Digestivo Cultural
Poucas e Boas
Organização Andrezza Pereira do Nascimento
Digestivo Cultural
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Poucas e Boas
Organização Andrezza Pereira do Nascimento
Copyright © 2011 - Digestivo Cultural e respectivos autores mencionados nesta obra Direitos desta edição reservados à Andrezza Pereira do Nascimento. dezzadezza@gmail.com Florianópolis - SC Direitos do conteúdo desta edição reservados ao site www.digestivocultural.com.br e seus mantenedores. Esta obra é resultado de um trabalho acadêmico da disciplina EGR5404 - Projeto IV (Editorial) do curso de Design da Universidade Federal de Santa Catarina. Projeto gráfico, diagramação, revisão e capa: Andrezza Pereira do Nascimento
Sumário
7 Apresentação 8 ENSAIOS 9 O amor que choveu Antônio Prata 12 Anti jô-soares Mário Bortolotto 16 Vivendo de brisa João Ubaldo Ribeiro 21 Encontro com kurt cobain André Forastieri 26 Homenagem a pilar del río Lélia Almeida 30 As marcas do tempo Ryoki Inoue 36 Manifesto da culinária ogra André Barcinski 39 Fim dos jornais? Desconfie Diogo Salles 48 Os quase-livros Wellington Machado 53 De volta para o futuro? Guilherme Werneck 65 Freud e a mente humana Julio Daio Borges
72 COLUNAS 73 Em busca da adrenalina perdida Marta Barcellos 78 Você viveria sua vida de novo? Ana Elisa Ribeiro 82 Como começar uma carreira em qualquer coisa Ram Rajagopal 90 Textos movediços Carla Ceres 94 As mídias sociais e a intimidade inventada Noah Mera 97 Felicidade Daniel Bushatsky 102 A aura da música Luiz Rebinski Junior 107 O preconceito estético Guilherme Montana 112 Como escrever bem – parte 1 Marcelo Maroldi 117 Para que o cristianismo? Jardel Dias Cavalcanti 124 No tempo da ficha telefônica Elisa Andrade Buzzo
Apresentação Esta obra é uma coletânea de algumas poucas e boas do site brasileiro provedor de conteúdo jornalístico e cultural. Confesso que descobri o Digestivo Cultural há pouco tempo, mas mesmo assim, quando dei por mim, já fazia parte da rotina dar uma conferida nas novidades. Tem de tudo. Tem pra todo mundo. São textos* inspiradores, críticos ou simplesmente desabafos. Quando se percebe, já estamos compartilhando das mesmas opiniões e pontos de vista. Ou indagando-os. Neste livro foram compilados ensaios e colunas de diversos autores, tratando sobre os mais diversos temas. Infelizmente, como o livro é fruto de um trabalho acadêmico – e como tal, nunca há tempo suficiente para realizá-lo exatamente como queremos – não foi possível selecionar todos os textos pretendidos. Mas quem sabe fica para uma próxima edição? Dentre tantas opções de digestivos online, para o impresso foram escolhidos alguns “ensaios” e “colunas”. Por enquanto, boa leitura! Andrezza P. do Nascimento
*Os textos foram integralmente retirados do site Digestivo Cultural, contendo ainda, ao final de cada um, notas do editor Julio Daio Borges. Há algumas indicações de links por se tratar de um documento originalmente publicado online. Para mais cultura e informações, acesse www.digestivocultural.com.br.
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ENSAIOS
O amor que choveu Por Antônio Prata
Era uma vez um menino que amava demais. Amava tanto, mas tanto, que o amor nem cabia dentro dele. Saía pelos olhos, brilhando, pela boca, cantando, pelas pernas, tremendo, pelas mãos, suando. (Só pelo umbigo é que não saía: o nó ali é tão bem dado que nunca houve um só que tenha soltado). O menino sabia que o único jeito de resolver a questão era dando o amor à menina que amava. Mas como saber o que ela achava dele? Na classe, tinha mais quinze meninos. Na escola, trezentos. No mundo, vai saber, uns dois bilhões? Como é que ia acontecer de a menina se apaixonar justo por ele, que tinha se apaixonado por ela? O menino tentou trancar o amor numa mala, mas não tinha como: nem sentando em cima o zíper fechava. Resolveu então congelar, mas era tão quente, o amor, que fundiu o freezer, queimou a tomada, derrubou a energia do prédio, do quarteirão e logo o menino saiu andando pela cidade escura – só ele brilhando nas ruas, deixando pegadas de Star Fix por onde pisava.
O amor que choveu
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O que é que eu faço? – perguntou ao prefeito, ao amigo, ao doutor e a um pessoalzinho que passava a vida sentado em frente ao posto de gasolina. Fala pra ela! – diziam todos, sem pensar duas vezes, mas ele não tinha coragem. E se ela não o amasse? E se não aceitasse todo o amor que ele tinha pra dar? Ele ia murchar que nem uva passa, explodir como bexiga e chorar até 31 de dezembro de 2978. Tomou então a decisão: iria atirar seu amor ao mar. Um polvo que se agarrasse a ele – se tem oito braços para os abraços, por que não quatro corações, para as suas paixões? Ele é que não dava conta, era só um menino, com apenas duas mãos e o maior sentimento do mundo. Foi até a beira da praia e, sem pensar duas vezes, jogou. O que o menino não sabia era que seu amor era maior do que o mar. E o amor do menino fez o oceano evaporar. Ele chorou, chorou e chorou, pela morte do mar e de seu grande amor. Até que sentiu uma gota na ponta do nariz. Depois outra, na orelha e mais outra, no dedão do pé. Era o mar, misturado ao amor do menino, que chovia do Saara à Belém, de Meca à Jerusalém. Choveu tanto que acabou molhando a menina que o menino amava. E assim que a água tocou sua língua, ela saiu correndo para a praia, pois já fazia meses que sentia o mesmo gosto, o gosto de um amor tão grande, mas tão grande, que já nem cabia dentro dela.
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Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog de Antonio Prata no projeto Amores Expressos. S達o Paulo, 28/7/2008
O amor que choveu
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Anti Jô-Soares Por Mário Bortolotto
Tô doente e meu humor não anda bom. Então, insone e rabugento, resolvo assistir ao Programa do Jô. É claro que meu humor não vai melhorar. Então, vejamos. O Jô Soares entrevistou a Mel Lisboa. Pelo pouco que conheço, gosto dela. É uma garota tranqüila. Participou da montagem de um texto meu no Rio de Janeiro. Uma montagem feita na base da “brodagem”, sem grana, etc. Mas, na entrevista, ela não falou muita coisa. A Fernanda D’Umbra escreveu um post no blog dela falando sobre o fato de as atrizes não serem exatamente levadas a sério em uma entrevistas. Vendo a entrevista da Mel, tenho de concordar com a Fernanda. O Jô só ficava falando o quanto ela era bonita e querendo saber sobre as fotos da Playboy. Na real: não conheço intimamente a garota e não sei se ela tinha algo realmente importante a dizer, mas o que eu sei é que o entrevistador não ajudou em nada. Assim, fica difícil. Quero ver a hora em que uma atriz tiver a manha de dizer algo do tipo: “OK, você 14
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já falou como eu sou bonita. Agora que tal me fazer alguma pergunta decente?” Mas isso é típico do Jô. Quando vai um roqueiro lá, ele só fica querendo saber das tatuagens do cara ou do corte de cabelo excêntrico. Acho que também tinha que ter a manha de dizer: “Tá legal, Jô. Agora que tal a gente falar um pouco da minha música?” Desse jeito, fica difícil. Mas voltando à entrevista da Mel, ela disse que suas fotos na Playboy foram inspiradas na interpretação que Ornella Mutti fez da personagem Cass no filme Crônica do Amor Louco, baseado na literatura de Charles Bukowski. Ela não disse exatamente isso. Eu que tô dizendo. Mas, enfim, não é isso que eu quero falar. O que acontece é que aí o Jô colocou uma cena do filme no telão e demorou pra reconhecer o filme. Sei lá, acho que o ponto dele tava dormindo. O que eu acredito é que, quanto mais o sujeito ganha dinheiro, menos tempo ele vai tendo pra procurar se informar. Porra, o filme é um clássico. Pra mim, é a mesma coisa que passar uma cena de Gene Kelly dançando com o guarda-chuva e o figura não reconhecer de que filme se trata. Desculpa aí. E aí ele entrevistou o Celso Frateschi (nosso secretário de Cultura). Eu não sou exatamente o mó entusiasta do trabalho que o Celso vem fazendo na Secretaria, mas o Jô podia ter deixado o cara falar um pouco. Parece que o Jô tava perturbado com um patrocínio que ele perdeu, sei lá. E aí chamou o Secretário e ficou monologando. Chato pra caralho. Anti Jô-Soares
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E não esquecer que antes o Jô fez questão de frisar que a Maria Adelaide Amaral havia dito que o Celso era um excelente ator. Na boa, o Jô devia ir mais ao teatro. O Celso é realmente um excelente ator, mas tá um tempão na estrada. Como é que um sujeito, que se diz tão informado quanto o Jô, nunca viu um trampo do Celso? E olha que o cara ainda faz TV de vez em quando. Será que o Frateschi tem que mandar um video book com o trabalho dele pro Jô? E aí ele entrevistou um cara que escreveu um livro sobre o Elvis Presley. No final, Mr. Jô fez questão de fazer sua análise sobre o trabalho de ator de Elvis, deixando claro que o Rei do Rock, como ator, era muito ruim. Mas não conseguia falar nenhum nome de filme do Elvis. E, na hora em que passou o trechinho de um no infalível telão, era justamente um filminho bobo (Girls, Girls, Girls), com Elvis dançando com uma garota (me parece que mais numas de mostrar o quanto o apresentador estava certo). Porra, eu também não acho o Elvis um grande ator. Mas o cara tinha carisma. Com um pouco mais de trabalho, e fazendo os filmes certos, eu acho que o Elvis levava jeito. Os primeiros filmes são bem legais. O Jô não conseguia lembrar de nenhum. Acho que ele só viu a fase do Hawaii, que é tudo a mesma merda. Bem, então lá vai (vou fazer o trabalho que o ponto do Jô devia ter feito): Love Me Tender, Loving You, Jailhouse Rock e o ótimo King Creole, com direção de Michael “Casablanca” Curtiz. Ainda teve o bom Flaming Star, citado pelo escritor no programa do Jô, e logo repudiado pelo apresentador. 16
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E o mais engraçado é ver que essa análise é feita justamente por um cara que apresenta um programa de entrevistas, mas fala mais que o entrevistado. É comediante, mas não tem a menor graça. Alguém ri daquelas piadas que ele conta no começo do programa? Diz que é artista plástico (caramba). Escreve uns livros ruins pra cacete. E aí, Mirisola, quando é que você vai falar da literatura do Jô? Esquece o Chico Buarque um pouco e redireciona sua artilharia. O cara tá merecendo. Daqui a pouco ele também ganha algum prêmio que devia ser seu. Toca trompete, mas, convenhamos, toca mal pra caralho. Só mesmo contratando uma banda pra tocar com ele. Lembro de uma entrevista com o João Donato e o Jô insistindo que o João tocava um determinado instrumento (não me lembro se era sax). O João, grande músico que é, e em sua simplicidade, retrucou: “Não, Jô. Eu não toco, não. Quer dizer, toco assim, como você toca trompete. Nada sério”. O clima de constrangimento foi um show à parte. Não é por nada, não, mas tá difícil assistir ao programa do cara. Nota do Editor Mário Bortolotto é dramaturgo. Este texto, reproduzido aqui com sua autorização, foi originalmente publicado em seu blog Atire no Dramaturgo. São Paulo, 15/11/2004
Anti Jô-Soares
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Vivendo de brisa Por João Ubaldo Ribeiro
Costuma-se pensar que artistas de modo geral, inclusive os escritores, são ricos. Volta e meia sai uma reportagem que diz quanto um astro de TV famoso ganha e daí se difunde a crença de que artista é rico, quando, na verdade, matar cachorro a grito é atividade das mais exercidas pela maioria deles, mundialmente. Os escritores aparecem em notícias sobre como um romancista antes desconhecido vendeu para Hollywood, por zilhões de dólares, seu premiado best-seller. Ai de nós escritor, quando é pago, recebe entre cinco a doze por cento do preço final do livro. E, não só aqui como no mundo todo, se vira em jornalismo, no ensino, na publicidade e em outros campos, já que de livro mesmo poucos conseguem sobreviver e ainda menos ficar ricos. Paralelamente, cultiva-se como bela a imagem do artista faminto e penurioso, agasalhando-se do inverno com um casaco puído e esburacado pelas traças, afogando-se em álcool e desprezado por uma musa tão formosa quanto ingrata. Antigamente ele com frequência ficava tuberculoso e mor18
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ria esquecido, num asilo para indigentes. Para o artista, esse ser privilegiado e superior, não são importantes as preocupações materiais e querer ganhar dinheiro com o que faz beira o sacrilégio, além de mercantilizar odiosamente o talento. Se é verdade que a maior parte dos artistas é apenas remediada e olhe lá, a batalha por dinheiro sempre foi a regra e não a exceção. A lista é infindável. Balzac, Dickens e Dostoiévski, por exemplo, passaram a vida disputando uns trocados e há quem diga que os dois primeiros morreram de trabalhar. A arte da Renascença era toda feita de encomenda. Os dramaturgos gregos escreviam suas peças para ganhar concursos, em meio a generalizada baixaria, como a difamação ou a ridicularização de concorrentes. Mozart era empregado da cozinha imperial e recebia encomendas do tipo “quero um concerto para piano e orquestra daqui a duas semanas e não me venha com repetições”. Bach escreveu os concertos de Brandemburgo para adular um governante, que, aliás, parece nunca ter chegado a ouvi-los. Shakespeare vivia catando histórias que dessem público e faturando o que podia como empresário. E por aí vai, mesmo depois da implantação quase universal do direito autoral. O artista, seja ele escritor, compositor, pintor ou o que lá for, precisa e gosta de dinheiro tanto quanto qualquer outra pessoa. Mas os novos tempos aparentemente querem trazer a eliminação do direito autoral, ou impor-lhe severas restrições. Há muito que meus livros, incluindo versões em áudio abomináveis, estão disponíveis em Vivendo de brisa
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dezenas de sites na internet, sem que eu seja nem comunicado, quanto mais pago. Agora também sei que títulos meus estão sendo baixados em leitores eletrônicos, outra vez sem que nem eu nem meus editores tenhamos sido consultados. Já estava resignado a essa pirataria, mas dizem que vêm mais novidades por aí. Li uma entrevista com um desses gênios da informática em que hoje o mundo abunda, na qual ele previu não somente o inexorável fim do livro impresso como a abolição dos direitos de autor. Perguntado como, neste caso, o escritor viveria, ele a princípio pareceu não saber ou não dar importância a pormenores dessa natureza, mas depois sugeriu que o escritor sobrevivesse fazendo apresentações públicas, leituras, performances pagas e coisas assim. Não chegou ao ponto de outro, sobre cujas ideias também li não lembro onde, que recomendou que, com suas obras à disposição de graça, os escritores façam voto de pobreza como os franciscanos, ou arranjem, vendendo a alma ao demo como possam, um mecenato que os sustente. Pelo menos o primeiro ainda vê as apresentações como um reduto em que o escritor poderá refugiar-se. Claro, se este for gago ou tímido demais para exibir-se em público, vai ser um problema. Mas há maneiras de superar tais limitações e os escritores, em breve, estabeleceriam animada concorrência, um aprendendo mágicas para alternar com leituras, outro estudando sapateado e ainda outros, como o Verissimo, pegando pesado com seu saxofone. Estou pensando em reagir aproveitando minha condição de baiano e montar uns shows 20
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casadinhos. Não conheço Daniela Mercury, Ivete Sangalo ou Margareth Menezes pessoalmente, mas tenho a esperança de que, com jeito, elas aceitem encaixar um número meu em seus shows, na base do “ajuda teu irmão”. Pode ser que se esteja pensando também numa forma de remunerar o escritor que não dependa de vendas. O Governo faz uma seleção dos nomes qualificados para receber algum pagamento e dá a eles, por exemplo, uma bolsa romance. Mas receio que para conseguir essa bolsa, ou qualquer outro estipêndio do Estado, será necessário arrumar um pistolão. Ou entrar para um partido político que disponha de quotas da bolsa, como parte do tudo a que tem direito por aderir ao governo. Ou talvez seja melhor a realização de concursos públicos. Quem quiser ganhar alguma coisa como escritor será obrigado a fazer uma espécie de vestibular e os aprovados terão direito a uma carteirinha e a receber dois salários mínimos por mês para seu sustento, além de uma eventual bolsa romance, bolsa poema ou bolsa ensaio. Seja o que Deus quiser, não se pode deter o progresso. Progresso este que faz um interessante revertério para o tempo em que o artista morria indigente. Ao que tudo indica, a moda está de volta e acho que vou procurar logo uma boa sarjeta e começar a treinar. Tenho, entretanto, um comentário final: tudo bem, são os novos tempos, mas os bens culturais “gratuitos” não são produzidos sem custos, pois não existe produto (ou almoço) de graça. Muita gente ganha dinheiro com essa produção, em toVivendo de brisa
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dos os seus estágios, muita gente é paga. Por que só quem não deve ser pago é o autor? Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal O Globo. Rio de Janeiro, 25/4/2011
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Encontro com Kurt Cobain Por André Forastieri
Olhos mortos, dentes limosos, cabelo imundo, pele macilenta. Sovaco fedido e hálito pestilento. Kurt Cobain cheirava mal e parecia pior – um tampinha insignificante e desagradável. Ei – eu estava lá e é assim que eu lembro. Como aqueles correspondentes de guerra, Christiane Amanpour: “Testemunha Ocular da História”. Estou falando que Kurt Cobain era um merdinha e era. Vocês jovens de hoje não sabem o que foi aquele período de trevas. O início dos anos 90 está para a semana passada como a peste negra para Botticcelli. Não existia internet nem TV paga nem MTV nem iPod. Para saber de música você lia jornal ou revista. Fazia o que eu fiz no dia em que completei 17 anos: pegar um ônibus em Piracicaba e ir até Campinas para comprar meu primeiro disco importado, The Name of This Band Is Talking Heads. Essa era a minha vida e a de Kurt Cobain em 1993. Somos da mesma geração, eu mais velho dois anos, e igualmente caipiras – perto de Olympia, Washington, Piracicaba é Paris. Sonhávamos igualmente em cair fora e ser alguém. Encontro com Kurt Cobain
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É o sonho do adolescente fã e quem não foi fã não entende. Colegas brucutus e meninas bestas nos tacham de malucos, nerds, otakus, esquisitos, sonhadores, obsessivos – e somos, claro, e isso é bom, é fundamental e é a chave da vida Fanático por gibi, eu fantasiava em desenhar X-men para a Marvel. Louco por rock, eu sonhava em ser... jornalista. E consegui. Aos 27 anos todos os meus sonhos de rockstar já tinham se materializado. Eu era editor da única revista de música do Brasil que importava, a Bizz, cara, o único veículo nacional de rock, e isso era muito melhor que ser um pobre de um músico. E agora eu ia fazer a única entrevista de Kurt para a mídia impressa durante a estada do Nirvana no Brasil. Eu não era o cara certo. Esse é outro André, o Barcinski, um repórter do Notícias Populares que fez uma viagem de dois meses pela nova América roqueira e flagrou o estouro do Nirvana ao vivo e a cores. Tudo graças a: a) a irresponsabilidade financeira do então diretor do jornal, que acobertava suas milionárias ligações telefônicas internacionais; e b) a Bizz, que publicava mensalmente as reportagens que ele enviou de lá. Elas deram origem ao livro Barulho e Barça virou oficialmente o cara que apresentou o novo rock americano (grunge, indie) ao Brasil. Me apresentou também o Nirvana, Nevermind, naquele apê da praça Roosevelt, pilhas de CDs – me deu o Ten do Pearl Jam, “gostou, então leva, achei chato pra caceta”.
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Ei, veja, tinha outros caras fazendo outras coisas que sabiam de tudo antes (meu compadre Renato Yada tinha o Bleach antes de todo mundo e achava o Nevermind bem inferior, lembro), mas que me importa? Essa é a minha história com Kurt Cobain. Outros jornalistas têm melhores e que contem as suas. O Barça era mais indicado para entrevistar o Cobain mas eu era o cara certo. Não porque escrevi a introdução de Barulho ou a crítica de Nevermind para a Bizz (lembrem, o único veículo nacional de rock na época), que acabava com um comando clássico: “Compre, roube, dê um ao seu melhor amigo, dê um para o seu amor”. Eu era o cara porque eu era o editor, eu mandava, eu decidia quem fazia as paradas e eu não ia deixar para ninguém mais a boiada de entrevistar o maior astro de rock do mundo. Parece grande furo de reportagem, quaquaqua – o gerente de internacional e mais a assessora de imprensa da BMG me pegaram em casa, me levaram até o Morumbi e me botaram na frente do cara. Era o momento do rebelde picar cartão. A Bizz era a única revista de rock com porte para ajudar a vender discos. Kurt estava sentadinho comportado na cadeira porque o patrão mandou. Repórteres mais abelhudos que eu (ou mais fanzocas que eu, decida) colaram no cara dias, saíram com ele, cheiraram com ele. Foi nas cobertas, acho. Duas cadeiras e um banquinho.
Encontro com Kurt Cobain
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Por perto, a mulher do cara, mais fedida que ele, sobrevoava o marido como um abutre. Serrava meus cigarros só pra chegar perto e ver o que Kurt estava dizendo. Longe, pululante, Dave Grohl papeava com Fabio Massari e Daniel Benevides, jornalistas de uma MTV que ainda começava. Uma hora e pouco de conversa – o resumo saiu na Bizz e tem naquele CD com todo conteúdo da história da revista. Era uma tarde ensolarada. Roadies faziam a passagem de som e eu estava frente a frente com meu espelho, o André Forastieri que não deu certo, o fã que se fodeu: Kurt Cobain, o típico caipira que vira crítico de música mas acabou virando astro. Veja: o Nirvana realmente salvou o rock da irrelevância. Sério. E os jornalistas de rock não tiveram nada com isso. Foi culpa do vídeo de “Smells Like Teen Spirit”. Foi o voto do público que instaurou o caos e enterrou a porcaria de rock que dominava a cena no final dos 80. Mas a razão porque o Nirvana foi tão incensado é porque todos os jornalistas de rock do planeta se reconheciam em Kurt. Cobain compunha como nós comporíamos, com a enciclopédia do rock na cabeça: agora uma parada tipo Pixies, agora Carpenters, agora “More than a Feeling”. Ou como eu intuía que comporia porque ele de fato fez, e eu não. Nunca quis e nunca tentei. Mas Kurt Cobain forçava a questão: por que não? Por que nos acomodamos em vidas medíocres se podemos ser muito mais? Kurt perguntava: veja, sou
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um pobre diabo como todo mundo e aqui estou realizando grandes coisas. A ascensão irresistível do Nirvana foi o triunfo do punk no coração da América. Punk é: faça você mesmo, procure outros como você e foda-se o resto. É o espírito da internet, claro. Se a geração interativa do século XXI é cyber(punk) por se inspirar no Nirvana ou se Cobain intuiu para onde ia a cultura nos anos após sua morte, você escolhe. O triunfo espiritual de Kurt é incontestável e seu fracasso pessoal também. Como John Lennon, Raul Seixas ou Renato Russo, Kurt era um pobre diabo que precisava ser amado e idolatrado, conseguiu e não segurou a onda. Percebi isso entrevistando aquele moleque sujinho mas não entendi. Éramos os dois muito jovens. Hoje tenho 41 e ele vai ter sempre vinte e poucos. Sou sortudo. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no portal G1. São Paulo, 11/4/2011
Encontro com Kurt Cobain
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Homenagem a Pilar Del Río Por Lélia Almeida
Uma foto de Pilar del Río em algum dos sites da internet, na biblioteca da casa de Lanzarote, os cabelos embranquecidos, ela envolta em flagrante luto e tristeza, me impactou sobremaneira. No caso dela e de Saramago, dada a grande diferença de idade havida entre os dois, era provável que ele partisse primeiro. Não pude deixar de pensar que a lida dos homens com o tempo é diferente da das mulheres. Os homens lutam contra o tempo, as mulheres, historicamente treinadas às rotinas do mundo doméstico, da maternidade, do espaço privado, vivem o tempo cumprindo inexoráveis rituais de espera e de paciência e aprendem, assim, a usufruir, para o bem e para o mal, de uma outra qualidade de tempo. A questão é que quase sempre os homens partem antes e isso, convenhamos, não é justo, companheiros! E tudo porque as mulheres cuidam mais de sua saúde, cuidam mais de si mesmas e dos outros e terminam por ser, mais resistentes às chuvas e intempéries da existência. 28
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Convivo em diferentes lugares, com mulheres de diversas idades, de diferentes classes sociais e de interesses variados. Há de tudo um pouco: as que querem um homem pra chamar de “mor”, as vorazes predadoras sexuais que sequer percebem que há uma criatura para além do membro, as que já desistiram completamente dos homens, as que vivem bem sem eles, as que não vivem sem eles, as que procuram a alma gêmea. Há de tudo um pouco, sim, nestes tempos de desencontros avassaladores e toda sorte de mal-entendidos, que quase nos fazem esquecer o tanto que pode ser transformador em nossas vidas, um encontro amoroso. Ainda sou do tipo que se derrete com os pequenos gestos que só os homens conseguem fazer na coreografia das trocas: o jeito como tomam das nossas mãos, tocam os nossos rostos, nos acolhem num abraço. E como sou uma romântica perdida, fiquei desolada ao ver a viuvez de Pilar del Río, gráfica, estampada naquela foto, pranteando em silêncio, a perda do seu companheiro, José Saramago. A jornalista e tradutora Pilar del Río era uma mulher de 36 anos quando conheceu Saramago e ele era um homem de 63 anos. Ela apaixonou-se por ele através das palavras, apaixonou-se pelo seu pensamento, encantou-se primeiramente pela sua alma. E foi conhecê-lo e agradecer a interlocução – ele como escritor, ela como leitora – que a tinha transformado numa pessoa mais inteligente, mais sensível, mais humana. Souberam os dois, já neste primeiro contato, que havia mais do que uma simples admiração intelectual. E cinco Homenagem a Pilar Del Río
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meses depois se reencontraram para o que seria um definitivo encontro de amor que tinha começado através da comunhão das palavras, do amor à literatura, e de uma visão de mundo convergente no que se referia à política e à militância. Saramago em muitas ocasiões disse, publicamente, que a jovem espanhola Pilar del Río tinha-lhe salvado a vida, ou por outra, que tinha-lhe dado uma vida nova. Organizou sua existência, expandiu suas potencialidades, constituindo-se num daqueles modelos de relacionamento em que os dois, no encontro, fazem florescer o melhor de si. E construíram uma existência plena em Lanzarote, cenário da história de uma convivência madura e serena, onde as conversas, discussões, viagens e traduções feitas a quatro mãos continuaram como tinham começado. Através de uma interlocução lúcida sobre o mundo e o tempo que lhes coube viver. E o ensinamento definitivo de que é preciso paciência e sabedoria para os encontros. As atenções todas, nestes últimos tempos, estão, justificadamente, voltadas ao falecimento de José Saramago, que teve uma vida longa y llena como una uva, como se diz em espanhol, e que nos deixa, através das suas histórias, sua militância, sua conduta e sua literatura, um legado inestimável. A minha homenagem é para a espanhola Pilar del Río, que vai continuar, na casa cheia de livros de Lanzarote, a cuidar de Saramago, num silêncio repleto de palavras. A minha homenagem é para ela.
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Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Mujer de Palabras. (Leia também “Não me interrompas, Pilar”.) Brasília, 21/3/2011
Homenagem a Pilar Del Río
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As marcas do tempo Por Ryoki Inoue
Ouço José T., ex-colega de Santo Américo e amigo desde a infância, perguntar-me: “Lembra-se da Cristina, filha da Adelaide?” Sim, eu me lembro, e muito bem, por sinal. Tínhamos 15 anos de idade e estávamos numa festa do Colégio Madre Alix, em São Paulo. Cristina era uma menina, também de 15 anos, que estava acompanhada por sua mãe e nós, moleques, não sabíamos dizer qual das duas era mais bela. Da mesma forma, eu me lembro da Candinha, da Cida, da Regina, da Marli e de tantas outras...! Eram as meninas por quem nossos corações de adolescentes batiam mais rápido e que povoavam nossos sonhos. “Encontrei-me com a Silvana “ conta-me Peter, “A irmã mais nova da Roberta, lembra-se delas?” – pergunta-me. Sim, claro, como poderia esquecer-me da Silvana, afinal, essa chegou a ser, por três ou quatro meses, minha namorada e eu já estava na faculdade. Além disso, ela era colega de classe de minha irmã, estava quase permanentemente em casa. “Pois 32
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é...” prossegue Peter, “Ela está um caco. Parece uma velha decrépita!”. Ele poderia muito bem deixar de dizer essa última frase. Poderia deixar que eu visse a Silvana, em meus pensamentos, como ela era nos anos 60, loira, alegre, bela, bailarina (ela era do Corpo de Balé do Municipal de São Paulo), sempre disposta a tudo. Bobbynho, outro ex-colega, surge com a ideia: “Vamos organizar um encontro de nossas ex...” Aviso de imediato que não comparecerei. Não quero reencontrar nenhuma delas. Quero poder continuar a sonhar com elas, a lembrar delas exatamente como eram naqueles tempos idos. Assusta-me pensar que elas, assim como nós, estão com mais de sessenta anos, terão suas fisionomias marcadas não apenas pela passagem do tempo, esta dimensão inexorável, mas também pelos dissabores e desencontros da vida. Elas também terão envelhecido, estarão completamente diferentes externamente e, com grande probabilidade, internamente. Aliás, com certeza, eu não reconhecia nenhuma se cruzasse com alguma na rua. Prova disso ocorreu cinco anos atrás, na loja de minha mulher, quando lá estava fazendo compras uma respeitável senhora que cumprimentei. Só depois, ao acertar as contas da féria do dia, vi o cheque que ela dera. Era a Cristina, irmã de um amigo de infância, em Taubaté, e que, no início da década de 60, chegou a balançar fortemente meu inexperiente coração de adolescente. E ela, por sua vez, também não me reconheceu. As marcas do tempo
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É completamente diferente daquela que se tornou minha companheira de vida, a Nicole. Esta, para mim, não mudou absolutamente nada. Continua a mesma morena de olhos verdes que eu persegui desde os dois anos de idade, desde que nossas avós ficavam tricotando e conversando em francês num banco do Jardim Trianon enquanto nós dois andávamos de velocípede. Ela tinha um velocípede igualzinho ao meu, só que vermelho, enquanto o meu era azul. E eu a forçava a correr e a fazer curvas fechadas só para a ver cair. “Sua calcinha é cor-de-rosa!” gritava eu, rindo quando ela se esborrachava de pernas para o ar. Voltei a encontrá-la – de longe – no Guarujá, em uma ou duas férias de verão, na Rua México. Havia uma construção ao lado da casa onde ela estava, e eu mais um bando de outros moleques ficávamos andando de bicicleta pelos andaimes. Quando lembro disso, hoje, chego a sentir um frio na barriga... Que irresponsabilidade! Poderíamos ter despencado fatalmente! Mas éramos moleques, não tínhamos a menor noção do perigo. E ela confessou-me, mais tarde, que chegara a ficar torcendo para que caíssemos. Principalmente eu, que era o mais maluco da turminha. Depois, então já com dezesseis anos de idade, voltei a vê-la tomando chá no Clube Inglês, em São Paulo, acompanhada de sua avó. Lembro que ela tinha, naquela tarde, a fisiono34
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mia preocupada e triste. Não fosse eu tão tímido, teria ido perguntar-lhe o que a estava afligindo. Dois ou três anos mais tarde, encontrei-a comprando cigarros na padaria do Guarujá. Nessa ocasião, já mais treinado nas coisas da vida e menos tímido, decidi segui-la. Ela estava num Karmann Ghia e eu também. Só que eu tinha um motor Porsche 2.0 e estava certo de que ela jamais conseguiria fugir de mim. Porém, o carro dela também era equipado com o mesmo motor que o meu e eu não consegui ultrapassá-la e obrigá-la a parar como planejava. Decepcionado, vi-a entrar no Hotel Jequiti... Daquele dia até julho de 1971, não a vi mais e nem notícias dela tive. Então, numa operação de transporte de soldados para o 4º BOC, em Guarujá – eu era piloto da FAB, na ocasião, e estava encarregado de levar de helicóptero, da Base Aérea até o 4º BOC, quase trinta soldados, o que implicava em mais de três vôos – eu a vi tomando sol na areia da praia de Guaiúba. Reconheci-a de imediato. Ela acenou alegremente, e é claro que não acenou para mim, mas, sim, para o helicóptero, pois teria sido impossível que me reconhecesse com o visor escuro do capacete abaixado. Retribuí o aceno e, na volta, já com a aeronave vazia, fiz um rasante e dei duas voltas, mostrando claramente que era para ela que fazia aquelas manobras. E planejei meu ataque... Naquela época, nosso comandante tinha feito um acordo com um hotel de Ilhabela, o Mercedes, segundo o qual nós, oficiais da Base Aérea, teríamos hospedagem gratuita no As marcas do tempo
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fim-de-semana, com direito a acompanhante, desde que fôssemos de helicóptero e permanecêssemos com a aeronave pousada no heliponto do hotel. Esse acordo era de total interesse para nosso comandante, que, na época, tinha um “cacho” com uma atriz global, e, pelo menos uma vez por mês ia passar não só um fim-de-semana, mas uma semana quase inteira na Ilha. Assim, como era uma sexta-feira e eu sabia que o comandante não poderia se ausentar da Base pelos próximos dez dias, o Jet Ranger estaria à minha disposição. Terminada a missão de transporte eu o pegaria e pousaria diante da mulher objeto de meus sonhos desde a infância e eu duvidava que ela não aceitasse o convite... Porém, ao pousar na Base, antes mesmo de falar com o comandante sobre meus planos, este mandou um sargento me chamar. “Você terá de ir a Brasília agora”, disse-me ele. “O Ministro Andreazza, que está em Santos, foi chamado pelo Presidente com urgência e você é o único piloto capacitado a levar o HS até lá”. Não havia o que contestar e só pude maldizer a hora em que decidi me capacitar a pilotar o HS no Esquadrão de Transporte Aéreo... Meus planos foram por água abaixo e só voltei a encontrá-la em janeiro de 1978. Contudo, dessa vez, eu estava decidido a não mais deixá-la escapar e, apesar de ambos estarmos casados, cada um com sua vida, deixamos tudo para trás e começamos uma vida nova, cheia de amor, vida esta que persiste até hoje.
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Os anos passaram, eu sei. Mas, para meus olhos, ela continua a mesma, não se deixou marcar pelo tempo. Eu, porém, mudei. Não existe mais aquele Ryoki cheio de vida, alegre, disposto a tudo, cheio de energia. Hoje estou preso a duas muletas e, para andar na rua, necessito de uma cadeira de rodas. Entristeci, eu sei. O brilho que havia está opaco, a disposição sumiu... Mas ainda estou vivo e, enquanto houver um resquício de vida em meu ser, enquanto meu coração ainda bater, haverá de bater por ela, a minha Nicole, a menininha de calcinha cor-de-rosa que eu encontrava nas manhãs de sol no Jardim Trianon... Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no seu blog. Leia também a Entrevista de Ryoki Inoue. São Paulo, 17/1/2011
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Manifesto da culinária ogra Por André Barcinski
Poucas coisas são tão boas na vida quanto ir a um bom restaurante. Sou daqueles que acompanha a cobertura gastronômica com interesse. Estou sempre atrás de lugares novos para comer e não penso duas vezes antes de conferir alguma dica. Gosto de comer de tudo. E gosto de todo tipo de restaurantes, dos mais recomendados pelos guias aos pés-sujos mais infectos. Pra mim, bom restaurante é aquele que dá vontade de voltar. Independentemente de preço ou estilo. Mas tenho de confessar que adoro um muquifo. Poucas coisas me dão mais prazer do que descobrir alguma birosca que serve um bife sensacional, ou uma cantina poeirenta com um talharine dos sonhos. Entre os muitos projetos que nunca conseguirei realizar, um tem lugar especial no meu coração (e estômago): um guia da gastronomia ogra. Seria um livro com dicas de restaurantes de onde se sai carregado. 38
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Cheguei até a elaborar uma lista de “dez mandamentos básicos” que o local teria de atender para ser incluído. São eles: 1. Não pode ter nome começando por “Chez” ou terminando por “Bistrô”; 2. A comida precisa ocupar ao menos 85% da área total do prato (com preferência a iguarias com uma taxa de ocupação de mais de 100% dos pratos, como bifes que caem pelas bordas dos pratos); 3. Não pode ter “chef”, e sim “cozinheiro”; 4. Não pode ter “menu”, e sim “cardápio”; 5. Algumas palavras estão terminantemente proibidas nos cardápios. A presença de qualquer uma delas significa exclusão imediata da lista. São elas: “nouvelle”, “brûlé(e)”, “pupunha”, “espuma”, “lâmina”, “lascas” e “contemporânea”; 6. Não pode ter filiais; 7. Os garçons não podem ser modelos, manequins ou atores, com preferência para garçons velhos e feios; 8. Os garçons precisam passar no teste da colherzinha, que consiste em servir arroz com uma só mão, juntando duas colheres, sem derramar um grão sequer; 9. Não pode estar localizado nos seguintes bairros: Vila
Manifesto da culinária ogra
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Olímpia, Itaim-Bibi, Moema e Vila Nova Conceição (era um guia de São Paulo!); 10. O teste final: se o garçom, ao ser perguntando “o que é El Bulli?”, responder qualquer coisa que não seja “é onde eu sirvo o café”, o restaurante está sumariamente eliminado. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog de André Barcinski. (Leia também “Baixíssima gastronomia”, “Combates culinários” e o Especial Gastronomia.) São Paulo, 28/2/2011
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Fim dos jornais? Desconfie Por Diogo Salles
Posso dizer que faço parte da “geração internet”, que pegou a WWW ainda na fase embrionária e revolucionou a forma do mundo pensar e se comunicar. Contudo, ela tem peculiaridades que ainda me fogem a compreensão. Realmente não sei de onde vem essa sanha de forjar (e enterrar) uma “revolução” por dia. Com a crise financeira dizimando empresas dos mais variados segmentos, a imprensa – que já vivia uma crise própria – vê estarrecida os jornais americanos serem jogados no triturador, dia após dia. A cada velório anunciado, blogueiros se refestelam em espasmos mediúnicos, vislumbrando o dia da “democratização da informação” cada vez mais próximo. De longe, eu olho para tudo isso com a maior das desconfianças. E tenho cá minhas razões para o ceticismo: 1. Por enquanto, a morte dos jornais está acontecendo nos EUA, não aqui. Mesmo que as vendas de jornais continuem caindo, existe uma boa distância entre a queda Fim dos jornais? Desconfie
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nas vendas e a “morte”. Além de nossa internet ser muito incipiente perto da americana, nossa blogosfera ainda é, grosso modo, bastante ingênua. E, passada a crise, será de lá, dos EUA, que virá um novo modelo de jornalismo na internet; 2. O fim dos jornais não garante a tal “democratização da informação”, como reza o post-panfleto preferido dos blogueiros “revolucionários”. Ao contrário, vai contra todo o conceito de pluralidade, tão caro aos interneteiros (como se não existissem blogueiros que se vendem a um grupo, partido ou ideologia por algumas migalhas). De qualquer maneira, toda essa grita dos blogueiros me lembram jovens partidários do PC do B numa passeata contra o “imperialismo ianque”; 3. É muita ingenuidade acreditar que, mesmo que os jornais acabem, os grandes grupos de mídia também vão acabar. Isso mostra o quanto essa discussão ainda é turva e como confundem o fim dos jornais com o fim do jornalismo. A única coisa que está em xeque é o papel como suporte para o jornalismo. A internet já fez o trabalho de tirar o controle sobre toda e qualquer informação das mãos da grande mídia, mas não ocorre aos blogueiros que os mesmos grandes grupos continuarão sendo as principais fontes de informação, mesmo que seja só pela internet e com redações mais enxutas;
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4. E finalmente, porque sem uma imprensa forte e vigilante, a democracia fica enfraquecida. Sobre essa questão, meu amigo Ram Rajagopal tem algo a acrescentar: “Democracia não se faz de palpites ou de intenções de pequenos indivíduos isolados, mas da força de instituições que a preservam. E uma destas instituições, que inclusive aparece na Constituição americana e na francesa, é a imprensa. Já cometemos um erro quando deixamos a imprensa receber grana do governo para sobreviver. Cometeremos mais um quando, incapazes de entender os fundamentos de uma democracia, acharmos que a função de um jornal é entreter o copo de café morno de manhã... Inclusive, a pequenez da ideia de que não devemos pagar, voluntariamente, por um serviço que preserva a democracia, é um tiro no próprio pé. O mundo pode conviver com blogs E jornais E livros E Kindle etc... Quanto mais informação, quanto mais observação, mais garantias temos da nossa liberdade”. Sendo assim, por mais que afirmem categoricamente que os jornais vão acabar, ainda não é possível estabelecer uma resolução definitiva. Portanto, não posso – e não vou – encampar essa ideia de “fim” disso ou daquilo. Esse, definitivamente, não é o caminho. Se for pra acabar mesmo, não será através do grito dos caciques da blogosfera, mas sim por uma evolução (ou regressão) natural das coisas. Um “fim” que eu certamente adoraria assistir é o fim dos jornais controlados
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pelas oligarquias e coronéis nordestinos (isso, sim, seria um grande serviço à democracia), mas os únicos que podem responder a essas e outras perguntas ainda não nasceram. Sim, as próximas gerações é que vão nos dizer o que vai embora e o que fica. Tudo o que dissermos agora, em 2009, será chute, puro e simples. No livro O destino do jornal, Lourival Sant’Anna mostra o que, hoje, parece ser um consenso entre os editores dos três jornalões brasileiros: a de que os portais focarão mais o hardnews e que os jornais se tornarão mais analíticos. Por enquanto, não é o que tenho visto na maioria dos jornais. Mas, olhando a questão pelas duas perspectivas (a da internet e a do papel), eu, que estou em ambas as trincheiras, posso falar do que já vi. De dentro da imprensa, tive recentemente duas revelações. A primeira delas foi no dia em que Barack Obama foi eleito presidente dos EUA. Não pela eleição em si, que já era esperada, mas porque muitos jornais populares (principalmente no Rio de Janeiro) preferiram estampar, com amplo destaque, o barraco do Dado Dolabela com a Luana Piovani, que foi parar na delegacia. Enquanto alguns se limitaram a uma pequena notinha de rodapé sobre o Obama, outros ignoraram completamente o assunto. Não que manchetes-celebritites fossem novidade, e também não é só porque se tratava das eleições americanas (fosse John Mccain o eleito, não seria uma grande notícia)... Mas sim por se tratar do primeiro presidente negro eleito num país com um his-
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tórico de segregações, como os EUA, e de todos os simbolismos que aquilo representava no Brasil e no mundo. Dirão os editores dos tais jornais que, para os leitores destes, o barraco do Dado Dolabela interessava mais. Outros se esconderão atrás do clichê obscurantista “precisamos nos preocupar com as vendas”. Pouco importa, ambas justificativas são cínicas e revelam o que muitos jornalistas preferem esconder: o mundo está mudando, e esses mesmos jornalistas não estão acompanhando as mudanças. Num país como o Brasil, onde preconceitos são escamoteados por trás de uma pseudodemocracia racial, onde se discutem cotas raciais nas universidades e ainda se considera necessário ter um “Ministério da Igualdade Racial”, a eleição de um presidente negro era sim a notícia mais importante naquele dia para todos os leitores brasileiros (negros ou brancos; pobres ou ricos). E em todas as esferas da mídia – inclusive nos jornais ditos “populares”. Mas o grande choque aconteceu há poucos dias, quando um jornal daqui de São Paulo abriu sua página de “Internacional” com a seguinte notícia: “Bin Laden some do mapa”. A princípio, aquilo me parecia um copy/paste da Wikipédia, mas confesso que continuo sem entender nada, pois essa “matéria” poderia ter sido publicada em qualquer dia entre setembro de 2001 e hoje que não faria a menor diferença. Esse episódio, além de mostrar como ainda subestimam qualquer capacidade intelectual do leitor, escancarou também o com-
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pleto descaso e preguiça de alguns jornalistas com o ofício. Em tempos de preservação ambiental e de economia de papel, cada coluna, cada linha no jornal é preciosa, já que as notícias andam disputando a tapas o espaço com os anúncios. Mesmo assim, preferiram gastar papel com o “sumiço” do Bin Laden. Alguns jornais parecem mesmo não perceber que é esse tipo de coisa que faz os já distantes leitores se distanciarem ainda mais e que os fazem perguntar, em dias de YouTube e Twitter, se o jornal ainda é necessário. Exposta na redação, essa pérola do jornalismo gerou um comentário revelador: “Os jornais não estão morrendo. Estão se suicidando”. Fosse um blogueiro dizendo isso, seria mais uma previsão apocalíptica de quem tem todo interesse em destruir a feira para depois catar seus restos e bagaços no chão. Mas, ditas por um jornalista de redação, essas palavras mostram como o jornalismo tradicional desceu do pedestal e deitou no divã. Fechar o conteúdo dos portais apenas para os assinantes tem sido apontado como uma das soluções para salvar os jornais, embora isso só seja possível através de uma difícil arregimentação entre todos os grupos de mídia e agências de notícia (de que adiantaria uns fecharem o conteúdo e outros deixarem aberto?). Mesmo assim, muitos blogueiros pagariam para acessar tais portais e continuariam reproduzindo conteúdos em seus blogs em busca de cliques para seus anúncios. Portanto, se fechar o conteúdo é a única solução para salvar os jornais, melhor procurar outras. 46
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Mas suponhamos que os blogueiros do apocalipse estejam certos e que todos os jornais e grupos de mídia sejam varridos da civilização. Quem faria o trabalho de trazer as notícias para o público? Os mesmos blogueiros? Desconfio um pouco (ou muito) disso por uma razão muito simples: se os blogueiros só se dão ao trabalho de reproduzir ou comentar o conteúdo dos portais, como eles ficarão se os mesmos portais não mais existirem? Eles vão ler o Diário Oficial e publicar suas opiniões? Salvo raras exceções, as opiniões da maioria dos blogueiros de hoje é absolutamente dispensável. A única cobertura em que a blogosfera dá um baile nos jornais é a de tecnologia, novas mídias etc. Já todo o restante do noticiário é o trabalho diário de jornalistas, editores, pauteiros, colunistas, fotógrafos, designers, diagramadores, infografistas e ilustradores. Mesmo que alguns poucos blogueiros vivam exclusivamente de seus blogs, para a grande maioria blogar ainda é algo que ainda se faz nos intervalos de seus empregos ou em casa – e não há compromisso algum com a notícia para fins profissionais. Se o sol estiver raiando lindamente e a patroa quiser ir à praia, ficará o blogueiro na frente do computador, de plantão, esperando as notícias chegarem? Ok, não esqueçam de usar protetor solar... O que quero dizer é o seguinte: trabalhar com a notícia é como trabalhar em qualquer outra coisa. Alguém precisa trabalhar integralmente nisso e, principalmente, receber por esse trabalho. Ou você acha que fotógrafos não são deslocados para cobrir as finais do campeonato? Ou que repórteres Fim dos jornais? Desconfie
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não vão a campo todos os dias em busca das matérias? Ou que designers, ilustradores, infografistas e diagramadores não esperam a definição das pautas para encontrar soluções gráficas que sejam atraentes para o leitor? Não é algo que se faz em coffee breaks ou quando dá na telha. Com as postagens no meu antigo blog era assim: uma, às vezes duas por semana. E só quando eu encontrava tempo. A grande pergunta é: como e onde os blogueiros vão encontrar recursos para se sustentar e viver exclusivamente de seus blogs? Diante de tantas incertezas, o fato é que ainda não se estabeleceu um modelo que sustente o jornalismo na internet. A tão falada “monetização” ainda não resolveu a vida de ninguém. Alguns conseguiram piorar ainda mais as coisas. Com os tais “posts pagos” desvirtuaram tudo aquilo que a internet tem de melhor: a independência. Por outro lado, exemplos como o Interney e este Digestivo Cultural são primorosos e provam a força da internet, que consegue aliar ótimos conteúdos colaborativos com o negócio em si, mas também mostram que ainda é um negócio para poucos. Uma coisa é certa: jornais que não se adaptarem aos novos tempos, que não valorizarem seus profissionais e não respeitarem seus leitores vão mesmo acabar, como qualquer empresa que não consegue se sustentar. E mesmo que o jornal (em papel) morra, uma coisa ficará: o jornalismo de qualidade. A este, público leitor não falta – ao contrário, aumenta a cada dia. Se os anúncios migrarem mesmo para a internet (como já sinaliza um estudo feito na Europa), os fundamentos do 48
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jornalismo atual serão mantidos, só que em outra plataforma. No fim, alguém continuará pagando a conta para que tenhamos as notícias do dia e para que bons profissionais possam trazê-la a público. E, não duvide, esses bons profissionais estarão onde não precisem se vender por “cem maravilhosos reais”. São Paulo, 19/5/2009
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Os quase-livros Por Wellington Machado
Nunca mais ouvi falar do tal escritor. Mas já se passaram alguns anos que eu, na sala de espera da dra. Cristiane, dentista, li em uma revista cuja capa fora extraída, uma matéria sobre a descoberta de vários manuscritos de um escritor húngaro chamado Kovács. Não consegui decorar seu sobrenome e não me perdoo até hoje por não ter anotado em algum papel. Kovács teria morrido no ano de 1919. Foram descobertos em um baú antigo – daqueles empoeirados que se vê em filmes como O Nome da Rosa –, nos porões de uma mansão, vários cadernos manuscritos que, à primeira vista, comporiam cinco ou seis romances. Diante da descoberta, a Biblioteca Pública de Budapeste se comprometeu a financiar a contratação de professores de literatura e vários outros especialistas para analisar os manuscritos. Não tive notícia mais sobre o destino dos trabalhos, e muito menos das obras. Mas um detalhe me chamou a atenção. Um respeitado professor de literatura que teve um primeiro contato com os manuscritos declarou que Kovács se 50
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tratava de um escritor excepcional, cuja obra rivalizaria – quiçá superaria – com a de Franz Kafka. Segundo o especialista, o conteúdo daqueles originais, se descobertos e publicados nos anos 20, mudaria o rumo de toda a literatura ocidental. Há exemplos de livros que quase tiveram o mesmo destino, ou seja, quase não existiram (ou só existiram) por obra de terceiros. O exemplo clássico é o de Max Brod, amigo de Kafka, que teria cometido uma “boa desobediência” (para os amantes da literatura) ao não destruir os manuscritos, de anotações ou até de livros prontos, que o escritor julgava de qualidade duvidosa. Lembro de ter lido em algum lugar que o escritor João Ubaldo Ribeiro, depois de um esforço hercúleo, escrevendo à máquina (em papel ofício e cópia carbono) o calhamaço Viva o Povo Brasileiro, teria rejeitado(!) o livro. Num ato de repulsa ou de perfeccionismo, o escritor jogou as mais de mil páginas datilografadas em uma caixa e deixou-a abandonada em um canto da casa, sujeita a infiltrações e traças. O romance teria sido arrancado à força de suas mãos – literalmente roubado – pelo editor, que o publicou. Mais recentemente, vimos a quase “não existência” do livro de Nabokov, O Original de Laura. Escrito a lápis em fichas catalográficas quando o escritor estava internado para se tratar de uma infecção na Suíça, o romance quase não existiu por duas vezes. Na primeira, Nabokov teria orientado a sua esposa a destruir as fichas. Após a morte desta, ficou nas mãos do filho Dmitri a publicação (ou a destruição) dos maOs quase-livros
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nuscritos. Decadente, necessitando de dinheiro para pagar despesas com a saúde debilitada, o filho mandou para o prelo as fichinhas. O livro 2666, do chileno Roberto Bolaño, teve situação diferente. Houve também, como no caso do João Ubaldo, desobediência por parte do editor. Bolaño, que sabia que morreria por problemas hepáticos, determinou que o 2666 fosse publicado em cinco partes distintas, em volumes separados, a fim de sustentar a família por um bom tempo. O editor ignorou a vontade do autor e mandou um tijolo para as livrarias. Há casos também de futura inexistência de livros. Mistérios que atiçam desejos de leitores e do famélico marketing das editoras. É o caso do escritor J.D. Salinger, autor do livro O apanhador no campo de centeio. Há especulações de todo gênero; uma das quais a de que o escritor teria deixado, no cofre de sua casa, algumas obras prontinhas para serem publicadas aos poucos, garantido a grana para até a quinta geração dos Salinger. Mas o mistério persiste. Sabe-se que o escritor teria, ou pelo menos dava sinais de ter, assim como Raduan Nassar, abandonado a literatura de vez para viver os afazeres de um dia simples. E se, ao abrirem o cofre de Salinger, um vazio escuro e melancólico ecoar lá de dentro? Obras e, por consequência, escritores podem não ter existido por inúmeros motivos. Um empregado de alguma casa que tenha jogado no lixo, por engano, caixas e mais caixas de manuscritos. Um amigo que, ao contrário de Max Brod, tenha realmente acatado a ordem do escritor e inuti52
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lizado sua obra. Esposas ou maridos em crise conjugal que, num rompante momentâneo, queimaram cadernos do parceiro. Editores que simplesmente rejeitaram obras-primas. Sabemos e temos acesso apenas ao que existe, óbvio. Dante, Cervantes, Balzac, Kafka, Dostoiévski, Proust, Flaubert existiram porque se “salvaram” desses “destruidores”, além do inegável talento, claro. Mas se eles não tivessem sido descobertos? O destino da literatura moderna, por exemplo, tão influenciada por Kafka, seria o mesmo? Quantos escritores não “aconteceram”, por inúmeros motivos, mas existiram de fato e escreveram obras importantes que não chegaram até nós? A dra. Cristiane nunca fez reparo em meus dentes. Tenho ojeriza a revistas sem capa e ensebadas. Detesto sala de espera. A possibilidade de se encontrar uma revista que aborde literatura – e húngara!? – nesse ambiente é remotíssima. Vários escritores como o Kovács, que é uma ficção, poderiam ter existido e, quem sabe, mudariam os rumos da literatura e da sociedade – para melhor ou pior – se tivessem sido publicados. Seria como se, guardadas as devidas proporções, a humanidade não tivesse moldado a razão como ela é (segundo a linha evolutiva dos pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles etc.), mas seguido um outro caminho que não o da racionalidade como a conhecemos e praticamos. Literariamente, somos o que somos devido ao que descobrimos, voluntária ou involuntariamente. Tornamo-nos uma possibiliOs quase-livros
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dade entre várias. Poderíamos ter sido bem melhores ou bem piores, de acordo com aquilo que sepultamos. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Wellington Machado de Carvalho mantém o blog Esquinas Lúdicas, onde o texto acima foi originalmente publicado. Belo Horizonte, 13/7/2010
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De volta para o futuro? Por Guilherme Werneck
Ondas revivalistas acometem de tempos em tempos tanto a música popular quanto a erudita*. É um movimento natural. Querer agradar é da essência humana, e o caminho mais fácil para dar prazer ao maior número de pessoas ao mesmo tempo é evitar o risco. Daí o yin-yang entre conservadorismo e radicalismo em todo e qualquer campo das artes. (*Odeio esse termo, acho pernóstico, mas é mais correto do que a inexatidão de “música clássica” e mais comunicativo do que “composição moderna”, meu preferido. Embora, no fundo, não haja mais razão suficiente para essa separação, a não ser mercadológica, mas isso é tema para outro texto.) Porém, desde que comecei a gostar de música, a ouvir com atenção e estudar, nunca senti uma sensação tão grande de estagnação, de estar preso ao passado. Mesmo quando o artista tira a rede de segurança e se arrisca, o fio sobre o qual ele anda já foi pisado pelo menos um bom par de vezes por outros intrépidos equilibristas. Essas pessoas são as que tratam o passado com respeito e criatividade. Pior é ter de conviver a todo minuto com a De volta para o futuro?
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sobreposição mais comercial dos diferentes revivals dos mais diversos estilos. Todos ocorrendo simultaneamente em cenas underground e mainstream. Enfim, são as cópias das cópias que pululam nesta nossa redoma de naftalina. A impressão é de que vivemos hoje no futuro imaginado por gerações anteriores e perdemos a perspectiva de nossas próprias utopias. Isso tem me intrigado mais do que qualquer outra coisa. Estamos revolvendo o passado, reciclando, copiando e recombinando por quê? O que fez com que abandonássemos a vontade de olhar para frente? Em que medida viver num presente perpétuo ancorado no passado gera uma espécie de disfunção narcotizante? Tenho algumas hipóteses para responder a essas perguntas. Algumas são mais filosóficas, como a perda da noção de futuro como principal motor de inovação. Outras são bem práticas e factuais, como a falta de inovação genuína nos meios para fazer música e a mudança drástica que a internet, com seus 15 anos de vida comercial, imprimiu na distribuição e no consumo de música. A questão do futuro vem sendo levantada de forma pontual na imprensa especializada há algum tempo. Ela aparece tanto no ótimo Fear of Music, livro de David Stubbs do ano passado que investiga a razão pela qual a arte moderna vingou no gosto popular e a música moderna, não; e em dois livros recentes de Simon Reynolds: a coletânea de artigos Bring the noise e o estudo sobre o pós-punk Rip it up and start again. Os dois críticos, que começaram a escrever nos semanários 56
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ingleses de música nos anos 80 e orientaram suas carreiras perseguindo novidades, mostram-se intrigados com o fato de o futuro ter saído da pauta, depois de ser o principal motor do século XX.
A revolução do século XX Indiscutivelmente, por trás da revolução vertiginosa pela qual passou a música ocidental no século passado havia uma constante: a idealização do futuro, ancorada em utopias na primeira metade do século e em distopias cada vez mais apocalípticas conforme os anos 1900 vão chegando ao fim. Do trítono dissonante introduzido por Richard Strauss em sua ópera Salome no fim do século XIX – marco do começo da modernidade como coloca Alex Ross em o O resto é ruído – até o baixo sintetizado e retorcido da Roland 303, que colocou em marcha a revolução musical e comportamental da eletrônica, a idealização do futuro se materializa de duas formas. A primeira é a busca da originalidade, da inovação, de arriscar novas maneiras de expressão artística, usando os meios existentes ou, na falta deles, criando novos. Exemplos disso são a dissonância na música erudita, as notas fora de registro dos jazzistas, o diálogo dos compositores modernos com a cultura popular e suas escalas não temperadas, o uso do silêncio, dos gravadores de rolo para fazer colagens, as gravações de campo, as instalações sonoras, os happenings, De volta para o futuro?
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a criação dos sintetizadores, a eletrificação dos instrumentos, o uso do ruído, do sampler e dos softwares de produção e edição musical.
O futuro como ideia A segunda é menos palpável do que a primeira, e precisei de mais do que ter um par de ouvidos para percebê-la. É um desejo de interferir diretamente no futuro como ideia. Os três principais movimentos artísticos com impacto na música no começo do século XX, como descreve Stubbs, são o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo. Os três, cada um à sua maneira, são projeções futuristas, construções utópicas para lidar com um presente opressor. Aí vale tanto a utopia de um mundo mecanizado e ordenado, no caso do futurismo, quanto o escapismo perante a opressão da guerra e dos regimes fascistas que informam o dadaísmo e o surrealismo. Um ouvinte atento percebe que esse balanço entre escapismo e construção pragmática do futuro perpassa toda a criação inovadora do século XX. Dos três ismos, dois acabaram tendo mais impacto na música. O absurdo dos dadaístas está refletido na obra dos criadores mais inquietos com a própria ideia de música, e aí talvez os melhores exemplos sejam John Cage e o grupo Fluxus. O futurismo, por sua vez, deu uma das peças fundamentais da rebeldia musical: o manifesto A arte do ruído, do italiano Luigi Russolo. O texto futurista pode ser 58
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considerado uma fonte tanto para o uso do ruído na obra de um inovador como La Monte Young, quanto para toda a cena de noise na música popular, numa linha que vai do álbum Metal Machine Music, de Lou Reed, passa por Swans, Whitehouse e Merzbow nos anos 1980, até desembocar nessa leva contemporânea global de bandas como Wolf Eyes e afins. É fácil traçar essas conexões. Menos óbvia, contudo, é a relação entre música e ideologia, e como ela se mostra fundamental na construção do conceito de progresso e de projeção futurista que atravessa todo o século XX. Quando os EUA entravam na grande depressão, a música modernista de compositores como Aaron Copland trazia dois componentes claros: a afirmação do homem norte-americano e o desejo de transformar essa potência individualista – talvez o traço mais marcante da cultura do país – em um coletivo social, um sonho expresso como ingênua propaganda. Na Alemanha, os compositores de vanguarda que não foram presos e mortos, acabaram forçados pelo nazismo a deixar seu país. Essa arte no exílio, produzida em grande parte nas universidades norte-americanas, é também essencialmente política e futurista. A permanência nos EUA de grandes mestres da composição como Arnold Schönberg foi fundamental para polinizar o ideal de um futuro da música evolutivo e não-melódico. E a música, aí, também se transforma em resposta ao terror e à opressão. O mesmo ocorre na União Soviética de Stalin. Enquanto o governo tentava forjar uma música popular e populista, De volta para o futuro?
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alguns dos principais compositores soviéticos, como o ambíguo Shostakovich, faziam oposição pelas brechas, sonhando com uma liberdade futura. Mesmo quando as coisas derretem definitivamente depois da Segunda Guerra, e os artistas passam a experimentar com colagens, serialismo, eletrônica, eletroacústica, happenings e notações próprias, há por trás dessas grandes inovações estéticas um jogo de forças criativo e político. França, Itália e Alemanha são os berços da eletrônica moderna. O estúdio-laboratório no sul da Alemanha onde Stockhausen criou suas primeiras obras foi financiado com dinheiro do Plano Marshall. Grupos experimentais italianos também eram financiados indiretamente com dinheiro norte-americano. Há, por baixo da benevolência e do cultivo de uma arte de ponta e abstrata, o desejo de lançar uma cortina de fumaça no passado. Para mim está claro que, pelo menos no caso da Alemanha, essa névoa tinha a função de embaçar o ideal estético wagneriano.
O pop toma a dianteira As engrenagens da Guerra Fria são fundamentais para manter esse fio de tensão por quase toda a segunda metade do século XX. Tensão que só aumenta quando a música popular passa a ser tão desafiadora quanto a erudita, a partir da polinização cruzada que explode nos anos 1960. Claro que essa tensão já aparece antes. Está no cheiro 60
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de jazz usado por Gershwin, nas notas fora do registro do bebop de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, só para lembrar de casos notórios. Mas vejo algumas mudanças fundamentais nos anos 1960. As inovações do pós-guerra produziram uma música incômoda para a maior parte do público, esvaziando a importância popular do compositor erudito. Apesar disso, essas criações herméticas ganham o grande público através da música pop. Ela aparece no som dos Beatles, no do Velvet Underground e, sub-repticiamente, faz-se ouvir nas salas de cinema e na TV. É filtrada pela cultura pop que a música moderna volta aos ouvidos populares, mas a conexão não é óbvia. Além disso, todo o marketing da juventude, construído nos anos 50, torna-se absolutamente dominante nos anos 1960. E, enquanto o rock soterra o jazz e a música clássica nas prateleiras das lojas de discos, ele não deixa de beber nas duas fontes. Não à toa, esse rock mais radical, produzido de 1967 em diante, tem uma agudeza que casa com as revoluções políticas e comportamentais do fim da década. Quando aspira ao novo e busca os meios para inovar nas fontes modernas, torna-se naturalmente uma música capaz de expandir consciências e inocular visões subversivas do futuro. Vejo esse movimento sempre como uma batalha entre transgressores e conservadores. O que não vejo, nesta época, é nenhuma das manifestações artísticas dos dois grupos ancoradas apenas no passado. Na linha da transgressão, temos o escapismo do jazz de vanguarda dos anos 60 – as viagens de De volta para o futuro?
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ficção científica de Sun Ra, a religiosidade de John Coltrane, os jogos intelectuais de Cecil Taylor –, o escapismo psicodélico pós-Sgt. Peppers, e o mundo místico do nascente hard rock, que vai desembocar no universo de RPG do heavy metal. Todos esses movimentos são confrontados com as visões mais conservadoras, mas igualmente transformadoras, da música folk e de protesto. Mesmo quando Bob Dylan vai buscar inspiração em Leadbelly ou nas gravações da Folkways, o discurso que ele cria é absolutamente contemporâneo e tem a intenção de transformar o futuro. A mesma coisa acontece nos anos 1970, com o escapismo masturbatório do rock progressivo e o hedonismo da disco. Está até, de certa maneira, no pragmatismo do “no future” do punk, apesar das claras contradições políticas do movimento. Não dá para esquecer de que se há no punk um fetiche pela estética do choque, responsável pela volta, de forma absolutamente cretina, da simbologia nazifascista, há também toda a luta por igualdade de direitos e miscigenação racial defendida por punks esclarecidos, como os integrantes do Clash. E, da forma como entendo, o “no future” não é um pedido de volta ao passado, é antes parte fundamental de uma visão distópica do futuro, uma vontade de rebelar-se contra o presente e encontrar algo melhor em outro lugar, mesmo que isso pareça improvável. No pós-punk, época em que comecei a gostar de música para valer, tudo fica ainda mais confuso. A experimentação de todo o tipo, que marca as diferentes ondas do pós-punk, 62
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tem claramente um subtexto apocalíptico. A visão de fim de mundo é alimentada pelo medo da bomba, pela chegada ao poder de regimes conservadores (Thatcher na Inglaterra, Reagan nos EUA), por uma atração pelo mundo deformado dos escritos de Ballard. O futuro, mesmo torto e apocalíptico, parece melhor do que o presente da Guerra Fria e as condições sociais na Europa e nos Estados Unidos. É melhor sonhar, mesmo que se tenha apenas pesadelos. O mais interessante nessa época é que discurso e prática se tornam indissociáveis. Basta pensar no dadaísmo da no wave, no futurismo de quadrinhos da new wave, na poesia concreta das primeiras bandas industriais e, pensando grande, no nascimento do hip hop. Sons e palavras harmonicamente dissociados, alargando as fronteiras da música pop para além do imaginável. Para mim, aí está o clímax desse pensamento de futuro.
Fim das utopias? A queda do muro de Berlim marca o começo do fim dessa tradição de inovação que foi fundamental para me orientar a tentar sempre descobrir a coisa mais nova e diferente na arte. O fim da polarização entre socialismo e capitalismo, que desemboca na construção do presente perpétuo homogeneizante da globalização, acaba matando os sonhos de futuro pouco a pouco. A última tensão realmente criativa, quase o último susDe volta para o futuro?
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piro dessa época de inovação, vem da música eletrônica, nas suas mais diferentes variantes. Não só pela mudança comportamental que a acompanhou. Foi a última vez que tivemos novas ferramentas de produção musical a serviço de uma febre utópica. Ainda que seja uma utopia vazia, do corpo, sensorial, hedonista. A música eletrônica foi tão forte como linguagem que conseguiu até penetrar a carapaça do rock. O que é o pós-rock se não a testosterona roqueira grávida de beats e texturas? Foi nos anos 1990 que tivemos a última grande oposição estilística. A música eletrônica de um lado e o rock conservador de outro – de forma direta como no britpop ou travestido de novidade, como no grunge. A partir daí, há muita criação (pense em um Radiohead ou numa Björk), mas pouca inovação. Como me disse Simon Reynolds em uma entrevista em 2004, a inovação só virá se surgir uma nova tecnologia ou uma nova droga. Como elas não chegaram, estamos presos no futuro do pretérito.
Pop hipnagógico e assombrologia Por incrível que pareça, para mim, o que surgiu de mais interessante nos últimos dois anos foram estilos que se conformaram com a ideia de estarmos presos ao passado. Um movimento interessante nesta época em que o colecionismo frenético toma o lugar do tempo para morar, entender e ser transformado por uma visão artística. Uma série de artistas 64
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bastante interessantes, que revolvem o passado com os olhos de hoje, são agrupados sob dois novos termos: pop hipnagógico e assombrologia (tradução mais corrente para a palavra hauntology, cunhada por Jacques Derrida em Espectros de Marx). O pop hipnagógico bebe no pop mais comercial dos anos 1980 e na new age (daí a sonolência embutida no rótulo) para fazer uma música que oscila entre o kitsch e o sublime. Já a assombrologia trata da apropriação do passado como linguagem e fonte ao mesmo tempo, trabalhando a história da música dentro das não-fronteiras fantasmagóricas. É uma analogia à proposição de Derrida de que, a partir da queda do Muro de Berlim e da derrocada dos regimes socialistas, a assombrologia toma o lugar da ontologia de Marx. Os ideais socialistas se mantêm difusos. Os novos pensadores têm de negociar também com os fantasmas de Marx. A utopia está dilacerada, e temos de nos contentar em tentar encontrá-la em manifestações do além-túmulo. Na música, isso se dá com a apropriação, remodelagem e reconstrução de velhas ideias, traçando novas rotas e caminhos. Obviamente, tanto o pop hipnagógico quanto a assombrologia dão conta apenas de uma porção mais desafiadora da música de hoje, feita por gente como Oneohtrix Point Never, Pocahaunted (que infleizmente acabou neste ano), as quinhentas mil encarnações musicais de James Ferraro, The Focus Group, The Advisory Circle e Ariel Pink, só para citar alguns. Além deles, uma infinidade de músicos criativos fazem trabalhos brilhantes, mas não consigo nomear, de cara, De volta para o futuro?
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nenhum inovador genuíno, ninguém que direcione seu olhar para o futuro, para a utopia, para o inexplorado. Mas sou otimista, alguma coisa nova vai surgir para nos tirar dessa visão de presente perpétuo. Há de ter um caminho para trazer de volta a utopia. Por mais que seja confortável viver hoje com tudo à mão, de graça, às toneladas, ainda prefiro ser soterrado por uma ideia nova do que ter de rolar morro abaixo, desenfreado, catando cacos numa avalanche de velhas ideias. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Pisando na cauda longa, de Guilherme Werneck. São Paulo, 4/10/2010
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Freud e a mente humana Por Julio Daio Borges
O século XX foi cruel com Freud, embora ele seja considerado uma das maiores “cabeças” do período. É moda dizer que foi refutado e que a maioria das suas “teorias” caiu por terra – apesar de ele ter consagrado a psicanálise. Hoje em dia, lê-se por aí que Freud é mais visto como “filósofo” do que como cientista (Wittgenstein, um filósofo contemporâneo seu, sempre duvidou que houvesse ciência em seus procedimentos). A neurociência chegou para impor suas “verdades”; mas a verdade é que Freud propôs um dos melhores modelos para a “mente humana” de que se tem notícia. Todo mundo conhece o “id”, o “ego” e o “superego”. Os três caíram no gosto popular. O id seria o que resta de “animal” em nós (“animal” entre aspas, porque os verdadeiros animais não têm culpa). Michael Kahn, autor de Freud básico (um guia extremamente confiável, lançado recentemente pela editora Record/Civilização Brasileira), compara o “id” ao “monstro” do conto Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O médico e o monstro), de Robert Louis Stevenson. O id quer realizar toFreud e a mente humana
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dos os nossos desejos e não entende que uma recusa ao “prazer momentâneo” pode se converter em “prazer duradouro”. Aí entra o ego. O ego ou a “consciência” faz a mediação (no jargão futebolístico: o “meio-de-campo”) entre o id, insaciável, e o superego. Este último serviria para nos punir e para frear nossos instintos, com base na experiência. Kahn dá um exemplo ótimo: aprendemos, quando crianças, com os nossos pais, que não devemos transgredir certas normas sociais; no início, somos punidos e corrigidos por eles; mais tarde, sua mera presença nos faz lembrar de como devemos nos comportar; com o tempo, incorporamos as lições dos nossos pais em nós, de tal forma que o superego assume o papel de “vigia” dentro da nossa cabeça. O superego é aquela voz que nos diz que “alguém pode estar olhando” (como na frase de Mencken). Kahn sugere a imagem de um “porteiro”, que decide (como no conto de Kafka) quem deve ou não atravessar a “porta da consciência”. Mas o superego pode ser traiçoeiro, crescer demais na vida de uma pessoa e, por meio da “culpa”, impedir que ela se desenvolva como ser humano. O superego pode ainda protelar um “desejo” indefinidamente, de modo que ele se transforme em “recalque” – e lá vai o sujeito engrossar o coro dos “recalcados”. Freud é tomado, junto com Darwin e Marx, como uma das “bestas do apocalipse”, porque ajudou a enterrar o que restou de “religiosidade” no século passado. E, realmente, de68
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pois de estudar Freud, fica difícil concordar que a “culpa” (como vista, por exemplo, pela igreja católica) possa trazer algum benefício ao indivíduo. Kahn evoca a vida de santos que, para livrar-se de “pensamentos pecaminosos”, impunham castigos ao próprio corpo – para eles, a fonte de todo o “mal”. Tinham razão; mas, pensando neles, Freud balançaria a cabeça negativamente, como se dissesse: “Tsc, tsc, tsc...”. Os “desejos” simplesmente existem em nós. Não têm qualquer origem “moral”. Brotam junto com os pensamentos e não devem ser tomados como um indício de “má conduta” ou de “mau comportamento”. Aqueles santos, que se autoflagelavam, não diferenciavam os seus “atos” das suas “vontades”. Para Freud, um dos “custos” da civilização era justamente esse: impor que as últimas não se convertessem nos primeiros – e garantir uma convivência harmônica entre os seres humanos. Contudo, sem a pretensão de querer anular “desejos inconvenientes”; afinal, eles poderiam nos dar pistas para uma das forças mais poderosas que regem a nossa vida: o inconsciente. O “inconsciente” não foi uma invenção de Freud, como aponta Kahn. Já existia na obra de poetas; e, justamente, aqueles com melhor acesso ao inconsciente seriam os “artistas”. Muitas das nossas motivações ao longo da existência, por mais que as “racionalizemos”, emanam do nosso inconsciente. Ele é a chave, por exemplo, para entender por que cometemos sempre os mesmos erros; por que reagimos a determinadas situações de forma semelhante; e, principalmente, Freud e a mente humana
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por que não superamos certas dificuldades que nos acompanham desde a infância, até a idade adulta. Freud, no contato com seus pacientes, descobriu que os “sonhos” eram o melhor caminho para o inconsciente. Através da sua “interpretação”, por meio de associações de palavras, curou muita gente da chamada “compulsão à repetição”, permitindo que pudessem viver plenamente. Afinal de contas, as relações que construímos desde que somos crianças e adolescentes tendem a se refletir, futuramente, nas ligações que continuaremos a estabelecer em etapas posteriores. Assim, um “trauma” ou um “complexo” mal resolvido pode redundar em problemas, cuja origem, depois, só ficará clara através da sondagem do inconsciente. Portanto, é central na obra de Freud o “complexo de Épido”. Ele fica claro se tomarmos o caso dos “meninos” mais do que das “meninas”. Esses, para completar seu “desenvolvimento psicossexual”, precisariam, em algum momento na puberdade, suplantar a figura do “pai” e conquistar a da “mãe”. (Aquele que não fosse bem sucedido nesse instante sofreria as conseqüências.) A “conquista” da mãe, para o jovem rapaz, é a prova de que ele pode, posteriormente, conquistar outras garotas e, metaforicamente, “assumir” o lugar do pai (na família que irá constituir depois). Freud acreditava que os homossexuais “falhavam” ao tentar sobrepujar a figura do pai – o que provocaria, neles, uma identificação com o mesmo, de modo que passariam a vida “(re)conquistando” o pai (através de outros homens) e não a mãe. Do mesmo jei70
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to, aquele que “falhasse” ao tentar conquistar a mãe se converteria num “dom juan” – que procuraria, em todas as mulheres que encontrasse, a figura da genitora, para subjugá-la ao final. (Talvez por esse motivo, Freud afirmasse que o “conquistador inveterado” está a um passo do homossexual [vide Lord Byron].) Kahn, igualmente terapeuta, narra casos de pacientes que, à medida que o tratamento avançava, “projetavam” nele a imagem do pai ou da mãe. Alguns adotavam uma postura “desconfiada”, agindo, em relação a ele, como “filhos rebeldes”; outros formavam um vínculo de tamanha afetividade que terminavam querendo estabelecer relações amorosas. Há, particularmente, no livro, a história de uma moça cujo “corpo” lhe enviava sinais do inconsciente: ela comparecia às sessões cada vez mais arrumada e ansiava por que Kahn a “desejasse”, como o pai que não a desejou – a fim de suplantar um “complexo” que a impedia de relacionar-se com rapazes de sua idade. (Uma vez percebido isso, foi desatado o nó que levou à “cura”.) Freud chamou o fenômeno de “transferência” – e ele é bastante comum até os dias de hoje (vide os filmes de Woody Allen). Como dito anteriormente, a representação do “pai” e da “mãe”, junto com os primeiros vínculos que estabelecemos, vão ecoar pela vida afora: na escola, no trabalho, na família, etc. Freud via em toda e qualquer afeição um potencial “erótico”. Nas relações familiares inclusive (como o nosso Nélson Rodrigues, aliás), podendo explodir Freud e a mente humana
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em descargas aparentemente sem sentido, mas segundo um padrão previsto no inconsciente. Não à toa, Freud considerava o amor da “mãe” pelo “filho” um dos mais perfeitos para a mulher – porque ele se realizava sem a consumação carnal (que proporciona sempre tantas frustrações). Ainda com relação ao “pai”, Freud teve dúvidas ao nomear o “complexo de Édipo”. Baseando-se na obra-prima de Sófocles, percebeu que poderia muito bem chamá-lo de “complexo de Laio”. Pois, como um dos protagonistas da história, os “pais” se sentiam ameaçados pelos “filhos” recém-chegados e temiam, como efetivamente acontece, que estes tomassem o seu “lugar”, usurpando do “rei” o trono. Kahn fala de culturas em que, quando o bebê nasce, o pai é afastado do leito – o que evoca a imagem da “sucessão”. Os “pais” então, inconformados com a perda da “posição”, e enciumados diante do amor que a mãe naturalmente dedica ao recém-nascido, voltar-se-iam contra os próprios “filhos”, em represália. Freud e Kahn retornam ao “pai” e à “mãe”, ainda uma vez, para discorrer sobre a experiência do luto. Freud achava “positivo” que a perda de um ente querido fosse vivida plenamente. Notava que, em sociedades onde os rituais do luto eram seguidos à risca, os indivíduos superavam mais facilmente a perda. A seu ver, era necessário esgotar as lembranças do ente (por exemplo, em conversas), incorporando, inclusive, hábitos ou mesmo pertences daquele que se foi, num processo denominado “introjeção”. Quem não atravessasse a contento a experiência do luto ficaria preso num mundo “ir72
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real”, teria problemas para confrontar-se com o “mundo exterior” e não construiria novas relações, no lugar daquela que se rompeu. É, em resumo, uma pena que todo o estudo, empreendido por Freud, sobre a natureza humana, atualmente se restrinja a alguns clichês, muitos conceitos equivocados e à firme convicção de que a ciência, definitivamente, o “ultrapassou”. A descoberta de Freud (que era muito mais que “sexo” e “charutos”) pode ser ainda reveladora, ajudando muita gente – com ou sem terapia – a se conhecer e a viver melhor com suas próprias idiossincrasias. Nesse sentido, Freud básico, de Michael Kahn, apresenta-se como uma bela introdução. São Paulo, 21/11/2003
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COLUNAS
Em busca da adrenalina perdida Por Marta Barcellos
Havia alguma expectativa de, durante a viagem, descobrir por que eu nunca quis ir à Disney. Algo estranho na infância, quem sabe um desejo velado, inconsciente pela impossibilidade de realização do sonho, ou um traço de personalidade intocado pela análise. Outro adulto do grupo, também estreando por insistência dos filhos, atribuiu o desinteresse comum ao antiamericanismo que acompanhou nossa geração. Pode ser. Mas, diante da primeira “parada” de personagens, acenos da Minnie e do Pateta, encontro uma explicação mais simples: a intuição de que aquilo seria tolo, mesmo na infância. Sempre preferi Asterix ao Pato Donald. Com a rotina de parques se estabelecendo, porém, pareceu surgir uma motivação. Para tudo. Para a noite econômica no avião, a paisagem barra-da-tijuca de Orlando, a comida horrível. Tudo seria compensado por dois minutos e meio em uma montanha-russa radical. É preciso se superar, colocar a Sheikra no currículo, despencar na vertigem furiosa do Hulk, enfrentar a escuridão alucinada ao som do Aerosmith, Em busca da adrenalina perdida
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temer o confronto de trilhos dos Dragons, mergulhar de cabeça na Manta, ou de costas no Everest. Atrás do tal sentido, me submeti. Fomos programados para receber altas doses de adrenalina na juventude, quando deveríamos sobreviver a ataques de animais ferozes, vencer privações e estresses inimagináveis, reagir rápido ao imponderável da natureza. Agora, com vidas seguras e previsíveis (especialmente na Flórida), pré-adolescentes e jovens adultos buscam sua droga nas armações metálicas intimidadoras, na superação de limites prometida pelas novas tecnologias. Os simuladores se sobrepujam e enganam os sentidos recém acostumados à ilusão do brinquedo anterior: é preciso dissimular a realidade. Sempre. Harry Potter me acena, e sigo suas manobras ousadas em minha vassoura, esquecendo os 40 minutos de fila. Consta que o segredo do sucesso da Disney, multiplicado por outros parques de Orlando, é a fidelização. As pessoas - famílias e grupos - voltam. Por isso, além do serviço impecável, é preciso oferecer novidades de última geração. A cereja do bolo é a montanha-russa-troféu, onde todos provam sua bravura, com mais ou menos sofrimento. Descubro que a atração foi mesmo inventada na Rússia, onde trenós desciam por montes especialmente construídos no gelo. Não sei como era naquele tempo, mas hoje as únicas habilidades necessárias são a coragem de entrar no carrinho e a paciência para resistir à fila.
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Não por acaso, as montanhas-russas mais extremas fazem alusão a monstros que precisam ser vencidos, como dragões ou o abominável monstro das neves. Nós, que insistimos na busca de um sentido, teremos o consolo de ser considerados heróis ao final do trajeto. Todo o tédio do fast-food será compensado com piruetas, sacolejos, reviravoltas no estômago. Depois da condecoração de hoje, outra deverá ser conquistada no parque programado para amanhã: a maior queda livre, a maior aceleração ou a maior velocidade. Na próxima montanha-russa, sou informada, acrescentarei ao currículo o maior looping invertido do mundo, seja lá o que isso for. Nessas alturas (com o perdão do trocadilho), percebo a função da foto tirada no exato momento em que despencamos no abismo. Os heroísmos de hoje em dia precisam deixar registro. Assim como a festa não aconteceu se as fotos não foram parar no Facebook, o efêmero momento de bravura precisa de um flash para aumentar seu prazo de validade. Depois de sair do carrinho, e antes de passar pela loja de souvenires que também servem para validar a experiência, somos apresentados às nossas caretas fotografadas: sorrisos nervosos ou sofrimento explícito. No primeiro caso, compra-se a foto, a partir de módicos US$ 18. Na tal montanha do looping invertido, a personalização do “passeio” vai além da foto. É preciso oferecer novidades, lembram? Novidades de última geração, que garantam o re-
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torno anual das famílias e grupos de adolescentes. Na recauchutada Hollywood Rip Ride Rockitt, é possível escolher a trilha sonora do percurso e levar para casa a própria performance registrada em um DVD que mistura imagens externas com as caretas filmadas durante todo o tempo. Em breve, o flash único vendido em porta-retrato temático será tão ultrapassado quanto o bicho da seda ou o trem-fantasma do Tivoli Park. O que vão inventar para a próxima temporada? Prefiro não saber. Voei, trepidei, dei cambalhotas no ar, me encharquei em falsas corredeiras, agüentei horas na fila, comprei a foto de meu sorriso nervoso. Ver a alegria e o êxtase das crianças fez valer o programa, sem dúvida. Mas “o sentido” continua me escapando. Difícil compreender por que uma tarde de domingo no Tivoli deve durar agora uma semana na Disney. São os novos tempos, as novas crianças, o novo Brasil globalizado. Somente depois de sete parques, os pais podem descansar ao final. Ufa. Na noite econômica e exausta da volta, diretamente do último parque, brasileiros me repreendem por não ter arrumado tempo para compras. Era tanta bagagem de mão que o voo quase atrasa para se acomodarem os pacotes. Os preços realmente valem a pena, eu respondo, mas preferia ter arrumado tempo para garimpar um bom jantar. Aliás, trocaria minha dose de adrenalina diária por um bom jantar. Nesse momento percebo que, definitivamente, não fui “fidelizada” pela Disney. Se for para repetir um destino, que seja sempre Paris.
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Nota do Editor Marta Barcellos mantĂŠm o blog Espuminha. Rio de Janeiro, 4/3/2011
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Você viveria sua vida de novo? Por Ana Elisa Ribeiro
Saramago afirma que sim, viveria, repetidamente, ponto a ponto, sua vida de novo, da forma exata como foi. Para ser mais precisa e como dizemos aqui: “sem tirar nem pôr” ou “cuspido e escarrado” (por ora, dispenso os ensinamentos sobre a origem da expressão). E como deve ser bom ouvir isso da boca de alguém. Querido, eu faria tudo de novo. Amor, eu me arriscaria pelas mesmas sendas. Não deve ser fácil ter toda essa disposição. E talvez elas não sejam cem por cento verdade. A vida, como ela é, não passa de ficção, uma narrativa que a gente se conta o tempo todo. Quantas pessoas diriam “sim” à pergunta? Não sei entre meus parentes e amigos. Talvez meu filho ainda não possa responder. Eu mesma não juntei coragem. O que pensar? Acho que num ponto ou noutro eu remendaria uns espaços em branco. Umas tantas incompreensões ficariam destacadas e eu as reveria. Mania de revisor? O que anda errado aqui? Não sei. Não é que esteja errado. Foi desvio. Onde estava meu caminho que não tive tempo de vê-lo? Nem sempre 80
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é questão de enxergar apenas. Vá vivendo, numa levada Lobão: dez anos a mil. Mas ele mesmo já passou dos cinquenta. Vida de editor. O que a memória faz é editar. O que foi mesmo, nem mesmo a mais fina percepção consegue capturar. Finjo que sei avaliar o que fui e o que sou. Finjo mais ainda saber o que serei. E não consigo responder se faria tudo outra vez. Esta cena antes daquela. O efeito sempre é outro. E se isto? E se deste jeito? “E se” dá sempre em algo irrespondível. Mas dá gosto pensar “e se” de vez em quando. É questão que só incomoda quem não tem certeza de nada. Todo mundo? Dá conforto pensar que se tem qualquer certeza. Por que um caminho está errado? Por que a gente não se sente feliz? Só pode ser. De outro lado, Paulo Leminski, aquele kamiquase curitibano, acertava meus ponteiros: “ninguém nunca chegou atrasado”. A frase era algo que o valha, porque minha memória, avessa às decorebas, já editou o texto. Eu estava onde deveria estar, para o que o devir me desse. Assim fica mais fácil viver. Melhor do que pensar de outro jeito. Não me arrisco a dizer um “sim” muito veemente. Nem sempre. Intermitências. Lembro daqui e dali de uns desassossegos. Uns episódios, esparsos, tudo bem, mas que, provavelmente, teriam mudado tudo, inclusive (e principalmente) o lugar do ápice, a epifania e, mais, a conclusão. The end não seria este. Seria um outro, e termino por julgar: melhor? O fato é que é linear. Por mais que me deem aulas de física e me jurem que o tempo faz curvas, não enxergo com tanta nitidez o ciclo se fechar. Só depois. E aí, já era. Não adianta, Você viveria sua vida de novo?
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adianta? Quantas vezes quis ver mais adiante para ver se valia a pena? Quantas vezes essa vontade (impossível) me doeu? Quantas vezes tive uma inveja doentia das simulações de computador? Diante de uma tela, posso ver se a disposição dos quartos ficará boa ou se caberão todos os meus móveis. Não, assim não dá. Melhor ficar como estava. Que imenso desejo de que existisse uma tecla “undo”, o ctrl+z, desfazer. Se não colou, back. Inveja do “delete”, uma imensa mágoa porque ele não existe entre os escombros da minha memória. Eu apago, mas, em geral, o que minha mente faz é recontar tudo, reelaborar, de modo que nem eu posso mais confiar na narrativa dos “fatos” que penso ter vivido. Quem faria isso melhor do que um ser humano? Assisto ao Efeito borboleta e quase surto. Mais e melhor do que ele, gasto uma tarde assistindo ao Irreversível e meus dias ficam contados. E agora? Não vou mais sair de casa, pensando na importância (e no impacto) de cada pequena escolha, mesmo quando ela é imperceptível para mim. Mas se eu não sair... também estarei escolhendo um caminho. E aquela gana irrefreável que dá nas pessoas quando acontece uma tragédia? Logo que o avião cai, o rio transborda, o carro bate, a encosta cede, vêm todos lembrar das últimas palavras, que soam, então, como previsão, profecia e aviso. Bem que ele disse que queria se despedir das plantas. Ela abraçou o cachorro e disse à vizinha que não sabia se iria voltar. Minha mãe me beijou diferente hoje pela manhã. Ctrl+z. 82
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Eu não sei se viveria tudo de novo, deste jeitinho. Provavelmente quereria fazer o caminho que aparecia logo ao lado, para ver onde iria dar. E se pudesse concluir algo, faria ao gênio da lâmpada aquele terceiro pedido. Eu compraria aquela passagem? Naquele dia? Para aquele lugar? Eu diria aquele sim ou aceitaria aquele convite? Eu daria ou não daria as mãos? Recusaria aquele beijo? Leria aquele capítulo? Furaria o sinal? Beberia mais aquele gole? Deixaria de sair? Eu acho, no final, que não saberia mesmo me repetir. Belo Horizonte, 18/2/2011
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Como começar uma carreira em qualquer coisa Por Ram Rajagopal
Não acredito muito em receitas prontas para vida. Para ser sincero, uma execeção é meu mapa astral indiano, que prevê que eu serei um recluso famoso em uma montanha do conhecimento ou um milionário qualquer. De vez em quando é bom relaxar na sabedoria de que posso ser um recluso numa montanha do conhecimento, já que aprender é uma de minhas atividades preferidas. Pois bem, meus amigos até me perguntam por que procuro aprender tanto. Será que é para encher currículo? Acho que não. Afinal, não faria o menor sentido abrir um livro qualquer que acho interessante e ler até o final simplesmente porque desejo incrementar um currículo. Eu o faço porque é uma das atividades pela qual mais tenho tesão. Pois então, se você vai começar qualquer coisa na vida, comece algo por que você tenha tesão. Um aluno do curso em que fui assistente de ensino veio me perguntar quais cursos da universidade deveria fazer. Perguntei a ele quais as áre84
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as da engenharia eletrônica que mais o empolgavam. Seriam as formulações matemáticas de sistemas lineares ou as incríveis técnicas para simular circuitos em computador? E ele me respondeu que tudo lhe era indiferente. Afinal, o que ele mais gostava era de História, línguas e de tocar violão clássico persa. O único conselho que lhe dei é: investigue mais então essas coisas, mesmo que, no início, 80% do seu tempo ainda esteja voltado para o curso original... (Uma oportunidade que apareceu, anos mais tarde, para ele foi a de trabalhar com aplicações de eletrônica em música, num centro recém-fundado...) O que aprendi com alguns dos grandes mestres de Berkeley é que o melhor é nunca pensar no fim da vida. Não estou falando em pensar na morte. A morte é um fato que deve ser eventualmente encarado e aceito. Mas, sim, de pensar no fim da carreira, na glória, na fama. Nada disto se aproxima do prazer que é fazer o que se ama. Daniel Mc Fadden, prêmio nobel em economia e professor da minha universidade, sempre diz que nunca esperava ganhar prêmio algum, que o próprio projeto que lhe deu o Nobel foi algo acidental e não era uma de suas prioridades. Teve até dificuldades para encontrar o que pesquisar. O professor John Doyle, de Caltech, e um dos pioneiros em teoria de controle, penou na universidade até encontrar o que gostava. Um dos grandes empreiteiros de uma indústria de bilhões de dólares, a análise de circuitos por computador, Joe Costello, contou sua história pessoal que inclui uma breve Como começar uma carreira em qualquer coisa
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temporada no programa de pós-graduação de Berkeley, até concluir que fazer pesquisa acadêmica não era a dele, mas que levar a pesquisa até o mercado era algo que sempre lhe dera prazer. Depois de persistir por muitos meses (muitos mesmo) procurando algo para levar ao mercado, se envolveu com CAD. Pois aqui está o segundo elemento importante para alguém que quer fazer o que gosta: encontrar seu próprio caminho. Encontrar seu próprio caminho, ter tesão. Mas e se nada disso estiver claro? Como pagar as contas do fim do mês? Minha mãe sempre me disse: não se comprometa com o que você não quer. É possível viver com bem pouco por mês, mas é impossível se viver com pouca satisfação. Para sair do marasmo é necessário explorar e tomar riscos. Converse com pessoas que parecem fazer aquilo que você acha interessante. Em 1998, sendo aluno na UFRJ ainda, enviei muitos e-mails para o renomado pesquisador da IBM Jean Paul Jacob para que me convidasse para uma visita ao centro de pesquisas onde trabalha. Nem eu acreditei quando o convite apareceu, e passei um dia inteiro conhecendo pioneiros que inventaram o mouse, o hard disk e os bancos de dados. No fim do dia, o renomado pesquisador me disse: “te convidei aqui porque você é o cara mais chato e persistente que encontrei! E nunca se sabe o que vai inspirar um indivíduo como você”. Até hoje é um grande aprendizado ouvir suas idéias sobre tecnologia e o futuro da computação. Já fiz muitas loucuras assim.
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Algumas deram certo, outras, não. Mas aprendi bastante, que sempre foi o que me dá maior tesão. Então o infame terceiro elemento da receita é “criatividade”. Não tenha medo de ser criativo. Nem mesmo de acreditar em suas idéias e gostos, por mais mal formulados que lhe pareçam. Algumas coisas muito boas da vida começam num impulso. Mas nenhuma encontra fruição sem persistência. Criatividade não é só “ter idéias” como se propaga por aí. É também ter persistência para levar uma idéia a cabo, até ela dar certo. É também ter muitas idéias para poder escolher a melhor delas para persistir... Durante minhas andanças pelo mundo da tecnologia, conheci um indiano que (co-) fundou cinco empresas. Encontrou o sucesso na sexta empreitada. É um cara que tem vinte idéias por ano. Mas formula todas elas, e repete para sua esposa, que seleciona com carinho aquelas que ela, ao menos, acha compreensíveis... Ser criativo é também saber usar suas idéias naquilo que você faz. Meu “orientador alemão” Lothar Wenzel, como chamo um dos pesquisadores mais geniais que já conheci, sempre me disse que até mesmo a tarefa mais banal de engenharia pode ser abordada com vigor e criatividade. E que coisas incríveis resultam disso. Uma pessoa teve a idéia de ordenar quase aleatoriamente a ordem de visitas de um serviço de distribuição de alimentos para aposentados incapacitados. Baseado em sua intuição experimentou mudar uma metodologia que estava instituída há muito tempo. Uns anos mais
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tarde, professores demonstraram que a ordem quase aleatória escolhida é bem próxima da melhor ordem possível... O mundo clama por criatividade e inovação. Muitas coisas só estão esperando quem as faz, se mexer, sair do marasmo, para encontrar uma nova solução. Mas nunca devemos nos esquecer de que, para inovar, é necessário aprender como fazer o que se faz com competência. Para isso, é preciso se interessar pelo assunto minimamente, seja o que for. Ser curioso. Estudar, ler, e, o mais importante, trocar idéias com pessoas mais experientes, sem no entanto tomar as idéias delas como sendo definitivas. Para trazer o novo à tona, não é necessário ignorar o velho. O melhor é quando se entende o que existe, e quais as suas limitações, para então pensar num novo jeito de fazer. Tudo que falei até aqui parece óbvio e abstrato. Óbvio é mesmo. Abstrato, nem tanto. Mas se você quer um conselho bem prático: que tal investir aquela grana para prestar mais um concurso público – que você só quer por causa do dinheiro – para fazer um curso em algo que você gosta? Senão, porque não investir numa viagem para algum lugar? Necessidade de talento (de repente, seu talento) não falta neste mundo. E você não precisa ser o próximo Einstein. Até mesmo se você tem talento para falar, para uma boa conversa, por que não se dedicar a ensinar, por exemplo, português? Deixei para o finzinho aquilo que acho que foi o conselho mais importante que já me deram, e me deram muitas vezes: não se preocupe muito com o caminho que vai seguir 88
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na vida. Invista em você mesmo, até descobrir o que você ama fazer. Quando descobrir, se agarre naquilo. Jamais espere pela aprovação da sociedade no que você faz. Nunca se deixe sancionar por ninguém. Fazer os famosos “sanity checks” (testes de sanidade) são importantes de vez em quando, mas quando se começa alguma coisa, o melhor é deixar a sanidade um pouco de lado e seguir o coração. Não estou propondo nada novo, nem descrevendo um mapa para seguir para o sucesso. Como disse um outro grande professor meu: “acabei fazendo este trabalho porque foi o que descobri que gosto de fazer. Imagina se tivesse feito alguma outra coisa. Talvez ganhasse algum reconhecimento rápido, mas para que me escravizar baseado na opinião dos outros?”. Ele acabou de ganhar uma das medalhas de mérito mais importantes de sua área, e é amplamente reconhecido por ser um dos melhores orientadores acadêmicos norte-americanos. E mais uma coisa, de vez em quando faça coisas sem sentido. Compre livros cuja capa lhe agrada, mas o tema parece impenetrável. Se você é aluno, vá para outro departamento e assista a uma aula que lhe parece interessante no site da universidade. Experimente. A minha avó, que é uma das pessoas mais ativas que eu conheço, sempre me disse para nunca deixar nada para amanhã. E sempre complementou: mas também não se condene pela pressa... Um grande mestre espiritual indiano confidenciou comigo, uma vez, “o melhor momento da minha vida foi quando estava descobrindo estas novas experiências”. Nem mesmo todo reconhecimento e Como começar uma carreira em qualquer coisa
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fama que ele tem mundo a fora, parecem ter feito esquecer a experiência sensacional que é experimentar, descobrir, errar, experimentar mais um pouco, e assim por diante... Nunca é tarde para se esquecer a carreira, e começar a viver suas idéias. Post Scriptum Enquanto escrevia este texto, pensei num amigo meu aqui em Berkeley. Ele deixou o doutorado para abrir uma pequena loja de modificações de bicicletas. Hoje, usando um software que ele mesmo desenvolveu, está projetando peças inovadoras para suas bicicletas. Tem patentes e tudo. Outro dia, eu o encontrei na sorveteria, e ele comentou comigo: “como é bom estar sujo de graxa de bicicleta!”. Isto, sim, é expressão de prazer. Post Scriptum II Para você ver como nada é impossível, este autor está envolvido com um projeto de aprender a tocar violão. Quando começou, não sabia nem contar as batidas de uma música... Mas, graças ao apoio de vários outros violeiros de plantão, hoje ele já é capaz de tocar uma música orgulhosamente mal. Se isto é possível, hoje ele acredita que quase tudo é possível...!
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Nota do Editor Leia também “A ousadia de mudar de profissão”. Berkeley, 24/4/2006
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Textos movediços Por Carla Ceres
Vou te contar uma piada: Um cowboy e seu cavalo entram num bar. O cavalo pede um uísque e o cowboy pede um copo de leite. Espantado, o barman comenta: “Que estranho! Cavalo bebendo uísque e cowboy tomando leite!” O cavalo responde: “Eu posso beber à vontade. É ele que está dirigindo.” Quando nos contam uma piada, podemos gostar ou não, por uma série de motivos. Gostamos porque foi bem contada, porque surpreendeu, porque se refere a algo especialmente significativo para nós... Deixamos de gostar porque contaram mal, porque adivinhamos o final, porque nos ofendeu... Dizem que ter senso de humor é sinal de inteligência. Nem sempre. Há bobos alegres que riem de qualquer coisa a ponto de tornar-se inconvenientes. No outro extremo, algumas pessoas têm especial dificuldade para entender piadas. Em geral, parecem estúpidas ou ranzinzas. Desconfio, no entanto, que exista mais um possível motivo: a inabilidade para interagir com o texto. 92
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Todo texto, seja escrito, narrado ou encenado, exige a participação do leitor/espectador para completar-se. O texto propõe uma viagem. Ao leitor cabe embarcar. Se alguém nos diz que vai nos contar uma piada, ficamos preparados para aceitar afirmações inverossímeis como se fossem verdadeiras. Tudo bem, cavalos não pedem uísque em bares, mas, como é uma piada, aceitamos essa informação e esperamos o desfecho, tentando adivinhá-lo. O texto é nosso guia. Ele nos conduz. Nós o acompanhamos. O bom texto é desafiador, sem ser indecifrável. O leitor experiente aceita as verdades do texto e as acompanha passo a passo. Quem não entende piadas também costuma ter problemas com textos relacionados à fantasia. Se gostar de um filme em que aparecem fantasmas, é porque acredita que eles existem no mundo real. Um dos sujeitos mais sem senso de humor que conheci estranhava que seus amigos se assustassem com o filme Sexta-Feira 13, mas morria de medo de O Exorcista. Seu comentário era: “Eu não consigo sentir medo do que não existe. O Jason não existe, mas o demônio existe sim.” Em outras palavras, ele não conseguia embarcar na ficção. É na infância que aprendemos, gradualmente, a separar fantasia de realidade. É também nessa fase que contos fantásticos nos ensinam a suspender voluntariamente a descrença para acompanhar uma história interessante. Adultos que só se interessam por documentários e não-ficção talvez não tenham praticado a suspensão da descrença o suficiente quando crianças. Textos movediços
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Suspensão da descrença é uma expressão bem conhecida entre estudantes de literatura, mas deveria ser explicada aos estudantes de primeiro grau. Só assim formaríamos adultos capazes de compreender textos complexos. Um texto simples, por mais fantasioso que seja, estabelece claramente quais são as leis que regem seu universo. Podemos confiar nesse texto. Seus personagens são coerentes e as dúvidas se resolvem no fim. Nos textos complexos, precisamos confiar desconfiando e seus conflitos talvez jamais se esclareçam. Dom Casmurro é um bom exemplo. O leitor despreparado reduz o romance a uma questão típica de telenovela: traiu ou não traiu? Ainda insatisfeito com a dúvida, escolhe a alternativa mais provável de acordo com seus conhecimentos e experiência de vida. Jamais lhe ocorreria duvidar da imparcialidade do narrador, questionar seus preconceitos e motivações inconscientes. Por falar em inconsciente, o que acontece quando o texto acompanha a história de um personagem oscilante entre realidade e alucinação? Em geral, o leitor/espectador se livra da incerteza, escolhendo em que acreditar mesmo sem motivos suficientes para isso. A maioria dos espectadores de Cisne Negro, por exemplo, acredita até o fim que a mãe da bailarina Nina Sayers é terrível com a filha. Poucos levam em conta que a moça é doente mental e que a mãe nos é apresentada do modo como a filha a vê. Sem dúvida, é mais fácil recorrer ao batido tema da bruxa má perseguindo a princesinha. Mais fácil do que admitir que aquela mulher sofrida 94
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talvez esteja apenas tentando proteger a filha de uma doença que poderia levá-la à morte. Textos complexos podem ser interpretados de várias formas, de acordo com a experiência do leitor. Porém a leitura também depende da época. A Volta do Parafuso, de Henry James, foi lido por muito tempo, apenas como a história de uma jovem governanta que vai trabalhar em uma casa mal assombrada. Levou décadas para os leitores desconfiarem de que a moça talvez sofresse de alucinações. Hoje em dia, causa espanto que alguém leve a sério a interpretação sobrenatural para os acontecimentos do livro. Por essas e outras, podemos concluir que os textos também nunca sabem se podem confiar nos leitores. Nota do Editor Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres. blogspot.com/ Piracicaba, 21/4/2011
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As mídias sociais e a intimidade inventada Por Noah Mera
Um dos fenômenos que mais preocupa sociedade em relação à internet é a absoluta falta de privacidade reinante nos domínios das terras sem lei do mundo virtual. A cada crime cometido por freqüentadores de sites de relacionamento ou alimentado por informações de redes sociais, ou mesmo a cada escândalo provocado pela indiscrição adolescente no mundo virtual, voltam à baila as discussões sobre nossa exposição na internet. A literatura de ficção cientifica sempre preconizou um ciberespaço como simulação da realidade ou do próprio “espaço”. A vantagem do ciberespaço está justamente no poder de anular o espaço físico. Antes de abduzir a mente do usuário me parece mais correto afirmar que a internet tem uma tendência em abduzir nossas vidas para dentro das cada vez mais onipresentes 96
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mídias sociais. Geolocalização, fotos, mural de comentários, sites que mapeiam e compartilham seu gosto em música, filmes, séries, comida... quase sempre acessados através de um mesmo avatar. Alguém mais alarmista diria que a vida tornou-se uma app do Facebook.
A Intimidade Inventada Apesar deste quadro que parece realmente preocupante, não creio que a velha metáfora de 1984, onde somos todos colocados ao mesmo tempo como “cidadãos” e “Big Brothers”, seja válida. Se sim, nossa cultura nos desperta uma característica cada vez mais voyeurista (um caminho que se inicia na cultura da celebridade, antes da internet) também é claro que sabemos estar sendo vigiados e que nossas atualizações têm seu público. E é nesta palavra que parece residir a chave para entender as novas formas de sociabilização que surgem da cultura das mídias sociais. Neal Gabler identifica no livro Vida: O Filme (lançado em 1999 – alguns anos antes da explosão das redes sociais) um movimento que se desdobra da sociedade do espetáculo dos situacionistas. Para Gabler o consumo de imagens do situacionismo chegou a um ponto em que o público geral passou a “comprar” e representar pedaços de suas próprias vidas, como se houvesse uma camada de ficção sobreposta à vida real. É o componente emocional do valor agregado de marketing levado às últimas conseqüências. As mídias sociais e a intimidade inventada
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O livro ainda discorre sobre como a cultura da celebridade, com suas revistas de fofoca e programas sensacionalistas gerou uma espécie de entretenimento que o autor chama de “lifies” – os filmes-vida – e é exatamente um filme-vida que todos tentamos representar ao assumir posturas, repetir bordões e consumir sob influência das significações incorporadas aos produtos. O que são as mídias sociais senão o veículo perfeito para a veiculação dos filmes-vida? Veja que a privacidade diz respeito à vida intima e depende da disposição em compartilhar estas informações assim, e basta observar nossas timelines para comprovar esta afirmação: ficcionalizamos a realidade e como a infelicidade é proibitiva nas redes sociais, divulgamos apenas os melhores momentos das nossas vidas. Uma intimidade selecionada que pode, sim, ser aberta a um grupo maior, público de amigos voyeurs/consumidores/espectadores de nossos mínimos espetáculos... Curitiba, 11/5/2011
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Felicidade Por Daniel Bushatsky
Era um belo dia. De cinema. Pessoas na rua. Ônibus no horário. Bondes idem. Asfalto perfeito. Compras em dia. Crianças na escola. Marido no trabalho. Era um belo dia. Mas algo a incomodava. Faltava um dia para a viagem do marido. Já havia repassado a lista de compras, limpado a casa, dado comida ao cachorro e ido à academia. Ocorreu-lhe quanto tempo passava na ginástica todos os dias, as conversas fúteis com as amigas atletas e a pressão social pela magreza. Quarenta anos nesta rotina, com felicidades e tristezas esperadas para uma senhora bem casada, sem grandes ambições, com filhos crescidos e bem-sucedidos e netos de comercial de televisão. Seu principal passa tempo era a farmácia. Há lugar melhor para saber da evolução da indústria e da felicidade e tristeza das pessoas. Um lugar completo para matar a angústia e tranquilizar a mente. Enfim, uma vida sem grandes percalços, naquele país neutro, chamado Suíça. Felicidade
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Seu marido, gerente geral de uma empresa distribuidora de chocolate, viajava uma vez por mês para a matriz, a 1 hora de trem de Zurique, sempre na primeira terça-feira do mês. Era amigo e afetuoso, mas já não praticavam outro exercício que não a comida farta e vinho francês há tempos. Carinhoso, ele sempre elogiava sua forma física, seu desprendimento de roupas e jóias caras e sua especial atenção aos filhos e netos. Mal poderia ele imaginar o segredo de toda primeira terça do mês. Nestes dias ela se arruma por inteiro. Coloca um longo vestido preto, um casaco de pele, se muito frio, seu melhor colar, relógio e pega do armário sua única bolsa de marca. Ficava pronta exatamente às 10h30, mesmo horário que o marido ligava avisando que a viagem de trem não atrasara, tinha sido tranquila e que ele chegava, provavelmente, às 18h30 para jantar. Era sempre nesta ordem, sempre estas frases e sempre este horário. Saía de casa, pegava o bonde para o centro e passeava pela rua principal. Olhava as novidades e consumia as vitrines. Pensava se o marido ficaria muito triste com o que ela fazia naquelas terças: sonhar com um mundo que não tinha. Ou se ficaria triste se ela entrasse em uma daquelas luxuosas lojas e se desse um presente. Não qualquer presente, mas o presente, algo que ele, comedido com dinheiro, para dizer o mínimo, nunca lhe dera. Ela apostava que as pessoas reparavam sua elegância ul100 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
trapassada e pensavam que aquele colar deveria ser bonito em alguma época. Mas ela não podia atrasar. Sempre que se via distraída, apressava o passo, colocava a mão na bolsa para conferir as moedas e chegava ao lugar combinado, uma loja de doces chamada Sprüngli. Ela tinha dois andares. No primeiro, vários chocolates a preços estrondosos e outras guloseimas que fariam qualquer terráqueo ficar de joelhos. No segundo andar, um salão de madeira nobre, mesas pequenas e garçonetes simpáticas e orgulhosas de trabalharem na melhor doceria suíça, várias vezes campeã de concursos internacionais, cujo objetivo era atestar que o melhor chocolate suíço era realmente suíço. Pedia uma mesa para dois e cumprimentava as garçonetes, que a conheciam e no íntimo a invejavam. Uma mulher daquela idade, fazer o que ela fazia, não era fácil, pensavam, sem certeza e sem convicções. Para ela era um sonho estar lá. Quando pequena, os pais controlavam o chocolate e outras coisas mais, e, quando grande, as amigas controlavam o chocolate e outras coisas mais. Sentava, olhava para o lado, colocava a bolsa na sua frente e pedia o cardápio. Já sabia o que queria, mas não custava ver se havia alguma novidade no cardápio que não mudava há mais de 30 anos. Escolheu um sanduíche de frango, com molho tartar e batata rosti. Para beber, uma Coca-Cola Light, para não abusar. Felicidade 101
Nunca conseguia comer sem achar que a estavam observando. Nunca achava que deveria estar fazendo aquilo. E se o marido chegasse antes? E se ela não conseguisse disfarçar o prazer daquele dia sem responsabilidade, sem ninguém dizendo o que ela deveria fazer ou as amigas atletas contando calorias, naqueles almoços chatos de toda quinta-feira? Pior: e se ela encontrasse com o médico dela (e do marido)? Que bronca. Que vergonha. Que decepção. Como ela poderia estar comendo tudo aquilo? Mas, de repente, ele chegava. Devagar, sendo invejado por todos, mas principalmente pelas mulheres de 30 anos, que o olhavam cobiçando, ciumentas daquela dádiva inalcançável e proibida. Como ela ousava? Na mesa, só dava ele. Grande e bem decorado, não lhe faltava atributos para dar felicidade a quem quer que seja. Era o momento de decidir trair ou não. De se dar felicidade ou não. E ela, mesmo sabendo da contravenção, não resistia... pegava uma pequena colher, abria um sorriso encabulado, não fitava ninguém para ninguém lhe descobrir, e inseria, com cuidado, a colher naquele mousse, e deliciava-se com a qualidade do chocolate por um bom tempo. Recuperada, sorria com ar alegre de criança aprontando e decidia-se novamente a fazer aquela arte. Era provar ao mundo que eles estavam errados e que ter um segredo não só não faz mal a ninguém, como é o que a deixava viva! 102 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
Pegava as moedas, sem contar, e pagava a conta. Levantava e às 18h30 estava pronta para dar o jantar ao marido e a sonhar com sua próxima viagem. São Paulo, 14/2/2011
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A aura da música Por Luiz Rebinski Junior
Confesso que demorei muito pra entender cinco por cento do que li daquele sujeito alemão chamado Walter Benjamin. Tão cruel quanto tentar fazer um semiadolescente desvendar o mistério da (provável) traição de Capitu, é mandar um estudante de comunicação xerocar um capítulo de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Mas, se o curso de jornalismo não me foi de muita serventia, a biblioteca da faculdade onde estudei me prestou grande serviço. Morei lá por um tempo. Passei mais horas estirado nos sofás que rodeiam as estantes do que nos bancos da sala de aula. Desbravei aleatoriamente aquelas estantes, fazendo listas de livros - “a ler” - sem nenhum critério. A maioria dos livros não indicada pelos teóricos da comunicação. Ainda bem. Mas entre Cem anos de solidão aqui, O processo ali, arranjava um tempinho de meu ócio criativo para Max Weber, José Marques de Mello e os amiguinhos de Benjamin, os homens da tal Escola de Frankfurt, que todo mundo da comunicação já xerocou, mas poucos, pouquíssimos, leram. E um punhado ainda menor entendeu o que leu. Faço parte dessa leva. 104 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
Mas um conceitozinho ficou. Aquele que diz que a arte do século XX perdeu a aura, não tem mais o mesmo valor do que aquilo que foi feito em escala não-industrial. Realmente não sei se o senhor Benjamin está certo ou errado, se a simples reprodução de uma obra tira dela o seu valor e se isso faz de Andy Warhol menos artista do que Caravaggio, por exemplo. Mas, pensando nesse conceito, me veio à cabeça a questão da crise do disco. Para quem foi acostumado a valorizar o que ouvia, essa feira livre que virou a música é, no mínimo, estranha. Eu sou do tempo em que se gravava fita cassete. Isso não faz muito tempo, mas a rapidez da tecnologia é tamanha, que um inocente K7 hoje já soa como piada. Então eu vivia atrás de amigos que tivessem grandes acervos de LPs para escutar artistas que conhecia por meio das revistas de música. Isso quer dizer que, para eu escutar determinado disco, era preciso, no mínimo, gastar sola de sapato. Às vezes até mesmo implorar para um amigo não muito próximo a gravação de um disco raro, que poucos tinham. Cheguei até a pagar para que me gravassem um disco em uma fita. Pura humilhação em nome da música. Então, pra mim é muito estranho ter a discografia de uma banda ao meu alcance sem nenhum esforço. Claro que não estou reclamando de ter acesso aos discos que, antes do download, eu sonhava em escutar. Não é isso, baixo sem dó aquilo que me interessa. Sei que tem o lance dos direitos autorais, que é uma questão complicada, mas baixo música com o mesmo espírito com que gravava A aura da música 105
minhas fitas cassetes, então não me considero um criminoso ou pirata. Uma questão de democracia cultural, pra mim. Também não estendo uma barraquinha na esquina para ganhar grana com os discos que pego na internet, no máximo gravo um cedezinho para um amigo. É muito bom ter a História da música ao alcance das mãos, mas a verdade é que isso banalizou a música. Dia desses um figurão da indústria disse que a música havia virado um assessório pra iPod. Eu penso nisso desde que comecei a escutar música no novo formato e queria ter verbalizado isso antes do tal sujeito. Então, se fosse pra resumir o que virou a música na era digital, acho que essa frase definiria bem o que tá acontecendo. Um disco hoje é apenas um cartão de visita de um músico ou banda. Uma espécie de portfólio bem custoso. Já tive a oportunidade de acompanhar a gravação de um disco de uma banda independente. Em geral, os caras tocam nos piores moquifos por um ou dois anos até economizar a grana necessária para fazer o disco. Quando o trabalho fica pronto, a banda o distribui de graça para um monte de gente em troca de uma hipotética divulgação. Os discos vendidos em shows não pagam a cerveja nem o custo do transporte dos equipamentos. E com a velha guarda da música nacional, aqueles acostumados com o conforto das antigas gravadoras, não é muito diferente. Nando Reis, dia desses, se queixava, dizendo que o
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artista se ferra pra fazer um disco e, quando fica pronto, ninguém compra/escuta. Mas então, diante dessa zona toda, me pergunto se as pessoas gostam menos de música hoje do que há vinte anos. A venda de disco tem relação com o consumo? As pessoas continuam amando música, mesmo não querendo mais pagar por ela? Eu desconfio que as pessoas ainda amem a música, só que mantêm uma relação diferente com ela, menos apegada. Só pode ser. As pessoas não querem mais saber quem foi o saxofonista que tocou com Van Morrison em It’s too late stop now, o discaço ao vivo do irlandês. Pouco interessa que foi gravado em 1974 com a Caledonian Soul Orchestra, formada por dez músicos excepcionais. O cidadão quer mais é achar “Gloria” rapidamente e jogá-la na vala comum de seu iPod, mesmo que corra o risco de deixar para trás canções ainda mais antológicas. O rito da música parece que ficou reservado àqueles que não se iniciaram com o download. E isso não tem nada a ver com aqueles caras mais radicais, que só escutam LPs e são ratos de sebo. Qualquer piá de bermudão e camisa de flanela nos anos 1990 queria ter os discos do Nirvana. Ou pelo menos parte deles. Mas hoje, se um emo pudesse escolher, pagando pouco, entre uma pasta com músicas no computador e uma estante com CDs, o que ele escolheria? Também acho que a culpa é da própria indústria, que deu um tiro no pé quando extorquiu os consumidores com seus preços criminosos. Quando quis recuar, baixando
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seus produtos, já era tarde. Talvez hoje a questão seja irreversível. Mesmo que os discos sejam vendidos a preços justos, não sei se voltariam ao patamar de vendas do passado. Mas acho que só a questão da grana não explica essa espécie de revolução social que se abateu sobre a música. Há algo que não nos foi explicado ainda. E que talvez só saberemos o que é no dia em que essa nova onda passar. Para ir além Leia também “Para mim e para você, o CD teve vida curta”. Curitiba, 26/1/2011
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O preconceito estético Por Guilherme Montana
Eu não me lembro do clima, talvez tenha chovido naquela tarde. Este dezembro, em Brasília, tem feito uma estação diferente a cada dia. Talvez tenha chovido mesmo, pois eu estava de carro, e não de bicicleta, como de costume. Durante aquela tarde, eu deveria executar uma simples tarefa. Reabastecer o guarda-roupa, coisa que homens só precisam fazer, quando precisam, uma vez por ano, e calibrar a estante “economia”, uma seção da minha biblioteca a que deveria ter dado mais atenção em anos formadores. Adquirir roupas e livros era a tarefa. Acreditava que, por economia de tempo e paciência, o lugar onde eu os encontraria seria um shopping center. O raciocínio estava certo; mas a hora, errada. Dezembro. Gente por todos os lados comprando vale-presentes para amigos ocultos, meias e cuecas para maridos, chocolates (e vale-presentes) para esposas. Uma fauna variada e numerosa, lotando corredores, elevadores, lojas – e enchendo a paciência de vendedores, que, por sua vez, enchem a dos clientes. Nem menciono as praças de alimentação, o círculo mais tenebroso de todo inferno center. O preconceito estético 109
Mesmo assim, paciência era o que eu mais deveria ter. Lá estava eu, flanando por entre vários tipos, sem pressa, observando vitrines, conferindo preços. Mochila às costas para carregar as futuras compras, água de côco à mão para combater a secura. A diversidade que perambulava pelo shopping era, de alguma maneira, atraente. O mosaico humano é interessantíssimo. Um senhor perguntava ao filho, por telefone, qual era “a cor predileta da sua mãe” – ele observava uma vitrine de lingerie. Um casal gay de rapazes trocava beijos enquanto a atendente do quiosque de pretzels, sorrindo um tanto envergonhada, tentava lhes entregar o pedido. Uma senhora, aparentemente setuagenária, estampava uma colossal interrogação no rosto enquanto o vendedor colocava, um ao lado do outro, patins cor de rosa sobre o balcão. Vestidas como atrizes de Sex and the City, duas moças, de aparência balzaquiana, passaram por mim, uma delas exalava um perfume conhecido, e que me dá alergia, enquanto a outra dizia “... pois eu prefiro o Vitor Belfort...”. Em frente à loja de uma telefônica, a filha pré-adolescente instruía o pai sobre qual celular ele deveria comprar, tinha de ser um “bom pra quem gosta de viajar” – não achei redundante a especificação que ela deu ao celular, que é um equipamento portátil de comunicação à distância, porque foi a última coisa que ouvi antes que entrassem na loja –, mas jamais saberei a conclusão daquele raciocínio. Nem saberei se o marido comprou lingerie para esposa, e de que cor. Nem se a senhora na loja de esportes compraria os patins para alguma neta, o que seria clichê, 110 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
ou se para ela mesma, o que eu acharia, além de clichê, o máximo. Nem se os rapazes gostaram do pretzel. Nem se as balzaquianas praticam alguma arte marcial. Estas cenas recortadas, contudo, é que são a graça. Gosto da diversidade que algumas aglomerações proporcionam, ainda que observada em tão inquieta época do ano e no mais exasperante dos lugares. Mesmo assim, a missão ia sendo cumprida sem atropelos. Já havia passado por algumas lojas, comprado ali, despistado um vendedor irritante acolá. Então, quando entrei numa sapataria, me deparei com um espécime que há tempos não via e pensava que já estivesse sob ameaça de extinção. Eu, com meus próprios olhos, vi, à minha frente, respirando, uma mulher feia. Inspirei fundo, expirei longo. Tomei um gole de água de côco. A feiúra hipnotiza. Fiquei olhando, atônito. Ouvi um vendedor se aproximando. Ele me perguntou o que procurava, se algum modelo ou marca específicos. Eu lhe disse, para me livrar dele, que queria um John Lobb, “qualquer modelo de tamanho 41”. Duvidava muito que houvesse John Lobb Bootmaker naquela loja, mas ele partiu, muito solícito, para procurar. Não sei por quanto tempo procurou, uma dúzia de minutos, talvez mais. Mas isso não importava, porque eu fingia esperar por ele. O que eu queria mesmo era observar o milagre, aquele fenômeno, à minha frente, a mulher feia. Hoje, relembrando aquele momento, não duvido que tenha ficado sob a vigilância das câmeras de segurança. Um jovem solitário, aparentemente em transe, carregando uma O preconceito estético 111
mochila nas costas, olhando (olhando?) fixamente para uma fêmea. Não duvido que alguns compradores, ao checar o interior da loja, tenham desistido de entrar porque me viram: eu, de olhar vidrado, absorto, impávido, assustador. Também não descarto a hipótese de que os demais clientes e os outros vendedores tenham se sentido, no mínimo, incomodados com a minha presença. Mas tenho certeza de que ela, a mulher feia, nem me percebeu. Ainda bem. Lá estava, a feiúra. Jamais conseguirei descrever. Não saberia dizer a idade da criatura. Até porque feiúra não tem idade. Beleza também não. Também não sei a cor dela. O que também não importa, porque tanto a feiúra como a beleza não têm cor. Tento dimensioná-la e achar a altura dela, mas me perco, a sinapse não vem. Já vi mulheres feias mais altas e mais baixas que ela. E já vi belas de todas as alturas. Penso na cor do cabelo, na cor dos olhos, coisas que eu possa descrever para que você tenha uma noção de como era a figura. Mas quando tento digitar a cor com que minha mente colore a lembrança, ela muda; então tento digitar a nova cor, e ela muda novamente. Feiúra não tem cor. Mas eu e você já vimos a beleza sob todas as cores, alturas, formas, idades. Nós vivemos, nos termos de Umberto Eco, o politeísmo da beleza. A mulher feia foi embora. Não lembro se carregava sacolas. Nem consigo descrever como se vestia. Ela sumiu na multidão de compradores. Neste momento, voltando à realidade, me apareceu o vendedor, dizendo que não havia “a
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marca que o senhor pediu”. Agradeci, lhe desejei boas festas, saí andando lentamente em direção à livraria. Nota do editor Guilherme Montana mantém o Montana, Blog. Brasília, 29/12/2010
O preconceito estético 113
Como escrever bem – Parte 1 Por Marcelo Maroldi
Escrever bem não é uma das tarefas mais simples dessa vida, isso é fato, mas, de modo geral, escrever corretamente é algo acessível a todas as pessoas praticamente. Deixando de lado os fatores sociais e econômicos, escrever, pelo menos de maneira adequada, depende de uma série de fatores, que, normalmente, podem ser conseguidos individualmente, sem dependência de mestres ou incentivos de qualquer natureza. Evidentemente, a habilidade de combinar palavras, aliada a capacidade de inventar (ou narrar) histórias e descrever cenários interessantes são bastante pessoais, porém, podem ser desenvolvidas e treinadas. Felizmente, ninguém está fadado a escrever mal toda a vida... Não pretendo fazer nenhuma espécie de manual de boa escrita ou de como se tornar um escritor, até mesmo porque não saberia como fazê-lo. Para isso, basta procurar na web que há inúmeros textos desse tipo, estilo manual de redação para vestibulandos (aliás, geralmente péssimos, pois, quase sempre não parecem considerar fatores fundamentais). De114 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
sejo, entretanto, explicar a minha visão de como evoluir no assunto e de como criarei meu filho para que aos 18 anos ele não precise ler manuais de como escrever bem para fazer a redação do vestibular, se ele quiser prestar, a propósito. Antes de entrar nas Maroldicas, convém inicialmente oficializarmos a separação entre os tipos de escrita, afinal, escrever para um blog não é similar a escrever para o New York Times, assim como escrever para o saudoso Notícias Populares não é como escrever um livro. Pretendo abordar todos esses tipos de escrita, se possível, estendendo-o até as colunas futuras, se o editor desse Digestivo não me der o bilhete azul antes.
Como escrever bem, parte 1 – Antes de começar a escrever... Nenhum humano nasce escrevendo, parece. Logo, deve existir algo que ocorre entre a saída do útero materno e o recebimento do Pulitzer. Bem, eu não sei o que é esse algo, mas posso chutar. Evidentemente, há casos extremos em que percebemos nitidamente que o escritor é um gênio, o que significa que o cérebro dele foi concebido para fazer aquilo – escrever – melhor do que as demais atividades (e, portanto, melhor que as demais pessoas). Esse tipo de escritor não me interessa pois é assunto da ciência, ele não é um cara qualquer. Interessa-me sim o escritor comum que escreve bem e que é igual a mim, e que deve ter sido “treinado” para isso. De modo geral – e já até demorei demais para falar isso – Como escrever bem – Parte 1 115
essas pessoas lêem muito. Diariamente. Incessantemente, às vezes. Na minha opinião, qualquer tipo de leitura treina o cérebro. Portanto, se você não se importar em treiná-lo apenas com vocabulário e linguagem web, leia apenas blogs. Se você não se importar em treiná-lo em frases triviais com apenas 3 ou 4 palavras, leia gibi. Mas, se você quiser um pouco de tudo isso, leia de tudo, mas privilegie as pessoas que escrevam bem, pois elas podem te ensinar mais sobre como escrever do que os que escrevem não adequadamente. Está bem, está bem, eu disse o óbvio agora. Mas, então, porque as pessoas não fazem isso? Um dia conheci um rapaz que fazia jornalismo e tinha como ídolo literário nosso best-seller Paulo Coelho. Percebi que tinha algo errado, mas fiquei quieto, desconfiado, até receber um e-mail dele, contendo mais erros em 10 linhas do que todos os erros que Olavo Bilac escreveu na sua obra toda. Conversamos umas vezes depois... Ele ouvia os nomes e obras consagrados como se ouvisse pela primeira vez o grito de guerra da equipe iraquiana de hóquei sobre o gelo. Um dia, comentei: se você quer escrever bem, não pode ler mal... O modo como se lê também é importante. Eu sei, ler é ler, certo? Errado. Não são todas as pessoas que lêem da mesma maneira... Ler como lazer não é como ler para aprender. Infelizmente. Seria muito mais fácil se cada vez que eu lesse um texto assimilasse tudo o que está nele, mesmo se naquele dia lia apenas para me distrair, enquanto o bebê confecciona uma sinfonia doce e meu time corria na TV ligada. Esse 116 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
dia não devo ter prestado muita atenção porque até precisei voltar umas páginas atrás, depois, somente para descobrir o que tinha acontecido nelas... E, se eu quisesse ter aprendido mais, deveria ter analisado o texto, as frases, aprendido com as construções, o modo como ele descrevia a arma usada no crime, os adjetivos desconhecidos que ele atribuía ao assassino. E não fiz nada disso, só li. Eu me distraí, é verdade, mas foi só isso. Eu não tive uma aula de literatura na sala da minha casa naquele dia, ainda que o autor tivesse me mostrado exatamente como ele escrevia... Bem, meu moleque já sabe que terá que ler, o que ler, quanto ler e até como ler. Agora é só esperar pelo sucesso, não? Não. Ele vai ter que escrever, escrever, escrever. Quando, aos 7, ele me trouxer uma poesia própria (que a mãe dele vai guardar, acredito), não vai ser tão boa quanto aquela que ele escrever aos 10. Nem a dos 15. Se ele parar para analisar, verá que tudo parece ser uma evolução na arte da escrita. Ele poderá ler todos os livros da biblioteca do rei Salomão, mas, se jamais escrever algo, minha editora terá que recusar seu primeiro conto, que estará fraco e imaturo. Daí, quando ele estiver revoltado comigo e ameaçar sair de casa, terei que explicar que o segundo geralmente sai melhor que o primeiro e assim por diante. É treino, meu filho. Você já aprendeu a ler, já o fez suficientemente, agora treine escrever suas próprias histórias e seus próprios personagens... Ele irá até me agradecer, anos depois dessa última aula, pois ele mesmo verá que o texto passa a fluir mais tranqüilamente quando já se escreComo escrever bem – Parte 1 117
veu dezenas deles pela vida. Você passa a arriscar mais, repete construções que lhe agradaram, insere vocabulário novo, sabe o que interessa ao leitor, sabe, enfim, escrever. São Carlos, 13/6/2005
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Para que o Cristianismo? Por Jardel Dias Cavalcanti
Tem algum sentido ainda a religião no mundo moderno e, principalmente, o Cristianismo? O animal humano precisaria ainda dos valores metafísicos organizados na forma de doutrinas religiosas que servem no mais das vezes apenas como sistemas vigilantes da moral e da conduta dos comportamentos sociais? Os avanços da engenharia genética, em que pesquisas científicas produzem em laboratório “células sintéticas”, com genomas artificiais gerando vida (reconstituição do organismo doente) e também gerando morte (a possibilidade destas bactérias criadas detonarem a autodestruição das células quando colocadas em contato com a vida fora do laboratório – como o fatal Antraz, usado em guerras biológicas), faz o homem ter a sensação de estar substituindo Deus. Quem manipula, cria ou destrói a vida agora somos nós, e não Papai do Céu. Livros e mais livros têm sido publicados reacendendo o debate sobre a inexistência de Deus. Indagou certo pensaPara que o Cristianismo? 119
dor: quando, finalmente, enterraremos de uma vez por todas nossos mortos, nossos “Cristos”, “Guevaras”, “Lênins” etc.? Acrescente-se agora, com a nova onda de ateus finalmente saindo do armário, e com os escândalos da igreja católica, com processos contra padres que andam estuprando crianças sob sua proteção, a necessária pergunta direta: o cristianismo é bom para o mundo? Esta pergunta é o título do livro lançado agora pela Garimpo Editoral, no qual debatem a questão dois americanos, o pastor Douglas Wilson, que acredita que o cristianismo é bom e verdadeiro, e o ateu Christopher Hitchens, que acredita que o cristianismo é uma grande mentira e, no final das contas, algo perverso. O livro se organiza a partir de capítulos onde a fala de cada um revela sua oposição ao pensamento emitido pelo debatedor no capítulo anterior. O debate é quente, inteligente, dos dois lados. Mas a grande questão que o livro suscita é a seguinte: estamos num tempo em que verdades dogmáticas não colam mais. Que o poder exercido por religiões supostamente bem intencionadas, mas no fundo perversas, pode ser colocado no banco dos réus de um tribunal internacional que procura preservar a vida acima de tudo, inclusive acima da crença em um suposto Deus criador. Mais ainda, o livro reabilita o debate público sobre o sentido que algumas ideias tiveram no passado da história e a irrelevância que podem vir a ter na vida atual. Revela ainda a possibilidade civilizada de se chocar conceitos, verdades e 120 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
preceitos que antes estavam longe do debate por serem consideradas verdades intocáveis, artigos da fé cega (que no fundo tem se provado uma faca amolada), e que, agora, podem ser questionadas, discutidas, repensadas à luz da própria história destas ideias. Nos ambientes onde a intelligentsia vive, como diz Adorno, é fato que deve-se levar em consideração a historicidade em relação a quaisquer constructos metafísicos de método ou de verdade. Nos meios menos informados, no entanto, isso não é levado em consideração, sendo a fé que impera em sua absoluta e inquestionável certeza. Após a crítica de Nietzsche às ideias morais “a golpes de martelo” e Schopenhauer, com seu pessimismo, o imperativo categórico que move o pensamento moderno é o de que a hipótese de um ideal metafísico deve ser, no mínimo, dinamitada. Retomando mais de perto o livro O cristianismo é bom para o mundo? – Um debate (Garimpo Editorial, 2010, 80 págs.), podemos dizer que algumas ideias são centrais no debate entre Hitchens e Wilson. A primeira delas, apresentada por Hitchens como oposição ao seu interlocutor, diz que o que move inicialmente o debate é o fato de ele considerar uma falsidade “as alegações metafísicas da religião, e também tem a ver com o que penso ser um despropósito a afirmação de que a religião é a fonte moral em nossa conduta”. Outra ideia de Hitchens é relacionar Deus ao absolutismo: “Para mim, a ideia de que uma pessoa possa desejar um Para que o Cristianismo? 121
senhor supremo, absoluto e imutável, cujo reinado seja eterno e inquestionável, alguém que exija propiciação incessante e que nos mantém debaixo de vigilância contínua, não importa se estamos dormindo ou acordados, vigilância que não tem fim depois de nossa morte, bem, essa ideia para mim é desconcertante. Um sistema assim tão pavoroso significaria que palavras como ‘liberdade’ e ‘livre-arbítrio’ não têm sentido algum. Esse estado de Big-Brother celestial seria o cúmulo do totalitarismo, muito mais hermético e tirano do que o estado visto em 1984, pois os ‘crimes do pensamento’ – ofensas cometidas apenas na imaginação – seriam detectadas no momento em que ocorressem”. Um terceiro ponto levantado por Hitchens diz respeito ao fato da Igreja Católica, embora proclame suas benesses, também ter que responder pelos sistemas opressivos com os quais colaborou ou instituiu. “A igreja católica tem de gastar muito tempo para responder pelos crimes cometidos contra a humanidade, e gasta muito dinheiro hoje para indenizar as vítimas de ações de estupro e tortura contra crianças”. Segundo Hitchens, a religião ocidental cristã nos condena desde seu mito fundador. Adão e Eva são punidos de forma repugnante por terem exercido uma faculdade a eles concedida na criação. E nós, que nem lá estivemos, somos condenados a pagar por essa transgressão até o fim dos tempos, tendo que rastejar para alcançar o favor de um Senhor tirano difícil de agradar. Esse dado faz Hitchens dizer que a Bíblia não passa de um conto de fadas sinistro, recheado com 122 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
a dimensão vazia do sobrenatural. A conclusão de sua tese é de que existem maiores chances de se viver democraticamente em países onde a religião é pouco presente do que em países fortemente religiosos (veja-se o caso dos totalitarismos do Irã, Afeganistão talibã e Arábia Saudita). Por isso, entre outras coisas, o cristianismo é inútil para o mundo. Já Douglas Wilson tem outra forma de pensar a religião e Deus. Seus argumentos são quase de um poeta. Deus tem suas dádivas: “Ele sabia que o pôr do sol em tons de azul, laranja e cinza seria tão lindo e incrível que nos deu olhos para que pudéssemos enxergar em cores”. A vida como um milagre incessante de beleza e admiração é obra de um ser supremo. (A velha ladainha de sempre, eu diria, com a licença do leitor.) Ele ainda nos diz que Deus nos deu mente e coração com a única finalidade de podermos agradecer ao Supremo por essas suas benesses. Diz Wilson: “Ele poderia ter feito todos os alimentos nutritivos, mas com gosto de jornal ensopado de óleo. Em vez disso, Ele nos deu sabores de melancia, castanha de caju, cerveja preta, pipoca com manteiga, maçãs, pão fresquinho, picanha assada e uísque 25 anos. E claro, Ele sabia que precisávamos agradecer-lhe tudo isso; então nos deu mente e coração”. Bela poesia, não é Sr. Wilson? (Ainda bem que ele não se esqueceu de nos dar uísque 25 anos.) Essa dádiva, a vida e seu milagre, só podemos e só temos que agradecer a alguém, no caso, Deus. Afinal, diz Wilson, “conforme aprendemos com nossa mãe, quando alguém nos Para que o Cristianismo? 123
dá um presente como esse, a única resposta é agradecer à pessoa”. Ele retoma o apóstolo Paulo para insistir nessa proposição do lugar central do relacionamento do homem com Deus: a gratidão. Ou seja, Deus é Deus e ser grato a ele é a única coisa de importante que nos resta nesta vida. E o cristianismo está aí para ser a ponte entre os homens agradecidos e a Suprema potência do universo. E também o melhor sistema especulativo para guiar a vida do homem a partir da máxima “ama o teu próximo”. Hitchens dirá que essa regra não necessita da religião para existir, pois toda sociedade que se pretende minimamente estável adotaria essa máxima naturalmente como princípio ou desapareceria. Além do mais, em nome de deuses supremos sabemos que assassinatos intermináveis foram praticados ao longo da história. E sabemos que o mal muitas vezes é praticado em nome de um bem questionável. O debate se estende dentro do livro a outras questões, de importância vital nesse debate, mas que no fundo retomam o tema central que é sobre a importância ou não do Cristianismo para o mundo. Não cabe nesse artigo retomar todas elas, por falta de espaço. No entanto, uma coisa acaba ficando como lição: que o cristianismo não seja nossa única forma de ética para a vida, dadas as implicações que religiões totalitárias causam no próprio meio social. Não se deve, pois, confundir ética social com cosmologia e poder supremo.
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A vida social exige ética, mas, como disse Heráclito, “o ser e não ser permanentes da dialética do universo não são orientados para um objetivo específico, ético ou moral, o universo é um fogo eterno e não foi feito nem pelos homens nem pelos deuses. Não tem ética, portanto.” Do meu ponto de vista particular, acho que Hitchens tem muito de novo a dizer ao leitor; quanto a Wilson, tem somente uma velha ladainha a repetir. Para terminar, faço uso de um trecho de Heine, citado por Hitchens, para que o leitor pense por si: “Na escuridão, um cego é o melhor guia; mas quando chega a luz do dia, é bobagem usar cegos como guias”. Nota do Editor Leia também Especial “Deus tem futuro?”. Londrina, 25/5/2010
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No tempo da ficha telefônica Por Elisa Andrade Buzzo
O plaft sempre era seguido de um grito depois que seu Chico espalmava a ficha telefônica nas tenras mãozinhas dos alunos do liceu. Não havia escapatória. Quem quisesse telefonar seria prisioneiro do divertido carrasco por segundos intermináveis, a mão retida e escancarada. A informalidade desses tempos chegava a ponto do porteiro guardar nos bolsos do jaleco azul as fichas prontas a serem vendidas por unidade, ou no pacotinho sacolejante de papel laranja comprido. O orelhão, era um só, vermelho (noto que as cores são elementos importantes quando se trata de reconstruir eventos da memória), e ficava numa salinha reservada onde éramos inquiridos pelo indiscreto padre-diretor “o que você quer com a mamãe? deixa ela fazer em paz o feijão com arroz em casa!” É claro que não contaria que iria ligar no seu trabalho para perguntar o que ela achava de eu tomar um cornetto, já pensou a bronca do padre Mário? Alguns dias depois percebi que era mais fácil me decidir sozinha pelo sorvete.
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Mas por que nos últimos dias tenho me recordado do mundo movido à ficha? Aqui incluo a década de 1980 e comecinho da de 1990, da Discagem Direta à Distância (DDD). Como a crônica é o breve espaço da poesia do viver, reflexo da vida latente reconstruída no jornal, não deixei de refletir acerca da matéria “’Fora de moda’, telefones públicos caem em desuso”, do final do mês passado na Folha. Ela dizia que um novo plano da Anatel pretende diminuir o número dos famosos orelhões. Isso porque eu ainda uso, sim, orelhão, ainda que as fichas tenham sido há tempos abolidas. Admirável como algumas atitudes, de tanto repetidas, se tornam maquinais a tal ponto que não nos damos conta da simpleza e beleza de seus métodos, até que nos vemos impossibilitados de realizá-las. Anos depois, é difícil rememorar o processo completo. Era um tal de tentar inserir a ficha a qualquer custo no buraquinho, pois ainda não sabia que suas fissuras deveriam coincidir exatamente com a da máquina para que tudo corresse bem. Para uma criança não era nada trivial alcançá-lo. Tinha coisa mais gostosa e ao mesmo tempo aflitiva de se ouvir do que o ruído da ficha sendo engolida? O desespero de cortar uma ligação e não ter outra ficha em punho para alimentar mais três minutos de sofreguidão telefônica, ou o alívio de ter a conversação concluída e assim retirá-la do orifício embaixo do aparalho, assim que se colocava o telefone no gancho novamente.
No tempo da ficha telefônica 127
Os telefones públicos estavam (e ainda estão) sempre lá, a postos. Havia mesmo uma pequena fila de inquietos usuários sendo grande sua procura. Um tanto indiscretos, ouvíamos conversas alheias, brigas, juras de amor. Como os tempos eram outros, nem todo mundo tinha a comodidade de ter um telefone fixo em casa. As linhas compradas demoravam a sair. E dá-lhe ver o povo batendo papo em orelhão nas ruas do Bom Retiro. Solitários, em duplas ou trios, os orelhões ainda subsistem nas grandes avenidas, em uma ou outra esquina. Perto de casa tenho segurança dos locais onde sei que posso encontrá-los numa distância de poucos metros. E quem os usa se depara com um ou outro imprevisto: vandalismo, sujeira e o pior, por algum motivo eles simplesmente não funcionam. É o auge da frustração. Ainda que eu tenha celular, como não concordo com as tarifas abusivas, eu o uso mais para receber chamadas do que para efetuá-las. Assim, o orelhão, também serve para eventuais conversas mais longas, pois sai mais em conta usar cartão telefônico (ele próprio, aliás, propagandeia em seu verso “Pra que pagar mais?”). Dá mais dor no coração os créditos escorrendo pelo ralo do que a ficha caindo no gargalo. Aliás, a sentença ameaçadora “fora de moda” parece também ter chegado nos cartões. Anos atrás, quando eles era novidade e parecia que não conseguiríamos viver sem ficha, havia modelos com bonitas pinturas, coisa de colecionador. Agora eles são cinzas, sem graça, ou então daquela indefinida cor verde-vômito-escarro da Telefonica. Os cartões 128 Digestivo Cultural | Poucas e Boas
telefônicos lembram os cartões de crédito, estes soberanos diante do dinheiro sujo e perigoso. Na carteira as moedas misturavam-se com as fichas. Hoje só talvez se confundir com os jetons dos parques de diversões ou com a ficha do velário ecológico da Sé, cuja inscrição **** nos recorda de sua utilidade e nos pede complacência. O que me preocupa é a perda do senso público embutido nos telefones públicos, como seu próprio nome diz, diante da preferência pelo celular quase descartável, dos aparelhos cada vez mais particulares e alienantes, embora não haja como negar sua praticidade em muitos casos. Os orelhões são aquele tipo de objeto da rua que alguém sempre usa, alguém usa de vez em quando, ou nunca se usa. Por isso, o importante é que eles estejam lá, à espera da potencialidade de ser procurados. Algo que todos podem usar, disponível a qualquer hora do dia (um avanço nos últimos anos foi sua inserção dentro das estações de metrô da cidade). Entretanto, agora temos um retrocesso com essa tentativa de diminuir o número de orelhões. O mundo da rua, a começar pelas fichas, vem perdendo seus habitantes, tais como os hidrantes, as caixas de correio. Liberdade é ter tudo isso ao alcance, não só o que posso apanhar em meu bolso. Estaremos daqui a algumas décadas confinados em nossos maravilhosos e dispendiosos aparelhos portáteis? É o começo do fim de uma era, em que a rua era o lugar público por excelência, em que todos necessariamente se encontravam e tocavam nos mesmos ganchos, apertavam os mesmos No tempo da ficha telefônica 129
botãozinhos, tagarelavam nos bocais (supõe-se) periodicamente higienizados. Tudo por um preço mais ou menos justo. Logo restará usar os orelhões como guarda-sol, se resignar com suas propagandas pornôs acumuladas. São Paulo, 12/5/2011
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Este livro foi composto pelas fontes tipogrรกficas Frutiger Next e Golden Cockerel ITC Roman e foi impresso na Grรกfica Duplic (Florianรณpolis - SC - www.duplic.com.br), em papel sulfit 75g/m2, em junho de 2011.
Participaram desta obra: Antônio Prata Mário Bortolotto João Ubaldo Ribeiro André Forastieri Lélia Almeida Ryoki Inoue André Barcinski Diogo Salles Wellington Machado Guilherme Werneck Julio Daio Borges Marta Barcellos Ana Elisa Ribeiro Ram Rajagopal Carla Ceres Noah Mera Daniel Bushatsky Luiz Rebinski Junior Guilherme Montana Marcelo Maroldi Jardel Dias Cavalcanti Elisa Andrade Buzzo
“O Digestivo Cultural é um dos mais importantes sites do Brasil em matéria de jornalismo cultural. Não é um portal (embora entregue mais de 1 milhão de pageviews mensais); e não é um blog (embora possua um). Não trata de "cultura" no seu sentido mais amplo (pois quando "tudo é cultura, nada é cultura" — Teixeira Coelho); mas faz jornalismo cultural (crítica de livros, discos, filmes, peças, programas, exposições, publicações, sites e até restaurantes).” Julio Daio Borges