu com o peso de seu corpo sem parar de acariciá-la. Eram toques gentis e delicados apesar das mãos cheias de cicatrizes de guerra. Entre beijos e carícias, as respirações tornaramse mais ofegantes e urgentes. Je t’aime. Testas crispando e pernas se enroscaram ansiosas. Os lábios entreabertos, a respiração ofegante, a pele arrepiada, o coração aos saltos e as mãos que buscavam outras mãos. Cecily sentiu os mamilos enrijecerem e se deu conta de que sua pele era varrida pela brisa e pelas mãos dele, embora não se lembrasse de quando havia sido despida. Marc traçou uma linha de beijos rápidos do pescoço dela até os seios, substituindo as mãos pela boca a sugar-lhe um mamilo e outro. Cecily o segurou pela cabeça, direcionando os beijos, enlevada pelo desejo. Seria essa loucura a tradução do amor? Se fosse, só havia uma pessoa capaz de fazê-la se sentir assim, ficar sozinha depois de provar aqueles doces devaneios seria a morte. As perspectivas eram as piores, mas o desejo superava todas as dúvidas e a levou a beijá-lo mais uma vez, mais outra, e outra… Cecily sentiu que seu mundo se limitava ao abraço dele e era mais do que o suficiente. Havia muito que explorar, as maçãs do rosto salientes, os olhos expressivos e até as ondas do cabelo dele. Ela estava embriagada não apenas pelas sensações novas, mas também pelo perfume dele, era o cheiro da bravura de um guerreiro, uma mistura de couro e aço que apenas antecedia um perfume mais profundo e encorpado como o vinho tinto que levaria mais tempo para se deixar sorver. O calor dos corpos afastava o frio, não havia mais inverno. Os movimentos dos corpos e das mãos se aceleravam, reduziam e voltavam a se acelerar a ponto de dominá-la, a ponto de ansiar por tirar o vestido e permitir que ele a explorasse inteira… Mas de repente, sem nenhum aviso, ele se sentou. Cecily sentiu o corpo varrido pelo frio e trazido de volta à realidade. Aos poucos os sons entravam no quarto, um riso distante, um cachorro latindo… A volta súbita de um sonho a deixou aturdida, piscando vezes seguidas, tentando acalmar a respiração. A primeira reação foi cobrir o torso nu e se levantar do sofá. Marc ainda estava ali, em pé. Percebendo-a tão aflita ele a segurou pelos ombros, mas não disse nada. Cecily o fitou, procurando respostas nos olhos dele. Tinham se passado semanas de ódio, dias de lutas, momentos de paz, mas nada se assemelhava ao que havia acontecido, tinha sido mais do que uma simples trégua. Em um primeiro momento, parecia que ele havia acreditado na confissão dela e a abençoado com o perdão. – Eu… você… – Não havia como colocar as fortes sensações em palavra. Ele também não disse nada. Cecily olhou ao redor, desesperada para voltar à realidade conhecida. Mas estava tudo diferente. O que era branco ou preto, bom ou ruim tinha se transformado numa confusão rica em possibilidades que ela jamais imaginara. O vento continuava frio, mas estimulante. A música ouvida ao longe ainda era melancólica, mas a melodia a inspirava a dançar. Até aquele momento o Natal só havia trazido


memórias tristes, mas agora a alegria as havia encoberto. Marc não era mais o inimigo. Mas, então, quem seria ele? Ela fechou as mãos em punhos como se quisesse se prender ao mundo conhecido de antes. Aos poucos, ela tomou consciência que tinha tornado realidade os temores que tivera por Isabella. Você não faria nada que desapontasse seus pais. Mas ela os tinha desapontado, e não apenas uma vez. Com o passar dos minutos, ela foi se acalmando. A distância que os separava ajudou-a a recuperar a sanidade e a consciência da posição que ocupava. Com toda a rapidez possível, apesar das mãos trêmulas, ela recolocou o vestido e o encarou. – Nós não podemos… Marc contraiu os lábios e meneou a cabeça. Ajustou a túnica e se afastou mais um pouco. – Obrigado por me contar sobre a morte de seu pai – disse ele como se fosse tudo o que havia acontecido e nada mais. – Eu o julguei errado. – O disfarce e a brincadeira que jogamos para o bem dos outros favoreceu… – Mas não conseguimos o que havíamos planejado – disse Cecily. – Acho melhor continuarmos inimigos – disse ele depois de respirar fundo. – Não ficaremos mais sozinhos – ela concluiu, mesmo sabendo que isso não seria suficiente. – Parto amanhã cedo com Enguerrand para saudar o rei. – Isabella e Enguerrand ficarão longe um do outro por alguns dias. – Nós também. – Um suspiro. Alívio ou tristeza? – Devo voltar à França alguns dias depois que o rei chegar. Cecily não esperava por aquele golpe. Durante o tempo que passaram juntos, ela procurou não pensar no dia em que Marc partiria. – Ele trará o resgate? Marc franziu o cenho. – Ou isso, ou o conde deve retornar, ou mandar outro substituto. – Entendo… – Cecily meneou a cabeça, sem saber o que mais poderia dizer. – Então amanhã nos despedimos. – Amanhã não, agora. A porta havia se fechado anunciando o fim que ela devia ter previsto como algo bom. – Sim, claro. Assim será melhor. – Não devo vê-la novamente – disse ele. – Será que… talvez… amanhã de manhã…? Marc balançou a cabeça negativamente – Não, claro que não. – Vê-lo novamente só dificultaria mais a despedida. Ela acenou com a mão. – É melhor você voltar ao salão sozinho. Ele se virou de costas e abriu a porta. – Adeus – disse ela elevando a voz para que ele a ouvisse. Marc hesitou, mas não olhou para trás ao sussurrar: – Adieu.


Capítulo 13

MARC NÃO voltou ao salão. No caminho para o quarto que dividia com Enguerrand decidiu que havia vivenciado um sonho. Um sonho repleto de paixão e carinho, mas ainda uma visão a ser ignorada. Algo que sumiria com o raiar do dia seguinte. As duas semanas na corte, que tinham durado uma eternidade, estavam terminando. Ele devia estar feliz. No entanto, não era bem assim que se sentia. Ao entrar no quarto, deitou-se no colchão de palha com a intenção de levantar com o raiar do dia e ir embora dali, deixando Cecily para trás. Antes de dormir, ele admitiu que havia se deixado levar pelos temores de Cecily e pelos tolos segredos da corte, incapaz de distingui-los da verdade. Enguerrand havia desfrutado da companhia da filha do rei, mas havia uma razão para tanto. E, ao mesmo tempo, ele não deixara de jogar charme para todas as outras damas da corte. Falava da princesa com o mesmo entusiasmo que descrevia as danças, a comida ou o inverno gelado. Mas, naquela noite, ele havia visto Enguerrand um pouco melancólico… Marc também tivera seus momentos de folie durante as Festas. Tinha sido uma tolice achar que podia controlar as decisões do amigo, pois ele acabou cometendo os mesmos erros. Em vez de salvar o amigo, ele havia se deixado cair numa armadilha. Bem, havia chegado a hora de deixar a Angleterre e suas mulheres para trás. Sozinho no quarto, Marc tentou dormir, acordando a cada hora com o gongo do maldito relógio da torre. Era bem tarde quando ouviu a porta do quarto se abrir. Ao abrir os olhos viu o vulto de Enguerrand trazendo um candelabro. Enguerrand estava com a camisa toda amarrotada e rescendia um perfume doce de mulher. Talvez fosse o perfume de uma criada ansiosa para se divertir, a não ser… Marc reconheceu o perfume. Não era o de Cecily, mas de alguém conhecido… Isabella.


Marc se sentou, ansioso para que seus olhos se acostumassem logo à escuridão e pudesse ver os olhos do amigo… – Onde você esteve? – perguntou num tom de reprovação. Enguerrand se sentou na beirada da cama e colocou o candelabro na mesinha lateral. – Eu estava me despedindo. – De quem? – Está me questionando? – Enguerrand respondeu, beligerante. – Você estava com ela. Simples assim. Verdade. Tinha acontecido o que ele julgara que conseguiria evitar. Assim dizendo, Enguerrand deixou de ser um conde para ser apenas um homem. Com os cotovelos sobre as pernas, ele apoiou a cabeça nas mãos, balançando-a em desespero. Não havia mais o charme das palavras bonitas. Enguerrand não era mais aquele homem feliz com um namorico durante as Festas, mas sim alguém que havia desejado algo que jamais poderia ter. E Marc conhecia bem aquele sentimento. Enguerrand levantou a cabeça. Na penumbra sob a luz tremeluzente da vela, Marc viu a tristeza estampada no rosto do amigo, sabendo que devia estar com a mesma expressão. – O que vamos fazer, mon ami? Nós. Enguerrand sabia de tudo, ciente de que Marc havia cedido ao que tentara negar até para si próprio. – Vamos ao encontro do rei. Depois voltaremos à França o mais rápido possível. E esquecer tudo o que tinha acontecido. NA MANHÃ seguinte, Cecily tentava não pensar em Marc, quando Peter apareceu à porta. Depois de tudo que havia acontecido, ela nem se lembrava mais de túmulos ou efígies. – Ainda não estamos na Noite de Reis… – Não, milady, mas eles estão de partida para Dover para saudar o rei. – Peter fez uma pausa ao notar a surpresa de Cecily. – A senhorita não irá acompanhá-los? Se não tivesse se distraído tanto com Marc, ela teria percebido antes. O rei francês, assim como todos aqueles que atravessavam o Canal, chegaria no porto de Dover, protegido pelo Castelo de Losford. Mas o rei não tinha pedido que ela fosse dar as boas-vindas ao rei Jean à costa da Inglaterra. Será que ele também achava que ela não estaria pronta para desempenhar sua função? – Não voltarei para casa antes… da primavera. – Com a sua permissão, viajarei com a comitiva e já começarei a trabalhar. Pode ser que eu termine antes da sua chegada. – Entendo… – Claro. Ela devia ter pensado nisso antes. O escultor não poderia viajar sozinho e tão cedo não haveria outra comitiva. – Sim, é uma boa ideia. Peter continuou quieto, esperando uma confirmação. – Sim – ela repetiu. – Você pode partir se o rei o liberar. – Como pretende fazer a efígie de sua mãe? Cecily sequer tinha encontrado os desenhos. Na verdade, nem os havia procurado. Mais uma vez ficava provado que ela não merecia a confiança dos pais.


– Use o último que ela aprovou. – Mas, milady… – Você já fez várias efígies, eu não – disse ela, ríspida. Mas com o escultor ou com si mesma? Parecia que o perfume de Marc ainda estava impregnado em sua alma, impedindo-a de pensar direito. – Faça como quiser. Peter ficou confuso. – A senhorita não quer aprovar o projeto? Não, ela não tinha a menor intenção de ver a imagem dos pais transformada numa rocha imóvel, mas mesmo assim capaz de julgá-la por ter violado as lições que haviam lhe ensinado. Cecily movimentou a mão como se tivesse espantando uma mosca da sala. – Eu verei quando voltar ao castelo na primavera. – Será difícil mudar depois de pronto. – Então não mudaremos nada – concluiu ela, ríspida. – Você conversou com minha mãe. Eu não. Faça o que achar que melhor a representa. Peter meneou a cabeça, murmurou “sim, milady” e saiu da sala. Assim que a porta se fechou, Cecily bateu com o punho na mesa e começou a chorar sem saber se eram lágrimas pelos pais, por suas ilusões, ou por Marc. NO FINAL da manhã do dia de Santo Estêvão, Marc estava montado em seu cavalo, pronto para deixar o Castelo de Windsor, Cecily e toda a Angleterre. Ele e Enguerrand estava cercados por escudeiros, criados, um dos escultores que havia trabalhado no palácio e outro membro da corte que ele não conhecia. Além de uma dúzia de cavaleiros Anglais. Não ficou muito claro se a quantidade de cavaleiros era para honrar o rei ou para vigiar os reféns. – Você a viu? – Marc se inclinou para perguntar a Enguerrand. – Não, desde… – Desde que deixei a cama dela. Ele meneou a cabeça. – E você? Marc respondeu que não com um sinal de cabeça. Conforme pretendia, não tinha visto Cecily e estava feliz por isso. Não havia necessidade de enfrentar aquele conflito de novo, pois ele podia perder. Sem dizer mais nada, os dois conduziram os cavalos na direção do portão. Pouco antes de atravessálo, Enguerrand virou-se para trás e levantou a mão para acenar. Marc cerrou os dentes, segurou as rédeas com firmeza e fixou o olhar na estrada. No caminho para casa. Lar. A palavra não remetia a nenhuma visão, pois sua casa fora sempre no lombo de um cavalo, na guerra. Até mesmo o castelo onde passara a juventude pertencia aos De Coucy. Marc tinha nascido numa família de chevalerie, ricos apenas no sangue. Todo o resto tinha sido conquistado por sua espada e força. Fraqueza significava a morte. Conforme cavalgavam na direção do mar a Leste, ele tentava lembrar de seu país. O verde vivo da primavera, claro o suficiente para arder os olhos. O penhasco onde ficava o Castelo De Coucy bem acima do rio. Tudo parecia muito distante, como se ele não tivesse deixado a França ao vir para a Inglaterra, mas quando fora para a guerra. Agora, quando pensava em um “lar”, via Cecily à sua frente, alguém que pretendia nunca mais ver. O SOL estava fraco naquela manhã, quando Cecily e Isabella fugiram para o alto da Torre Redonda


longe das criadas e das outras damas a fim de observar a partida do grupo. Quando lorde de Coucy, Marc e o restante do grupo passaram pelos portões da Ala Inferior, o conde olhara para trás e acenara. Marc não fez nenhum movimento. Cecily viu quando Isabella entrelaçou os dedos da mão enluvada, apertando-os. A princesa costumava esconder os sentimentos com um sorriso real, mas devia estar sentindo a partida de De Coucy, assim como Cecily sentia a de Marc. Para ambas, a ida dos dois significava o fim do encanto das Festas. Quando Enguerrand voltasse com o rei, Isabella provavelmente já teria encontrado outra diversão. E Cecily? Logo estaria casada. Ela faria tudo para esquecer. Mas por enquanto seu coração estava apertado enquanto observava os rastros dos cascos dos cavalos na neve bem depois de o cortejo ter passado. – Eles se foram… – Isabella rompeu o silêncio. Cecily meneou a cabeça. O sonho havia terminado. Isabella se virou em silêncio conforme os flocos de neve caíam do céu. Cecily fechou a capa e seguiu a princesa, pensando em alguma coisa sem importância para dizer: – Logo saberemos como foi a viagem. A rainha mandou um historiador com eles. Froissart nos contará tudo com detalhes. Cecily não costumava jogar conversa fora daquele jeito. Isabella fingiu não ouvir. – Eles passarão frio – disse Isabella virando-se contra o vento para a direção que o grupo havia seguido. Cecily tinha pensado a mesma coisa, imaginando Marc preocupado numa armadura fria, coberto por uma capa molhada. – Vamos nos ocupar de alguma coisa mais alegre – disse ela, tocando o braço de Isabella. A princesa a tinha forçado a se divertir durante as Festas, seria justo que ela retribuísse o favor. – Vamos procurar Robert, o bobo da corte. Ele nos fará rir um pouco. Isabella deu de ombros como se toda sua energia tivesse partido com Enguerrand. Ela parecia indiferente a tudo, costumava se distrair adquirindo roupas novas e joias, ou divertindo-se com os menestréis e dançando. Ela estava triste, voltando a atenção ao portão. – Não sei o que farei. – A respeito do quê? Isabella olhou para Cecily não como uma princesa, mas como mulher. – Sobre ele. – Ora, você não fará nada. – Cecily balançou o braço da princesa. – Lembra-se do que me disse? A época das Festas de final de ano é para se divertir. Eu brinquei com aquele francês grosseiro, e você com Enguerrand. Agora as Festas terminaram. Vamos esquecer tudo e continuar nossas vidas. Como se fosse possível. Falar era fácil. Cecily segurou a respiração, esperando que Isabella voltasse a sorrir, deixando de lado a melancolia. Se Isabella podia esquecer, ela também podia. Mas a princesa balançou a cabeça e encarou a amiga com olhos tristes e vazios. – Quero ficar com ele. Palavras simples que significavam o impossível.


– Você o verá de novo em Londres. A corte partiria de novo em cinco dias, quando voltariam para Londres para dar as boas-vindas ao rei francês com todo o glamour real. Quem sabe Marc não voltaria para a França logo e Cecily pudesse vêlo de novo… – Você sabe que não é disso que estou falando. Não é isso que você quer, não é? – E o que eu quero? – Cecily não podia responder, pois não queria que Isabella sequer suspeitasse o que passava em seu coração. Assim, forçou um sorriso antes de prosseguir: – Do que você está falando? – Estou me referindo ao tempo que vocês passaram juntos e da maneira como você olhava para ele. Será que um sentimento que ela mal admitira para si mesma tinha ficado tão óbvio para Isabella? – Foi você que me disse para ser volage e fútil com alguém que nunca poderia ser um marido. Foi apenas um jogo, tanto para mim quanto para você – disse Cecily, como se insistir fosse de alguma serventia. – Não foi, não. Eu… fiz coisas… – Isabella balançou a cabeça, comprimiu os lábios e fechou os olhos. Sei que você não faria nada que desapontasse seus pais. A rainha tinha dito a Cecily, que assegurara que a princesa também não a desapontaria. Claro que… não, Isabella não tinha… – Que coisas? O que você fez, Isabella? – Eu me deitei com ele – confessou Isabella com os olhos arregalados. Cecily ficou paralisada ao perceber que não conseguira evitar que seu maior temor acontecesse. Falhara em proteger a princesa. Distraíra-se com Marc, preocupando-se com os próprios sentimentos e com isso contribuíra para aquele desfecho. Antes de falar, respirou fundo para clarear a mente. E se… – E se você estiver… – Cecily não sabia qual a melhor maneira de fazer uma pergunta daquelas. Reis, príncipes, duques e condes podiam ser pais de bastardos com impunidade. Eram até admirados por isso. Mas não as mulheres. Pior ainda quando se tratava da filha do rei. Seria algo inconcebível. Mas ela precisava saber para poder ajudar. – E se você estiver esperando um filho? – Não. Quero dizer, não sei. Foi apenas na última noite. Tinha sido na mesma noite em que Cecily lutava contra os mesmos desejos, mesmos sentimentos e a certeza de que Marc era o único homem no mundo que desejava. Como então culpar Isabella por pecados que quase cometera também? Cecily passou o braço pelos ombros de Isabella para protegê-la do vento e entraram no castelo. Nada mais poderia ser dito ali dentro, pois até as paredes tinham ouvidos. – Vamos aguardar. – Mesmo que não tenha acontecido nada, quero me casar com ele – enfatizou Isabella. Cecily pensou em listar as objeções. Ele é francês. Um refém. Não pertence a sua linhagem. Mas decidiu não perder tempo, pois era tarde demais tanto para a princesa quanto para ela própria. Isabella e Enguerrand ficarão longe um do outro por alguns dias, ela havia dito a Marc como se isso fosse uma solução. Mas devia ser. Tinha de ser. – Você não disse nada a seus pais, não é? Ou disse? – Como eu poderia? Eles nunca me negaram nada, mas isso… – Isabella suspirou. – Se bem que meu pai foi hospitaleiro, não foi? – Ela se animou. – Quem sabe com o tempo… – Mas creio que a rainha… hesitará. – A rainha nunca se recuperaria por completo da batalha inútil contra o casamento do filho. Ela que havia suplicado pela ajuda de Cecily. Como Cecily a encararia agora? – Além do mais, se você se casar, terá de ir para a França.


– Meu pai concordou em devolver as terras de De Coucy aqui na Inglaterra – disse Isabella, erguendo o queixo. – Podemos ficar aqui. Só mesmo o amor para ser tão cego. Talvez só mesmo Marc para querer voltar para casa e pisar em terras que não lhe pertenciam. De Coucy era um dos lordes mais poderosos da França. Ele governava de um dos castelos mais fortes do mundo cristão. Nenhum homem trocaria isso por alguns alqueires de terra no Norte da Inglaterra. – E o que pensa De Coucy? – Cecily sugeriu com cuidado. – Ele compartilha da sua vontade? – Bem, sei que com a volta do rei Jean ele não precisa mais ficar na Inglaterra. Mas ele não disse… eu também não perguntei… Cecily suspirou. – Bem, não podemos fazer nada por enquanto… – Além de rezar para que a princesa não estivesse grávida e esperar que Deus fosse misericordioso com os dois. – Não fale nada sobre isso com ninguém, Cecily – Isabella pediu com olhos tristes. Mesmo assim, quando as duas desceram as escadaria para a segurança das paredes da Torre, Cecily queria encontrar Marc para contar o acontecido. E para agradecê-lo. Infelizmente ela não havia salvado Isabella na noite anterior. Falhou até nisso. No seu caso, tinha sido Marc que evitara que os dois se deitassem, provando ser um homem honrado que ela não acreditava até então e que acabou salvando ambos.


Capítulo 14

DEPOIS DE terminadas as Festas, a corte voltou para Londres. O rei Jean havia retornado ao cativeiro numa entrada triunfal, acompanhado por 200 cavaleiros franceses. E 30 javalis. – Não sei se posso dizer a diferença entre eles – disse Cecily, com ar brejeiro. Ela havia menosprezado os franceses durante anos, se voltasse a ter o mesmo comportamento talvez pudesse curar seu coração. As outras damas riram, menos Isabella. Cecily se sentiu tão desprezível quanto no baile de máscaras, quando tinha pregado uma peça em Marc. O rei francês se acomodou no Palácio de Savoy e apesar de os 12 dias de Festas natalinas terem terminado, as diversões reais se estenderam durante o gelado mês de janeiro. Isabella e Cecily contavam juntas os dias até o período da princesa, observando qualquer sinal que evidenciasse uma gravidez. Quando o rei Eduardo hospedou seu “convidado” real em Westminster, Isabella se recusou a sair da cama chorando e forçou Cecily a mentir sobre seu mal repentino, embora não contagioso. Ao que tudo indicava, De Coucy, que junto com outros nobres ficara como refém para garantir a volta do rei, ainda estava na Inglaterra por motivos que só os reis saberiam. Depois de tê-lo visto, Cecily precisou escrever a Isabella, informando como De Coucy se encontrava e reproduzindo as palavras gentis que ele dissera ao saber que ela não estava bem. Ela e De Coucy não haviam conversado a sós, e a demonstração de preocupação com o estado de Isabella não passara de uma formalidade. Cecily tampouco perguntou se Marc ainda estava na Inglaterra. Não havia dúvidas de que ele havia voltado para a França. Ela havia ouvido conversas entre os diplomatas, mas não soubera de nenhum detalhe das idas e vindas de algum refém em especial. Os dias se passaram, mas elas ainda não sabiam se a princesa estava esperando um filho de De Coucy ou não. Isabella ainda chorava por De Coucy, Cecily não. Ela não lamentava mais nem sobre a morte


dos pais, quanto mais pela ausência de Marc de Marcel. Já era tempo de deixar o passado e as tristezas para trás e se casar com o homem que o rei escolhesse. O noivo ainda era uma incógnita e tomara que continuasse assim até depois do casamento. Ela havia perdido um a um de seus entes queridos. Talvez tivesse sido essa a razão pela qual seus pais haviam insistido tanto que ela focasse nas obrigações e se esquecesse das emoções. Na certa, eles queriam prepará-la para a vida que tiveram, já que provavelmente a dela seria igual. Entretanto, enquanto esteve com Marc, ele a havia visto como mulher e não apenas como uma condessa. Não só uma mulher, mas também uma pessoa que havia lutado tanto para se esconder do mundo. Tinha sido um sonho, embora doloroso. NUMA FRIA noite de janeiro, o primeiro prefeito de Londres, para firmar sua importância, decidiu oferecer uma noite de entretenimento para o rei Jean. Com a bênção do rei Eduardo, ele planejou uma festa extravagante em sua casa para os monarcas da França e da Inglaterra e seus cortejos para ilustrar o poder dos mercadores londrinos, assim como seus guerreiros. Isabella não podia mais se esconder. Os preparativos foram exaustivos, pois era preciso enfrentar De Coucy novamente. – Se eu o vir, o que devo dizer? – indagou Isabella. – Não se preocupe – Cecily disse ao amarrar os cordões que pendiam das mangas do vestido da princesa. Infelizmente Isabella não tinha se esquecido de seu devaneio do Natal. – Você está linda. Não foi uma resposta, mas Cecily não sabia o que dizer. Ela própria não precisaria pensar no que diria, pois não vira mais Marc. Mas o devaneio tomou conta de seus pensamentos. O que ela diria? Senti sua falta. Não, claro que não. Marc era um refém francês, alguém que tinha sido útil, mas não um bem-querer. A casa do prefeito era apenas uma fração do tamanho do Salão Nobre do Castelo de Windsor. Cecily circulou pelos convidados, conversando animadamente com todos os lordes solteiros da corte e até dançou com um duque viúvo do Sudeste da Inglaterra, cuja pronúncia era pior do que a dos reféns franceses. Como seria dividir a cama com esse? Sempre que tentava imaginar, era Marc que invadia seus pensamentos junto com uma sensação de arrependimento. Pelo menos Isabella tinha uma lembrança para se apegar. Enquanto Cecily… Não. Na realidade devia ficar extremamente grata por Marc ter agido com honra. Conforme as expectativas de Isabella, lorde De Coucy estava na festa mais entusiasmado do que nunca, cantando, dançando, como se fosse de sua responsabilidade exclusiva que o rei Jean se divertisse. Em nenhum momento, Enguerrand e Isabella cantaram juntos, dançaram ou conversaram, deixando claro que estavam se evitando. Tomara que o comportamento deles não ficasse evidente para os outros quanto era para Cecily. Cecily prestou atenção nos outros convidados. Era a primeira vez que tinha a oportunidade de observar o rei francês de perto e tentou vê-lo com a mesma admiração de Marc que o julgava merecedor do título que ostentava, o homem mais honrado do mundo cristão, porém, não o imaginava vencido por cavaleiros ingleses, balançando uma espada e protegendo-se atrás de um escudo. O soberano francês era ruivo e tinha um nariz proeminente, mais parecendo um clérigo emburrado


do que um monarca real. Sentados lado a lado, o rei Eduardo era mais velho, mais imponente e fazia sombra ao outro. Cecily perscrutou a sala cheia de cavaleiros franceses que tinham vindo à Inglaterra acompanhando o rei. Apesar de ainda tecer comentários ácidos sobre os franceses, ela não os via mais como inimigos, mas sim com homens comuns, nem piores, nem melhores que ninguém. De repente, ela vislumbrou um cavaleiro alto, forte e louro afastado dos demais, fingindo estar à vontade. Exatamente como ele estava quando se conheceram. Marc de Marcel. AO VÊ-LA se aproximando, Marc se forçou a manter a postura, mas temia mais aquela femme Anglaise delicada e desarmada do que todos os les maudits munidos de espadas e arcos. Ele a havia visto primeiro e tivera tempo de se preparar antes de ela se aproximar. Ninguém suspeitaria que ela atravessava a sala para encontrá-lo, pois ia parando aqui e ali para conversar como um tronco seguindo por um rio tortuoso, que inevitavelmente chegaria ao mar. Marc procurou se defender. Eles não estavam mais em Windsor. O namorico que tiveram na época do Natal e o fracasso em separar Enguerrand de Isabella faziam parte do passado. Cecily voltara a ser uma condessa inglesa, e ele, nada além de um refém francês. E até para ele próprio, um péssimo mentiroso. Agora que estavam frente a frente ele a fitava nos olhos grandes sob a sobrancelha bem arqueada com as quais ele sonhara toda a noite. Ele ainda podia sentir o cabelo sedoso dela escorregar por entre seus dedos e o gosto da pele macia do pescoço dela. E mais… Ao acordar do breve devaneio com uma gargalhada próxima, ele fez uma reverência, abaixando-se mais do que o normal. – Certa vez me disseram – disse ele com a voz rouca – que não é costume um cavaleiro reverenciar uma dama. Cecily inclinou a cabeça ligeiramente, cumprimentando-o. – Vejo que aprendeu muita coisa durante sua estada na Inglaterra. – Aprendi coisas que esperava nunca saber, lady Cecily. – E que jamais seriam esquecidas. Marc reconheceu o olhar triste que espelhava o seu. – Eu também, cavaleiro. Eu também… Pelo menos ali no meio de tantas pessoas eles estavam em segurança. Ninguém desconfiaria de um cavaleiro e uma dama diante da lareira. – Achei que nunca mais o veria – disse ela em voz mais baixa e urgente. – Nem eu, lady Cecily. – Você não… – Ela parecia hesitante. – Pensei que você já tivesse ido embora. – Não. Pela sobrancelha arqueada de Cecily, ele percebeu que ela queria perguntar o que havia acontecido. Marc estava de fato a caminho de casa, mas o pior é que não sabia a razão. Desde o momento em que o rei pusera os pés em terras inglesas, Marc aguardou a notícia que significaria sua liberdade. Havia um grupo de boas-vindas no porto de Dover, mas o pronunciamento do soberano se limitou a um agradecimento aos ingleses pela recepção. Marc continuou aguardando durante o caminho a Canterbury, mas o rei apenas agradeceu a Deus e a São Tomás pela viagem segura. Depois disso, não houve mais nenhum pronunciamento até chegarem aos portões de Londres.


Quando os portões se fecharam, nem mesmo a euforia dos londrinos cumprimentando o rei francês escondeu o fato de que Marc estava de volta à prisão. Por um momento, ele sentiu não ter deixado a honra de lado e fugido quando teve chance. – Eu não o vi quando o rei veio a Westminster – disse ela. – Você não faz parte da comitiva? Lorde de Coucy fazia parte da corte dos exilados do rei Jean no palácio à beira do rio, mas não havia espaço para Marc nem ali, nem na Torre onde os homens do rei se hospedaram. – Agora sou um convidado permanente do anfitrião dessa festa, Henri Picard. Cecily ficou surpresa e olhou na direção da mesa onde o prefeito, um proeminente comerciante de vinhos, brindava os convidados reais com sua melhor safra. – Ele é francês? – Acho que ele tem parentes longínquos que vieram da Picardia. Agora ele é um mercador que aprecia alguns xelins a mais por abrigar um refém. – Não entendi por que você não está com lorde de Coucy e os outros – disse ela, tocando o braço dele. Marc deu as costas para a sala, criando uma ilusão de privacidade, e cobriu a mão dela com a dele. – Ah, De Coucy é um dos lordes franceses mais importantes. – Verdade nua e crua que o remetia a tudo que lhe era impossível. – Eu sou um simples cavaleiro. Mas para Cecily não havia diferença quando os olhares se cruzaram e ela entreabriu os olhos. Se ele tivesse se aproximado mais um pouco, se estivessem sozinhos… – Ah, lady Cecily, finalmente a encontrei. – A voz da anfitriã os interrompeu. – Lady Isabella está nos aguardando nos meus aposentos para nos divertirmos. Vamos deixar os homens com seus dados e venha juntar-se a nós. Isabella contraiu a mão sob a dele. Quando ela respirou fundo, Marc achou que ela fosse argumentar, o que não seria bem-vindo já que ele não queria chamar uma atenção desnecessária. Pelo menos não naquele momento, não quando ele e o rei francês estavam sob o mesmo teto. Sua intenção era abordar o rei e exigir uma resposta sobre seu futuro. Sendo assim, ele fez uma reverência, despedindo-se. – Lady Cecily, lady Picard tem alguns planos especiais para os convidados – disse ele calma e educadamente. Palavras tão falsas quanto um disfarce. Cecily tirou a mão do braço dele, inclinando a cabeça e reassumindo a postura de uma condessa ao seguir a esposa do mercador de vinho na direção da escadaria de madeira. Marc não as seguiu com o olhar. – Aí está você, mon ami – disse Enguerrand. Marc não o via há dias. – Faz tempo… Os dois deram as mãos, sorrindo como se nada tivesse mudado. No entanto, a camaradagem de antes já não era mais a mesma. Durante a viagem a Londres, Marc tinha tentado falar com Enguerrand sobre o rei, a princesa, sobre os planos de volta à França e como faria para retornar também. No entanto, o caminho para a liberdade de Enguerrand era complexo. Talvez as negociações levassem ainda algumas semanas. Mas a volta de Marc devia ter sido bem mais fácil. Enguerrand tinha sido lacônico e não respondeu nenhuma das questões. Desde que haviam chegado a cidade não tinham se visto mais. Marc teve a impressão de que o amigo também queria esquecer tudo. Ou será que havia alguma coisa a mais?


– Nosso anfitrião gosta de jogos de azar. – Enguerrand inclinou a cabeça na direção da mesa onde os reis da Inglaterra e da França jogavam dados. Ao que parecia, os dois estavam perdendo. – Parece que ele tem um dom natural para ganhar. – Você não vai jogar? – Estou aguardando uma chance para falar com o rei Jean sobre minha liberdade – Marc respondeu bem devagar para ter a certeza de que Enguerrand tinha ouvido. – Marc, você precisa entender algumas coisas… – disse Enguerrand, franzindo o cenho. – O acordo, o rei… Marc não estava interessado em desculpas sem sentido. – Quero apenas que o compte cumpra o que prometeu antes de eu vir para cá. – O conde havia dito que o cativeiro de Marc terminaria na Páscoa. Faltavam apenas oito semanas. – Posso contar com seu apoio? A resposta demorou tempo demais para vir. – O assunto está nas mãos dos reis e não nas minhas – disse Enguerrand, sinalizando com a mão na direção do grupo à mesa de jogos e, com isso, que Marc participasse também e fingisse que estava se divertindo, enquanto tentava influenciar o rei Jean com palavras lisonjeiras, assim como ele havia flertado com a princesa. Mesmo assim, o método não tinha funcionado, pois ele não havia recuperado as terras e não estava feliz. Bem, cada um tinha um jeito próprio de resolver os problemas. E por mais que fossem amigos, De Coucy e Marc de Marcel tinham maneiras diferentes de agir. – Então vou perguntar diretamente ao rei. A honra exige que ele cumpra o que foi prometido. E você? Está pronto para deixar a Inglaterra? De Coucy ficou pensativo, como se não soubesse o que dizer. – Espero que você fique bem – disse ele por fim, meneando a cabeça e dando um passo atrás. Marc viu o amigo se afastar e seguir na direção do barulhento grupo de jogadores, tão à vontade com os ingleses quanto com os franceses. As respostas de Enguerrand e o silêncio deixaram Marc mais inseguro do que nunca. Mas ainda havia a promessa do compte. E o rei Jean, dentre todos, era homem de honra comprovada. Talvez Marc estivesse sendo tolo ao esperar que o rei e os outros mantivessem os princípios que ele já tinha visto serem violados tantas vezes. Mesmo assim, ele queria apenas uma chance para apresentar seu caso ao rei. Se ele fosse mesmo honrado, haveria apenas uma resposta. Ele tentou se manter atento, embora soubesse que Cecily estava num dos aposentos. Ela podia reaparecer a qualquer instante e os pensamentos que deviam estar concentrados no rei volta e meia eram substituídos… UMA HORA mais tarde o rei Jean se levantou e saiu para uma visita ao toalete. Quando ele voltava por uma passagem estreita, Marc surgiu e ajoelhou-se diante dele. Apesar de terem viajado juntos, ele só havia visto o monarca uma vez. Olhando de perto, parecia mais velho. Os anos após a Batalha de Poitiers não tinham sido fáceis. Na época, o rei estava no auge e Marc tinha acabado de se tornar um cavaleiro, transbordando do orgulho de sua condição. A realidade havia mudado para ambos. Foi difícil para Marc não comparar seu soberano com o rei Eduardo, que governava a Inglaterra com


rigor. O rei Jean estava visivelmente abatido, e as linhas de seu rosto, mais profundas. O que seria da França com um governante como aquele? Será que era mesmo a pátria que Marc desejava voltar? Bem, era tarde demais para divagações. – Vossa Graça… – De Marcel? É você mesmo? Eu não sabia que estava aqui. As palavras do rei confirmaram o que Marc temia e responderam o que ele precisava saber. Mesmo assim, sua esperança e teimosia o impeliram a continuar. – Fui mandado para cá como substituto do conde de Oise, Vossa Graça, com a promessa que voltaria para a França na Páscoa. Por acaso ele mandou o pagamento do resgate por Vossa Graça? Ou talvez outra pessoa para substituí-lo? Marc prendeu a respiração na expectativa e esperança que o rei reagisse e se propusesse a cumprir a promessa que tinha sido feita. Mas, em vez disso, o rei ficou em silêncio e balançou negativamente a cabeça. Marc já sabia que essa seria a resposta. Apenas Enguerrand seria um homem livre. – Isso quer dizer que sua volta significa apenas a soltura daqueles que foram feitos reféns de acordo com o Tratado. – Eu voltei, mas não para substituir os reféns. – Mas… – Marc ficou incrédulo. De Coucy já havia dito que os acordos e tratados estavam nas mãos dos reis. Não se tratava mais de vitória ou derrota numa simples batalha. E nessa negociação, os braços fortes tão honrados e úteis numa batalha não valiam nem para alcançar a liberdade, para ele ou para o amigo. A decepção ficou visível no rosto de Marc. – A Páscoa chegará logo. Ainda há tempo. – O rei colocou a mão sobre o ombro de Marc. – Você não está bem acomodado ou sendo bem tratado? Sou um prisioneiro, Marc teve vontade de gritar. Jamais poderia olhar para Cecily como um igual. Mas por que tinha se lembrado disso agora? Mesmo que estivesse livre, não poderia. Afinal ela era uma condessa. E ele um simples chevalier sem nada para oferecer além de um braço forte e resquícios de honra. – Por que voltou, Vossa Graça? – Marc duvidava que tivesse sido apenas pela honra. – Por causa dos termos do Tratado. A França está se acabando para dar conta do interminável valor do resgate. Pensei que… se Eduardo e eu conversássemos a sós, talvez pudéssemos chegar a um acordo… O rei voltara para negociar o resgate e tentar manter o ouro sob poder da França. Essa era sua única preocupação, bem distante da liberdade de um cavaleiro de baixo escalão. Não era mais uma questão de honra. – Vossa Graça conseguiu renegociar? – Marc ousou perguntar, afinal, não tinha nada a perder. – Ainda não, mas espero que consiga em breve. Quem sabe amanhã. Amanhã… quando haveria outra festa, mais música, dados, quando os reis continuariam com sua vida real sem se importar com os termos do Tratado. Havia inclusive a possibilidade de o rei Jean ter voltado para aproveitar a hospitalidade do rei Eduardo. A atenção do rei se dispersou e ele voltou para a sala. Marc se levantou, sentindo-se tão cansado quanto se tivesse enfrentado uma guerra, e subiu as escadas para os andares superiores. Na solidão de seu quartinho, ele enfrentou a verdade que vinha tentando ignorar. Os reféns eram mantidos em cativeiro por três anos e o rei Jean falou apenas em conversas e nos dias seguintes, não


mencionou nada sobre pagamentos, ou seja, não haveria resgates. Marc tomou consciência de que ficaria nas garras de les Anglais até envelhecer, abandonado por homens cuja honra era apenas uma palavra. Embora soubesse estar tão longe de Cecily, estava perto fisicamente. A não ser que… ele também decidisse ignorar a ética. Afinal, se o filho do rei podia fugir de seus captores e quebrar o código de honra, por que um simples cavaleiro sem dinheiro não podia fazer o mesmo? CECILY ESTAVA presa nos aposentos da sra. Picard diante de uma lareira constantemente alimentada. O que mais queria naquele momento era fugir dali. Marc também estava sob o mesmo teto. Pensar que ele estava tão perto dissolveu a tênue resistência, deixando no lugar a urgência de vê-lo de novo. Àquela altura ela não queria considerar as razões do desejo que a consumia e nem o que aconteceria se eles se encontrassem. No entanto, a esposa de Picard estava determinada a que as damas da corte ouvissem o repertório inteiro dos menestréis, que ela havia contratado para entreter as convidadas. A música tocava alto na sala lotada. Isabella permanecia com um sorriso fixo no rosto. Cecily tentou imitá-la, mas sua atenção voltava a toda hora para a porta do outro lado do aposento, procurando se convencer de que estava apenas curiosa e nada mais. A certa altura, Cecily não conseguia mais nem respirar direito. Ignorando todas as tentativas de ser discreta, ela cochichou alguma coisa no ouvido de Isabella e se levantou para sair. As outras damas pensariam que ela precisou ir ao banheiro. Ao sair do quarto, ela olhou para baixo da escadaria vazia, pensando em voltar para a sala. Um ruído a impediu de descer. Quando olhou para cima, viu Marc. Nenhum dos dois se mexeu num primeiro momento, até que ela decidiu subir as escadas, seguindo as súplicas de seu corpo. Marc a observou subir. Apesar de estar escuro demais para ver seus olhos, ela sabia que ele compartilhava da mesma fome que lhe era recorrente. Assim que entrou no quartinho, ela o enlaçou pelo pescoço e apoiou a cabeça no peito largo. Marc hesitou por alguns segundos, mas a abraçou em seguida, colocando uma das mãos na cabeça dela, segurando-a com força para nunca mais largar. – Pensei que nunca mais fosse ver você – disse ela com a voz abafada pela túnica dele. – Eu não tinha intenção de… – Em vez de terminar a frase, ele fechou a porta. Sozinhos. Os dois estavam sozinhos. Não havia hesitação, nem palavras ensaiadas. Marc ergueu o queixo dela e a beijou. Foram beijos seguidos, como se cada um fosse uma palavra, e eles tinham muito a dizer. E então ambos flutuaram à mercê das grandes fantasias. Os olhos se fecharam, os corpos relaxaram e as respirações se soltaram. Os sussurros se espalharam e as mãos percorreram os corpos sem conhecer o próprio itinerário. Seguindo o ritmo da paixão, ambos se deixaram cair numa cama estreita e dura. A partir daí, nada mais importava além do prazer de estarem juntos, colados como se um fosse parte integrante do outro. Os beijos rápidos se prolongavam sem nenhuma pressa. Línguas que se banhavam e percorriam superfícies, trilhavam caminhos e se esbaldavam com as inomináveis delícias de estarem juntos… De repente, aplausos e ovações interromperam o universo que até então era tão particular. Os dois ficaram imóveis.


– Ouça… – Marc sussurrou. Ouviu-se o barulho de cadeiras se afastando sobre o piso de madeira e em seguida passos. Os risos femininos ficaram mais altos e os passos agora vinham da escada, sinal de que a apresentação dos menestréis havia terminado. A interrupção quebrou o encanto e Cecily se lembrou de quem era, o que fazia e com quem estava. Marc se movimentou primeiro, rolando para o lado e levantando-se. Depois de colocar uma poltrona contra a porta, ele estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Cecily percebeu apavorada que uma das tranças que lhe emoldurava a testa havia se soltado, um dos botões de pérola do vestido estava preso por apenas um fio e a costura do ombro do avental havia se soltado. Se saísse do quarto assim, todos, desde o rei até os criados, saberiam o que ela estava acontecendo. – O que eu faço agora? Minutos antes, Marc era um homem sob as garras do delírio amoroso; agora, era o comandante no meio de uma batalha. – Eu a encontrei passando mal e a trouxe aqui para descansar. Vou procurar um barqueiro para levála de volta a Westminster. Assim dizendo, Marc colocou a capa dele sobre os ombros dela, demorando-se um pouco mais do que o necessário. Sentindo o calor das mãos dele novamente, Cecily fechou os olhos e ergueu o rosto. Ele apertou os ombros dela… mas soltou em seguida. Sem nenhuma palavra de carinho, ele seguiu até a porta, ouvindo com atenção, concentrado na tarefa de salvá-la. Ouviram-se vozes de homens e gritos no andar de baixo. Numa fração de segundos, ele abriu a porta e a pegou no colo, cuidando para que a capa não mostrasse o ombro rasgado. – Coloque a mão no estômago e comece a gemer – disse ele, saindo para o corredor. Cecily não ousou olhar para os lados, mantendo o queixo pressionado sobre o colo, como se estivesse tão fraca a ponto de não conseguir levantar a cabeça. Quem estaria ali? Será que alguém a tinha visto entrar no quarto de Marc? Se a rainha descobrisse… se algum de seus pretendentes a visse… seria uma desgraça, o fim de tudo. Apesar do risco, ela se sentia segura nos braços de Marc. – O que foi? Aconteceu alguma coisa? – indagou a esposa do mercador em voz baixa. Cecily fechou os olhos com força e começou a gemer. – Eu a achei caída na escada, apertando a barriga – explicou Marc. – Será que a praga a atingiu? – indagou a anfitriã. Percebendo o pânico, Cecily chegou a se arrepender da farsa, mas Marc logo interveio: – Ela deve ter comido alguma coisa que não fez bem… – disse Marc arriscando um falso diagnóstico. – Mas a comida foi preparada com todo o cuidado, eu provei tudo. Ninguém mais passou mal – disse a sra. Picard. – Eu queria ir para minha cama – disse Cecily com uma voz fraca. – Nos meus aposentos… – Sim, claro – disse a sra. Picard. – Meu barqueiro a levará. Venha por aqui. Não devemos perturbar os outros. Cecily percebeu que eles desciam por outra escada, e quando sentiu o piso balançar, supôs que caminhavam em um cais de madeira sobre o rio. Sentiu o vento frio cortar-lhe a pele e o cheiro forte da água, indicando que estavam perto do barco. – Sinto muito, lady Cecily – disse a sra. Picard quase em lágrimas. – Não consigo imaginar o que


tenha lhe feito mal… Cecily se mexeu e Marc a colocou sobre o trapiche de madeira, sempre cuidando para mantê-la coberta com a capa. – Tenho certeza de que não foi sua culpa, sra. Picard. A princesa também estava indisposta há alguns dias. Talvez seja a mesma coisa… – Cecily apertou o estômago e tossiu. Enquanto a sra. Picard se abaixou para dar instruções ao barqueiro, Cecily olhou para Marc, mas estava escuro demais para avaliar a expressão do rosto dele. – Quando nos veremos de novo? – Ela sussurrou, demonstrando a expectativa de um próximo encontro. – Logo… – Ele respondeu, acariciando-a no rosto com os dedos frios. Marc a ajudou a subir na pequena embarcação. Conforme ela se afastava da costa, Cecily mantinha o olhar fixo na silhueta de Marc, mal iluminada pelas luzes da casa, até o perder de vista. Sobre as águas turbulentas e num barco que balançava bastante, ela se viu fraca e confusa como temia. Se os aplausos não os tivessem interrompido, a luxúria teria triunfado sobre o bom senso e ela teria se entregado a Marc. Mas isso não era o pior. Quando os remos bateram no cais de Westminster e ela saiu com cuidado do barco oscilante, acabou admitindo que havia algo muito mais perigoso. Ela havia ousado flertar com aquele homem, mesmo sabendo que ele era total e completamente inviável. Era certo que o perderia, embora tivesse ficado com ele por vontade própria, imaginando que não sentiria dor quando se separassem. Mas, ao contrário do esperado, ela havia se apaixonado por ele. O amor era tanto que perdê-lo seria o mesmo que entrar novamente na atmosfera cinzenta e cruel do luto. COMO SE estivesse com os pés congelados, Marc continuou à beira do rio, observando o barco que levava Cecily até perdê-lo de vista na escuridão. Mesmo assim, ele não saiu do lugar. Muita coisa havia acontecido naquela noite. Ele havia caído numa armadilha como havia acontecido durante a batalha, quando les maudits os cercaram por todos os flancos, mas dessa vez não tinha uma espada para salvá-lo. A salvação que ele aguardava com a chegada do rei não tinha acontecido. Não havia mais nenhum caminho para a liberdade. Talvez seu destino fosse viver naquele limbo infernal, longe de casa. Estava condenado a ficar perto de Cecily, mas limitado a vê-la de longe e sabendo que seu desejo por ela só aumentaria e jamais se saciaria. Se a tivesse em seus braços outra vez, não seria capaz de soltá-la nunca mais. A escuridão havia engolfado o barco, não se ouvia mais nem os remos tocando nas águas do rio. Resignado, ele voltou para dentro. Qual não foi sua surpresa ao encontrar Gilbert esperando-o na passagem estreita. Quanto tempo ele estaria ali? O que teria visto? Bem, vira o suficiente para receber Marc com uma expressão grave. – Você sabe que logo ela pertencerá a outro homem, não? A pergunta ousada atingiu Marc como um soco. Ele sabia que Cecily não podia ser sua, mas não ousava, não conseguia sequer imaginá-la com outro. Aquilo era uma tolice sem tamanho. Será que ele


pensava que, se não podiam ficar juntos, viveriam sozinhos para sempre? Fazia tempo que ele havia aprendido a falácia dessa fantasia. – Sua, talvez? – indagou ele num grunhido, como se seu destino cruel fosse culpa do rapaz. Não, Cecily não ficaria com alguém tão inexperiente. Gilbert meneou a cabeça. – Você sabe quem será? – Ouvi rumores apenas. – Ela sabe quem será? Será que Cecily sabia e mesmo assim o beijara? – Só o rei sabe. Ouvi alguns nomes como Eastham, Northland, Dexter. Nomes honrados e pronunciados com muito orgulho. Aqueles nomes não significavam nada para Marc. – Eles são homens bons? – Todos são próximos do rei e dignos de confiança. – Eu perguntei se serão bons com ela. Gilbert o estudou antes de responder: – Você gosta dela. Eu não tinha certeza… O rapaz não sabia lidar muito bem com uma espada, mas suas palavras afiadas perfuraram a armadura que Marc usava para se proteger, expondo-o a todas as desculpas com as quais tentara se enganar. Só mais algumas semanas. Estará tudo terminado em breve. Isso não significa nada. Mentiras nem um pouco convincentes em que procurou acreditar. – Eu me preocupo se ela será bem tratada e amada. Gilbert meneou a cabeça, mas não fez qualquer outro comentário ferino. – O rei cuidará de tudo. Em vez de confortá-lo, a resposta resvalou no orgulho de Marc. Ele não era capaz de provê-la como outro homem faria. Dois criados reais surgiram na passagem e saíram para o cais. Um deles subiu num barco que seguiria para Westminster e o outro no barco que seguiria para Savoy. A noite havia terminado e Marc seguiu rumo ao quarto solitário. Quando os convidados passaram por ele, Enguerrand o segurou pelo braço. – Ah, mon ami, eu o estava procurando. Falei com o rei e tenho boas novas. Marc fitou o amigo, ciente que devia estar com o semblante de alguém que havia enfrentado a morte. – Eu também falei com o rei e sei que não há boas notícias. De Coucy sentiu compaixão do amigo. – Não posso levá-lo de volta para casa, mas posso tirá-lo da casa do mercador de vinhos. Tomei providências para que você fique comigo junto com a comitiva do rei. Você estará entre os seus… comigo. – Enguerrand avaliou a casa de Picard de relance, uma moradia muito menor do que o palácio ao qual ele estava acostumado. – Você ficará bem mais confortável. Marc sentiu tanto ódio que quase recusou. Tinham se passado dias, semanas sem que Enguerrand o tivesse procurado. – Você estará o mais confortável possível mesmo estando tão perto do fogo do inferno. – Você está falando da princesa? Ela… ? – Marc não podia completar a pergunta em voz alta. Enguerrand balançou a cabeça. Marc reconheceu a desculpa não verbalizada. Havia julgado o amigo


com muita rigidez. Os dois haviam sido envolvidos pela loucura do amor, indiferentes à honra e às obrigações. – Quando devo partir? – Agora. Rápido. Marc não tinha muita coisa para levar. Enquanto fazia a pequena mala, imaginou se estaria de fato mais confortável com a comitiva do rei. Não o vi na corte. Dali para a frente, Cecily o veria sempre. E a presença dela o atormentaria dia após dia.


Capítulo 15

ALGUNS DIAS mais tarde, o conde de Eastham enviou uma mensagem à Cecily convidando-a para jogar xadrez. Ela disse ao pajem que não poderia responder antes de saber se Isabella precisaria dela, e depois foi correndo aos aposentos da princesa. Será que o rei já havia tomado uma decisão? Ela havia se comportado conforme a etiqueta, sorriu da maneira certa, disse as palavras certas e passou a impressão de que estava pronta para assumir o papel para o qual nascera. No entanto, por trás do sorriso ensaiado, ela só conseguia pensar se veria Marc de novo. – Ah, aí está você – disse Isabella, sentada num banco coberto por tecidos. Nos últimos dias a princesa procurava se distrair de todas as formas. Todo dia um mercador aparecia tentando-a com novas bugigangas. – O que acha desse tecido azul para o vestido de Páscoa? Cecily nem prestou a atenção aos tecidos. – Isabella, você sabe se o rei escolheu Eastham? – Ela não lembrava muito dele, só que era viúvo, calmo e com um leve cheiro de cebolas. – Será que ele é meu futuro marido? – Nada foi decidido ainda. Os franceses mandaram mais uma parte do resgate do rei, mas o valor não chega nem a metade do que foi pedido e o chanceler está atormentando meu pai com as despesas. Ele não tem tido tempo para mais nada. Minha mãe achou que seria uma boa ideia se você se encontrasse com alguns dos pretendentes e dizer se prefere algum deles em especial. – Foi muita gentileza dela. Mas, ainda assim, não era nada definitivo. Na verdade, não faria diferença para ela se Eastham tivesse um sorriso bonito, ou se Northland a faria rir. Nem mesmo se ela sonhasse com um cavaleiro francês enquanto a corte dormia. A decisão final do rei seria por alguém conveniente aos interesses dele e não para agradar a noiva. – Bem, então vou aceitar o convite, claro – disse Cecily, desanimada. Quando nos veremos de novo?


Já havia se passado quase uma semana. – Minha mãe não é só gentil – disse Isabella, com as mãos sobre o ventre. – Falei com ela sobre Enguerrand. Nossa, como ela tivera coragem? – Até onde você contou? – Claro que nem tudo. Quero dizer… – Isabella corou, passando a mão sobre o ventre para avaliar se estava maior. – Eu ainda não sei… – Ela não teria coragem de dizer o impensável, mas seu rosto se iluminou logo em seguida. – Depois de muita persuasão, ela disse que pensaria a respeito de nós dois… juntos. – Casar? – Isso seria impossível. – E Enguerrand? Ele compartilha da sua vontade? – Acho que sim – Isabella respondeu esboçando um sorriso tímido. – Mas ele não pode se pronunciar antes de saber… se é seguro… Claro, pois se ele se declarasse e propusesse casamento antes de saber se teria permissão, seria o mesmo que entrar num campo de batalha sem saber a posição do inimigo. No entanto, o namorico de Isabella era tão proibido quanto os sonhos de Cecily. Será que a princesa tinha conseguido controle sobre a situação? – Não é nada certo ainda, mas tenho esperanças. Cecily disfarçou a inveja. Mas Isabella era filha de um rei, suas obrigações eram tão claras quanto a de Cecily. Nenhum sentimento superaria as ambições do rei. – Fico feliz por você. – Na verdade, o comportamento de Isabella era um acinte e menosprezava os deveres de Cecily. – Preciso voltar para responder ao mensageiro de Eastham. – Cecily – Isabella a chamou antes que ela saísse do quarto –, seu cavaleiro estará na festa de hoje à noite. – Ele não é meu cavaleiro – disse Cecily, sem conseguir evitar um sorriso. Marc havia prometido que se veriam logo. – Mas você gosta dele – disse Isabella, erguendo uma das sobrancelhas. Cecily não podia admitir nada, principalmente quando outro cavaleiro aguardava sua resposta. – Tenho de cumprir minhas obrigações. Os riscos do namorico de Isabella eram claros e indiscretos. Ela havia assegurado que passara apenas uma noite com Enguerrand, mas estava contando os dias para que seu corpo mostrasse sinais de que estava grávida. Se Cecily também tivesse se entregado… os dois haviam chegado tão perto de consumar… Isabella sorriu de novo demonstrando saber de um segredo que queria compartilhar. – Bem, até meu pai decidir quem será seu marido, você pode pelo menos aproveitar a companhia dele. Apesar de todo o perigo, essa era a vontade de Cecily. Seu desejo era aproveitar as últimas semanas que ainda tinha de liberdade. PRESO À corte do exílio do rei Jean, Marc se sentiu como ainda estivesse num eterno festejo de Noël. Naquela noite haveria um jantar em Savoy. Amanhã uma celebração em Westminster. O rio fervilhava de embarcações transportando nobres de um palácio a outro, como se esses eventos antecedessem as negociações entre os dois países.


Em menos de uma semana, Marc estava de volta ao Palácio de Westminster, numa reunião que Isabella e Enguerrand tanto apreciavam, escondido em um dos cantos do salão enquanto observava Cecily circular. Ela estava muito próxima a um inglês corpulento, mas ele não tinha o direito nem de sentir ciúmes, pois ela não lhe pertencia. Mesmo assim… Será que aquele homem, ou quem o rei escolhesse, seria bom para ela? Marc precisava dessa certeza. Depois, quem sabe, seria mais fácil deixá-la partir. De repente, ela se afastou do cavalheiro inglês e veio na direção dele. Cecily estava mais bonita do que de costume. Ao reparar nos lábios dela, ele se lembrou dos murmúrios de prazer que haviam escapado enquanto se beijavam. Agora ele sabia como aqueles olhos verdes se fechavam quando ela se deixava se consumir pela paixão. Marc deu uma tossidela, lembrando-se de manter a postura e os braços abaixados. – Fico feliz em vê-la, condessa. Milady se recuperou do mal-estar da outra noite? – Infelizmente não estou completamente boa – respondeu ela, fitando-o enquanto entrelaçava e apertava dos dedos das mãos. – Tenho a impressão de que essa doença vai demorar a passar. – Entendo… eu também a peguei. Será que tem cura? – Não encontrei nenhuma até agora. Os sintomas não passam mesmo estando longe da fonte de infecção. – Cecily levantou o olhar para encará-lo. – Concluí que é melhor ficar perto da fonte. Quem sabe com o tempo, a doença perde a força. – Serão apenas mais algumas semanas – Marc sussurrou, enlevado pela paixão que brilhava nos olhos dela. – Mais algumas semanas – ela concordou e olhou de soslaio por cima dos ombros, antes de sussurrar: – O que houve? Pensei que com a volta do rei Jean… – Cecily interrompeu a fala para fitá-lo com a intensidade de quem exige respostas e não como uma dama falando de amenidades. – Por que você não voltou para a França? Marc não tivera chances de contar a ela o que Enguerrand havia lhe dito na festa na mansão dos Picard, mas ainda estava inseguro de revelar seus sentimentos. – O rei não trouxe minha libertação. – Pelo visto, nem a dele – disse ela, compartilhando a indignação. – Sinto que nada tenha mudado. – Parece que nossos reis precisam negociar, antes da libertação de qualquer refém. – Você sabe do que se trata? – Um cavaleiro de baixo escalão não tem acesso a esse tipo de informação. – Sei o que é esperar a decisão de um rei – disse ela, suspirando. – Aquele foi o escolhido? – Marc indagou, inclinando a cabeça na direção do cavalheiro com quem ela conversava e que, no momento, falava com outro homem. – Os nomes dele e de mais alguns foram mencionados. Marc deu de ombros. – A princesa não deu nenhuma pista sobre seu futuro? Isabella o fulminou com o olhar. – A princesa está preocupada com outras coisas. Marc percebeu o tom áspero de voz de Cecily. Você esteve com ela. Ele olhou ao redor e localizou Enguerrand e Isabella conversando a uma distância respeitosa um do


outro. Ambos sorriam contidamente. – Ele tem falado dela? – Cecily perguntou baixinho. Ao fitá-la, Marc soube que, mesmo que não houvessem comentado, ela sabia o que havia acontecido na noite de Natal. Mas o que teria ocorrido desde então? – Os homens guardam segredos como esse para si. – Será que Isabella estava grávida? Perguntar seria uma traição. – Mas parece que nossos esforços de separá-los não adiantaram nada. – Serviu para nos aproximar. O resultado parecia inevitável. Se eles não tivessem se empenhado tanto em afastar Enguerrand de Isabella, não teriam passado muito tempo juntos. Mas a vida não é feita de se fosse, mas sim do que é. – O conde de Northland está me esperando. Preciso… – disse ela, olhando por cima do ombro. – Claro – disse ele, meneando a cabeça. Cecily não saiu de imediato. – Quando… – Marc iniciou a pergunta, mas não a terminou. Quando a verei de novo? Uma pergunta tão melancólica quanto a dela havia sido. – Logo – ela respondeu da mesma forma, cheia de compaixão. – Lorde de Coucy visita sempre o palácio. Marc e Enguerrand estavam juntos no amor e tão silenciosos quanto se estivessem indo para a guerra. Claro que nenhum dos dois sairia ileso, sem ferimentos. DEPOIS DE muito tempo preso entre as paredes do castelo, Marc precisava relaxar praticando luta com a espada, mesmo que esta fosse de madeira e que o oponente não passasse de um boneco de madeira preso na terra, usado para que os pajens treinassem seus golpes. O rei Eduardo havia sido generoso em abrir o campo de treinamento para os reféns. Numa fria tarde de final de janeiro, Marc entrou no campo gelado do Castelo de Westminster levando uma espada de madeira, mas, para sua surpresa, não encontrou nem um pajem, nem um cavalariço, mas sim o jovem Gilbert. Ele estava golpeando o boneco com muito entusiasmo, tal qual estivesse numa batalha. Marc ficou observando as habilidades dele de longe. Gilbert tinha uma boa visão de combate e muita força de vontade. Se melhorasse a postura e fosse bem treinado, sir Gilbert podia se tornar um bom oponente. Se fosse essa sua vontade. – Endireite as costas e não levante tanto os ombros. Gilbert se assustou, mas continuou com as duas mãos firmes na empunhadura da espada ao se virar para Marc. Quando viu quem havia falado, ele fez uma pausa. – Então, me ensine. – Como? – perguntou Marc, ganhando tempo para pensar. – Quero que me ensine. – A resposta foi mais um desafio do que um pedido. – Eu treinei lorde de Coucy – disse Marc, sorrindo de lado. – Você acha que está à altura dele? – Acho que sou páreo para você – respondeu Gilbert com o queixo erguido. Enguerrand teria respondido o mesmo anos antes. Marc era apenas cinco anos mais velho do que o amigo, que procurava alguém para orientá-lo depois da morte do pai. E Marc? Talvez ele estivesse procurando um irmão mais novo para substituir aquele que a mãe havia perdido.


Voltando ao presente, Marc fitou Gilbert imaginando o que esperar daquele jeune homme. Bem, se tivesse mesmo de deixar Cecily, podia treiná-lo para protegê-la na sua ausência. – Vamos começar. Os dois passaram o resto da tarde lutando com pesadas espadas de madeira e suando, apesar do frio. O treinamento não podia ser feito com espadas verdadeiras e as de madeira eram mais pesadas, para que os homens se tornassem mais fortes; assim, quando usassem as armas de aço, as achariam mais leves. Aos poucos, outros observadores chegaram ao campo, franceses e les maudits, e começaram a gritar advertências e conselhos, forçando os dois combatentes a fazerem o melhor. Já era noite quando os dois deixaram as armas e voltaram juntos para o castelo, conversando sobre forjadores de espadas e escudos e como um homem podia dormir no chão duro depois de ter cavalgado o dia inteiro. – Quanto tempo ainda preciso treinar para poder lutar? – Gilbert perguntou. – Para participar de uma Cruzada? A primeira reação de Marc foi responder que nunca. Ah, um homem podia treinar o físico, desenvolvendo força e massa muscular. No entanto, o espírito nunca estaria preparado para sofrer as feridas invisíveis, que eram muito mais profundas do que golpes de lança ou espada. Marc se entristeceu ao lembrar do que já havia perdido e pelo o que aquele rapaz talvez se tornasse. – Ça depend. O tempo dirá. ALGUNS DIAS mais tarde, Cecily desfez o último baú de viagem que havia sido mandado de Windsor a Westminster e encontrou uma pequena caixa que não reconheceu. – Isto é seu, Isabella? – Não. O que tem aí dentro? Joias que você esqueceu? Só mesmo uma princesa teria tantas joias a ponto de esquecer algumas. – Deve ser um relatório do encarregado do Castelo de Losford sobre os armazéns. – Algo com que Cecily já devia ter se preocupado. Como a caixa não estava trancada, Cecily abriu a tampa e deparou-se com alguns pergaminhos, e, com as mãos trêmulas, segurou-os. Eram os desenhos da efígie de seu pai. Ela se lembrou de que os tinha visto antes de sua mãe morrer. Lady Losford havia passado instruções ao escultor com algumas mudanças e guardou-os onde poderia encontrá-los facilmente. Mas onde estariam os desenhos da imagem da mãe dela? – Lorde de Coucy virá aqui depois do meio-dia – disse Isabella. – Eu… preciso contar a ele. – Você tem certeza? Isabella ainda não apresentava mudanças no corpo. Os períodos das mulheres não eram necessariamente regulares, por isso, a falta de um mês ou dois podia não significar nada. Mas Isabella, serena como a Madonna, estava com as mãos sobre o ventre como se pudesse sentir o bebê. – Eu sei que sim. Será que ela sabia mesmo ou apenas quisesse acreditar? – O que você pretende fazer? E seus pais? Você não pode… – Quero contar a De Coucy antes de mais nada. Trataremos do resto… depois. Uma criada entrou e interrompeu a conversa.


– Lady Isabella, lorde de Coucy e o cavaleiro De Marcel a aguardam. Isabella ergueu uma das sobrancelhas. – Talvez ele tenha solicitado a companhia de Marc – observou Cecily. – Vou mantê-lo ocupado para que você possa conversar com Enguerrand. A criada deixou a sala e os dois homens entraram. Isabella relanceou o olhar para Cecily e, com a mão apoiada no braço de Enguerrand, guiou-o para outra sala. – Venha comigo, preciso lhe contar uma coisa. Sozinhos, Cecily e Marc se entreolharam sem jeito. Será que havia passado uma semana desde a última vez em que tinham se visto? Pareciam meses… A voz de Isabella podia ser ouvida apesar da porta fechada, mas não era possível distinguir suas palavras. – Venha, Marc – Cecily o chamou para longe da porta, para a outra sala, a fim de se certificar de que ele não ouviria nada. Marc se aproximou, olhando por cima dos ombros dela. – O que é isso? – É o desenho da efígie dos meus pais. Marc pegou o pergaminho sem dizer nenhuma palavra de surpresa e o estudou como se estivesse muito interessado. – Isso será uma honra para um guerreiro de valor. Cecily gostou do elogio, mesmo que Marc não o conhecesse e fosse um inimigo. Quando ela voltou a olhar para o desenho, achou que a figura numa armadura parecia estranha até para ela. Provavelmente quando o rosto de seu pai fosse esculpido, também lhe pareceria estranho. O escultor não conhecera o pai dela, apenas a mãe. – E sua mãe? – perguntou Marc, apontando para a outra imagem no desenho. A outra imagem carecia de detalhes, mas era a forma de uma mulher que representaria a mãe dela. Não tinha sido tão importante na época, pois seria decidido mais tarde, ou essa teria sido a intenção. – Ela escolheu algumas coisas, mas… – Cecily revirou o baú, mas não encontrou mais nada. – … não sei o que ela queria. – O que você decidiu fazer? Cecily recolocou os pergaminhos de volta e fechou a tampa da caixa. Ela ainda não tinha resolvido nada, pois mais uma vez havia deixado as emoções sobrepujarem o dever. – Eu disse ao escultor para que fizesse o melhor possível. – E quando voltasse para casa, ela seria forçada a encarar as imagens dos pais no túmulo e se despedir mais uma vez. Ela se afastou e continuou a falar: – Só em olhar estes desenhos lembro que eles se foram. Mas se existe um Deus generoso, pais morrem antes dos filhos. – Ainda assim ela não havia perdoado Deus por ter lhe tirado os pais. – Você acha que Deus foi bom quando seus pais morreram? Uma pergunta cruel e amarga que chocou Marc. – Não. Não era a primeira vez que ela expressava seus sentimentos, esquecendo-se dos dele. Ao perceber que havia sido rude, ela colocou a mão no braço dele e continuou: – Desculpe-me, estou parecendo uma criança sem juízo. Eu não quis lhe trazer lembranças antigas. – Saí de casa aos 7 anos. Vivi sem meus pais por muito tempo. Todos aqueles que treinavam para serem guerreiros saíam cedo de casa; mesmo assim, ela não podia


imaginar crianças deixando os pais, já que os dela haviam sido muito presentes na sua vida. – Então, você não se lembra deles? – Claro que sim! – exclamou ele num tom hostil como se ela o tivesse acusado. – Ganhei minha primeira espada do meu pai antes de fazer 7 anos. Ele me disse que eu teria de ser forte e corajoso para enfrentar a vida, pois ele havia sido um cavaleiro, mas não possuía terras. Depois disso, ele me mandou para o lorde de Coucy, pai de Enguerrand. Meu pai devia acreditar muito no meu potencial para ter convencido um lorde eminente para assumir meu treinamento. Marc falou mais do que de costume e calou-se em seguida. Cecily achou ter ouvido a voz de De Coucy da outra sala num tom mais alto do que esperava. – Depois você o perdeu – disse ela, para abafar o som das vozes do cômodo ao lado. – Sim, em Crécy. – Seu pai também morreu numa batalha contra os ingleses. Pode ter sido morto pelo meu pai talvez. – Ela mal aceitara a verdade ainda. Depois de tê-lo acusado inúmeras vezes, era ele que havia perdido o pai nas mãos do inimigo, e não ela. – Eu disse tantas coisas nesses últimos tempos… e você não refutou. Por quê? Apesar de ser um guerreiro, Marc nunca revidara os golpes recebidos por Cecily. – Você tinha suas próprias batalhas a vencer – disse ele, dando de ombros. No entanto, em vez de enfrentar essas batalhas e seus demônios internos, Cecily voltara toda sua ira para ele. Por um momento Marc imaginou como seria a reação dela se ele tivesse perdido a paciência com tantas lamúrias e dito a ela que havia perdido o pai na guerra. Teria agido corretamente deixando que ela descobrisse tudo no tempo certo? – Você é um bom homem, Marc de Marcel, embora finja não ter honra. Cecily havia lutado contra seus próprios sentimentos, mas nunca se expusera com tamanha fragilidade quanto Marc ao ouvir suas palavras. A música vindo da outra sala a distraiu e a tranquilizou. Talvez estivesse tudo bem com Isabella e Enguerrand. Marc meneou a cabeça. – Os primeiros passos depois que você se solta do que a sustentava são incertos, assim como o segundo e o terceiro. E quando você está mais seguro, acaba tropeçando numa pedra no caminho, mas instintivamente sabe que precisa continuar andando. Ele havia se convencido daquele pensamento a duras penas. Desde que o conhecera, Cecily o achava insensível. Mas descobrira que era apenas a maneira silenciosa e perseverante que ele havia escolhido para encarar a vida. Pelo menos ele havia encontrado um caminho, enquanto ela se escondera num passado que não poderia reviver, esquecendo-se do presente. – Esse é um pensamento sábio. – Serviria para ajudar De Coucy, mas Cecily não podia tocar no assunto. – Lamento não ter percebido antes. – Sábio? – Marc balançou a cabeça. – Eu diria que um jeito teimoso de encarar a vida. – E requer muita coragem para seguir vivendo. Marc se levantou e seguiu até a janela para fitar o céu cinzento de inverno. – Mas não fui corajoso com você. De repente, Cecily se sentiu corajosa o suficiente para se arriscar a ser feliz por breves momentos, mesmo sabendo que não duraria muito mais do que isso e que também perderiam um ao outro. – Não podíamos ser corajosos juntos por mais algumas semanas? Seria uma bobagem irracional, pois o rei podia nomear o homem que se casaria com ela a qualquer


momento. Mesmo que eles conseguissem ficar juntos sem serem notados, não seria muito mais difícil se separar depois de…? Apesar de a razão tentar se fazer presente, o coração de Cecily batia em descompasso ao aguardar uma resposta dele. O silêncio foi interrompido pelo riso de Isabella na sala ao lado. – Parece que eles estão bem – observou Marc. – Nós também podíamos, contanto que não… – A menos que não… – Exatamente. – Até que… Até que ela se casasse, ou se o resgate fosse pago e Marc liberado, ou qualquer outra coisa fora do controle os separasse. Cecily estava disposta a continuar a encontrá-lo mesmo que sua consciência a culpasse, atormentando-a a todo momento. – Até a Páscoa? A conversa foi interrompida com a entrada de Enguerrand e Isabella na sala. Nada mais foi dito além da despedida formal. Quando Marc olhou e sorriu por cima do ombro, Cecily já contava as semanas que faltavam para a Páscoa, desejando que o inverno se estendesse o máximo possível.


Capítulo 16

DIAS DEPOIS, Isabella perdeu o bebê. No cair daquela tarde, ela havia se retirado para os aposentos, enjoada e reclamando de dor no estômago. Chamou Cecily para lhe fazer companhia. Conforme as horas foram passando, as dores aumentaram, culminando num sangramento. Mais tarde elas definiriam que o fluxo tinha sido maior do que o mensal. Isabella chorou de dor, tristeza e alívio. Cecily não saberia explicar qual dos sentimentos fora mais forte. – É melhor você ir – disse ela, exausta e pronta para dormir depois que os lençóis tinham sido trocados de madrugada. – Encontre Enguerrand e conte a ele… o que houve. – Vou sim – murmurou Cecily. – Por favor, vá agora e não deixe que ninguém a veja – implorou Isabella segurando as mãos de Cecily com força. Cecily pensou em protestar, alegando que seria impossível se esgueirar sozinha pelas ruelas, mas pensou que podia ser ela naquela cama, sofrendo as dores por ter perdido uma criança. Se Marc não tivesse sido forte… Ao sair do quarto, ela decidiu que seria melhor ir até o Palácio de Savoy não como uma condessa, mas vestida como uma mulher comum. Seria mais fácil passar despercebida. Mas o que diria se fosse descoberta? Ou seria pior se manter incólume e se passar por uma mulher disponível vagando pelas ruas? Cecily vestiu a roupa de lã mais simples que tinha, cobriu o cabelo com um lenço de linho e colocou um avental igual ao que as lavadeiras usavam. Munida de uma trouxa com roupas, ela passou uma echarpe de lã na cabeça para cobrir o rosto e saiu do castelo. Uma condessa provavelmente chamaria um barqueiro para levá-la a outro local, mas uma lavadeira


teria de ir a pé, seguindo a curva do rio entre o Castelo de Westminster e o Palácio de Savoy. Apressando o passo, ela atravessou as ruas sem perder o rio de vista para se localizar. O sol não demorou a aparecer, derretendo a camada de gelo sobre as ruas. Quando finalmente ela chegou ao palácio onde a corte francesa se hospedava, estava de fato parecendo uma lavadeira. Os guardas a direcionaram para os portões laterais. Seria perigoso demais perguntar pelo lorde de Coucy, então ela pediu para que chamassem o cavaleiro De Marcel, fingindo não ouvir os gracejos sobre as preferências do cavaleiro por lavadeiras no meio da manhã. Marc estava com Enguerrand quando ela entrou na sala. Ambos se surpreenderam ao reconhecê-la. Enguerrand tratou logo de dispensar os criados. Sozinha com os dois, Cecily tirou a echarpe da cabeça e deixou cair a trouxa de roupa no chão. – O que você está fazendo aqui? – Marc perguntou antes do amigo, com a voz preocupada. Cecily olhou para De Coucy sem saber ao certo por onde começar. A expressão do rosto dele era tão ferina quanto a de um falcão. Era como se ele já soubesse e estivesse esperando pela notícia. – Isabella. Não foi uma pergunta. Cecily meneou a cabeça e olhou de soslaio para Marc. Será que ele estava a par da situação? Será que homens conversavam sobre essas coisas? Ela não poderia contar a ele um segredo que não era seu, mas Isabella havia lhe contado tudo. Será que eles também tinham essa intimidade? Os dois se entreolharam e De Coucy meneou a cabeça para que ela continuasse. Cecily respirou fundo e disse de uma vez: – Ela perdeu o bebê. Marc se antecipou ao lado dela com receio que ela caísse. – Mas Isabella, ela está… – Enguerrand empalideceu e não conseguiu terminar a frase como se temesse o que ouviria. – Ela está fraca, mas vai se recuperar. Enguerrand não disfarçou o alívio e se deixou cair numa poltrona como se suas últimas forças o tivessem mantido em pé. – Você veio sozinha? Atravessou as ruas? – Marc indagou, preocupado com ela. – Não podíamos confiar em ninguém para vir. Marc inclinou a cabeça e não disse mais nada. Os pais dela certamente a repreenderiam, pois uma condessa não devia se disfarçar e andar sozinha pelas ruas. Mas Marc, acostumado que estava em cumprir obrigações, não questionou a decisão dela. Cecily fez o que tinha de ser feito. – Você não deve voltar sozinha – disse ele, sem sair do lado dela e consultando Enguerrand com o olhar. Enguerrand continuava imóvel. Cecily tentou decifrar sua reação, se havia ficado preocupado ou aliviado, pois Isabella certamente iria perguntar. Ainda de cabeça baixa, ele apenas acenou para que Marc e Cecily saíssem. – Vão. Os dois relutaram por alguns instantes e obedeceram. – Você sabia de tudo, não é? – Cecily exigiu quando deixaram a sala, embora não estivesse certa se devia acusá-lo de alguma coisa. – Eu sabia o suficiente – ele respondeu. Ele já havia falado que homens não conversavam sobre certos assuntos. Se bem que nem sempre se


usavam palavras para que um amigo soubesse o que o outro estava passando. – Preciso agradecer mais uma vez. Naquela noite, se você não fosse um homem honrado… Eu podia estar como Isabella, ou pior. Marc segurou o rosto dela com as duas mãos, um gesto que queria dizer gosto de você. – Minha mãe morreu… ela e o bebê, meu irmão… Apesar de ser um homem tão forte, ele tinha dificuldade de falar sobre o perigo que uma mulher corria todos os dias. – Sinto muito. – Havia muitas maneiras de ser perder entes queridos. Marc afastou as mãos como se não tivesse gostado de ela sentir pena. – Já faz muito tempo. Não penso mais neles. – É verdade? – Cecily sentiu uma pontinha de inveja. Seria muito bom se pudesse ser tão forte assim. Os olhos dele brilharam por uma fração de segundo. – Não penso mais do que uma vez por dia – confessou Marc, esboçando um sorriso. Juntos eles desceram a escadaria em silêncio. Como Marc fazia parte da corte do rei, ele tinha liberdade de ir e vir quando quisesse. Cecily se sentiu estranhamente livre. Ninguém a notaria vestida com roupas comuns e ao lado de um cavaleiro. Ninguém a julgaria e tampouco a condenaria. O sol reluzindo no céu azul levou a maioria dos londrinos para as ruas. As pessoas levantavam o rosto para aproveitar o calor como testemunhas de que o tempo não ficaria cinza e frio para sempre. Cecily já havia passado por Londres várias vezes, a caminho de alguma cerimônia, ou para participar de torneios nos castelos próximos. Mas nunca se misturara com as pessoas como parte integrante da cidade. Agora estava perto de pessoas comuns, vendedores de lenha ou alimentos. Como não estava montada em nenhum cavalo portentoso, ou a bordo de uma liteira, ela não chamou muito a atenção. Pela primeira vez, ela se sentiu como se fosse invisível. Não usava o disfarce de uma condessa, apenas roupas de mulher comum, fazendo o que qualquer uma fazia. – Precisamos voltar já? – indagou ela com a mão sobre o braço dele. – A princesa não está esperando você? – Foi uma noite muito difícil. Acho que ela vai dormir bastante. Marc abriu um sorriso largo como o de um menino. – O que gostaria de fazer? Ser uma pessoa comum. – Ficar com você. Os dois mudaram o caminho e, em vez de irem para o Castelo de Westminster, foram para a cidade. Não seguiam para nenhum lugar certo, mas Cecily se sentia protegida com Marc a seu lado. Além do mais, pelo menos por aquele dia, ela não era uma condessa. Parecia que ninguém os estava vendo. Ninguém se virou para olhá-la uma segunda vez, esperando um comportamento adequado. Sendo assim, ela podia olhar para Marc com um sorriso tão corajoso e feliz quanto o dele. Feliz por poder demonstrar seus sentimentos. Durante o passeio, num momento mais silencioso, Cecily ouviu o estômago roncar. Marc começou a rir de verdade, de um jeito espontâneo que ela nunca tinha visto. – Eu não comi nada desde que a princesa… – O sorriso se esvaiu, mas não precisava falar no assunto de novo. A noite escura tinha sido longa a ponto de ela não imaginar que um dia de sol podia apagá-la. Como se os tivesse ouvido, um vendedor de rua gritou: – Salsichas quentes! Queijo! Tortas!


Marc e Cecily estavam perto do rio e ao longo do muro de proteção havia vários vendedores de comida. Ela abriu a bolsinha que carregava no pulso e tirou uma moeda. O normal seria pedir a uma criada que lhe trouxesse comida. Como não era o caso, ela se sentiu fortalecida ao estender a moeda ao vendedor e receber de volta duas tortas de carne. – Não tem nenhum legume – disse ela sorrindo a dar uma das tortas para Marc. – Eu juro. Marc sorriu, satisfeito. Ninguém nunca se lembrara de que ele odiava legumes. Os dois continuaram o passeio enquanto comiam. Ao terminar de comer, Cecily lambeu os dedos sem nenhuma cerimônia. As nuvens encobriram o céu claro, anunciando o final da tarde, e um golpe de vento levou o cheiro do rio para as ruas. – Devo voltar agora – disse ela, relutante. Marc assentiu. Sem dizer mais nada, eles retomaram o caminho para o Castelo de Westminster, andando tão próximos que nem o vento ousava separá-los. Marc segurou a mão dela, escondendo-as entre a capa e o vestido, e diminuiu o passo. Havia algumas construções ladeando a estrada perto da construção. Em vez de andarem com a multidão, preferiram andar sozinhos. A uma distância segura dos portões do castelo, onde ainda não podia ser reconhecida, Cecily soltou a mão dele e colocou a echarpe sobre a cabeça, escondendo o rosto. – Preciso deixá-lo agora. Marc olhou para a torre da guarda do castelo. – Eles não a deixarão entrar sem se identificar. – Se ao menos eu pudesse mandar um recado para Isabella. Não era uma boa opção, pois os criados a veriam e suspeitariam. – Tenho uma ideia – disse Marc, passando o braço pelos ombros dela, escondendo-lhe o rosto. – Venha comigo. Ele começou a cambalear como se tivesse bebido muita cerveja. Cecily tropeçou, mas voltou a segurálo com força. – O soldado irá achar que bebi demais e trouxe uma mulher comigo de volta ao castelo. Cecily sentiu o rosto corar e começou a rir de nervoso, mas empenhou-se em segurá-lo e agir como se fosse uma meretriz, sem levantar o rosto ao se aproximarem da torre dos guardas. – Tenha pena de um homem num dia frio – Marc gritou, balançando o corpo de uma perna para a outra como se não se aguentasse em pé. – Estou muito longe da minha cama e preciso me esquentar com esta aqui. Assim dizendo, ele levantou o queixo dela e a beijou com paixão e demoradamente como se estivessem sozinhos no mundo. Cecily retribuiu o beijo, tentando se convencer de que aquilo fazia parte do disfarce, embora soubesse que o arrepio que correu por sua espinha era bem real. Foi um momento tão mágico que ela se esqueceu de quem era e deslizou as mãos pelas costas de Marc como se… – Podem entrar – o guarda os convidou, rindo. – Entre logo antes de assustarem os animais. Cecily começou a rir e sentiu os joelhos fraquejarem. Marc a levantou no colo e depois de um sorriso malicioso para o guarda, carregou-a para dentro. Ela o laçou pelo pescoço e manteve a cabeça baixa até ele dizer: – Pronto, estamos em segurança. – E a colocou no chão. Ela sentiu as pernas tão fracas quanto havia fingido para passar pelo portão. Eles entraram por um


corredor que ela não reconheceu. Não havia ninguém ali além de Cecily apoiada contra a parede e Marc bem próximo. – Se vir alguém vindo em nossa direção, beije-me de novo – sussurrou ele. Foi difícil resistir à vontade de beijá-lo de qualquer jeito como faria se estivesse mesmo bêbada e louca como havia fingido. Em vez disso, respirou fundo a fim de reassumir a postura da condessa de Losford. – Acho que isso foi a pior coisa que já fiz – disse ela, tentando se manter firme. Marc abriu um sorriso indulgente e gentil como se ela não pudesse fazer nada errado. – Se isso foi a pior arte que você já fez, imagino que tenha sido uma filha perfeita. – Não mesmo. – Ela balançou a cabeça. – Eles não me achavam… Será que ela estará pronta algum dia? Cecily não queria pensar naquilo agora. Restavam apenas alguns minutos mais para ficarem juntos e aproveitar o entardecer. Ali ela ainda não era uma condessa, mas sim Cecily. Apenas uma mulher. Sentindo-se assim, ela entremeou os dedos pelo cabelo dele como se fosse uma mulher comum, ou então uma esposa possuidora do direito de acariciar o marido. – Qual foi a pior coisa que você já fez? – Ela perguntou num sussurro. Apesar da luz fraca, ela viu que a ternura desapareceu do rosto dele. – Vi outros homens praticarem o pior e não fiz nada para impedir. As memórias de Marc deviam ser horríveis. Cecily jamais saberia pelo que ele havia passado, mas também não tinha certa de que gostaria de saber. De repente, ouviram-se vozes de dois homens. Seriam escudeiros, ou ajudantes de cozinha? Marc a abraçou, escondendo-a. Cecily colou-se ao corpo dele na esperança de que o calor de seu corpo pudesse confortá-lo das lembranças ruins, assim como ele a tranquilizava. Fingiu não ter ouvido os comentários dos rapazes que passaram rápido, deixando-os a sós de novo. – Preciso ir embora. Cecily concordou com um sinal de cabeça e cobriu os lábios dele com um beijo apaixonado sem fingir ser outra pessoa senão ela mesma, porém ciente de que voltava a sua vida de condessa. Era melhor não ser surpreendida na companhia de Marc de Marcel de novo. Quando se vissem novamente estariam entre outros membros da corte. A salvo. APESAR DAS preocupações de Cecily, Isabella se recuperou bem e rápido, voltando a ser ela mesma, sorridente e alegre. A Isabella de sempre. Cecily não conseguiu identificar o que Enguerrand estava sentindo e Marc encolheu os ombros quando foi questionado. Homens não conversam sobre essas coisas. Mesmo assim, Isabella estava disposta a se divertir na companhia do lorde de Coucy. – Enguerrand e eu estamos preparando uma nova brincadeira – Isabella anunciou com o rosto corado como o de uma menina. Cecily tentou se lembrar do que tinham feito na noite de Natal, quando estava preocupada com outras coisas. – Você vai pedir para Machaut cantar uma de suas músicas? – Dessa vez não, apesar de que ele canta tão bem. – Isabella suspirou e sorriu em seguida. –


Planejamos outra coisa. Vamos apresentar uma cena das histórias do rei Arthur. Cecily franziu a testa, imaginando o que viria a seguir. – Qual papel você fará? – Guinevere. – E Enguerrand? – indagou Cecily, pressentindo o pior. – Lancelot, claro. Guinevere e Lancelot foram adúlteros, além de terem sido punidos com um destino ruim. Cecily teve receio em perguntar qual cena seria representada. – Você acha que pode persuadir seus pais… – Mamãe já consentiu. Cecily tentou raciocinar apesar de estar perplexa. – Você não contou nada a ela,não é? Não sobre… – Cecily não terminou a frase. – Ora, claro que não. Ela me prometeu convencer meu pai. Isabella precisava da aprovação do pai. Eduardo sempre ouvia os conselhos das mulheres e os levava em consideração mais do que a maioria dos reis. Se bem que Isabella era sua filha favorita e muito mimada. Bem, se ele havia permitido que ela desfizesse um acordo de casamento, por que não a deixaria interpretar uma cena histórica? – Ela já falou com ele? Isabella respondeu que não com um sinal de cabeça. – Meu pai adora as histórias do rei Arthur. Minha mãe achou que uma encenação sobre uma dessas histórias poderia melhorar o humor dele. – Eu sei que ele gosta. As histórias do rei Arthur estavam enraizadas na corte desde que Cecily era pequena. Ela achava que aquelas fábulas motivavam o rei mais do que qualquer conto bíblico. Mas Isabella estava sendo teimosa. – Por que não Guinevere e Arthur? – Ora, porque Enguerrand é francês. Cecily riu ao ouvir a explicação e achou graça em si mesma por imaginar que podia evitar que Isabella fizesse o que lhe desse na cabeça. MAIS TARDE, quando o rei viu Guinevere e Lancelot cantarem e dançarem com sorrisos recatados, inclinou a cabeça em sinal de aprovação e curvou-se para ouvir o que a rainha queria falar ao tocá-lo no braço. Cecily não podia nem olhar na direção de Marc. O amor havia feito todos de tolos, mas apenas Isabella e Enguerrand colheriam as recompensas. Os deveres de Cecily, aos quais lhe eram tão importantes havia poucos meses, pareciam obrigações empoeiradas e frágeis demais para se apoiar para o resto da vida. Ainda assim, ela guardava esperanças de não se apaixonar pelo homem que o rei escolheria para ser seu marido. Assim não haveria lágrimas, nem dor caso se separassem por alguma razão. Ela não suportaria perder mais ninguém que amasse.


Capítulo 17

A PÁSCOA chegou marcando o quarto ano da morte do pai de Cecily. E com ela veio a primavera, o céu mais claro sem sinal das chuvas, e a neve se derreteu. As cortes francesa e inglesa celebravam juntas em vez de guerrearem. Para celebrar a data, os reis Eduardo e Jean trocaram as vestes por outras de tecido semelhante que os faziam parecer irmãos e não inimigos. As negociações e as conversas dos monarcas eram muito discretas. Cecily só ouvira comentários furtivos. O rei Jean havia voltado não só no papel de refém, mas também de negociador com a intenção de persuadir Eduardo a reduzir a quantia do resgate pedido pela França de acordo com o Tratado. Até Cecily sabia que Eduardo não iria ceder, mas a negociação desviou a atenção do rei da busca de um marido para ela. Enquanto isso, ela e Marc ficaram mais próximos e a sombra do futuro marido, ao contrário, cada vez mais distante. Ela estava feliz e sentindo-se quase em toda sua plenitude. A doença do rei da França logo depois da Páscoa ameaçou a felicidade de Cecily. Uma lembrança cruel de que nada durava para sempre, independente de serem coisas boas, ruins, ou o limbo no qual ela vivia com Marc. Dias se passaram e o rei Jean não saiu da cama. Os dias ficavam mais quentes, mas ninguém percebeu. Eduardo mandou chamar seus médicos para atenderem le roi Français. Os franceses se reuniam próximos ao seu monarca, aflitos por uma notícia boa. Cecily procurava confortar Marc, apertando-lhe a mão quando estavam sozinhos. A corte inteira estava em suspenso, aguardando a recuperação do rei Jean. MARC E Cecily, Isabella e Enguerrand estavam juntos quando chegou a notícia. – Le roi est mort. – Morto? – Marc estava incrédulo. – O rei morreu? – Mas ele estava se recuperando. Como… ? – indagou Cecily, pálida estendendo a mão para


confortá-lo. Cecily aprendeu com muito sofrimento como a vida era curta e a morte tão injusta. A primeira reação de Marc foi raiva contra aquele país amaldiçoado e o frio. Ele queria encontrar alguém para culpar… mas quem? Cecily tinha razão. O frio não era culpa do rei inglês ou seus conterrâneos. O pai dela havia morrido na França e agora o rei francês falecera na Inglaterra. Marc admirava muito o rei, mas ao observá-lo durante os últimos meses começou a duvidar se ele era mesmo um homem digno ou apenas um teimoso preso a um mundo de ideais próprios. Marc havia sido testemunha da coragem de seu rei, que lutara até o fim na Batalha de Poitiers. Mas se ele tivesse recuado, ou se a batalha tivesse ocorrido em outro dia, talvez a França tivesse vencido. Analisando mais friamente, até mesmo a volta dele à Inglaterra parecia mais uma questão de conforto do que de honra. Ele havia tentado persuadir o rei Eduardo a ajustar os termos do Tratado, mas sem deixar de aproveitar a comida, bebida, música, festejando mesmo sendo um prisioneiro. Agora era tarde demais para saber as verdadeiras intenções do rei Jean. – Preciso ver meu pai – disse Isabella, segurando o vestido e seguindo apressada para a porta. – Ele deve estar lamentando a morte de seu companheiro real e talvez precise de ajuda com os preparativos… Isabella olhou para Enguerrand, mas foi Cecily que saiu com ela da sala. Assim que a porta se fechou, Marc comentou: – O rei Eduardo não está apenas lamentando. Ele perdeu seu refém mais valioso. – Que razão teria a França para pagar milhões de écus por um rei morto? – indagou Enguerrand, meneando a cabeça. – Porque foram os dois que assinaram o Tratado. – Charles será o futuro rei. A honra dele não está em risco. Sempre houve muitos opositores ao Tratado, que agora podem considerá-lo desfeito. As palavras de Enguerrand ficaram suspensas no ar. Num primeiro momento, Marc havia se preocupado com o rei, mas agora se concentrava numa questão mais pessoal. Ele acreditou que o rei havia levado o resgate para libertá-lo, mas, como a expectativa não se confirmou, sua esperança era de que o compte cumprisse a promessa seguindo o código de conduta. Mas a Páscoa havia passado e nada acontecera. Por que o compte pagaria o resgate agora? Ele e o novo rei tinham destinos melhores para o dinheiro do que a liberdade de um simples cavaleiro. Enguerrand colocou a mão no ombro do amigo, trazendo-o de volta de seus pensamentos. – Precisamos honrar nosso rei em sua morte. O rei Eduardo planeja um funeral real. – Mas ele não pode ser enterrado em solo inimigo. – Não. Ele voltará para casa. Até mesmo na morte o rei voltaria para casa antes de Marc de Marcel. A menos que… Duzentos cavaleiros tinham vindo para a Inglaterra acompanhar o rei. Alguns deles podiam continuar ali. Marc já tinha sofrido por tempo demais. – Voltarei com ele. Nós dois podemos levá-lo para casa – disse Marc, segurando firme a mão de Enguerrand. OS ÚLTIMOS cânticos da missa do enterro do rei francês ainda ecoavam nos ouvidos de Cecily enquanto corria pelos corredores de Westminster a caminho dos aposentos do rei Eduardo. Ele tomou uma decisão.


Os últimos dias tinham sido enevoados com os preparativos às pressas para o majestoso enterro do rei Jean. A comunidade francesa estava de luto e ela mal vira Marc. Quando o encontrou ele estava sério e muito triste com a morte de seu soberano. Ela esperava que ele se sentisse honrado pela deferência prestada pelo rei Eduardo ao organizar um funeral à altura de um monarca parente por sangue, pelo código de conduta e um lutador cristão. Cecily ainda vestia preto quando entrou nos aposentos reais. Ao se deparar com o rei tão abatido, lembrou-se da tristeza de perder um ente querido. Eduardo era mais velho do que o soberano francês. Seus ombros estavam arqueados e ela teve receio de que ele pudesse falecer tão rápido quanto o rei Jean. Ou mesmo como seus pais. Ela não conhecera outro monarca que ocupara o trono da Inglaterra além de Eduardo. Agora, estava ali diante dele com a cabeça erguida, mas com o coração partido, como se aguardasse sua sentença de morte. Mas era sua obrigação, sempre fora, aceitar a decisão do rei. Não lhe restava alternativa a não ser se mostrar preparada. Mesmo assim… – Foi um dia muito triste – disse o rei. – É verdade, Vossa Graça. – Escolhi um marido para você. Então as suspeitas dela eram verdadeiras. – Mas, já? Apesar da longa espera, da dúvida, parecia que os dias tinham passado voando. Mesmo na expectativa, Cecily não pensara em outro homem a não ser Marc. – Ah, Cecily, você é tão jovem. Para você a vida parece muito longa. A morte do rei Jean deve ter lembrado Eduardo que não se podia prever quantos dias ainda lhe restavam, por isso, era preciso tomar uma decisão. – Ah, Vossa Graça, sei que não é assim. – Sinto falta dele ainda. – Eu também. Tenho saudades dos dois. Ainda assim, ela não tinha derramado nenhuma lágrima durante o funeral do rei Jean. Talvez tivesse se recuperado finalmente. Mas teria se curado com o tempo ou Marc de Marcel também ajudara? – Seu novo marido a ajudará a preencher o vazio em sua vida. Marido. Marc foi a primeira pessoa que veio na mente dela. – Quem Vossa Graça escolheu? – O conde de Dexter. Cecily tentou se lembrar do conde, a quem tinha visto há muito tempo. Era um homem honrado, mas com idade suficiente para ser seu pai. E estava longe de ser forte como Marc. Não, era melhor não pensar mais em Marc. – E então? Não vai dizer nada? – indagou o rei. Como poderia discutir com o rei? Mesmo se tivesse essa honra, o que diria? Eu me apaixonei por um refém francês…? Seu dever era agradecer, embora não conseguisse pensar direito. – Ele não estava na corte, Vossa Graça. Eu não sabia que ele era um dos pretendentes. – Ele estava com meu filho Lionel na Irlanda, mas estão voltando em mais ou menos um mês. – Tão cedo assim? – perguntou ela com uma voz fraca.


Por mais que se esforçasse, ela não conseguia se imaginar ao lado de Eastham, Northland ou nenhum dos outros, mas o pior era nem se lembrar do nome de batismo de Dexter. Entretanto, sua vontade havia sido realizada, pois estava prestes a se casar com alguém que mal conhecia e não sentiria sua perda, caso ele faltasse. Decisão tomada, o rei se levantou. – Vamos publicar os proclamas assim que ele chegar. Você se casará em poucas semanas. Semanas. Era cedo demais. Fazia anos que ela se convencera de que precisaria de apenas alguns dias, semanas ou meses para se preparar. Vivia repetindo para si mesma que podia obedecer às obrigações conformes seus pais esperavam. Agora que havia chegado a hora, ela se lembrou de que havia um último dever que devia cumprir em memória dos pais. – Vossa Graça, meus pais… a efígie… – O que houve? – indagou o rei, franzindo o cenho. – O escultor reassumiu o trabalho em janeiro. Gostaria da sua permissão para voltar para casa e supervisionar o progresso. As imagens devem ficar prontas antes do meu… casamento. Cecily precisava enterrar o passado e todo o resto antes de se tornar uma noiva. O rei meneou a cabeça com o olhar distraído. – A procissão para acompanhar o corpo do rei Jean de volta à França parte essa noite. Você precisa ficar aqui para começar os preparativos para o casamento. Quando você e Dexter forem para casa, podem aprovar juntos o trabalho do escultor – disse ele, acenando com a mão, dispensando-a. – Vossa Graça, antes de ir, eu… qual é o nome de batismo de Dexter? – Ele se chama Robert. Cecily fez uma vênia e deixou os aposentos reais. Estaria casada em um mês. Agora era tarde demais para qualquer coisa que tivesse planejado. Mas seu único pensamento era que precisava encontrar Marc. ENQUANTO SE preparava para deixar a Inglaterra a fim de escoltar o corpo do rei Jean de volta à França, Marc tinha se forçado a ficar longe de Cecily durante os dez dias antes do funeral, pois já não confiava em si mesmo. No dia em que haviam passeado juntos pelas ruas de Londres, ele havia participado ao lado dela na dança de roda, divertira-se com os truques do bobo da corte. Dias depois a acompanhara na caça ao veado, sempre mantendo a distância apropriada e cuidando para que ambos ficassem à vista do restante da corte. Os dois sabiam o risco que corriam se ficassem sozinhos. Era um perigo ao qual nenhum dos dois podia se expor. Marc não era o único a acompanhar Cecily. Eastham, Northland e outros que ele não conhecia faziam a vênia e gabavam-se de suas proezas na guerra. Marc achou que ficaria louco. Nenhum deles conhecia a fundo a dor de Cecily ou a extensão de sua coragem. Na verdade, Marc precisava renovar sua coragem. Não era fácil testemunhar Cecily com seus pretendentes. Aliás, precisava ser mais valente do que num campo de batalha. Cada dia que passava era um a menos que teriam juntos. Cada dia representava um pedacinho de seu coração que se perdia. Mesmo assim, ele não queria que terminasse. Quando chegou a hora de se despedir, Marc perdeu a coragem de ficar diante dela e fingir não estar morrendo por dentro. Decidiu, então, que a veria apenas uma vez para dizer adeus, e seria naquela


tarde. Depois do funeral e da procissão, a corte acompanharia o corpo do rei até Dartford. Dali um pequeno grupo seguiria até Canterbury e depois para a costa. Em poucos dias, Marc estaria a bordo de um navio, atravessando o Canal. – Tenho pouca coisa para levar – disse ele a Enguerrand quando saíam da Catedral de São Paulo e seguiam a procissão de volta ao Palácio de Savoy. – Em menos de 15 dias estaremos em casa. Em casa, na França, de volta ao castelo dos De Coucy… – Não, mon ami. Não vamos, não. – O que quer dizer com isso? Achei que já estava tudo resolvido. Com quem devo falar? Quem é o responsável? – Já está decidido. Apenas dez cavaleiros podem voltar com o rei. Os nomes já foram escolhidos e o seu… – …não está entre eles. – Marc ficou incrédulo e depois cheio de raiva. Um mero cavaleiro sem título podia ser deixado para trás. – E o seu? – Acompanharei o cortejo até o porto, mas não vou embarcar. – Como assim? – Marc avaliou o semblante de Enguerrand, tentando adivinhar o que estava acontecendo. – Por quê? – Escolhi ficar aqui – Enguerrand respondeu, sorrindo. – Foi a princesa? – Não podia haver outra razão que explicasse melhor. – Shh! – De Coucy colocou o dedo sobre os lábios e olhou ao redor. – Esse é um dos motivos. O rei nos deu permissão para casar, mas ainda não podemos divulgar nada. Depois do casamento receberei minhas terras de volta e me tornarei um conde. O rei concordou em me aceitar, mas ninguém mais sabe. Então, finalmente Enguerrand havia conseguido atingir seus objetivos. Foi impossível para Marc evitar uma pontada de inveja. Ele recuperaria as terras e se casaria com a mulher amada. Seria um conde respeitado e dono de terras. Ah, De Coucy sempre conseguia tudo o que um homem podia desejar na vida. Mesmo tendo propriedades na França, ele havia escolhido continuar um refém. Os planos não incluíam Marc. Ele precisava voltar para casa e… para quê, afinal? A França estava quebrada, esgotada e liderada por um rei inexperiente que ele ainda não sabia se era confiável. Sem contar que a vida seria muito diferente sem De Coucy. Apesar de continuar sendo um cavaleiro da família De Coucy, ele estaria sozinho. E se a guerra continuasse? Será que eles lutariam em lados opostos? Qualquer perspectiva de volta para a França seria melhor do que permanecer na Inglaterra e testemunhar Cecily se casando com outro homem. Esta talvez fosse a única batalha que, ele tinha certeza, não poderia vencer. Sair daquele país era muito mais importante do que retornar para o seu, mesmo que as opções lá não fossem boas. Longe dos olhos, longe do coração. Separados por quilômetros, a memória de Cecily logo se esvairia. Com certeza que sim. Tinha sido uma luta durante meses, mas ele já havia cumprido sua parte no acordo e fora abandonado. A escolha que ele abolira durante tanto tempo tornou-se a única saída. Ele precisava fugir.


Capítulo 18

NO MEIO do burburinho da procissão que acompanharia o corpo do rei durante a primeira parte da jornada, Marc decidiu que ele também se despediria da Inglaterra. Adieu. Mas antes, se despediria de Cecily. Foi a primeira vez em que ficaram juntos em dias. Sem planejar muito, eles escaparam do Salão Nobre e se esconderam numa alcova calma com uma janela com vista para o Rio Tâmisa, que corria calmamente sob o céu colorido com vários tons de amarelo e vermelho do pôr do sol. Marc não se aproximou muito e nem a tocou, pois a qualquer momento alguém poderia surpreendêlos. Mesmo assim, os olhares se prendiam refletindo a imensidão dos sentimentos de ambos. Marc queria tatuar aqueles olhos grandes e verdes na memória, embora estivessem tão tristes naquele momento. – O que houve? – indagou ele com o pensamento tolo de que talvez pudesse resolver. Cecily piscou, rompendo a conexão e assumiu a postura de condessa. – O rei escolheu meu marido. Marc sabia que cedo ou tarde teria de enfrentar aquilo. Mesmo assim, foi um golpe ouvi-la confirmar o inevitável. – Quem será? – Robert, o conde de Dexter. Marc tentou se lembrar de quem se tratava. Cecily balançou negativamente a cabeça. – Você não o viu. Ele está na Irlanda com o filho do rei. – Você o conhece? – Ele e meu pai foram companheiros de guerra. Eu conheci ele e a esposa. – Esposa… desde então Robert parecia mais velho. – Será melhor do que se casar com um estranho – disse Marc com dificuldade.


– Ou alguém que desprezo. – Como eu? Os dois sorriram. – Conheço minhas obrigações. – Ela suspirou. – Mas só agora entendi porque me avisaram tanto… sobre o que acontecia quando os sentimentos… – Ela desviou o olhar. – Eu tentei, mas… Marc compreendeu a própria dor pelas palavras dela. Ambos tinham sido ingênuos demais. – Como Dexter está na Irlanda, o casamento deve demorar. – Como se isso fizesse alguma diferença. – Ele deve voltar em algumas semanas. Os proclamas correrão quando ele chegar. – Cecily olhou pela janela em direção ao Leste, para Dover. – Eu queria ir para casa antes. Acho que estou pronta para ver a efígie dos meus pais e me despedir finalmente. – Ela voltou a encará-lo antes de prosseguir: – Nós também devemos nos despedir. Marc se lembrou da certeza com a qual dissera a ela que voltaria para casa acompanhando o corpo do rei Jean. – Bem, as coisas não saíram como eu esperava… não fui escolhido para fazer parte do cortejo que acompanhará o corpo do rei. – Você ficará na Inglaterra até pagarem seu resgate? Marc teve a impressão de que havia uma nota de esperança na voz dela; mesmo assim, deu de ombros, como se de fato fosse voltar para casa. Algum dia. Cecily suspirou e esboçou um sorriso melancólico. – Nós dois estamos presos pelos estratagemas dos reis. Presos na Inglaterra. Para Marc, tortura maior do que o confinamento era saber que ela estaria tão perto, mas seria de outro homem e dividiriam a mesma cama noite após noite… De repente, uma ideia. – A não ser que… Havia uma maneira de Cecily ganhar tempo e ele conquistar a liberdade. – Cecily, você prometeu que me ajudaria a voltar para a França. A proposta ainda está valendo? – Se eu puder. – E se você pudesse voltar para seu castelo para se despedir? E se eu puder lhe dar isso? – O quê? Como? – Podemos fugir juntos. Posso torná-la refém e levá-la para seu castelo. Podemos ir essa noite. CECILY O encarou, esperando uma reação de medo ou outra qualquer, mas em vez disso, um frio de expectativa correu-lhe a espinha. Sim. Cecily quase respondeu com um grito. – Mas o que acontecerá com você? O rei nunca permitirá sua partida sem o pagamento do resgate. – Não há resgate algum. Nunca houve e nem haverá. – Como? Cecily percebeu que Marc estava diferente, agindo como se confessasse uma vergonha que vinha escondendo havia muito tempo. – Eu devia ter voltado para a França na Páscoa. Mas com a morte do rei, nenhum dos meus


conterrâneos tem motivos para gastar seu ouro para resgatar um simples cavaleiro. – Mas o rei Eduardo… – Cecily pretendia dizer que o rei inglês não concordaria, mas havia como saber das confabulações entre seu rei e o novo monarca francês? E se ele não mantivesse o Tratado, a única maneira de forçar um entendimento seria com uma nova guerra. – O que fará lorde de Coucy? – Será que Isabella o havia convencido a ficar? Marc hesitou antes de responder: – Ele acompanhará o cortejo fúnebre até o porto. Acho que ele não quer partir. Não. De Coucy não queria deixar a Inglaterra. O impossível estava prestes a acontecer, Isabella tinha permissão para se casar por amor, um privilégio negado à condessa de Losford, alguém que estava prestes a desobedecer a uma ordem real. – A culpa será toda minha se eu a tomar como refém. E quando o cortége chegar à costa, digo que se não permitirem que eu embarque, irei ferir você. Você terá alguns dias antes de nos encontrarem. – Sim, sim – disse ela, fitando-o nos olhos. Estranho que aquele que ela julgara não ter ética havia resolvido tudo para que ela não perdesse a honra. – Só preciso de alguns dias apenas. – Para se despedir – disse Marc, meneando a cabeça. Cecily não perguntou se ele se referia aos pais dela ou da despedida deles. NO FINAL, a fuga não foi tão difícil quanto Marc temia. O corpo do rei Jean foi levado de Londres naquela noite, acompanhado por uma grande quantidade de pessoas de luto, incluindo ingleses e todos os franceses que estavam na Inglaterra. Centenas de tochas acompanhavam o cortejo pelas ruas londrinas seguindo para o campo como se fosse uma serpente de luz viva. O cortejo chegou a Datford na madrugada e parou. A maior parte da corte voltaria, deixando dois dos cavaleiros de confiança do rei Eduardo e lorde de Coucy encarregados do restante da viagem. Dali eles seguiriam para Canterbury, depois para Dover. Alguns cavaleiros escolhidos acompanhariam o corpo de volta à França enquanto aqueles que haviam sido mantidos reféns no lugar de seu soberano continuariam na Inglaterra com futuro incerto. Naquela escuridão e com tanto burburinho, ninguém prestava atenção em Marc de Marcel. Cecily estava do lado direito da princesa. Eles não tinham tido muito tempo para elaborar melhor o plano de fuga, e o risco de dar errado naquela pequena e escura cidade era enorme, principalmente pela presença de centenas de soldados do rei Eduardo. Escondido nas sombras, Marc viu quando Cecily cochichou alguma coisa no ouvido de Isabella, apontando para uma taverna. Ela devia dizer que precisava usar o toalete antes de voltarem a Londres. Ele prendeu a respiração, ansioso para que Isabella não decidisse acompanhar Cecily. A princesa bocejou. Não espere por mim. Era isso que ela havia ensaiado para dizer. Continuarei a viagem com algum dos cavaleiros. Em seguida ela virou o cavalo na direção da taberna. Marc olhou para Enguerrand, que acompanharia o corpo do rei até o cais, e sentiu uma pontinha de arrependimento. Depois de tantos anos juntos, não iriam se despedir. Tinha sido melhor não dizer nada a ele, porque, quando Marc sumisse, Enguerrand não precisaria mentir, pois não saberia nada de fato. Marc seguiu lentamente na direção da taverna e deixou que seu cavalo bebesse água junto dos


outros animais. Segurou as rédeas com firmeza tentando vencer a expectativa, maior do que se estivesse indo para a guerra. O cavalo sentiu a tensão nas rédeas e balançou a cabeça. Marc soltou as rédeas e, contendo a ansiedade, acariciou o animal no pescoço. – O cavalo está fatigue, oui? – perguntou um dos cavaleiros que havia chegado à Inglaterra em janeiro. Marc forçou um bocejo. – Foi uma noite muito cansativa. Não vejo a hora de voltar a Londres. – Fico pensando em quanto tempo ainda nos deixarão ficar no Palácio de Savoy depois da morte do rei – disse o cavaleiro, fazendo o sinal da cruz. Marc deu de ombros. – É por isso que devemos aproveitar enquanto é tempo. Foram palavras sem nenhum significado maior ditas com a intenção de fingir que ele também não via a hora de se deitar numa cama macia com vista para o Rio Tâmisa. Ele precisava se misturar aos outros cavaleiros, que seriam possíveis testemunhas quando questionados se o tinham visto. Era preciso que confirmassem sua volta a Londres com o cortejo. Demoraria bastante para notarem sua ausência. Marc seguiu o grupo. O rufar dos cascos era abafado pela terra. O sol começava a surgir no horizonte anunciando a hora de agir. Reduzindo o passo do cavalo, ele desviou na direção de uma rua lateral de acordo com o planejado, contando que se encontrassem na mesma rua. Mas estava escuro e a cidade era desconhecida. A chegada de centenas de cavaleiros e nobres num cortejo real havia acordado o vilarejo inteiro. As pessoas lotavam as ruas e abriam as janelas para espiar. Marc tinha esperança de que no meio da multidão de cavalos e pessoas ninguém os visse fugir. Um dos cavaleiros olhou para trás. Marc levantou a mão, mostrando a perna do cavalo, como se precisasse tirar uma pedra do casco e depois os alcançaria. Para que a desculpa parecesse mais convincente, ele desmontou e ergueu a perna no cavalo. Quando os outros se afastaram a Oeste, ele puxou o cavalo na direção oposta, rodeando a taverna à procura de Cecily. Cecily estava atrás da taberna numa pequena rua sem saída, esperando-o ao lado de seu cavalo. Ao vê-la, Marc se deu conta de como havia sido corajosa em concordar com a fuga. Havia muitas incertezas. Mas ela estava ali, tensa, numa posição que ele costumava chamar de “postura de condessa”. Quando o viu, a expressão do rosto dela se transformou demonstrando alegria e alívio. Ela também não tinha certeza se ele apareceria ou se ficaria sozinha numa cidade desconhecida. Marc ficou tão feliz em vê-la que saltou do cavalo e correu para abraçá-la e beijou-a avidamente, selando a promessa que tinham feito. Minutos depois, montaram de novo e seguiram na direção oposta do cortejo que seguia para Canterbury. O SOL já estava alto quando eles pararam e olharam ao redor. O longo, frio e interminável inverno que havia congelado os rios, por fim, terminara. A primavera tinha chegado, devolvendo as folhas verdes aos galhos das árvores e trazendo as flores de volta aos arbustos. Uma paisagem frágil, mas fresca e nova que inspirou Marc a recuperar as esperanças. Num dia típico de abril o sol brilhava soberano no céu azul, cenário perfeito para o primeiro dia de uma liberdade restrita. Mas nada mais importava, pois estavam juntos.


Capítulo 19

CECILY PROCUROU se animar ao vislumbrar as muralhas do Castelo de Losford alguns dias mais tarde. Finalmente voltei para casa para enterrá-los, pensou. No entanto, as janelas do castelo pareciam encará-la julgando-a pela desculpa e por sua história. Você não voltou para cumprir com o dever, mas por sua fraqueza por esse homem. Você trouxe o inimigo para dentro de nossa casa. Marc, diferente dela, cavalgava sem demonstrar medo, ou dúvida de que ela o manteria seguro ali, da mesma forma como a protegera durante os dias de estrada. Como a procissão do rei Jean seguia pela estrada principal na direção de Canterbury, Marc e Cecily foram para o Sul a fim de evitá-la, seguindo para Kent. Marc tinha provisionado alguns mantimentos na bolsa, mas, além da pouca comida, não havia mais nada a compartilhar além do silêncio e o desejo de chegar à costa o quanto antes. Eles não tinham se beijado durante a viagem, mesmo assim, ela imaginou se o encarregado do castelo e o capitão da guarda não reconheceriam a cumplicidade dos dois. Se houve alguma dúvida, ninguém questionou. Henry se aproximou enquanto Marc a ajudava a desmontar. – Bem-vinda ao lar, milady. Nós não a esperávamos. Quando criança, Cecily costumava correr para abraçar Henry, mas agora cumprimentou-o com um sorriso discreto, como sua mãe teria feito. – Preciso tomar algumas providências por aqui antes… – Antes do meu casamento, ela deixou de dizer e admitir que o rei havia escolhido um marido e que era ele que devia estar ali. Não, ela ainda nãos estava pronta para tanto. – Este cavaleiro chama-se Marc de Marcel. Marc agigantou-se ao lado dela como se estivesse pronto para defendê-la de qualquer ameaça. Cecily não disse mais nada sobre ele e nem por que a acompanhava. Por ser uma condessa, não seria


questionada. No entanto, quando Marc trocou algumas palavras com Henry sobre os cavalos, ela soube que o sotaque dele incitaria dúvidas. Quando um cavalariço levou os cavalos, Henry voltou a fitá-la com o cenho franzido. – Milady não trouxe nenhuma bagagem? – indagou. Afinal, ninguém viajava sem baús. – Imagino ter tudo o que preciso em minha casa. – Vou preparar os quartos – disse Henry fazendo uma vênia. – Depois peço ao escultor para procurála e apresentar o que está sendo feito. Cecily sentiu-se tomada por todos os medos que a haviam mantido tanto tempo afastada dali. Em sua imaginação, a efígie em que Peter, o escultor, vinha trabalhando nos últimos meses a aguardava como se fosse um monstro das cavernas, esperando apenas a oportunidade de atacá-la. Ela havia se preparado para a tarefa, mas agora que tinha chegado a hora… – Por favor, não o chame. Não quero vê-lo ainda. Pobre Henry, ele estava apenas cumprindo sua obrigação e não devia ser punido pelos temores dela. – Estou cansada – disse ela num tom de voz menos áspero. – Quem sabe amanhã… – Você gastou uma soma considerável de dinheiro – Marc sussurrou ao ouvido dela ao pé da escada. – E se não estiver benfeito? – Se for assim, não tem mais jeito – disse ela, rude. Ela havia se convencido de que estava pronta para o casamento e para olhar para o túmulo dos pais. Mas e se estivesse errada? Suspirou antes de prosseguir: – Está bem, vou falar com o escultor, mas antes tenho coisas mais importantes a fazer. – E o que seria? – indagou ele, erguendo uma das sobrancelhas, duvidando que ela mentisse. – Preciso contar a Henry que o rei escolheu meu futuro marido para que ele tenha tempo de se preparar para receber o novo senhor. Depois tenho de falar com o cozinheiro, a governanta… – Cecily podia pensar em várias coisas para fazer antes de enfrentar a morte dos pais de novo. Os primeiros passos depois que você se solta do que a sustentava são incertos, assim como o segundo e o terceiro. E quando você está mais seguro, acaba tropeçando numa pedra no caminho, mas instintivamente sabe que precisa continuar andando. Voltar para casa tinha sido uma pedra no caminho dela. – Cecily. Chamá-la com aquele tom de voz era o mesmo que dizer que entendia o medo que ela estava sentindo. A última réstia de coragem que ela ainda tinha se evaporou. E se não estiver benfeito? Se fosse assim, estaria comprovado que ela havia falhado na última obrigação que tinha com os pais. – Ainda não – disse ela, meneando a cabeça. Em seguida ergueu um pouco as saias e subiu os degraus na frente dele. – Quero lhe mostrar uma coisa. Depois de instruir o encarregado do castelo para preparar os quartos e a próxima refeição, ela continuou a subir mais rápido até chegarem ao alto da torre. Saindo para o terraço, ela aspirou profundamente o perfume da maresia. – É aqui. Olhe! – Ela exclamou, quando Marc chegou e abriu os braços. As ondas do mar batiam nos rochedos do penhasco como se estivessem dando a ela as boas-vindas. À esquerda da torre estava o mar, à direita, o porto onde um navio francês aguardava para levar o rei Jean para o descanso eterno. Cecily finalmente se sentiu em casa diante da vista da imensidão do mar e o perfume da água salgada.


Como havia ficado tanto tempo longe? Será que Marc estava tão deslumbrado quanto ela? Infelizmente ele não demonstrava a mesma alegria. A atenção dele estava voltada para a vista que teria dali se estivesse em guerra, depois apontou na direção do porto. Uma fileira de montanhas e desfiladeiros se assomava no horizonte como se barrasse o mar. – A França está nessa direção? – Sim. Durante toda a vida, Cecily observara as terras inimigas protegidas pelas muralhas do castelo, cuja função era defender a Inglaterra. – Quando cheguei, não imaginava que estivesse tão perto… – murmurou ele. Se não fosse o mar e sim terras a dividir os dois países, a distância podia ser facilmente coberta num dia, quer por um homem sozinho, quer por um batalhão. Mas por mar não seria tão fácil. – O que pretende fazer? – O vento balançou o cabelo de Cecily. – Quando vai partir? Marc assumiu uma postura solene antes de responder: – Farei o possível para nunca mais avistar a costa da Inglaterra. Palavras duras, mas uma boa lembrança. Ele iria partir. Enquanto ela ficaria com a vida predestinada. E com as obrigações. A CHEGADA de Cecily foi inesperada e por isso os criados não tiveram tido tempo para oferecer uma refeição adequada. Então, em vez de se sentarem à uma mesa enorme no Salão Nobre, ela e Marc comeram frutos do mar e arenque diante da lareira na antessala dos aposentos dela. Estavam sozinhos, sem a corte ou os pais dela para vigiarem seus passos. Cecily achou que ele repararia nas tapeçarias penduradas nas paredes, ou que comentaria sobre o tamanho da lareira para uma sala tão pequena. Mas Marc só tinha olhos para ela. – O castelo é mais simples do que os de Londres – disse ele. – Por enquanto. Era muito bom estar em seus aposentos e poder andar sem sapatos, com o cabelo solto e não trançado, ou preso por uma tiara. A etiqueta não permitia que ela estivesse tão à vontade, mas aquele lhe pareceu um pecado pequeno quando comparado ao resto do que havia feito. Os dois ficaram sem falar nada durante algum tempo, apenas sorrindo um para o outro e desfrutando a felicidade. Entretanto, a felicidade era uma ameaça. Você não deve se acostumar com a presença dele. Não deve se aproximar muito. Logo ele partirá e você terá de explicar que tinha sido mantida como refém e forçada a permanecer em silêncio. Terá de enfrentar o conde de Dexter impassível, sem demonstrar culpa nenhuma. Ela tentou se lembrar da aparência do duque sem muito sucesso. Preferiu sair do breve devaneio e colocar os pés no chão. – Precisamos resolver o que vamos fazer. A essa altura Isabella já terá sentido minha falta. Enquanto que Enguerrand estava acompanhando a escolta a Dover, sem notar a ausência de Marc. Ainda. – Será que ela avisará logo o pai? – Ele pensará que eu o desobedeci e voltei para casa. – Será que ele vai mandar buscar você?


– Não sei. – Uma hora ou outra ela teria de enfrentar a ira do rei. – Mas a procissão do rei Jean irá parar em Canterbury por alguns dias. Depois eles virão para cá, prontos para partir, e quando chegarem aqui… – Eu os receberei com minha adaga no seu pescoço e direi que só a soltarei quando estiver a bordo do navio. A culpa será toda minha. – Mas e se depois de me soltar eles quiserem punir você? – Nenhum francês me culpará por querer voltar para casa. – Simples assim, contanto que ninguém avaliasse a situação mais a fundo. – Precisamos ser convincentes para que os franceses acreditem na história. Caso contrário, se alguém desconfiasse que ela o tinha ajudado a fugir, a penalidade seria muito maior. Até mesmo para uma condessa. – Será que Enguerrand acreditará em você? – Mesmo se não acreditar, irá me entender. Ela meneou a cabeça na esperança de Marc estar certo. – Então temos alguns dias. Algum tempo, embora roubado. – Ficarei aqui até… Cecily achou que havia tristeza na voz dele e insistiu: – Até? Antes que fossem descobertos. Antes que ele partisse para a França. Antes que… Um criado bateu na porta. Cecily enrijeceu o corpo e não olhou para Marc enquanto o rapaz tirava os pratos. Em seguida, ela se levantou e seguiu até a porta para deixar claro que não passariam a noite juntos. Marc parou diante dela, fitando-a no fundo dos olhos como se suplicasse. – Cecily… Ela virou para o lado e balançou a cabeça, negando todas as frases que ficaram por dizer e palavras repletas de significado, fingindo que seria suficiente apenas desfrutar a companhia um do outro. – Durma bem – disse ela bem alto para que sua voz ecoasse pelas escadas. Cecily se segurava numa linha muito tênue para não se render. Marc segurou as mãos dela, mas não a beijou. – Cecily, há muito trabalho a ser feito para colocar este castelo em ordem. Ela piscou várias vezes seguidas. Não era aquilo que esperava ouvir, embora ele dissesse a verdade. Bastava olhar com mais cuidado para notar os sinais de negligência ao redor. Mas ela havia fugido dali logo após a morte dos pais, achando que poderia organizar tudo de longe. Mas o castelo estava se deteriorando. Cecily era uma mulher feita e não podia mais fazer dali o seu parque de recreio. Agora ela era a condessa, e o castelo, uma de suas responsabilidades, e não um refúgio. Havia muitas providências a tomar. A cozinha, os túneis para o mar, os jardim, os armazéns… era preciso colocar tudo em ordem antes do casamento, ou seu futuro marido acharia que ela deixava a desejar. – Sei o que preciso fazer. Cecily tinha nascido para um dia assumir a posição de condessa e estava ansiosa para cumprir seus deveres, apesar de a tarefa ser monumental. – Posso ajudar você enquanto estiver aqui.


A oferta trouxe uma preocupação. O que poderia ser feito em apenas alguns dias? Na certa, mais do que se ela estivesse sozinha. Mas e se mais tarde perguntassem o que ele tinha feito durante aqueles dias…? Ah, ela decidiu que pensaria quando fosse a hora. – Eu gostaria muito. – Então começamos amanhã. Marc meneou a cabeça e seguiu até o quarto dele. Cecily esperou até que ele fechasse a porta. E em nenhum momento ele olhou para trás. NA MANHÃ seguinte, Cecily, ou a condessa, como Marc fazia questão de se lembrar a todo instante, precisava conversar com o encarregado do castelo. Assim, sozinho, ele resolveu explorar a torre e as ameias. A noite não tinha sido das melhores. Desacostumado com o novo ambiente, ele não havia dormido direito, principalmente por saber que Cecily descansava a poucos metros dali… Embora a contragosto, ele a afastou dos pensamentos, lembrando-se de que havia outro homem entre eles. A reputação dela dependeria que acreditassem na história que contariam, ou seja, ele a tinha forçado a estar ali porque queria voltar para a França. Enquanto estivessem ali, a segurança dela dependia que os criados desconfiassem do plano e, para tanto, não podiam ser vistos muito amigáveis. O melhor que tinha a fazer seria manter a mente e as mãos ocupadas. Assim, ele decidiu vistoriar o castelo sob o ponto de vista de um soldado, algo que Cecily não faria, e assegurar que estivesse tudo em ordem quando o marido dela chegasse. Se dependesse dele, o conde de Dexter não pensaria mal de Cecily ou que ela havia deixado de cumprir suas obrigações. As muralhas internas construídas com blocos de pedra eram protegidas por duas torres. Ambas eram fortes, quadradas, mas diferentes uma da outra. Se vistas do lado de fora do castelo, as torres pareciam impenetráveis. Uma delas era pequena e isolada, construída para proteger ou alertar aqueles que chegavam ao castelo. Um pouco mais afastada no alto de uma colina havia outra torre, mais antiga e menor ainda. Marc concluiu que se tratava de um posto de observação. Originalmente devia haver luzes ali para guiar navios amigos e soldados para evitar a aproximação de inimigos. De onde estava, Marc viu que a torre estava ruindo, como se estivesse se dissolvendo aos poucos, bem devagar. Não era mais uma fortificação poderosa e parecia apoiada na construção do lado. Uma pequena igreja. Marc não ouviu barulho algum de missa ou de outras pessoas e decidiu entrar. Lá dentro havia um homem franzino diante de um bloco de pedra coberto por um manto vermelho e dourado. Devia ser a efígie dos pais de Cecily. O escultor olhou esperançoso na direção da entrada da igreja, mas desanimou-se ao ver que Marc estava sozinho. – Lady Cecily não veio? – indagou Peter. Os passos de Marc ecoaram pela nave. Ainda não, ela havia dito. Peter teria de aguardar em vão por mais um dia. – Não. O trabalho está pronto? – Estou apenas esperando a aprovação dela para concluir – disse Peter, meneando a cabeça. – Olho


para a escultura todo dia e faço alguns retoques, polindo. – Ele passou a mão sobre o trabalho; era grande demais para alguém tão miúdo. – Quer ver? – indagou, começando a puxar a capa, ansioso pela opinião de alguém. Marc impediu que o escultor exibisse o trabalho. Não seria certo vê-lo antes de Cecily. – É melhor ela avaliar primeiro. Eu não conheci os pais dela. – Isso não é requisito para gostar ou não da obra. Verdade. Os homens costumavam idealizar os mortos tanto em histórias quanto em esculturas de pedra, independente de quem os ouviria ou admiraria. Um bom exemplo era que o rei francês, falecido há tão pouco tempo, já era reverenciado como um santo. – Você deve ter trabalhado muito tempo nessa efígie. – A mãe de lady Cecily ficou muito perturbada com a morte do marido e demorou um bocado para tomar as providências necessárias. Eu estava quase terminando a imagem do conde quando ela também faleceu. Lady Cecily… – Peter suspirou e não terminou a frase. – Quando o rei convocou escultores para trabalhar no Palácio de Windsor, fiquei feliz em aceitar a oportunidade. – Um sorriso tímido iluminou o rosto dele. – Você viu o que fizemos em Windsor? – Você e os outros trabalharam muito bem. O rei Eduardo merecia o crédito pela bela reforma que embelezou o palácio. – Tenho certeza de que a corte gostou muito também – Marc concluiu. – Lady Cecily precisa julgar esta obra, mas ela não quer nem olhar – disse Peter, suspirando. Assim como Marc, aquele homem devia saber da dor de Cecily. – Não tem sido fácil para ela. Para milady, aprovar o trabalho significa… – …que eles se foram de fato. – Isso mesmo. – Marc sabia que significaria também que Cecily tinha de assumir a nova condição de condessa. – Há quanto tempo você começou o trabalho? – Faz uns dois ou três anos – Peter respondeu, franzindo o cenho. – Estou pronto para voltar para casa. Pobre homem, ele também era uma espécie de refém. – Não posso prometer nada, mas vou tentar convencê-la a vir aqui. Talvez convencer Cecily a ir até a capela fosse muito mais importante do que providenciar a restauração das torres. MARC TOCOU no assunto depois que eles terminaram de jantar. A primeira refeição noturna tinha sido feita na antessala dos aposentos de Cecily, uma trégua depois de todo o cerimonial na corte. Poder olhar para Cecily sem uma multidão observando-os havia sido um deleite memorável. Naquela noite, porém, Marc não estava tão à vontade. Era muito sedutor estarem sozinhos. Ele havia resistido à tentação na primeira vez, porém já não tinha tanta certeza se conseguiria continuar se contendo. Como seria dali para a frente? Embora não tivesse conversado sobre o assunto, Cecily parecia estar ciente do perigo também, tanto que suas tranças estavam bem presas ao redor da cabeça e um véu, preso por uma tiara, cobria-lhe a cabeça e o cabelo restante, solto como na noite anterior. Pela postura, ela havia deixado de ser apenas Cecily para ser a condessa. Assim, Marc ouviu em silêncio como havia sido o dia dela e as conversas com os criados, meneando a cabeça em resposta às


perguntas retóricas. Da mesma forma que ela, ele também mantinha o olhar baixo e a atenção no prato de comida. Quando os criados tiraram a mesa, os dois continuavam quietos num silêncio estranho. – A partir de amanhã faremos as refeições no Salão Nobre – anunciou ela como se fosse um pronunciamento de uma condessa e se levantou, deixando subentendido que ele estava dispensado. Marc havia esperado durante a refeição inteira para tocar no assunto da efígie, mas ainda não sabia por onde começar. Embora o discurso lhe parecesse informal demais, ele decidiu falar de uma vez: – Eu me encontrei com o escultor. – Oh… – disse ela, parando no meio da sala. De Coucy teria continuado a falar com os meneios de sempre, mas Marc era um guerreiro e infelizmente não sabia usar meias-palavras. – Você precisa aprovar o trabalho dele e deixá-lo voltar para casa. Como Cecily havia se recusado a visitar a capela no dia anterior, pouco tempo atrás, Marc imaginou uma resposta ríspida ou lágrimas. Mas não foi o que aconteceu. – Mas eu não estou… – Cecily estava embriagada pela tristeza. – Eu não… Marc decidiu esperar um pouco para ela continuar falando. Cecily se recuperou em seguida e o encarou. – Olhe para mim, Marc. Estou sozinha com você aqui. Você é francês e eu o trouxe para dentro de um castelo estratégico para a defesa dos ingleses. Violei todas as regras e a confiança de meus pais. A efígie… e se não estiver benfeita por minha causa? Como vou encará-los de novo?. Ela se referia aos pais como se eles fossem reviver para acusá-la por ter descumprido seus deveres. Marc notou que ela não se dirigia a ele, mas sim orava para os falecidos pais a fim de obter a bênção e o perdão deles. Acostumado a um campo de batalha, Marc nunca tinha dado importância às sutilezas ou analisado algo além do superficial. Talvez tenha sido por isso que não enxergara a fraqueza de seu rei ou a decepção de sua amada. Mas com Cecily era diferente, ele sabia o que ela estava sentindo como se pudesse olhar direto para sua alma. – Acredito que seus pais não esperavam que você soubesse lidar com suas obrigações de imediato – disse ele num tom suave de voz. – Você não entende. Eu sou a condessa de Losford – Cecily tentou manter a postura altiva, erguendo o queixo embora trêmulo. Ela procurou se proteger atrás do título de nobreza, mas o escudo não cumpria a sua função. Os pais de Cecily sempre a protegeram muito, não permitindo que ela caísse ou sequer tropeçasse. O excesso de zelo impediu que ela se recuperasse depois de um erro e amadurecesse durante o processo. O resultado era que agora Cecily acreditava em suas obrigações, em Losford, mas não confiava em si mesma. Marc se levantou e, ao se aproximar, segurou as mãos dela. – Nem Deus espera a perfeição de um ser humano. – Mas meus pais, sim. E eu falhei – disse ela num sussurro, falando mais para si mesma do que para ele. Puxando as mãos, ela foi até a janela observar as nuvens mescladas de amarelo e vermelho, sinalizando o final do dia. Marc se deu conta de que nada do que ele havia falado adiantara. Mas por que adiantaria? O único conforto que ele podia prover era afastá-la dos perigos e dizer: Vou protegê-la. Mas estaria cometendo o mesmo erro dos pais dela, enfatizando as fraquezas em vez de ajudá-la a ser mais forte. Apesar de tudo,


Marc fora testemunha do quanto ela era forte. Força esta em que os pais, nem mesmo ela própria, nunca acreditaram. – Você não precisava ser perfeita para me salvar de um javali – disse ele. Cecily prendeu a respiração por alguns segundos como se ele a tivesse assustado. Marc não percebeu que, apesar da expressão do rosto dela, Cecily havia relaxado. – Violei todas as regras de uma caçada – comentou ela sorrindo e olhando para trás por cima dos ombros. – O que importa é que o javali morreu e eu estou vivo. – Ele estreitou a distância que os separava. – Essa é mulher corajosa que eu conheço. Você pode fazer o que quiser. – Você está sendo sincero? – indagou ela, virando-se de frente. Mesmo conhecendo-a bem, Marc não conseguiu interpretar o semblante dela. Será que o elogio tinha ajudado? Será que ela havia acreditado? Ele a segurou nos braços e a puxou para mais perto. – Você quer saber se acredito mesmo no que eu disse? Oui. Cecily abriu um sorriso largo… ele nunca a tinha visto sorrir assim, mas estava contente que um simples elogio sincero tivesse feito tanta diferença. A sensação de triunfo era bem mais compensadora do que vencer uma batalha. A cumplicidade dos dois foi coroada por um beijo apaixonado. Marc não pensou e nem queria pensar em nada, desejando apenas mais uma recordação feliz no futuro. Os lábios dela eram macios, o gosto um néctar que instigava o apetite. Mon Dieu, o desejo era quase insuportável. – Cecily… – disse ele, num breve intervalo entre um beijo e outro. – Temos apenas algumas noites juntos. Você quer… será que… Marc era um homem de atitudes, e não de palavras. Quando a encarou esperando pela resposta, a paixão reluzia em seus olhos.


Capítulo 20

SIM. A resposta dela veio com um beijo. Estava ciente do que aconteceria depois, a realização de um sonho que ela almejara havia muito tempo, embora só tivesse admitido agora. Cecily havia protegido o coração tal qual o Castelo de Losford guardava o mar, como se ela fosse apenas uma condessa e não uma mulher. As responsabilidades eram muito mais importantes que os sentimentos. E pensar que o ódio que sentira de Marc por ser um inimigo havia se transformado em amor sem que ela tivesse percebido. Agora era tarde demais para recuar, ou continuar fingindo. A verdade que acabava de ser desnudada era que ela o amava e que em breve teriam de se despedir. – Eu quis muito odiar você – disse ela, afastando-se o suficiente para falar. – Por quê? – Pergunta simples que ela já havia antecipado. – Para não me ferir. – Uma resposta tola quando dita em voz alta. – Eu jamais a machucaria. Como poderia? Mais uma vez o guerreiro não entendeu como a feriria, pensando apenas em espadas e flechas, incapaz de imaginar que a magoaria de outra forma. – Partindo… Só então, ele desconfiou que não a tocava apenas fisicamente e quis protestar dizendo que jamais partiria. Mas ela balançou a cabeça negativamente. Tinha de ser mais clara para se fazer entender e despir-se dos disfarces. – Sim, você precisa partir. Logo o navio que transportará o corpo do rei estará pronto e você embarcará e nunca mais nos veremos. Nunca saberei se você chegou vivo à França ou se pereceu com a fúria do mar, mas de um jeito ou de outro, você terá partido para sempre. Eu vou sofrer pelo resto dos meus dias porque preciso ficar… aqui.


Cecily achou graça da ironia de se considerar parte do castelo assim como as muralhas e os túneis. Mas foi um sorriso triste. Marc franziu o cenho sem entender. – Ce n’est pas amusant. – Você tem razão. Meu dever é casar com quem me foi destinado, independente dos meus sentimentos. Mas ficamos juntos por um tempo. Achei que estava protegida por você ser um homem que eu jamais poderia amar, gostar ou até mesmo tolerar. Alguém que eu tinha certeza de que não ameaçaria meu isolamento e que eu não ficaria triste quando partisse. O engraçado é que tentei não gostar de ninguém que pudesse me deixar e acabei me apaixonando por você. – Estou aqui agora – disse ele. – Podemos criar memórias boas em vez de arrependimentos. Mas preciso ter certeza de que é isso que você quer. A sugestão era loucura. E se ela engravidasse? Se bem que logo se casaria e talvez não desconfiassem. Ao mesmo tempo, ela se lembrou de como invejara Isabella por ter compartilhado a cama com Enguerrand. Bem, ela se arrependeria muito mais se recusasse a oportunidade. Na realidade, Marc a havia ensinado a ter coragem de aceitá-lo em sua cama, mesmo sabendo da mágoa que viria depois. – Como será depois? Será que você se decepcionará comigo também? Marc fez uma careta como se tivesse levado um soco. Como pudera imaginar que Cecily se esqueceria da história que havia contado de seu falso amor pela filha do moleiro? E ele de fato a tinha esquecido com o passar dos anos e estava apaixonado de novo. – Sentirei saudades suas até no meu leito de morte. AOS BEIJOS os dois atravessaram a sala e seguiram para o quarto de Cecily. As roupas de uma mulher às vezes são tão impenetráveis quanto uma armadura. Depois de tirar o avental dela, Marc tentou livrá-la do vestido, mas parecia um longo caminho até desnudá-la por completo. Mesmo o cabelo dela estava bem trançado de acordo com a moda da corte. Frustrado, ele se afastou por um instante. – Por que as mulheres deixaram de usar vestidos simples como sacos de batata? Apesar de ofegante, Cecily riu e propôs: – Você precisa fingir ser uma dama de companhia. Estes vestidos são tão difíceis para colocar quanto para tirar. – Então me ensine o que devo fazer – disse ele com a determinação de um soldado diante de terras inimigas prontas para serem conquistadas. Cecily mostrou os botões do vestido e desamarrou as meias. Marc ficou apenas observando o processo sensual, contendo a ansiedade de rasgar todas as vestimentas para finalmente admirá-la nua. Aos poucos, descobriu que a expectativa era um prazer igualmente indescritível. Reassumindo o controle da situação, ele baixou as meias longas, desfrutando o prazer de desnudar as pernas longilíneas com vagar. Ao se levantar, achou graça de ela tentar tirar o vestido com pressa e admirou a pele alva do pescoço e do colo dela. Cecily já estava impaciente ao desamarrar as mangas do vestido e puxá-las para baixo. Minutos depois, o vestido escorregava pelo corpo esguio, empossando-se aos pés dela. O corpo coberto apenas pela longa trança lateral que terminava na cintura fina, antes dos quadris arredondados. As curvas eram mais suaves do que se insinuavam através do vestido exagerado, mas muito mais


vulneráveis. Marc se sentou na cama, imóvel, observando cada detalhe, cada movimento, deleitando-se com a expectativa da entrega. Sua imaginação não fazia jus à figura feminina à sua frente. Não foram poucas as vezes em que ele havia sonhado com ela, porém, sonhos não exalavam o perfume doce de flores de Cecily misturado com a maresia que permeava o ar do quarto. A respiração ofegante dela soava como música aos ouvidos deles, pontuada pelos murmúrios de ambos. Mesmo sem dizerem nada, o desejo pairava no ar. Embriagado pelo perfume e músicas únicos, Marc se levantou e a tocou. CECILY SENTIU a carícia suave, bem diferente do que imaginava de um guerreiro. Seguindo os anseios do próprio corpo, ela se deitou, pronta a se entregar para ele, para a paixão, e para o amor que tanto relutara em aceitar, confundindo-o no princípio com raiva e indiferença. Apesar de ser um momento de entrega total, ela ainda se enganou mais uma vez ao pensar que seria capaz de deixá-lo partir. Mas naquela noite ela não pensaria em mais nada além de aproveitar cada momento juntos e deixarse envolver por aqueles braços fortes e saborear a língua que invadia sua boca. E finalmente afastar as pernas para que ele a possuísse de corpo e alma. Em meio aos murmúrios incoerentes dos amantes, ela só não confessou que o amava para manter o coração protegido por um escudo frágil. Depois que os corpos se fundiram entre carícias e o êxtase final, ela adormeceu. Em algum momento enquanto repousava nos braços dele, entre o sonho e realidade, ela achou ter ouvido: Je t’adore. Toujours. CECILY ACORDOU na manhã seguinte com o perfume dele impregnado na pele. Levantou-se com cuidado para não acordá-lo e foi até a janela admirar o nascer de um novo dia. Apesar de ser um ritual que sempre cumpria, era a primeira vez que ela se sentia tão renovada. De repente lembrou-se de que havia se deitado com um francês, mas reprimiu o pensamento no mesmo instante. Não. Ela havia feito amor com Marc de Marcel. Cecily sentiu-se como uma nova mulher. A luz dourada do sol banhava-lhe a pele como se fosse uma carícia de Marc. Foram meses de uma árdua batalha contra a fraqueza, acreditando que se admitisse o amor por ele estaria deixando de cumprir as expectativas de seus pais. Entretanto, a culpa não lhe pesava no coração. As águas do Canal estavam claras e calmas, livres da névoa e do vento, coroadas pelos raios de sol. Talvez fossem seus olhos, mas era a primeira vez que ela via um amanhecer tão lindo e glorioso. Ela ouviu passos e logo Marc estava ao lado dela, bocejando. Ela sorriu ao descobrir que ele não fazia o tipo matinal. – Achei que você não fosse acordar. – Eu também queria ver o nascer do sol. Será que ele também desejava que o sol fosse testemunha de como estava se sentindo especial naquela manhã? Ela decidiu não perguntar. Eles haviam compartilhado algo tão etéreo quanto os tons dourados que se misturavam ao azul acinzentado do céu, um espetáculo que duraria muito pouco, tanto quanto o amor deles. Era um momento impossível de ser capturado e também não se podia evitar o amanhecer. Reféns do momento mágico, eles observaram em silêncio o sol subir do horizonte, como se saísse da


água até reinar no céu azul. – Acho que chegou a hora de você ir ver a efígie de seus pais – disse ele, quando o espetáculo havia terminado. A perspectiva fez com que ela se arrepiasse. Mas Cecily havia aprendido a respirar e viver sem lágrimas. A amar, também. Será que estava pronta para confrontar a morte dos pais? Será que se deixaria cair no breu do desespero e da dúvida em que havia vivido nos últimos anos? Podia ser que encarasse a imagem dos pais como apenas uma bela escultura em pedra. Mas o que seria pior? – Estarei a seu lado – disse Marc, segurando-a no braço. As poucas palavras, embora tão significativas, a levaram às lágrimas. Era a primeira vez que podia se apoiar em alguém. – Venha, vamos ver o trabalho do escultor – disse ela, puxando-o pela mão. CECILY MANDOU avisar que visitaria a efígie para que a capa que a cobria fosse retirada, deixando-a exposta para análise. Mesmo assim, ela parou à porta da igreja, fechou os olhos ao entrar e tropeçou. Marc estava atento e a segurou pela cintura, impedindo-a de cair. Quando ela abriu os olhos, os olhares se cruzaram. Estarei a seu lado. O bloco de pedra estava no final da nave e se agigantava a cada passo. Ao lado da obra estava o escultor franzino, ansioso pela avaliação dela. Cecily se aproximou e, como não conseguiu dizer nada, limitou-se a menear a cabeça, forçando-se a olhar para a escultura. As imagens estavam esculpidas lado a lado, frias como a rocha. O pai havia sido representado em sua armadura, mas a figura da mãe não estava muito nítida. A espada do pai estava ao lado do corpo, cuja cabeça jazia num travesseiro de pedra, um cuidado do escultor com o conforto. Cecily chegou mais perto como se tivesse receio de acordá-los, como se os dois se levantassem e a encarassem decepcionados. A cota de malha tinha sido tão bem reproduzida que cobria a cabeça do conde de Losford, descendo pelo rosto e pescoço. Ela deslizou a mão pelo alabastro e surpreendeu-se por sentir a pedra mais quente do que esperava. – O trabalho ficou lindo – disse ela baixinho. – Supera todas minhas expectativas. O escultor agradeceu. Contudo, a mãe dela havia aprovado o desenho do pai e Cecily devia ter feito o mesmo com a imagem da condessa de Losford. Se o trabalho não estivesse perfeito, a culpa seria de Cecily. Hesitante e com dificuldades até para respirar, ela olhou para a imagem da mãe. As roupas dela estavam tão detalhadas quanto a armadura, incluindo os minúsculos botões da manga e as flores da tiara. A mão da condessa havia sido esculpida sobre a do conde, juntos até na morte. Sem palavras, Cecily dirigiu o olhar para Peter que foi logo se desculpando: – Milady disse para eu resolver. Sua mãe examinou este desenho várias vezes. Cecily ainda não sabia o que dizer. Sempre imaginara o casamento dos pais como um dever, uma obrigação e nunca sequer sonhou que sua vida fosse diferente. Mas as mãos juntas eram mais eloquentes do que palavras, significando que amor e dever podiam estar lado a lado. Será que ela podia ter esperanças de uma união assim? Mesmo se tivesse a oportunidade, será que conseguiria assumir? – Espero que tenha ficado contente, milady – disse Peter.


Cecily meneou a cabeça com os olhos lacrimejantes. – Oh, sim. Claro. Seu trabalho ficou tão perfeito quanto o que fez para o rei. Pode ficar orgulhoso e voltar para casa – disse ela, procurando não demonstrar a emoção na voz. – Se quiser posso fazer mais alguns detalhes no cabelo dela… – C’est tout – Marc se antecipou a dispensar Peter. – A condessa gostaria de ficar sozinha. Peter se despediu. O ruído de seus passos foi se enfraquecendo até sumir completamente com a porta se fechando. – As imagens se parecem com seus pais? – Marc perguntou em uma voz baixa, que mesmo assim ecoou pela pequena igreja. – Nem um pouco. O rosto do pai dela estava estreito demais, mas igual aos desenhos de outros homens. O nariz da mãe estava muito afilado. Mas nada disso era importante. – Mas isso… – Cecily pousou a mão onde as mãos dos pais entrelaçadas tinham sido esculpidas e esboçou um sorriso ao olhar para Marc, mesmo sem enxergá-lo direito por causa das lágrimas, feliz por ter uma testemunha de sua descoberta. – Eu havia me esquecido e ele me fez enxergar. Esquecido, ou talvez ela nunca soubera. Só depois que conhecera Marc, ela entendera a importância da pessoa amada. Era alguém que podia estar sempre a seu lado, dentro do coração e ser uma fonte constante da força que ela sequer sabia existir. Marc era aquela pessoa e ela não sabia como viveria sem ele. ELE ME fez enxergar. – O que você viu? – Amor. O amor dos meus pais está representado neste gesto. – Os olhos de Cecily reluziam como se ela tivesse sido contagiada por um sentimento tão profundo. – Quando minha mãe saiu para caçar, achei que ela havia deixado a dor de lado para cumprir uma obrigação. Agora acho que… – Ela olhou para as mãos esculpidas. – … talvez ela quisesse se encontrar com meu pai. La faiblesse de la femme. Nenhum guerreiro entenderia a fraqueza de uma mulher. Talvez quando chegasse a hora de se despedir dela, Marc conseguiria dizer adeus sem arrependimentos, sem… não adiantava mais fingir que seu coração estava protegido por muralhas. Quando precisasse se despedir dela, seu coração estaria tão despedaçado quanto ficara o da mãe de Cecily ao perder o marido. O ruído da porta se abrindo os interrompeu. – Milady – chamou Henry, o encarregado do castelo, correndo pela nave central –, um representante do rei e lorde de Coucy estão aqui. – Ele relanceou o olhar para Marc, imaginando a razão da visita. – Eles querem provisionar comida para os cavalos e outros mantimentos antes de partirem com o navio que levará o rei Jean para a França. Eles zarparão com a maré da manhã. Eu os receberei com minha adaga no seu pescoço e direi que só a soltarei quando estiver a bordo do navio. Mas Marc não se moveu. Os olhares se cruzaram e os dois permaneceram quietos por um longo minuto. Depois Cecily passou a mão pela escultura uma última vez e encarou o encarregado do castelo com o queixo erguido na pose que Marc já tinha visto centenas de vezes. A diferença era que agora não era mais um disfarce frágil. Parecia que finalmente ela havia assumido o título de nobreza e as devidas obrigações.


– Providencie o que eles precisam, mas não diga que eu ou De Marcel estamos aqui. Fui clara? Henry franziu o cenho, olhou para um e para o outro, meneou a cabeça e saiu da igreja. Cecily o observou sair em silêncio. Marc não sabia o que ela pretendia, mas seguiu-a sem questioná-la para fora da igreja e na direção dos penhascos e do mar. Eles atravessaram a muralha do castelo por um portão pouco usado e tomaram um atalho que ele não tinha notado antes, que subia pela encosta na direção contrária de onde o navio estava atracado. Logo chegaram ao topo do penhasco que ladeava o mar. Marc havia visto a paisagem do navio quando chegara à Inglaterra. De longe parecia uma parede branca de pedra que protegia a ilha. A praia lá embaixo era pequena demais para um barco atracar. Seria impossível escalar aquele penhasco. A própria natureza protegia o país antes até de o castelo ser construído. Mas, naquele dia, tudo remetia à paz. O céu claro, o vento constante, e as florzinhas vermelhas que polvilhavam o gramado, enquanto borboletas brancas e alaranjadas lutavam para voar contra a brisa. A trilha era muito estreita e precária em alguns trechos, por isso Marc deixou que Cecily caminhasse à sua frente até estarem a uma distância segura. Finalmente ela parou e se virou para olhar o castelo. Dali mal se via o cais e o navio; na outra margem estava Calais, que se resumia a uma estreita faixa de terra ao longo das águas do Canal. Ali, no alto daquele penhasco, longe de tudo e de todos, eles estavam de fato sozinhos. Cecily olhou para o mar e o vento soltou alguns cachos de cabelo de sua trança. – Eu costumava vir aqui quando criança… – disse ela – … quando queria fugir. Marc sabia que ela queria fugir de todas as expectativas, tão rígidas quanto sua ética de guerreiro, que se assomavam tais quais o castelo atrás deles, alto e imponente. Mas seriam expectativas dos pais dela, ou dela própria? Não fazia diferença. Havia chegado a hora de enfrentar tudo. Solidário, Marc segurou a mão dela e esperou que Cecily falasse primeiro. – Estou pronta para deixar meus pais descansarem em paz; pronta para ser a condessa de Losford e assumir minhas obrigações. Pronta para tudo… Para o seu marido também? O pensamento atravessou o coração de Marc como uma lâmina afiada, mas ele continuou calado. Ela o encarou no fundo dos olhos e completou: – Mas não estou pronta para me despedir. Marc prendeu o cacho rebelde de Cecily entre os dedos. Como havia sido imbecile achando que poderia abraçá-la sem que as muralhas de seu coração fossem destruídas. Qualquer castelo podia ser conquistado. Toda muralha tinha um ponto fraco, que geralmente passava despercebido. Atrás deles, fora da visão, estava o navio que deveria levá-lo de volta para casa. Ele só precisava agir conforme haviam planejado. A escolha era dele. – Encontrarei outro caminho para casa – disse, abraçando-a com força, protegendo-a do vento que batia nas costas dele. Como se estivessem num mundo que só pertencia a eles, os dois se deixaram cair sobre a relva, longe do penhasco. Eles se beijaram em cada centímetro de pele que os lábios alcançavam, afoitos por saberem que o adeus era inescapável. E estava perto demais. Mesmo assim, o tempo pareceu parar enquanto eles faziam amor. Marc não percebeu que o sol começava a se pôr e que a noite chegava. Finalmente ele havia deixado de ser um guerreiro, e ela, uma condessa. Ali eles eram apenas Marc e Cecily.


Depois de se amarem, ela pousou a cabeça no peito largo e Marc a abraçou. Enquanto estivessem naquela posição, não teriam de enfrentar o olhar um do outro, embora bem próximos. Ele havia dito que encontraria outro caminho para casa, como se pudesse atrasar o inevitável por mais um dia, ou um mês… era indiferente, pois teriam de dizer adeus em algum momento.


Capítulo 21

SEGUINDO AS ordens de Cecily, o emissário do rei e De Coucy receberam o que precisavam e saíram do castelo sem avistar nem a condessa, nem Marc, ou ter qualquer notícia deles. O navio zarpou para a França; De Coucy retornou a Londres, e se Marc voltou a pensar em um deles, não comentou com Cecily. Cecily, por sua vez, iniciou seu trabalho como se tivesse acordado de um longo sono. Ela sabia, sempre soube, quem seria e o que teria de fazer, mas sempre imaginou que teria tempo e que seus pais estariam ali, para orientá-la. Quando os perdeu, tudo aquilo que não tinha aprendido, tudo o que não estava pronta para fazer, passou a assombrá-la. Por isso ela havia se distanciado, culpando o luto, quando na realidade era medo o que sentia, tolamente imaginando que seus pais apareceriam para ela e a acusariam de não ser digna do título que haviam lhe deixado. Agora, porém, ela se sentia inteira. Era como se tivesse descoberto, nos meses passados ao lado de Marc, que ela era mais do que apenas um título de nobreza. E também que existira mais do que dever entre seus pais, e que sua mãe quisera lhe mostrar isso. O que reforçava sua fé. Mas não lhe dava respostas. De qualquer forma, por enquanto, o castelo era seu, e todas as obrigações que ela havia evitado agora pareciam urgentes, como se de alguma forma tivessem de ser cumpridas antes que seu marido chegasse. E antes que Marc partisse. COM UM sentimento de admiração, Marc viu Cecily dedicar-se a seus deveres com uma alegria que nunca antes tinha visto nela. Ativa, incansável, e sempre sorrindo. E mais que isso, ela se apoiava nele, pedia conselhos, aceitava sua ajuda, como se seu amor por ele a tivesse libertado do passado. Assim, Marc trabalhou ao lado dela para preparar o castelo para o novo lorde, um dia após o outro. E à medida que ele arrumava e aperfeiçoava o local, passou a deixar de pensar nele como propriedade de Cecily,


cuidando de tudo aquilo como se fosse seu. Na verdade, ele nunca tivera nada seu. Sua vida ao lado de Enguerrand fora vivida no Castelo De Coucy. Uma construção impressionante, inexpugnável, mas nunca, em momento algum, lhe pertencera. Agora, conforme ajudava Cecily, ele pensava no rei e em Windsor, outra construção que duraria para sempre, da qual ninguém jamais se apropriaria. Isso significava proteção para Cecily, a mesma proteção a que ele daria a própria vida para assegurar. E assim os dias se passavam. Os planos para partir eram adiados a cada dia. Sempre no dia seguinte ele prepararia uma embarcação; no dia seguinte abasteceria um barco com mantimentos para atravessar o Canal e retornar para casa. Mas no dia em curso, ele ajudaria Cecily a inspecionar a muralha do lado Oeste e o depósito de armas. O tempo inteiro ignorando a realidade, de que deveria ir embora. E assim os dois trabalhavam, como se cada dia fosse o último em que ficariam juntos, e quando as tarefas do dia estavam completas, eles encontravam conforto nos braços um do outro. Aos poucos, as noites foram se tornando mais importantes do que os dias, as noites em que ele podia deitar-se ao lado de Cecily, fazer amor com ela e fingir que não existia mais nada no mundo além daquelas quatro paredes e daquela cama. E a cada manhã ele se levantava cedo e a deixava só, para que as criadas não percebessem. De tal modo que mais tarde, depois que ele partisse, ela pudesse fingir que só o deixara ficar porque ele ameaçara sua vida. Já de pé antes que os portões fossem abertos, ele subia até o alto da torre para contemplar a paisagem que Cecily lhe mostrara. Em alguns dias, uma névoa sombria obscurecia tudo – cais, mar, céu – a ponto de ele nem conseguir enxergar o solo de lá de cima. Nesses dias, era perigoso subir nos rochedos, pois seria impossível ter noção de quão próximo se estava da beirada. Seria impossível também avistar um inimigo se aproximando, por terra ou por mar. Era impossível saber o que havia logo ali, do outro lado. Em outros dias, contudo, ele via a promessa de luz no horizonte, depois via o sol emergir lá no fim do mar. Nesses dias, parecia que a borda da terra estava à vista, tão definida quanto a beirada dos rochedos que assomavam mar adentro. E em dias claros e luminosos como esses, ele se virava na direção do castelo, inteiramente visível, refletindo que precisava partir e retornar para… Para o quê mesmo…? DEZ DIAS depois, no início de maio, outro potrinho morreu, a cozinheira queimou a mão e Cecily perdeu a paciência com a lavadeira. Ela se aconchegou nos braços de Marc naquela noite, à beira das lágrimas. – Eu nunca vou aprender tudo o que preciso. Como minha mãe conseguia cuidar de tudo com tanta facilidade? Marc a abraçou. – Deitando-se com o marido à noite e contando a ele sobre os contratempos do dia. Ela piscou. Nunca pensara nos pais sob esse… ponto de vista. Mas agora parecia algo em que ela podia acreditar. Até mesmo aceitar. – Além do mais – continuou Marc –, você não sabe como foi o começo da vida de seus pais, quando


eles eram jovens e inexperientes. Nenhum cavaleiro cavalga com perfeição na primeira vez. Cecily sentou-se e suspirou, sentindo-se reconfortada e ligeiramente tola. – Uma condessa tem muita coisa a aprender. – Um cavaleiro também. Leva tempo. Anos. – Mas você aprendeu. Ele deu de ombros, numa tentativa de ser modesto, mas o brilho de orgulho em seus olhos era inequívoco. – O suficiente para ensinar a outros. – Lorde de Coucy? – E mais alguns. Ensinei a Gilbert práticas melhores do que as que ele aprendeu nos torneios em Westminster. – Marc sorriu. – Algum dia ele ainda irá me derrubar do cavalo num torneio. – Hoje eu me sinto como se tivesse sido derrubada do cavalo. Marc segurou o rosto dela com uma das mãos. – Dê algum tempo a si mesma. Entretanto, conforme adormeciam, Cecily sabia que tempo com Marc era algo que ela não tinha. Logo ele partiria, ela se casaria e, dali a alguns anos, ensinaria seu filho, ou filha, a ser o novo regente de Losford. De repente, essa possibilidade, que antes lhe parecia tão distante quanto a morte de seus pais, assomou-se em sua mente. E em vez de pensar no homem que o rei havia escolhido, ela sonhou com um filho de cabelo dourado, olhos castanho-claros e ombros largos, como Marc de Marcel. À MEDIDA que os dias se passavam, Marc pensava cada vez menos na França, apenas um pontinho brilhante no horizonte longínquo, e cada vez mais em Losford e no solo sob seus pés. A verdade era que havia muito pouco agora que o encorajava a voltar para casa. A França era um país fragilizado. Os cofres estavam desfalcados. Por que voltar? O que ele havia deixado para trás que era tão importante? O que havia de bom lá, o que o esperava? Mais batalhas? A França estava em paz com a Inglaterra, mas outra Cruzada estava sendo planejada. Eles precisariam de guerreiros. E no entanto, tudo em que ele conseguia pensar era: para que tanta luta, tanto conflito, tanta morte? Por um país? Por um rei? Com o fim da guerra, o que restava para ele fazer na França além de se reunir aos grupos de cavaleiros que devastavam a zona rural? Ou talvez ser um templário e dedicar sua espada a Deus…? De repente, porém, conforme ele pensava no país que deveria ser seu lar, nada parecia suficiente. Ele queria um lugar, uma pessoa, uma moradia que fosse sua, uma família pela qual valesse a pena batalhar. O resto agora parecia apenas palavras vazias e flâmulas tremulantes, tão sem valor quanto as promessas superficiais dos cavaleiros que não respeitavam a ética. Ele mesmo não fora um chevalier parfait e gentil. No entanto, quando pensava em um código de conduta que falhara com ele, a ideia de partir, de desonrar a promessa feita ao seu rei e ao de Cecily, parecia-lhe errada. Isto não o tornaria um homem melhor do que todos aqueles que haviam descumprido seus juramentos enquanto ele apenas observava, de braços cruzados. E ele queria ser melhor que isso. Já. Por isso, conforme contemplava o nascer do sol, dia após dia, ele aos poucos compreendia que devia ficar. Ah, não, Cecily não lhe pertenceria, não. Isso era algo impossível de acontecer. Mas ir embora, fugir,


parecia-lhe agora como uma desonra, a si próprio e ao rei. E a Cecily. Se o amor que sentia por ela tinha algum sentido, então seus juramentos, as promessas que havia feito em honra ao código de conduta dos cavaleiros, também precisavam ter. Caso contrário, ela poderia pensar que aquele tempo que passaram juntos não havia significado nada. Que havia sido apenas físico. Marc não sabia como explicaria tudo isso a Cecily. Era um homem de armas, não de palavras. A atitude teria de falar por si só. Mas, quando viu o sol surgir no horizonte, certa manhã, ele soube que havia tomado sua decisão. Ele se renderia ao rei. ALGUNS DIAS depois, Cecily acordou com uma batida na porta do quarto. Ela abriu os olhos, piscando sonolenta. Ainda estava escuro? A seu lado, Marc, habituado aos súbitos imprevistos da guerra, já estava de pé e parcialmente vestido, mas não poderia enganar ninguém sobre onde havia passado a noite. Cecily apontou para debaixo da cama, esperando que ele se escondesse, mas ele já estava de espada em punho. Uma intrusão àquela hora não podia significar boas notícias. – Milady. Está acordada? Ela puxou a coberta até os ombros, olhando freneticamente ao redor à procura de seu vestido, e então pediu ao encarregado que entrasse. Ela e Marc haviam se descuidado, e agora era tarde demais para enganar os criados. Henry mal olhou para Marc. – Sir Gilbert está aqui, milady. Com uma mensagem do rei. Cecily não esperara por aquilo. – O conde voltou da Irlanda, então? Para encontrá-la na cama com outro homem? Ele balançou a cabeça. – Ainda não, milady. Ela quase desmaiou de alívio. Mas o encarregado do castelo olhou para Marc. – O rei vem buscá-la. Isso Cecily esperara menos ainda. Se o rei fizera aquela viagem, era porque devia estar bem zangado. Não haveria acomodações confortáveis para um refém que tentara escapar, e sim a prisão. Ou pior. – Como ele sabia? Como ele sabia que você estava aqui? A expressão de Marc era a mesma, Cecily imaginava, de quando ele estava prestes a entrar numa batalha. A morte estampada no semblante. – Enguerrand. Quando ele descobriu que eu não estava mais lá… – Marc encolheu os ombros. – Tout compris. – Mas, mesmo assim, por que ele contaria para o rei? – Por causa dela. Isabella. Uma conversa íntima entre eles. Especulações sussurradas. A lealdade deles era de um para o outro agora. E, estranhamente, ela conseguia entender isso. O encarregado do castelo os interrompeu. – Ele disse, milady, que o rei estará aqui antes do desjejum. Cecily deu instruções apressadas ao encarregado e mandou-o dizer a Gilbert que ela já estava a


caminho. Ela sabia que esse momento chegaria. Sabia que perderia Marc. Mas todos os dias dizia a si mesma que só mais um dia e ela estaria preparada. Que tola havia sido… Afastou as cobertas e saiu da cama, procurando suas roupas, um pente, um espelho e tentando enxergar algum sentido naquela situação toda. – Você precisa ir – ela disse a Marc. – Vou dizer a Gilbert que você está vindo e fingir surpresa quando você não aparecer. Tem um barco pequeno no molhe. Referia-se a um que eles ocasionalmente usavam para pescar. – Pegue-o. – Cecily olhou para fora, tentando avaliar o tempo. Havia neblina, mas não muito densa. Ela só esperava que o sol aparecesse. – Henry vai levar mantimentos e água e encontrar você na praia. O meu pessoal é de confiança. Eu me encarrego de distrair Gilbert. Vou dar tempo para… – Cecily. O tom de voz de Marc era de comando, ordenando que ela o olhasse. Mas ela mal suportava erguer os olhos para aquele rosto, sabendo que seria a última vez. Ela sempre achara que haveria mais um dia, e agora não havia tempo nem para um beijo. – Você precisa se apressar, Marc. – Eu não vou embora. – O quê? – Eu não vou. – Novamente ela viu aquela expressão impenetrável no rosto dele. – Vou me render. Cecily ouviu as palavras, mas não acreditou. Achava, inclusive, que havia entendido mal. – Mas… você vai ser preso. Não haveria resgate. Os franceses o deixariam envelhecer ali, sabendo que a ajuda jamais chegaria, até ele tornar-se um fardo para seu carcereiro, que acabaria achando mais conveniente vê-lo morto do que vivo. E tudo porque ela fora gananciosa a ponto de querer mais alguns dias. – Você fugiu. Desta vez não haverá festas, nem comemorações na corte. Marc deu um sorriso torto, pois nunca fora muito afeito a eventos na corte. – Então é assim que será. – Mas por quê? A expressão dele mostrava determinação e, ao mesmo tempo, serenidade. – Eu era refém. E fugi. Violei minha honra. Tenho de compensar isso, fazer a coisa certa. – Como o seu rei fez. Ele assentiu. Não, o plano não fora esse, mas nada entre eles ocorrera conforme o planejado. – Sem você, tudo o que me resta é a minha honra – disse ele. Cecily atirou-se nos braços dele, não querendo que ele fosse para o mar, nem que se apresentasse ao rei. Tudo o que queria era abraçá-lo, prolongar ao máximo aquele momento. Mas Marc afastou-a, ergueu-lhe o queixo e a beijou, não com a paixão habitual, mas suave e delicadamente, com aquele senso irreversível de despedida. – Adieu. – Não! – Ela deu um passo à frente e ergueu o queixo, uma condessa da cabeça aos pés. Se Marc era movido pela honra, ela era movida pela força. – Por favor. Dê-me algum tempo. Deve haver outra maneira.


Ela só precisava pensar. DEIXANDO CECILY acreditar que ele estava indo para um esconderijo, Marc vestiu-se e foi para o salão, esperando ter um momento a sós com Gilbert antes que o rei chegasse. Ele se renderia ao jovem cavaleiro, compensaria o erro cometido meses atrás. E, antes disso, ele se certificaria de deixar bem claro que ele forçara Cecily a trazê-lo para ali. Ela não tinha culpa de nada. Gilbert acreditaria. Ou fingiria acreditar. Quando Marc entrou no salão, o rapaz o fulminou com os olhos. – Onde ela está? O que você fez com ela? A postura agressiva indicava que ele estava preparado para enfrentar Marc numa justa novamente. Se isso acontecesse, Marc não tinha dúvida de que a disputa seria bem mais beligerante. – Eu não fiz nada com ela. – Era mentira e verdade ao mesmo tempo. – Mas eu a forcei a me trazer para cá e me abrigar. – Por quê? – Para que eu pudesse voltar para casa. Gilbert franziu a testa, confuso. – Mas você está aqui… – Eu me rendo a você, e ao rei, onde ficarei até que o resgate seja pago. – E se não for pago? Marc deu de ombros. – Então morrerei na Angleterre. – Marc perguntou-se quanto tempo demoraria para ele ansiar pelo fim. – Tudo isso em nome da honra? – Como se até o mais inexperiente dos cavaleiros pudesse acreditar nisso. Honra. Ele procurara o significado dessa palavra nos reis, nos códigos, e se decepcionava a cada vez. Por fim, encontrou a única tradução que importava. – Pela honra de Cecily. Um misto de admiração, ressentimento, confusão e compreensão modificou o semblante do rapaz. Um dia ele aprenderia. Marc esperava que a lição fosse menos dolorosa do que a sua. – E ela concorda? Ela se sente honrada? Marc deu um sorriso triste. Os dois gostavam de Cecily. Ele gostaria que, algum dia, ela entendesse o que fizera. – Não posso responder pela condessa – disse ele –, mas lhe peço que me leve até o rei antes que ela apareça. – Está pedindo muito, Marc de Marcel. É tarde demais. CECILY OLHOU de um para o outro, ambos com o semblante culpado, incerta sobre o que a motivava, se a paixão ou a fúria. – Você não esperou. Se bem que, se ele não obedecia a um rei, por que esperar que obedecesse a uma condessa? Gilbert se pôs ao lado dela. – Ele machucou você de alguma forma quando a obrigou a trazê-lo para cá?


Ah, então Marc queria garantir que ele contasse a história. Que ela ficasse protegida. Bem, agora seria a vez dela. – Foi isso que ele disse? Porque a verdade é bem diferente. Fui eu que o obriguei a me trazer para casa. Gilbert olhou de um para o outro, confuso. – Eu teria vindo com você. Ela balançou a cabeça. – O rei tinha ordenado que eu ficasse na corte. Eu não podia pedir a você, ou a qualquer um dos homens do rei, para ir contra as ordens dele. Marc franziu a testa, apreensivo por Cecily. Ela sorriu. Confie em mim, ela tentou transmitir a mensagem com o olhar. Ao lado dela, Gilbert ainda tentava entender. – Por que era tão importante para você vir para cá? – Eu tinha providências a tomar antes do meu… casamento. Casamento. Uma palavra quase impossível de pronunciar, agora. Era impossível imaginar-se entregando-se ao conde quando pertencia a Marc. – Mas essas tarefas estão acabando – disse Marc, no mesmo tom de voz gentil que usava quando estavam sozinhos. Mas as palavras possuíam um caráter de algo definitivo. Não. O que era absolutamente definitivo era que ela não podia fingir ser mulher de outro homem. Podia estar pronta para ser a condessa, mas jamais estaria preparada para deixar Marc partir. – E quando o rei chegar… – Marc continuou, falando com Gilbert, mas olhando para Cecily – …vou me render para ser preso outra vez. – Não – disse ela. – Eu não permitirei… – Milady! – A voz do encarregado do castelo a interrompeu. – O rei!


Capítulo 22

MARC VIU Cecily virar-se para fitar o rei Eduardo com a cabeça erguida e sua habitual postura altiva, que já era tão familiar para ele. De modo quase inconsciente, ele endireitou os ombros, como se a imitasse. O fim chegara. O rei podia ter admirado sua habilidade com a lança, mas nem por isso sua punição seria mais branda. Ele estava preparado, contanto que Cecily estivesse em segurança. A lista dos títulos do rei ainda estava sendo declamada quando um homem irrompeu no salão, deixando seus homens à espera na porta, e parou diante de Cecily. – Você está bem? A pergunta era mais de um tio amoroso do que de um soberano zangado. Marc soltou o ar lentamente, e Cecily sorriu e dobrou os joelhos numa vênia graciosa. – Bem-vindo a Losford, Vossa Graça. Eu estou bem e espero que Vossa Graça também esteja. – Ela ergueu a mão para o encarregado do castelo, que acabara de sair apressado do corredor. – Henry, por favor, providencie pão, queijo e cerveja para os homens do rei. Imagino que estejam com fome. Depois traga um pouco para nós também. E, Gilbert, vá junto com eles, também, para comer. Depois que os homens foram atendidos, Marc e Cecily ficaram sozinhos com o rei, e ele meneou a cabeça, com as mãos nos quadris, ainda olhando para ela. Durante aquele breve silêncio, Marc deu um passo à frente e apoiou-se sobre um joelho, diante do soberano. – Eu me rendo, Vossa Graça. Sou, mais uma vez, seu refém. – Não! – Cecily foi na direção dele, mas ele não conseguiu fitá-la, embora as mãos dela estivessem em seus ombros, como se quisesse fazê-lo levantar-se. – E se a punição para a minha fuga for a morte, eu estou preparado. O rei estreitou os olhos, agora inteiramente focado em Marc em vez de em Cecily.


– Por que eu o mataria e deixaria de receber seu resgate? Agora ele precisava dizer a verdade. – Agora com o novo rei, Vossa Graça, não tenho esperança de que seja pago um resgate. Ele enfrentou o olhar do monarca e viu compreensão. Marc dissera em voz alta o que o rei certamente sabia, mas não admitia. Não era só o resgate de Marc que estava em risco. O novo soberano teria poucos motivos para entregar moedas de ouro, mediante o cadáver do rei. – Estamos falando de honra, de hombridade – disse o rei, mais para si mesmo –, e ainda assim… – O resgate deste homem será pago – declarou Cecily. – Eu pagarei. Marc não sabia dizer quem estava mais perplexo, se ele ou o rei. – Não! – Ele se pôs de pé, em protesto. – Eu não permitirei… Mas ela entrelaçou os dedos com os dele, sem se dar ao trabalho de disfarçar. – E, Vossa Graça, há mais uma coisa que o senhor precisa saber. Eu quero me casar com este homem. Ela dissera mesmo aquelas palavras? Ousara desafiar o rei? E, no entanto ele reconhecia aquele narizinho empinado que significava que ela estava irredutível. E apesar da convicção de que não sairia vivo daquele salão, tudo que Marc sentia era alegria. O rei, a princípio tão silencioso quanto Marc, ergueu as mãos… Marc deu um passo à frente para aparar o golpe. – Vossa Graça não vai agredi-la! – Agredi-la? – A indignação era evidente no tom de voz do rei. Ele gesticulou para o alto e em seguida começou a andar de um lado para outro, no salão. – Depois de me dizer durante meses que não estava pronta para se casar, você agora me pede isso? O conde de Dexter chegará em poucos dias! O que vou dizer a ele? Que vá para o inferno, pensou Marc, mas Cecily apertou-lhe os dedos antes que ele dissesse as palavras. – O senhor deu permissão a Isabella para se casar com o refém a quem ela ama – disse Cecily, num tom de voz surpreendentemente calmo. – Eu lhe peço a mesma concessão. – Minha filha não possui o castelo que é a chave da segurança da Inglaterra! Marc sentiu mais uma vez os dedos dela apertarem levemente os seus. Se o rei pedisse para ela abrir mão de Losford por ele, qual dos dois ela escolheria? Em vez disso, porém, o rei virou-se para Marc, avaliando-o. Em silêncio, Marc repassou mentalmente os últimos meses. O que o rei sabia sobre ele, afinal? Assistira a uma justa. A uma caça a javalis. E estivera presente em algumas reuniões em Windsor nas quais ele, Marc, ficara afastado e em silêncio. De repente, ele queria provar que era digno. De Cecily. Daquele soberano. De seu país. Ajoelhou-se novamente, desta vez por uma razão diferente. – Eu juro, Vossa Graça, que serei tão fiel ao senhor quanto a Cecily. E defenderei a ambos, e a este castelo, com a minha vida. O rei meneou a cabeça. – O que eu faço com vocês, moçoilas, e seus pretendentes do Vale de Oise? – A voz dele continha uma dose de bom humor em meio à exasperação. Pelo menos era o que parecera a Marc, e ele esperava estar certo. A seu lado, Cecily soltou o ar. – Por favor, Vossa Graça, nos dê essa bênção.


– Isabella tentou me preparar antes de eu vir para cá. Ela e De Coucy me advertiram sobre isso. – Eu cumprirei minha palavra – disse Marc. – Pela minha honra. Uma promessa que finalmente ele compreendia. – O conde de Dexter vai ficar aborrecido – disse o rei, balançando a cabeça.


Epílogo

Castelo de Windsor 27 de julho de 1365

– CECILY, VOCÊ precisa me ajudar! – Isabella tentou ajeitar a coroa na cabeça, parecendo tímida e nervosa como uma menina. – Shh… – Cecily sorriu. – Não se mexa. A princesa e todas as suas damas estavam agrupadas fora da vista dos convidados reunidos na Capela de St. George. Não era de admirar que estivesse nervosa. Era o dia do seu casamento. Os preparativos para aquela ocasião haviam demorado quase um ano, e a cerimônia era tão suntuosa quanto se Isabella fosse se casar com o rei de Castela ou com o conde de Flanders, em vez de com o lorde de Coucy. – Pronto – disse Cecily, recuando para admirar a noiva. – Você está linda. E a coroa é très beau. A coroa, um dos muitos presentes de casamento do rei, reluzia com diamantes e safiras e era tão rica e extravagante quanto se Isabella estivesse assumindo o trono. Cecily também tinha se casado, numa cerimônia bem mais simples. Ela e Marc haviam trocado os votos nupciais na pequena igreja do Castelo de Losford, onde os pais dela puderam testemunhar tudo em espírito. Agora, porém, a nobreza da Inglaterra em peso estava ali para ver a filha do rei casar-se com o conde francês. Elas entraram na capela, e Cecily alisou o vestido sobre o ventre, que começava a ficar protuberante. Olhou na direção de onde Marc estava e sorriu. Naquela noite, depois que a cerimônia terminasse, ela contaria a novidade ao marido. No ano


seguinte, eles estariam na igrejinha do Castelo de Losford, celebrando um batizado. MARC OLHOU para o amigo, que estava pronto para se casar, e sentiu-se contente por haverem superado a desavença entre eles. Afinal, um homem apaixonado podia agir como um louco. Assim como uma mulher. Cecily havia, de fato, pagado o resgate de Marc. Se o dinheiro viesse da França, ela seria recompensada, mas, enquanto isso, conforme ela ocasionalmente o fazia lembrar, Marc pertencia a ela. E nada poderia deixá-lo mais feliz. Como Marc esperara, o novo rei da França se mostrara menos ansioso que o pai para respeitar os termos do Tratado. Alguma quantia de dinheiro atravessara o Canal, mas cada vez menos, com o passar do tempo. Com o casamento, Enguerrand receberia a liberdade. Sua parte do resgate fora perdoada e, mais uma vez o conde de Coucy, agora conde de Bedford, era um homem livre para ir e vir. A verdade era que, por mais forte e poderoso que fosse, o rei tinha uma fraqueza pelos filhos. E também, ao que tudo indicava, pelo amor. Para que Marc ficasse à altura de desposar uma mulher que possuía um dos títulos mais importantes da Inglaterra, o rei lhe concedera um título de conde. Marc sentia que havia conhecido um novo rei, digno de sua lealdade. E uma mulher digna de sua honra.


Posfácio da Autora

NÃO HÁ registro na História de quando Enguerrand, lorde de Coucy, e Isabella de Woodstock realmente se conheceram. Ele chegou à Inglaterra em 1360, e eles se casaram, como relatado aqui, em 1365. Os cronistas mencionam especificamente quão charmoso e encantador era De Coucy quando o rei Jean II da França retornou ao cativeiro. Segundo Jean Froissart, escrivão dos eventos no reino do rei Eduardo, “…o jovem lorde de Coucy se destacava nas danças e nos cantos, quando era sua vez. Ele recebia a aprovação irrestrita tanto dos franceses quanto dos ingleses…” Que mulher deixaria de reparar num homem assim? Tomei algumas liberdades com relação ao local da corte real, independentemente de uma data específica. Naquela época, a corte se mudava com frequência, e era comum ficar somente alguns dias em um lugar. Para simplificar, reduzi alguns de seus movimentos e limitei as localizações, incluindo aquelas relacionadas ao regresso do rei Jean da Inglaterra. Se você leu Segredos da corte, vai se lembrar de que o Castelo de Windsor estava passando por uma extensa reforma durante este período. Não existem detalhes sobre quais partes ficaram prontas e em que ano, por isso recorri ao meu bom senso e às informações disponíveis. Se nem todos os cômodos e instalações mencionados no livro estavam completamente prontos e em funcionamento na época do Natal de 1363, espero que os historiadores perdoem meu impulso de descrevê-los conforme Eduardo pretendia que estivessem. O castelo de Cecily segue muito de perto o modelo do Castelo de Dover, mas os detalhes da vida dela e da família não são aqueles habitualmente observados em proprietários de castelos. Surpreendentemente, havia poucos castelos na costa da Inglaterra naquela época. Foi somente a partir do reinado de Henrique VIII que eles começaram a ser construídos ao longo das costas Leste e Sul, como fortalezas de defesa. Dover, a apenas 21 milhas (cerca de 33 km) de distância de Calais, do outro lado do Canal da Mancha, era realmente o único. Como a “chave da Inglaterra”, Dover pertencia à


Coroa, e não a uma família individual, e o rei contratava uma pessoa de confiança como segurança e guardador do castelo. Nessa época – 1361-1364 – era sir Richard… ou Robert… de Herle, que era também administrador da Confederação dos Cinco Portos e almirante de esquadra. E embora eu tenha inventado o conde de Losford, existiu um lorde inglês, lorde Guy Beauchamp, morto na chuva de granizo da Segunda-Feira Negra, como aconteceu com o pai de Cecily. O rei Eduardo de fato visitou o Castelo de Dover em 1364 para negociar um casamento, mas não o que eu descrevo neste livro. Quanto à história de De Coucy e Isabella, também tentei me ater ao bom senso. Os hábitos extravagantes dela e o charme e traquejo dele são características comuns e aceitáveis na corte, e ela era claramente a filha predileta do pai, além de ser muito ligada à casa e à família. O histórico de tentativas de casamento é correto. As terras inglesas de lorde de Coucy foram recuperadas, embora este fato tenha sido registrado com datas diferentes – logo em 1363 ou como parte do contrato de casamento em 1365. Eduardo III outorgou-lhe o título de conde de Bedford, para que ele tivesse um título inglês condizente com suas propriedades, e ele foi até nomeado Cavaleiro da Ordem da Jarreteira. Eduardo de fato criou esses títulos várias vezes durante seu reinado, portanto, fazer o mesmo por Marc de Marcel teria sido muito plausível. Para Enguerrand e Isabella, não houve um final feliz. Eles se mudaram para a França, mas quando Eduardo III morreu, em 1377, De Coucy abriu mão de seu título inglês e das terras e dedicou sua lealdade ao rei francês. Isabella, que frequentemente viajava de volta para a Inglaterra, acabou indo para lá de vez com as duas filhas do casal, e os dois viveram separados pelo resto da vida. Ela morreu em 1382. Depois de sua morte, Enguerrand casou-se de novo, com uma moça coincidentemente chamada Isabelle, filha de um duque francês. Eles também tiveram uma filha, que não viveu até a idade adulta. De Coucy passou o resto da vida lutando em guerras e combates, até morrer de peste bubônica em 1396, após ser feito prisioneiro durante uma Cruzada na Turquia. A segunda filha de Isabella e Enguerrand, Philippa, casou-se com Robert de Vere, o nono conde de Oxford. A situação dos reféns franceses na Inglaterra, por mais estranha que pareça, foi bem documentada. Código de conduta e ganância se misturavam em doses iguais, e alguns deles realmente socializavam com a corte com certa frequência. A festa na residência do ex-prefeito está registrada na história. Dizem alguns que quatro, e não dois, reis compareceram, mas, segundo as informações mais embasadas que consegui obter, o rei David da Escócia e Pedro de Chipre já tinham partido de Londres, nessa ocasião. Até a hospitalidade do rei Eduardo para com o rei Jean é descrita com detalhes nas crônicas, e o rei Eduardo providenciou um pomposo funeral para o outro monarca antes de enviar seu corpo de volta para que a França fizesse o mesmo. Mas a morte do rei Jean em 1364 acarretou mudanças na situação dos reféns e do Tratado. Embora o ultimo refém tenha sido libertado somente em 1367, o rei Eduardo pareceu perder o interesse e o entusiasmo, e alguns reféns simplesmente desapareceram, como Marc tentou fazer. Como cita o historiador francês Edouard Perroy em seu livro A Guerra dos 100 Anos, nessa época “permaneceram em Londres como reféns somente a arraia-miúda de barões de somenos importância e burgueses. Medidas individuais de clemência libertaram alguns, e outros se casaram e se estabeleceram definitivamente na Inglaterra…” “Outros” inclui lorde de Coucy e, talvez, até alguém como Marc de Marcel.


Minha história termina com França e Inglaterra em paz, que, contudo, não durou. De fato, como Marc suspeitava, a morte do rei da França desvendou tudo. Pouco a pouco as lutas recomeçaram, e o rei francês, Carlos V, anulou o Tratado de Brétigny em maio de 1369. Houve nova guerra, que só terminou em definitivo no século seguinte. Depois de algum tempo, ficaria conhecida como a Guerra dos 100 Anos. Uma observação sobre o uso de palavras: Chaucer realmente usou o termo “princesa” em um manuscrito de 1385, cerca de 20 anos após esta história, mas que não era amplamente usado no século XV. Eu o usei aqui para Isabella porque é provável que fosse comum na época e é mais familiar para o leitor contemporâneo. O título de compte na França era equivalente ao de conde na Inglaterra. A forma feminina, nos dois países, era “condessa”.


CORAÇÃO HONRADO TERRI BRISBIN

– Estou aqui em nome do meu amigo, William DeSeverin – John falou, seguindo até a janela e olhando para fora com uma de suas expressões favoritas de desdém. As palavras e a postura de John eram um prenúncio de algo ruim. – O que ele tem a ver com lady Emalie? – Ele se arrepende do excesso de zelo que demonstrou a você, minha querida – disse John, relanceando o olhar para Eleanor, depois para seu verdadeiro alvo, Emalie. – Ele quer se apresentar para salvar você da desgraça. – Vossa Graça, não preciso que ninguém me salve de nenhuma desonra –respondeu Emalie com toda a calma. – Isso é bobagem, milady, o castelo e a vila inteira sabem do que estou falando. Eleanor não podia permitir que ele continuasse e precisava recuperar o controle da situação. – Também não acho que sir William precise salvar Emalie. – Mamãe, conforme eu disse na mensagem que a trouxe aqui, William confessou ter levado a condessa para cama e pretende se casar com ela para evitar a desonra. – Vou dizer de outra forma: Não vejo razão para tal casamento. – As criadas dela sabem.… – As criadas juraram por suas almas imortais que Emalie é inocente. – Elas estão mentindo, eu... – Você, John? Por acaso tem alguma coisa a ver com a tentativa de desonrar a condessa de Harbridge? Acho que seria muita audácia até mesmo para você. E muita coragem, já que seu irmão tinha muita estima pelo pai dela quando ainda era vivo. – Bastou olhar para o filho para que Eleanor soubesse a verdade. O objetivo de John era conquistar Emalie, William tinha sido apenas uma marionete, e a desgraça da moça seria sua arma. Em vez de responder de imediato, Eleanor observou a moça. Emalie estava pálida e a respiração em descompasso anunciava que estava prestes a desmaiar.


Eleanor se sentiu enjoada ao compreender as intenções de John. – Falei com todas as pessoas que você mencionou e só ouvi elogios, nenhum dos criados disse qualquer coisa que desabonasse sua ama. Os habitantes do vilarejo também não disseram nada. Pelas respostas que obtive não me resta alternativa se não recusar o pedido de William à mão da condessa. – Acho que a senhora devia pensar melhor – retrucou John com a voz mais ameaçadora do que quando perdera o controle e gritara sua raiva para o mundo. – Richard é o rei e não permitirá um golpe como esse pelo controle. Acho que é hora de você e seus comparsas virarem esses olhos de rapina para outro lado. A conversa está encerrada. – Eleanor chamou os guardas. – Escoltem milady para o quarto dela e não permitam que ninguém os impeça. – Ela acenou com a cabeça para que a condessa os acompanhasse. Emalie se levantou e dobrou os joelhos numa reverência à rainha. Endireitou as costas para sair do solário como a condessa de Harbridge e não como a mocinha apavorada de minutos atrás. John a fulminou com um olhar de luxúria quando ela passou ao sair da sala. Isso não havia terminado ainda. E para confirmar os piores temores da rainha, ele vociferou: – Não estou nem um pouco contente com sua interferência, milady. – Contente ou não, estou aqui para atender seu chamado. E ficarei até ter certeza de que Emalie está em segurança. – Ou até que outra coisa chame sua atenção em outro lugar. – John se aproximou da rainha. Inclinando-se mais uma vez, beijou-a no rosto e sussurrou: – Volte a se preocupar com Richard e deixe a Inglaterra para mim, sua velha. Eleanor sentou-se, ficando imóvel até a víbora deixar a sala e os guardas fecharem a porta. Então, pela primeira vez em muito tempo, Eleanor, rainha da Inglaterra, sentiu o peso de seus 72 anos sobre os ombros.


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G388r Gifford, Blythe Rumores na corte [recurso eletrônico] / Blythe Gifford; tradução Silvia Moreira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Harlequin, 2015. recurso digital Tradução de: Whispers at court Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-398-2016-0 (recurso eletrônico) 1. Romance americano. 2. Livros eletrônicos. I. Moreira, Silvia. II. Título. 15-25315

CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3

PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HARLEQUIN BOOKS S.A. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: WHISPERS AT COURT Copyright © 2015 by Wendy B. Gifford Originalmente publicado em 2015 por Harlequin Historicals Arte-final de capa: Isabelle Paiva Produção do arquivo ePub: Ranna Studio Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171, 4º andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 Contato: virginia.rivera@harlequinbooks.com.br


Capa Texto de capa Teaser Nota da Autora Rosto Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22 Epílogo Posfácio da Autora Próximo lançamento Créditos


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