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O governo Lula da Silva e a construção da identidade sul-americana (2003-2010) Leandro Gavião Introdução: o Brasil no contexto sulamericano Em linhas gerais, pode-se classificar a conjuntura política nas Américas, durante a década de 2000, a partir de dois grandes referenciais. O primeiro verifica-se na estruturação de uma estratégia de combate global ao terrorismo por parte dos Estados Unidos, após o 11 de setembro, o que se tornou o principal tema de sua agenda de política externa, colaborando para deslocar o relacionamento com a América do Sul para um plano secundário. O segundo situa-se na emergência de governos sul-americanos de matrizes ideológicas tributárias da esquerda do espectro político, fato que embora desprovido de um marco cronológico específico, é de uso comum

referir-se às vitórias de Lula da Silva e Néstor Kirchner para situar o início desse fenômeno. Conforme prenunciado no discurso de posse do presidente Lula, o regionalismo sul-americano ocupou parte fundamental da projeção externa brasileira 1 . No entanto, houve frustrações com relação às expectativas depositadas neste cenário de confluência de governos progressistas, contrariando os prognósticos mais otimistas, para os quais a orientação programática antiliberal criaria consensos amplos e maior coesão entre os regimes de esquerda, que por sua vez transbordariam para o restante da região. Na verdade, no que concerne ao Brasil, as principais reivindicações econômicas oriundas das nações do entorno

Doutorando em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Mestre em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador do Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina (NEIBA-UERJ). Contato: l.gaviao13@gmail.com 1. “A grande prioridade da política externa durante o meu Governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social” (Silva, 2003a, p. 40).

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geográfico originavam-se de lideranças e governos alinhados ideologicamente com correntes de esquerda, destacandose as recorrentes desavenças comerciais no eixo Brasil-Argentina. Com o objetivo de recompor o parque industrial argentino, a administração Kirchner aderiu a preceitos heterodoxos e nacionalistas no plano econômico, acarretando num modelo neodesenvolvimentista de feição cepalina. Todavia, as estratégias protecionistas adotadas pelo governo argentino ocorriam fora dos marcos legais do MERCOSUL, prejudicando as exportações brasileiras para o país. O propósito que fomentava tais medidas era bastante simples: impedir que o mercado nacional fosse invadido pelos produtos brasileiros. Em contrapartida, a diplomacia de Lula adotava um comportamento leniente ante os mecanismos defensivos estabelecidos por Buenos Aires, levando alguns especialistas a classificarem essa postura a partir do conceito de “paciência estratégica” (Gonçalves; Lyrio, 2003). Em reação às pretensões brasileiras de consolidar-se como líder regional na América do Sul, Kirchner e Hugo Chávez ensaiaram uma maior aproximação diplomática, de forma a compor uma espécie de aliança estratégica entre ambos os países e, indiretamente, contrabalançar os anseios de Brasília (Saraiva, 2009, p. 82-83). Neste

contexto, a diplomacia de alto perfil da Venezuela revelara-se fundamental, tanto ao comprar títulos da dívida argentina como ao manter a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA)2 como alternativa paralela ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e à União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Autores como Bernardo Sorj e Sergio Fausto assimilam essa fragmentação das estratégias nacionais para a região como uma peculiaridade intrínseca ao regionalismo pós-liberal que vigora na região desde a década de 2000. À exemplo dos constantes imbróglios no comércio Brasil-Argentina, a liberalização comercial é encarada como impedimento para a adoção de políticas nacionais de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que a conjuntura econômica reduz a importância relativa da região diante do crescimento vertiginoso do fluxo comercial com a Ásia (Sorj; Fausto, 2011, p. 13-14). Em resposta, o Brasil esforçou-se por incorporar a Venezuela ao MERCOSUL, o que em certa medida colaboraria para situá-la em sua órbita de influência, muito embora fatores de ordem econômica e geopolítica tenham contribuído decisivamente para este movimento de ampliação do órgão. Conquanto se furtasse da obrigação em assumir plenamente o papel de paymaster, o Brasil ensaiou alguns passos

2. Enquanto os projetos alicerçados pelo Brasil delineiam uma identidade regional sul-americana, a ALBA revela-se como uma organização de corte latino-americano, não obstante a adesão a posteriori de Estados do Caribe anglófono. A ALBA encontrou eco principalmente entre os países que se autoproclamam socialistas e assumem uma postura de rivalidade aberta em relação a Washington.

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nesse sentido ao ceder às pressões dos membros menores pela criação do Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM)3, instrumento financeiro que reconhecia a necessidade de atenuar as assimetrias estruturais entre os sócios do bloco4 (Lima, 2006, p. 3). Podemos localizar, da mesma maneira, avanços institucionais pontuais, formalizados nas dimensões jurídica e societária, representados no Tribunal Permanente de Revisão (2004) e no Parlamento do MERCOSUL (2006), respectivamente. Na esfera da integração física, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a partir do governo Lula, promoveu o financiamento de uma série de obras através de ações bilaterais, condicionadas à participação de empresas brasileiras, seguindo as restrições legais inerentes ao banco (Saraiva, 2009, p. 81). Se considerarmos que o BNDES possui patrimônio e orçamento superiores aos das demais instituições que atuam na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana ( I I R SA ) – e x c e t u a n d o o B a n c o Interamericano de Desenvolvimento–, torna-se claro que a sua presença reforça a liderança brasileira na condução da agenda de projetos regionais. É relevante

ressaltarmos que, após a era Cardoso, o papel do banco modificou-se sensivelmente, deixando de ser um instrumento direcionado para o processo de desestatização, passando a destinar parte majoritária de seus desembolsos para projetos de infraestrutura. Segundo Luciano Coutinho, presidente do BNDES (2013), a instituição “deverá ser o principal indutor da integração, financiando a: ampliação das relações comerciais do Brasil com a América Latina; internacionalização das empresas brasileiras; implantação de projetos de infraestrutura regional” (Coutinho, 2009, p. 25). Paralelamente, houve a absorção da IIRSA pelo COSIPLAN, em 2009. O foro composto por ministros substituíra o Comitê de Direção Executiva, tendo em vista obter respaldo político no mais alto nível e assegurar maior articulação entre os esforços de integração, embora herdando o arcabouço técnico e metodológico da IIRSA. Conjuntamente, a maior participação dos Tesouros Nacionais –responsáveis por mais de 60% dos recursos– em detrimento do setor privado, indica um alargamento da margem de possibilidades para impulsionar uma integração dentro de uma visão estratégica e autônoma, com planejamento consensuado dos gover-

3. Em funcionamento desde 2006, “o FOCEM é um fundo destinado a financiar programas para promover a convergência estrutural; desenvolver a competitividade; promover a coesão social, em particular das economias menores e regiões menos desenvolvidas e apoiar o funcionamento da estrutura institucional e o fortalecimento do processo de integração”. Disponível em: http://www.mercosur.int/focem (Acesso em: 25/04/2013). 4. O aporte e distribuição dos recursos do FOCEM são realizados seguindo uma lógica proporcional, levando-se em consideração o poderio econômico dos países. Nesse caso, os maiores contribuintes são o Brasil (70%) e a Argentina (27%), ao passo que os maiores beneficiários são o Paraguai (48%) e o Uruguai (32%). O orçamento inicial do FOCEM era da importância de US$100 milhões.

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nos sul-americanos (Padula, 2011, p. 202-208). Na visão de autores geopolíticos nacionalistas, a capacidade estatal de operacionalização e financiamento é ainda insuficiente, mesmo quando consideradas as mudanças verificadas ao longo da gestão Lula. Segundo Darc Costa, seria preciso reestruturar desde as concepções macroeconômicas dos Estados até o estilo de integração regional, abandonando os resquícios do regionalismo aberto, cuja ênfase recai nas exportações. Em seu lugar, dever-seia promover “a organização do espaço econômico com base nos mesmos princípios já apontados pelo economista alemão Friedrich List, em 1841 – industrialização, comércio estratégico, formação de um mercado amplo e seguro: poder” (Costa, 2011, p. 24). Nos âmbitos cultural e educacional, que experimentaram uma nova dinâmica após 2003, é emblemático o papel da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), idealizada por Lula e sediada na cidade de Foz do Iguaçu, na fronteira trinacional entre Argentina, Brasil e Paraguai. Além de carregar uma carga simbólica notável, a instituição evidencia os esforços para edificar uma identidade comum no nível da sociedade civil, embora os principais vetores de articulação da identidade sulamericana estejam localizados no âmbito da burocracia estatal. De acordo com as informações disponibilizadas no

sítio oficial da UNILA: “Sua missão institucional é a de formar recursos humanos aptos a contribuir com a integração latino-americana, com o desenvolvimento regional e com o intercâmbio cultural, científico e educacional da América Latina, especialmente no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). A vocação da UNILA é o intercâmbio acadêmico e a cooperação solidária com países integrantes do MERCOSUL e com os demais países da América Latina. Os cursos oferecidos são em áreas de interesse mútuo dos países da América Latina, sobretudo dos membros do MERCOSUL, em áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento e a integração regionais5. Dessa forma, ainda que a América Latina conste no nome da instituição, a ênfase recai sobre a América do Sul. O fato de ser uma instituição bilíngue e a própria composição dos quadros docente e discente da universidade, onde 50% das vagas são destinadas a alunos e professores de outros países da América Latina –a maioria dos quais sulamericanos–, demonstram que a principal incumbência daquela universidade é formar acadêmicos que possam colaborar para dirimir desafios prementes da região. Os dezesseis cursos de graduação disponíveis coincidem com campos do saber próprios para impulsionar o aprofundamento da integração, o desenvolvimento socioeconômico e a identidade comum

5. Disponível em: http://www.unila.edu.br/conteudo/institucional (Acesso em: 25/04/2013). Grifos nossos.

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entre povos vizinhos. Outras instituições situadas no plano das relações sociais e culturais entre os países do MERCOSUL foram criadas ao longo da gestão Lula. O Foro Especializado Migratório do MERCOSUL (2003), o Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do MERCOSUL (2004), a Secretaria Permanente do MERCOSUL Social (2005) e o Instituto Social do MERCOSUL (2009). Esse leque multidimensional de iniciativas articuladas em áreas não necessariamente comerciais contribuiu para robustecer o processo de regionalização na América do Sul (Saraiva, 2012b, p. 97), assim como um sentimento de pertencimento comum. Tendo por base a apresentação acima, explicar-se-á, nos parágrafos subsequentes, como o Brasil articula a construção da identidade sul-americana. A instrumentalização da identidade sul-americana por meio do discurso da solidariedade “Estamos profundamente empenhados na integração da América do Sul. Vemos essa integração não só do ponto de vista econômico e comercial. Acreditamos em um amplo processo de aproximação política, social e cultural entre os países da região, processo no qual o MERCOSUL tem papel de destaque” (Silva, 2003b, p. 15 – Grifo nosso). A frase sobrejacente corresponde a um trecho do discurso de Lula da Silva ao National Press Club, em Washington, em 2002. As palavras do então presidente densidades nº 14 - diciembre 2013

eleito sintetizam com clareza a disposição do Brasil em ampliar as relações com o subcontinente sulamericano, catalisando políticas abrangentes de integração regional que buscassem superar a ênfase que até então recaia sobre o regionalismo de corte comercialista, desdobrando-o para outras esferas, embora houvesse o reconhecimento da importância em se considerar como políticas de Estado a perpetuação de projetos pretéritos, como a Reunião de Presidentes da América do Sul, assim como os diálogos visando o aprofundamento da agenda de integração física e a conformação de uma área de livre comércio na região. “Para o Brasil, a construção de relações econômicas internacionais mais equilibradas passa, necessariamente, pela unificação do espaço sul-americano. Vamos continuar a apoiar a reunião de chefes de Estado da região para dar seguimento aos projetos de integração nos campos dos transportes, da energia e das comunicações. Buscaremos concluir as negociações entre o MERCOSUL e a Comunidade Andina de Nações para aproveitar, também na área comercial, o extraordinário potencial da vizinhança” (Silva, 2003b, p. 22). A gestão de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso -membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)-, notabilizou-se pelos esforços vultosos para costurar o continente com obras de infraestrutura via IIRSA, com ênfase nos corredores de exportação. Não obstante algumas modificações, a administração Lula deu continuidade a

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esse projeto, somando-o a alternativas direcionadas para arranjos mais abrangentes de cooperação, sobretudo nas áreas política e social. Inserido nesse alargamento de temas, situa-se o objeto central deste artigo: a identidade sulamericana. O elemento identitário emerge como instrumento estratégico para fortalecer os vínculos interestatais, motivo pelo qual o governo Lula ficou marcado por tentativas perenes de desenvolver uma identidade sulamericana que legitimasse seu respectivo processo de integração. Na visão do ministro das relações exteriores, Celso Amorim, “parte da força internacional do Brasil decorre da boa relação que temos na América do Sul, e uma integração sul-americana vai fortalecer a todos nós num processo internacional”6. A região perpetua seu papel de esteio para obtenção de uma maior margem de manobra na inserção internacional do Brasil. Todavia, o modelo adotado na condução da integração sul-americana fez com que o governo Lula tivesse de rebater as críticas dos adversários de seu projeto. A política externa estabelecida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) representa, para inúmeros autores, uma mudança de paradigma na diplomacia brasileira (Cervo, 2008). O PSDB governou o Brasil entre 1995 e 2002 com

uma coalizão de centro-direita, da qual fazia parte o Partido da Frente Liberal, à época uma das mais fortes agremiações partidárias; o PT chegou ao poder com uma coalizão de centro-esquerda. No que concerne ao Ministério das Relações Exteriores, o PSDB nomeou para os principais cargos os setores de tendência liberal –também chamados de institucionalistas pragmáticos–, com o avento da gestão petista, há um retorno da corrente de viés desenvolvimentista –também chamados de autonomistas7– aos postos-chave do ministério. A polarização partidária interna, protagonizada pelo PT e pelo PSDB, inseriu a política externa nos debates eleitorais posteriores. A oposição, protagonizada pelos peessedebistas, teve como alvo constante as linhas gerais da política externa adotada pelo PT, enfatizando as relações bilaterais no plano sulamericano. Destacaremos, a seguir, alguns contra-argumentos dos principais agentes decisórios de política externa brasileira nesse período, para que possamos compreender a maneira como o governo Lula inseriu a agenda sul-americana nas diretrizes diplomáticas, o que nos ajuda a perceber as razões pelas quais o país adotou uma postura condescendente em litígios com Estados vizinhos. De fato, houve uma nova orientação de política exterior em relação à inserção brasileira na América do Sul. Na visão do

6. Roda Viva. São Paulo, TV Brasil, 22/06/2009. Programa de TV. 7. Para maiores informações sobre as diferenças entre os institucionalistas pragmáticos e os autonomistas, ver: Saraiva (2010).

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embaixador Antonio José Ferreira Simões8, a relação com a vizinhança sulamericana “visa a integração e a solidariedade. É preciso que todas as partes sintam que ganham algo” (Simões, 2011, p. 13). O tema da solidariedade para com a região é, não raro, interpretado de forma enviesada, sendo apresentado ora como generosidade despropositada, ora como mero ideologismo. Na verdade, vivenciamos a coexistência de concepções dicotômicas relativas aos meios necessários para alcançarmos os interesses nacionais do Brasil. Quando Lula afirmou que “o Brasil, como a maior economia do continente e com a maior população do continente, tem que ter a responsabilidade de ajudar os países mais pobres da América do Sul a se desenvolverem”9, estava, na realidade, pensando a região a partir de todo um arcabouço estratégico estruturado na geografia econômica e nos indicadores quantitativos de poder que o bloco sul-americano apresenta, especialmente no que tange aos recursos naturais. Há uma lógica de atuação dotada de objetivos bem definidos por trás da articulação “solidária” com a vizinhança sul-americana. O senso de compromisso do Brasil face ao desenvolvimento da região possui um fundamento pragmático, ao contrário do suposto ideologismo que os adversários e setores da imprensa

tentam repetidamente imprimir à gestão do PT. Antes de qualquer coisa, é preciso enfatizar que é uma falácia epistemológica sustentar que as ações políticas podem ser não-ideológicas. Parafraseando o cientista político Norberto Bobbio, podemos dizer que não há nada mais ideológico do que afirmar que uma determinada política não se vincula a nenhuma ideologia (Bobbio, 2001, p. 51). A posição do Brasil em relação aos Estados do subcontinente decorre da percepção de uma identidade comum de interesses, cabendo a Brasília assumir parte da responsabilidade do desenvolvimento daqueles que compartilham fronteiras e projetos de integração regional conosco, visando amenizar as assimetrias. Isto se evidencia principalmente se constatarmos que a presumida generosidade não ocorre em relação aos países periféricos considerados de reduzida importância estratégica para o Brasil, por exemplo. Nas palavras do ministro Celso Amorim, “o Brasil não pode ser uma potência no meio de países 10 pobres e miseráveis” . Ou seja, a estabilidade e o desenvolvimento da vizinhança também fazem parte do repertório dos interesses nacionais brasileiros, especialmente se levarmos em consideração argumentos tangíveis, como a contribuição desses países para a internacionalização de empresas brasi-

8. Simões foi embaixador na Venezuela e assumiu, em 2010, a Subsecretaria-Geral da América do Sul, Central e do Caribe. 9. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CoLZCDuTqgA (Acesso em: 01/08/2013). 10. Roda Viva. São Paulo, TV Brasil, 18/10/2010. Programa de TV.

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leiras e para obtenção de saldos positivos em nossa balança comercial. Nesse contexto, a leniência de Brasília perante o pedido de revisão do Tratado de Itaipu por parte do Paraguai11, constituiu-se em um dos episódios de maior comoção naqueles grupos da opinião pública identificados com a oposição. Entretanto, quando impelido a comentar sobre a justificativa da posição adotada nos diálogos bilaterais entre Brasília e Assunção, Celso Amorim traçou considerações que inserem os resultados daquela negociação dentro de uma visão estratégica da região, pensando, inclusive, no papel do mercado paraguaio para os produtos industriais brasileiros: “Acho que nós temos que partir de alguns princípios. O Paraguai é um vizinho do Brasil; o Paraguai é uma economia do MERCOSUL. A mais pobre. É o país que tem o maior percentual de pobres, que tem a renda per capta mais baixa, e é um país para quem Itaipu é algo extremamente importante. (...) Nós procuramos ter uma certa compreensão para encontrar formas pelas quais o Paraguai se sinta mais bem retribuído. (...) [A revisão do Tratado de Itaipu] não pode ser um tabu, ela tem que ser discutida.(...) Nós temos um superávit [com o Paraguai] que tem atingido, fora esse ano de crise [2009], quatro bilhões de dólares por ano. Então nós temos que ter também uma visão cuidadosa. Não

adianta a gente ter só uma política de retaliação ou uma política de dureza comercial e perder um mercado que tem sido importante para os industriais brasileiros”12. Na mesma entrevista, realizada pelo programa Roda Viva, da TV Brasil, Celso Amorim respondeu as críticas elencadas pelo embaixador Rubens Barbosa que, na esteira dos demais insatisfeitos, discorreu sobre a posição “passiva” do Brasil ante as diversas exigências dos Estados sul-americanos. “Só uma pessoa que não vê a realidade pensa que a atitude brasileira cria problemas. (...) Nós não vivemos mais na época do neoliberalismo, nós não vivemos mais na época em que todos seguiam a receita de Washington, ou qualquer outra receita. Os países querem ser independentes, os povos querem ser independentes, os povos estão se afirmando e nós temos que ter uma política externa que preserve o interesse brasileiro, mas que reconheça esse fato. Porque se nós quisermos fazer uma política de tacão, de pura confrontação com esses países, nós iremos certamente ter maus resultados para o Brasil, além de, naturalmente, criar situações de instabilidade nesses países, o que também não nos interessa”13. O caso da nacionalização dos hidrocarbonetos por Evo Morales e os prejuízos causados à Petrobras, assunto que polarizou as posições do PT e do

11. A revisão acarretou na elevação do pagamento anual de Brasília para Assunção, referente à cessão de energia, passando de US$ 120 milhões para US$ 360 milhões. 12. Roda Viva. São Paulo, TV Brasil, 18/10/2010. Programa de TV. 13. Roda Viva. São Paulo, TV Brasil, 18/10/2010. Programa de TV.

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PSDB nas eleições de 2006, levou Lula a respaldar a posição do Brasil como agente que colabora para o desenvolvimento dos países vizinhos, como parte da estratégia brasileira para a região. O trecho subjacente é uma resposta formulada por Lula ao então presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB): “[Não achamos] que nós precisamos bater na Bolívia, precisamos bater na Venezuela, precisamos bater na Argentina, e só podemos aceitar o que os Estados Unidos querem. Esse país [Brasil] conquistou autoridade moral. A Bolívia fez com o gás dela o que todos os países do mundo fizeram com o petróleo. O que acontece é que nós temos que negociar, porque eu sei como é uma pessoa autoritária: pega o mais fraco e se puder vai pra cima e invade. Eu, não. Eu vou conversar com o Evo Morales, vou conversar com o governo da Bolívia, porque eu sei que aquele povo passa muita necessidade e o único patrimônio que eles têm é aquele gás. Portanto, o Brasil tem que ser justo com eles na negociação. Eu acho que já houve tempo em que a bravata contra os países pobres predominava. Agora, não. Agora é parceria. (...) Possivelmente, ele [Alckmin] não saiba que nós temos com a Bolívia, com o Uruguai e com o Paraguai, a responsabilidade de ajudar a economia desses países a 14 se desenvolver” . O governo brasileiro esforçou-se em digerir as tensões originadas das reivindicações dos países vizinhos sem

enfrentamentos que pudessem azedar a tão desejada coesão sul-americana. Simultaneamente, tornava-se necessário convencer a opinião pública doméstica de que a posição adotada embasava-se em preceitos pragmáticos, por mais que os setores oposicionistas almejassem convencê-la justamente do contrário. Em resumo, podemos dizer que a solução das crises regionais estruturouse nos marcos do princípio da nãoindiferença, que tem por base a solidariedade (Saraiva, 2007b, p. 49). Os esforços pela criação de uma sinergia de interesses com as nações da América do Sul, ao se posicionar favoravelmente à conciliação frente às concessões demandadas pela vizinhança, insere-se no processo de construção de uma identidade regional pautada na ideia de uma “camaradagem horizontal” (Anderson, 2011), ancorada no princípio da superação das assimetrias no subcontinente. Objetivo, este, classificado como prioritário, conforme destaca a Declaração de Cochabamba. A instrumentalização da identidade sul-americana por meio das organizações internacionais A estruturação de um sentimento de comunidade ultrapassou os limites das boas relações com os países da América do Sul, transbordando para a criação de organismos internacionais capazes de alavancar a identidade sul-americana e o emperrado regionalismo no subcontinente.

14. Eleições 2006. Debate, Rio de Janeiro, Rede Record, 23/10/2006. Programa de TV. Grifos nossos.

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A Declaração de Cusco (2005), da qual são signatários os doze Estados sulamericanos, delineou as bases necessárias para a fundação da Comunidade SulAmericana de Nações (CASA), visando contemplar todos os países independentes daquela área. Os princípios dessa comunidade estruturar-se-iam tendo por base o entendimento político e a integração econômica e social de seus povos. Nesse processo, destaca-se o papel da organização em consolidar a identidade sul-americana, conforme previsto no segundo parágrafo do documento: “A Comunidade Sulamericana de Nações fortalecerá a identidade da América do Sul e contribuirá, em coordenação com outras experiências de articulação regional e subregional, para o fortalecimento da integração dos povos da América Latina e do Caribe”15. Em 2007, durante a I Cúpula Energética Sul-Americana, os chefes de Estado da região aprovaram a alteração do nome do bloco para União de Nações Sul-Americanas. Em seguida, criou-se uma Secretaria Permanente do órgão, sediada em Quito, e definiram-se as bases do processo de integração, assim como sua natureza, alcance e estrutura institucional. Importante lembrarmos que tanto a Declaração de Cusco como a Declaração de Ayacucho, textos que originaram a CASA, foram aprovados na III Reunião de Presidentes da América do Sul, ocorrida pouco mais de um mês

após a IV Cúpula das Américas, que ficou marcada pelo sepultamento das negociações em torno da Área de Livre Comércio das Américas (Vizentini, 2008). Tratando-se da UNASUL, principal organização internacional criada na gestão Lula para impulsionar o processo de regionalização na América do Sul e sua respectiva identidade regional, é sintomático o fato de que seu Tratado Constitutivo traceje uma organização de expressiva vocação política. Embora possa ser considerada uma decorrência da I Reunião de Presidentes da América do Sul, seus princípios e objetivos a distancia dos preceitos presentes no Comunicado de Brasília, aprofundando a abordagem relacionada a temas atinentes à identidade sul-americana. No plano das diferenças, saltam aos olhos a inexistência de referências à Associação Latino-Americana de Integração e a menção solitária da palavra “comercial”, citada apenas uma vez em todo o texto do Tratado, ao passo que no Comunicado de Brasília, as palavras “comercial” e “comércio” aparecem exatamente trinta e uma vezes. Isso nos ajuda a compreender a inclinação política da UNASUL, cujos propósitos primordiais direcionam-se para a catalisação da cooperação para além da esfera comercial, embora sem negligenciá-la in totum. Na visão da esfera decisória de política externa do governo Lula, a integração econômica

15. Declaração de Cusco. Cusco, 8 de dezembro de 2005.

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sul-americana sucederia mediante diálogos entre os organismos preexistentes e/ou através de negociações visando a ampliação gradual do MERCOSUL, como afirmou Samuel Pinheiro Guimarães16. Em julho de 2013, a Guiana e o Suriname se associaram ao MERCOSUL, fazendo com que todo o subcontinente sul-americano esteja de algum modo representado no bloco. A UNASUL caracteriza-se por sua vocação multidimensional e pela preocupação em estabelecer instituições formais, embora preserve uma feição intergovernamental, de forma a assegurar os preceitos autonomistas da política externa brasileira, evitando excessos no que se refere à partilha de soberania com os demais Estados-membros (Vigevani, 2009). A confor-mação desse novo bloco sul-americano ocorreu em simultaneidade com o declínio relativo de poder dos Estados Unidos –fenômeno que Fareed Zakaria denomina “transbordamento da taça” (Zakaria, 2008, p. 16)–, o que repercutiu na redução progressiva de sua capacidade de influir diretamente na agenda dos países da região, alargando as margens de atuação de Brasília, que se valeu da vacância norte-americana. Samuel Pinheiro Guimarães argumenta que somos o “único país, devido às suas dimensões e ao seu potencial, que pode competir política e economicamente com os Estados Unidos na América do Sul”

(Guimarães, 1999, p. 120-121). Caberia ao Brasil, portanto, aproveitar tal capacidade de polarização através da integração sul-americana. O primeiro parágrafo do preâmbulo do Tratado assevera que o projeto sulamericano proposto pela UNASUL apoia-se em um conjunto de características caras à região, a saber: a história, o multiculturalismo, o pensamen-to integracionista dos homens que forjaram a independência política e a perspectiva de um porvir compartilhado. No trecho sobrejacente, há certo exagero ao se referir à constatação de um sentimento de comunhão lastreado em passado, presente e futuro comuns. No entanto, sabe-se que as semelhanças histórico-culturais funcionam como suporte primordial nos processos de construção identitária. Dessa forma, compreendemos que o relevo recebido por tais temas tem colaborado para o objetivo de edificar uma identidade e cidadania sul-americanas17. Tal retórica é fundamental para estimular a consciência de um destino conjunto. No mesmo sentido, o organismo inclui em seus princípios basilares a solidariedade e a redução das assimetrias, temas que tocam nas experiências de tensão pelas quais a articulação com a vizinhança esteve sustentada. A consolidação da identidade sul-

16. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/internacional/unasul-nao-e-base-para-um-bloco-economicoda-america-do-sul-diz-samuel-pinheiro-guimaraes (Acesso em: 03/04/2013). 17. Cf. preâmbulo do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (2008).

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americana figura entre os objetivos específicos da UNASUL18, almejando, por um lado, o estabelecimento da cidadania sul-americana e, por outro, a sua instrumentalização como fonte de diálogo político na dinâmica das relações internacionais 19 . A despeito dessa constatação, o documento reconhece a possibilidade da coexistência de identidades, traçando como objetivo a manutenção da diversidade cultural dos povos do subcontinente, o que se traduziria no fortalecimento de suas identidades particulares. É interessante perceber que os homens de Estado responsáveis pela elaboração do Tratado se preocuparam em arquitetar uma estrutura identitária bifurcada que viabilizasse o desenvolvimento da identidade regional sul-americana ao mesmo tempo em que assegurasse as singularidades identitárias dos povos. No mesmo sentido, a UNASUL restringe a participação, na qualidade de Estado associado, aos países da América Latina e do Caribe20, validando a tese de Thomas Risse sobre a existência simultânea de identidades no plano regional (Risse, 2000). Neste caso, devese assinalar a influência histórica do latino-americanismo. A coesão regional pôde ser colocada em prática em alguns momentos de tensão desde a criação da UNASUL. A participação conjunta dos representantes dos Estados sul-americanos, o

diálogo político e a solução de controvérsias, revelaram-se como eficientes mecanismos para assegurar a normalidade institucional e assegurar a paz regional, tornando desnecessária a ação de terceiros países ou organizações exógenas. A UNASUL tem se revelado particularmente útil nesse sentido. Mesmo antes de entrar em vigor –o que só ocorreria trinta dias após a data de recepção da nona ratificação doméstica do Tratado–, os primeiros movimentos da organização foram bastante positivos. Por meio de uma comissão ad hoc, colaborou para adensar os anseios separatistas do Pando, na Bolívia, em 2008. A UNASUL foi igualmente importante ao constranger as hostilidades recíprocas entre a Venezuela de Hugo Chávez e a Colômbia de Álvaro Uribe, em 2010. No mesmo ano, a ameaça de ruptura da ordem constitucional no Equador resultou na incorporação de um Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL, estabelecendo medidas concretas a serem adotadas em casos semelhantes. Ancorada neste Protocolo Adicional, a organização suspendeu o Paraguai do bloco, após a constatação de violação da ordem democrática, manifesta através do “impeachment relâmpago” sofrido pelo presidente Fernando Lugo, em 2012. Recentemente, o repúdio coletivo dos membros da UNASUL ao

18. Cf. artigo 3 do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (2008). 19. Cf. artigo 14 do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (2008). 20. Cf. artigo 19 do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (2008).

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lamentável episódio do fechamento do espaço aéreo de quatro países europeus ao avião do presidente Evo Morales, mais uma vez trouxe à tona a convergência sul-americana em prol de uma posição conjunta perante terceiros países. Conforme ressaltamos, em todas as situações descritas no parágrafo anterior não houve necessidade de recorrer a agentes externos para lograr resultados positivos no que tange à manutenção da democracia, da paz e da ordem constitucional. A UNASUL, até o presente momento, tem protagonizado as diversas ações que garantem a normalidade institucional na região e arquiteta, progressivamente, o sentimento de um “destino comum” entre seus membros. Quaisquer problemas no âmbito regional são rapidamente convertidos em pauta de discussão em reuniões ordinárias ou emergenciais. Se, por um lado, a ascensão de governos alinhados às variações de esquerda não acarretou no aprofundamento da integração econômica formal, as divergências político-ideológicas não inviabilizaram a construção de um sentimento identitário comum e autônomo, demonstrando que a região tem conseguido desenvolver um sentimento de “camaradagem horizontal” que ultrapassa os personalismos e as preferências de cunho partidário ou ideológico.

Para além do semblante político, há importantes avanços no que concerne às áreas de energia e integração física do continente. No mesmo sentido, destaca-se a expansão dos fluxos comerciais com terceiros países e blocos. Por intermédio da Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA), o intercâmbio comercial entre nações sul-americanas e árabes cresceu 101,7%, passando de US$ 13,6 bilhões para US$ 27,4 bilhões, entre 2005 e 201121. Nesse período, o crescimento do comércio total entre o Brasil e os Países Árabes foi de 138,9%, evoluindo de US$ 10,5 bilhões para US$ 25,1 bilhões. Embora a ASPA seja muitas vezes examinada por um viés interpretativo focado em tais índices comerciais ascendentes, podemos analisar a contribuição da Cúpula para o processo de consolidação da identidade sul-americana. A cooperação bi-regional contemplada pela ASPA abrange um leque multidimensional que toca principalmente em temas comerciais e de coordenação política, com ênfase na solução pacífica de controvérsias, tanto entre os países árabes como na América do Sul. Embora a Cúpula normalmente seja, com a devida razão, considerada um instrumento para fortalecer o multilateralismo com base na cooperação Sul-Sul e para diversificar as parcerias comerciais de ambas as regiões22, deve-se ressaltar que sua concepção deu-se em

21. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-inter-regionais/cupula-america-do-sulpaises-arabes-aspa (Acesso em: 12/11/2013). 22. América do Sul e Países Árabes apresentam PIB agregado de US$ 5,4 trilhões e população total estimada em 750

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simultaneidade com as negociações da CASA, que redundariam na UNASUL. A ASPA, portanto, reafirma a identidade sul-americana ao estabelecer um mecanismo de negociação centrado na reunião de mandatários sul-americanos e árabes. Sendo uma proposta de iniciativa do próprio presidente Lula, é significativo que a composição da ASPA não tenha se restringido ao Cone Sul ou contemplado a América Latina como um todo. A opção sul-americana é mais uma vez evidenciada em detrimento das demais. Levando em consideração suas especificidades, a mesma orientação analítica pode ser aplicada na Cúpula África-América do Sul. Em 2005, a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) instituiu o Prêmio América do Sul, com o objetivo de colaborar para o desenvolvimento de pesquisas e instrumentos analíticos sobre questões envolvendo o subcontinente sul-americano, de modo a suprir a lacuna existente na produção intelectual referente à integração regional com a vizinhança. Após seleção realizada por uma comissão julgadora, os trabalhos premiados foram publicados e incorporaram a Coleção América do Sul. Em n o m e d a F U N AG , i n s t i t u i ç ã o umbilicalmente ligada ao Itamaraty, a embaixadora Maria Stela Pompeu Brasil Frota, argumenta no prefácio do primeiro volume da coleção que “a América do Sul é uma prioridade da política externa brasileira. Contudo,

verifica-se sério déficit de reflexões e de textos sobre a América do Sul e sobre os países da região” (Frota, 2005, p. 9). Das três monografias que constituem a obra, cabe destacarmos aquela de autoria de Ângela Maria Carrato Diniz, professora da Universidade Federal de Minas Gerais. O texto da autora atenta para o tema da identidade sul-americana, destacando a importância do elemento identitário no atual processo de articulação entre os Estados sul-americanos. O fato da comissão julgadora ter selecionado a monografia de Diniz é um dado revelador para compreendermos como a construção da identidade sulamericana transformou-se em parte dos fundamentos da política externa brasileira para o entorno geográfico. A união sul-americana insere-se no arco multifacetado da cooperação SulSul e, por desdobramento, colabora para a consecução do intento brasileiro de atuar com vistas a influenciar nas definições de temas da política internacional e construir um cenário global alicerçado no multilateralismo23(Saraiva, 2007b). Nesse sentido, o Brasil sente-se desconfortável com o surgimento de arranjos concorrenciais, como a Aliança do Pacífico (AP). Mesmo que o Chile, o Peru e a Colômbia estejam apenas ratificando sua vocação comercial para o Pacífico, a consolidação da AP pode contribuir para o enfraquecimento do poder gravitacional de Brasília no longo

milhões de habitantes. 23. Cf. preâmbulo do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (2008).

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prazo, sem falarmos nos problemas originados pelo desvio de comércio que certamente impactará o restante da América do Sul. Isso demonstra que os arranjos estabelecidos a partir da visão brasileira da região, assim como a identidade sul-americana, não são capazes de frear a sobreposição de blocos no subcontinente, nem a dupla inserção de alguns países. Verifica-se que a combinação de atributos que outrora definiam a identidade latino-americana perde expressividade para o conjunto que define a sul-americana. Perpetua-se o sentimento de pertencimento à periferia do sistema internacional, da mesma forma que se reconhece o passado colonial compartilhado por práticas de exploração semelhantes. Todavia, o reconhecimento da oficialidade dos idiomas inglês e neerlandês por parte da UNASUL, medida necessária para abarcar em seu seio a Guiana e o Suriname, sugere que a identidade comum centrada no legado linguístico latino não mais se adequa à atual conjuntura. Em seu lugar, ganha relevo o que poderíamos definir como percepção geográfica pragmática. Ou seja, ao invés de sustentar a identidade regional em preceitos quase que exclusivamente intangíveis, incorpora-se uma vertente materialista, alicerçada nas características territoriais, demográficas, econômicas e geopolíticas da América do Sul. Em outras palavras, dá-se maior atenção aos

indicadores quantitativos de poder da área em questão. Para corroborar tal tese, as palavras de Marco Aurélio Garcia, Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, são bastante elucidativas: “A despeito de muitas narrativas que buscavam filiar o projeto de uma integração sul-americana à gesta dos Libertadores, quase dois séculos antes, havia razões mais atuais para sustentar essa iniciativa. Independentemente dessa retórica de conotações histórico-ideológicas que esteve (e está) presente no discurso integracionista, predominavam considerações de ordem econômica e política que refletiam uma aguda percepção da evolução da situação internacional e do papel que a América do Sul poderia desempenhar em um mundo multipolar em formação” (Garcia, 2013, p. 57). Dessa maneira, a diplomacia brasileira prioriza erigir a identidade sulamericana, de viés sobretudo político, opção mais apropriada para uma potência média revisionista interessada em uma ordem internacional multilateral. O latino-americanismo, por sua vez, desloca-se para uma dimensão indelevelmente cultural24, perdendo a condição de referencial analítico para apreciações mais abrangentes dos meandros das relações interamericanas a partir de uma visão brasileira.

24. Fala-se em cinema latino-americano e literatura latino-americana, por exemplo.

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Conclusão À semelhança do que ocorrera com o conceito de América Latina na virada do século XIX para o XX, hodiernamente, a América do Sul vivencia a multiplicação de obras que fazem referência às suas especificidades econômicas, geográficas, demográficas e políticas. Alguns autores ensaiam esforços direcionados para a elaboração de uma nova identidade regional, respondendo a uma série de fatores estruturados na ressignificação social, política e econômica que a região experimentara na virada do século XX para o XXI. Nunca antes na história houve um número tão expressivo de intelectuais, instituições e burocratas dedicando-se à produção de artigos, ensaios e teses que objetivassem contribuir para uma melhor compreensão da recente aproximação estabelecida entre o Brasil e seus congêneres sulamericanos. Em suma, o sul-americanismo concorre principalmente com dois paradigmas identitários de forte sustentação histórica: o latino-americanismo, cujo lastro de permanência encontra-se particularmente arraigado em setores da esquerda radical, saudosos do sonho de uma América Latina integrada e dotada de capacidade para rivalizar com o império norte-americano; e o pan-americanismo, concepção identitária de maior receptividade entre as correntes políticas de direita, que apregoam uma maior aproximação com os Estados Unidos por meio da formalização de uma área de livre comércio de abrangência continental.

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Apesar da América Latina não representar a prioridade da política externa brasileira no período abordado, o Brasil não abdicou de assegurar seus interesses na faixa central e caribenha do continente. Nesse sentido, é essencial que recordemos os preceitos estabelecidos por Thomas Risse, para quem as identidades coletivas não seguem a lógica excludente de um jogo de soma zero. O marble cake de identidades, em que outrora se enfatizava o latinoamericanismo, passa por um movimento de transição, reduzindo-se a sua significância, ao passo que abre brechas para a ascensão do sul-americanismo. Outrossim, torna-se relevante ressaltar que enquanto Brasília opta por consolidar a identidade sul-americana –estruturada a partir da percepção geográfica pragmática, abordagem mais conveniente para a estratégia de inserção internacional do governo Lula–, a identidade latino-americana permanece presente nas estruturas mentais, muito embora centrando-se em uma dimensão basicamente cultural; sem, todavia, abandonar completamente o viés político. A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, a despeito do declínio do discurso latinoamericanista, colabora para a consecução de um canal de poder simbólico que rivaliza com a Organização dos Estados Americanos, reduzindo a influência norte-americana nas decisões para o continente e estimulando o adensamento do multilateralismo no nível regional. Evita-se, dessa maneira, o abandono negligente da América Latina. Mesmo

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que a prioridade do Brasil seja a construção do paradigma identitário sul-americano, sabemos que uma postura drástica não é necessária, considerando que ambas as identidades são passíveis de coexistência. Simultaneamente, outros desafios ocorrem no nível regional, mais precisamente no contexto de fragmentação das estratégias de inserção internacional dos Estados sul-americanos. Embora a influência brasileira seja fundamental quando tratamos dos países do Cone Sul, deve-se considerar que a força gravitacional brasileira é relativamente mais branda ao observarmos as nações da costa do Pacífico. O reflexo deste fato pode ser verificado na conformação da Aliança do Pacífico, organização que pode, futuramente, rivalizar com o MERCOSUL, considerando os prognósticos de incremento dos fluxos comerciais com a Ásia e com os Estados Unidos, o que poderia provocar desvios de comércio e a consequente perda de competitividade dos produtos manufaturados brasileiros nos mercados da AP. Outro tipo de inquietação ocorre à proporção que se elevam os investimentos brasileiros na vizinhança. Os países dotados de ressentimento histórico em relação ao Brasil, sobretudo a Bolívia e o Paraguai, assim como as correntes políticas de esquerda da região, muitas vezes consideram a expansão brasileira nas atividades produtivas e comerciais como uma manifestação subimperialista. O espectro do anti-imperialismo ronda a América do Sul mesmo após o constante recurso da “paciência densidades nº 14 - diciembre 2013

estratégica” nas relações bilaterais com Buenos Aires, e das concessões por parte da diplomacia brasileira para com as exigências setoriais de La Paz e Assunção, ocorridas ao longo da gestão Lula da Silva. A identidade sul-americana também não garante a composição de uma visão consensual sobre a inserção brasileira na dimensão internacional. A desconfiança que paira sobre o papel de liderança do Brasil na região ocorre, em grande medida, devido à negligência de Brasília com relação aos interesses do conjunto de países do subcontinente quando realiza seus movimentos globais. A tendência, nesse caso, é a perpetuação das frustações originadas da falta de apoio unânime às candidaturas brasileiras em postos de comando em instituições internacionais e fóruns multilaterais, além de movimentos esporádicos de reação contra a consolidação da hegemonia brasileira na América do Sul, especialmente em períodos de recrudescimento do perfil diplomático dos governos da região. Há de considerar, ainda, a perspectiva brasileira sobre a integração regional, normalmente considerada como uma plataforma necessária para tornar a inserção internacional do país mais competitiva. Dessa maneira, os modelos de regionalismos disponíveis são estruturados com cautela, considerando que esses podem implicar em acordos que inviabilizem o alto grau de autonomia vindicado por Brasília. À luz deste problema, há um desinteresse tácito no que tange ao aprofundamento

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dos mecanismos integracionistas na América do Sul, o que contradiz a retórica oficial, pois, ao mesmo tempo em que deseja engajar-se na instrumentalização de uma identidade comum, hesita quando é necessário trabalhar políticas de integração mais ousadas e concretas.

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14 diciembre 2013


densidades número 14 - diciembre de 2013

Sumario 9 13

A modo de presentación O governo Lula da Silva e a construção da identidade sul-americana (2003-2010)

Leandro Gavião

33

Los regionalismos y la difusión de políticas: La educación superior en el MERCOSUR

Mercedes Botto

53

La CELAC: Entre la añoranza bolivariana y la falta de concreción latinoamericana

Mariana Laura Cóvolo y María Lorena Rodríguez de Mesa

67

Os Direitos Humanos dos imigrantes: Reconfigurações normativas dos debates sobre imigrações no Brasil contemporâneo

Denise Fagundes Jardim


87

Los “múltiples” derechos y obligaciones del ciudadano en el MERCOSUR. Significados y alcance de la ciudadanía

Alejandra Díaz

101

Política arancelaria e integración regional: algunas reflexiones sobre la situación del MERCOSUR y su incidencia en Uruguay

Magdalena Bas Vilizzio

111

La industrialização substitutiva de importações e algumas de suas críticas

Gustavo Tonon Lopes

123

Reflexiones periféricas: la Unión Europea a la deriva

Tomás Bontempo y Nicolás M. Comini

141

CULTURAS Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru. Memória e narrativa de uma Identidade

Sandra Martins Farias

153

DEBATES Los desafíos geopolíticos para la Suramérica del Siglo XXI Celso Amorim


163

DEBATES Solicitud de Opinión Consultiva sobre niñez migrante presentada por Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay. Jornada de reflexión en el marco de la audiencia ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos Luis Hipólito Alén, Víctor Ernesto Abramovich, Federico Luis Agusti, Victoria Martínez, Daniela Vetere, Alejandro Morlachetti y Pablo Asa

203

LECTURAS En el ojo de la tormenta. La economía política argentina y mundial frente a la crisis, de Mario Rapoport Alfredo Zaiat, Leopoldo Moreau, Jorge Taiana, Aldo Ferrer y Mario Rapoport

221

ACADEMIAS Especialización en Negociaciones y Comercio Internacional en Agroindustrias Facultad de Agronomía de la Universidad de Buenos Aires

223

DOCUMENTOS Declaración de Cartagena de Indias Décimo Tercera Conferencia Suramericana sobre Migraciones, Cartagena de Indias, 5 de diciembre de 2013


228

DOCUMENTOS Comunicado Conjunto de los Estados Partes del MERCOSUR 6 de diciembre de 2013

Los contenidos de esta publicaci贸n expresan exclusivamente la opini贸n de sus respectivos autores.


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