90 anos com Miranda-do-Corvo

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Esta revista faz parte integrante da edição de hoje do Diário de Coimbra e não pode ser vendida separadamente

90 ANOS COM

MIRANDA DO CORVO

Com o patrocínio de:

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90 anos com Miranda do Corvo Introdução

Diário de Coimbra

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Memórias com 90 anos

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natureza espalhou as suas bênçãos e transformou Miranda do Corvo num refúgio pródigo. Mas também num desafio para os desportistas ganharem asas e correrem, velozes, por alguns dos trilhos mais fantásticos do mundo. Em contraponto, o esforço dos homens, deixou, ao longo de séculos, marcas profundas, erguendo um património exemplar. Altares de devoção e de fé que se mantêm. Uns mais firmes do que outros... Mas foi igualmente a acção do homem que moldou o território e o transformou numa terra solidária, onde florescem instituições e valores que vêem no outro a sua razão de existir. Um exemplo que criou, precisamente em Miranda do Corvo, há mais de oito décadas, a casa-mãe dos Gaiatos do Padre Américo. Outras se lhe seguiram. Igualmente empenhadas em combater a miséria e a pobreza e, sobretudo, em dar dignidade aos “filhos de um Deus menor” que a sorte esqueceu.

Uma terra que sentiu os ventos de uma nova era trazidos pelo caminho-de-ferro e sofreu o impacto dessa perda, sem resignação. Uma terra que foi berço de gente de grande valia, de empreendedores de referência, que projectaram e projectam o concelho e constituem uma referência, ontem e hoje. São algumas destas vivências, destas memórias, destes exemplos, que o Diário de Coimbra recorda hoje, numa viagem balizada pelos 90 anos de vida do jornal. Não se trata de nenhum exercício de investigação histórica ou de um inventário de acontecimentos. Antes e sim de um registo de memórias, que nos leva a lembrar alguns dos momentos marcantes da vida do concelho e das suas gentes. Muito fica, não temos dúvidas, por dizer. Mas esperamos entreabrir uma porta para ajudar a descobrir os muitos segredos e os encantos que definem Miranda do Corvo e representam a sua marca identitária e diferenciadora. O convite está feito: embarque connosco nesta descoberta! 

FICHA TÉCNICA Abril de 2021 Director: Adriano Callé Lucas Directores-adjuntos: Miguel Callé Lucas e João Luís Campos Directora-geral: Teresa Veríssimo Coordenação editorial: Manuela Ventura

Coordenação comercial: Mário Rasteiro Textos: Manuela Ventura Fotos: Ferreira Santos, Figueiredo, Arquivo, Associção Abútrica, Baldios da Freguesia de Vila Nova e família de Fausto Correia

Vendas: Ana Lopes, Fernando Gomes e Hélder Rocha Design gráfico: Pedro Seiça Publicidade: Carla Borges e Rui Semedo Impressão: FIG – Indústrias Gráficas, SA

Tiragem: 10 mil exemplares Agradecimentos: ao historiador António Rodrigues, da Câmara Municipal, ao arquitecto Luís Martins da Liga dos Amigos do Mosteiro de Semide e à família de Fausto Correia


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Opinião 90 anos com Miranda do Corvo

Diário de Coimbra

Diário de Coimbra: 90 anos de história Miguel Baptista Presidente da Câmara Municipal de Miranda do Corvo

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or ocasião da celebração do 90.º aniversário do Diário de Coimbra, importa saudar o papel fundamental que sempre assumiu enquanto instituição de referência para toda a região de Coimbra, desde a sua fundação em 1930 por Adriano Lucas. Os princípios da liberdade e da independência, mesmo em tempos sombrios de ditadura, são marcas enraizadas que perduram até hoje e que valem ao Diário de Coimbra o reconhecimento ímpar dos seus leitores.

São 90 anos de uma história riquíssima, que acompanhou todos os momentos que marcaram a região e o país, tanto os bons como os menos bons, levando a notícia a tantos que de outra forma não a teriam acedido. É ainda de realçar o impacto no desenvolvimento de toda a região, a preocupação em estar presente em todo o território e não só na capital de distrito. É também esta uma das razões da forte implantação deste jornal que perdura há 90 anos. Este é um reconhecimento público que cabe fazer ao Diário de Coimbra em nome do Município de Miranda do Corvo. Em todos os momentos de promoção do concelho, mas também nos momentos de luta e reivindicação, o Diário de Coimbra esteve sempre presente. O contributo prestado, por exemplo,

na defesa no Ramal da Lousã e implementação do Sistema de Mobilidade do Mondego, projeto estruturante e decisivo para o desenvolvimento do concelho e da região, foi essencial para que estejamos hoje em plena fase de execução das obras. A imprensa regional foi a voz das populações nesta justa reivindicação, voz essa tanta vez esquecida pelos poderes centrais. Mais uma vez, o Diário de Coimbra cumpre o seu papel, celebrando o seu 90.º aniversário em conjunto com todos os concelhos da região. É uma honra, nesta edição, acompanhar alguns dos marcos do concelho de Miranda do Corvo ao longo destes 90 anos. A Câmara Municipal de Miranda do Corvo parabeniza o Diário de Coimbra, os seus colaboradores, assinantes e leitores. 

Em todos os momentos de promoção do concelho, mas também nos momentos de luta e reivindicação, o Diário de Coimbra esteve sempre presente


90 anos com Miranda do Corvo Baldios de Vila Nova

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OS GUARDIÕESI DA SERRAI Equipa de sapadores garante a defesa e protecção da serra em diferentes frentes

1977 O Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de Vila Nova nasceu a 6 de Novembro de 1977. Gere mais de meio milhar de hectares, onde não faltam projectos para preservar e promover a Serra da Lousã

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riado em 1977, o Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de Vila Nova ganhou um novo alento em 2013, altura em que a direcção chamou a si a gestão, até então delegada na Junta de Freguesia. «Era preciso fazer mais e cada um seguiu o seu caminho», refere António Ventura, presidente da direcção. Começa, então, a “revolução”dentro dos Baldios. Até agora… Os projectos sucedem-se e não há mãos a medir. Assim haja apoio e financiamento para os concretizar! Um novo caminho, em crescendo. «Em 2013 tínhamos uma equipa de quatro sapadores e uma viatura. Hoje, oito anos depois, temos sete sapadores – e já tivemos o dobro – uma técnica e uma pessoa a meio tempo», explica. Também não havia instalações. «A viatura ficava na garagem do chefe da equipa de sapadores». Hoje, os Baldios têm um pavilhão logístico, em Souravas, «com todas as condições, inaugurado em 2016, que representou um investimento de 150 mil euros, sem qualquer apoio. Ali é

guardado o equipamento e maquinaria, existe uma pequena cozinha de apoio, balneários e oficina. A questão da sede ficou resolvida, com a cedência, por parte do município, de um edifício, onde também está instalado o centro de estágios de running e trail, do qual a associação é a entidade gestora, juntamente com o município e a Junta de Freguesia. «Trabalho não falta», garante António Ventura, que aponta os trabalhos de silvicultura dos sapadores, que inclui desde o desbaste de pinhais e eucaliptais, limpeza da floresta e da berma de estradas, abate de árvores, ou fazer lenha proveniente de desbastes ou do abate de árvores. O presidente destaca o compromisso anual, assumido com o Estado, de limpeza de 25 hectares, como contrapartida pelo apoio à equipa de sapadores, este ano estimado em 45 mil euros. «No Verão fazemos vigi-

Sapadores na operação de rachar lenha

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lância, primeira intervenção e combate a incêndios», esclarece. Há clientes em Coimbra, Penela, Lousã e Figueiró dos Vinhos. Pode ser tão só para adquirir lenha ou para operações de limpeza ou silvicultura. «Criámos sustentabilidade, sempre com a preocupação de dinamizar a economia local», sublinha, dando conta que todas as compras são feitas preferencialmente na freguesia, seguido-se o concelho. Só mesmo quando não há fornecedores locais é que «vamos fora». Apesar desta dinâmica, António Ventura não esconde a sua preocupação, tendo em conta a redução significativa de receitas. «Ficámos só com duas torres do Parque Eólico», diz, referindo-se ao diferendo com aAssociação de Compartes do Gondramaz, que culminou com um processo em tribunal e com os Baldios a ficarem sem uma substancial fonte de rendimento. «Recebíamos verbas do Parque Eólico de Vila Nova 2, embora atribuíssemos 40% da receita anual à Junta para melhoramentos na freguesia». «Todo o dinheiro que recebemos foi investido na freguesia», sublinha, lembrando que os Baldios chegaram a ter 10 postos de trabalho, que representavam «mais de 100 mil euros por ano, só em salários. O restante foi investido em equipamento, na compra de um tractor, de um rachador, de uma carrinha. «Fizemos investimentos superiores a 200 mil euros», afirma o presidente, que entende a gestão dos baldios como uma ferramenta «para criar riqueza para a freguesia, não para amealhar dinheiro para ter no banco. Essa riqueza cria-se com postos de trabalho e com investimentos». Com os rendimentos reduzidos, «a situação complica-se». «Vamos ver como podemos seguir em frente», adianta. Em marcha está um projecto de reflorestação de 16 hectares de floresta de folhosas, apoiado no âmbito do Plano de Desenvolvimento Regional, depois de um outro projecto, de reflorestação de 4,5 hectares de pinheiro bravo, igualmente apoiada por aquele programa. Condicionado pela pandemia, está o projecto de trabalho com as crianças das escolas. Na área social, refere as campanhas de angariação de produtos de higiene e limpeza, envolvendo a população e as colectividades, para a Casa do Gaiato, bem como a oferta de pinheiros para as árvores de Natal, resultante das operações de desbaste. Destaca, igualmente, o apoio que,


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Baldios de Vila Nova 90 anos com Miranda do Corvo

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desde 2103, os Baldios garantiram às colectividades locais, através de um programa que tem permitido desde a construção de um palco à aquisição de um frigorífico. «Já demos mais de 30 mil euros de apoio», diz.

Resinagem regressou à Serra da Lousã Projectos não faltam. Uns em curso, outros concluídos. Outros à espera de aprovação e financiamento e outros, ainda, que aguardam oportunidade.Aresinagem integra o “primeiro pacote”. Com o entusiasmo de um filho da serra, António Ventura fala no regresso da resinagem à Serra da Lousã. Uma tradição que se perdeu nos finais da década e 80. «É uma forma de rentabilizar uma grande mancha de pinheiro bravo» que os Baldios gerem, explica. Mas também uma ferramenta para garantir «outra segurança» aos pinhais e à própria serra, uma vez que representa «uma presença assídua de pessoas na nossa área florestal», o que «é bom para prevenir acções menos próprias e, inclusivamente, incêndios». O resultado está à vista. «Tivemos algumas ignições, mas não temos incêndios desde 2013», garante. A resinagem foi implementada em 2016, no âmbito de um programa que envolve a Câmara Municipal de Penela e as empresas United Resins, da Figueira da Foz, e Costa e Irmãos, de Leiria, com esta última a ser responsável pela gestão dos resineiros. «Pagam por bica», esclarece António Ventura, que fala com manifesto agrado do regresso dos púcaros aos troncos dos pinheiros. «Chegámos a ter 12 mil bicas», refere. Todavia, os incêndios de 2017 fizeram danos. A macha de pinheiro bravo dos Baldios não ardeu, mas ardeu a floresta das redondezas e uma praga de escaravelhos, em fuga da zona ardida, infestou o pinhal. O facto de a mata estar limpa, ajudou à proliferação destes escolitídeos. «Secaram muitas centenas de pinheiros», recorda. Centro de Estágio de Vila Nova Os Baldios assumem, também, a gestão do Centro de Estágios de Trail, Running e BTT de Vila Nova. Em causa está um projecto pioneiro, com a chancela da Associação Abutrica, em parceria com a Câmara Municipal de Miranda do Corvo, Aldeias do Xisto, Juntas de Freguesia de Vila Nova e de Miranda do Corvo e Baldios de Vila Nova. A Casa dos Reis é o espaço

Pavilhão logístico, instalado em Souravas, representou investimento de 150 mil euros

central do projecto, que disponibiliza balneários, estação de serviço para bicicletas e instalações para estadia de treino, ajudando os atletas na preparação física, possibilitando, ainda, a realização de estágios. Ao edifício de apoio juntam-se a rede de percursos sinalizadas de trail running e de BTT, bem como mais três estações de serviço para bicicletas, designadamente o Centro de BTT da Aldeia do Xisto do Gondramaz, Quinta da Paiva e Semide. São 14 os percursos cicláveis, num total de 230 km, com 4 níveis de dificuldade. Juntam-se-lhe os quatro percursos de trail running sinalizados, com um total de 90 km.

Descobrir a “Serra Encantada” durante o dia ou noite dentro Os trails e as caminhadas representam uma parte ínfima dos projectos em curso ou em carteira para promover a serra, atrair visitantes, valorizar o território. Dulce Pedro, técnica da associação, apresenta-nos o projecto “Serra Encantada”, que envolve as autarquias de Penela e de Miranda do Corvo e cuja candidatura ainda está em fase de preparação. Em causa estão dois percursos, um diurno e outro nocturno. Este último «é o mais inovador e diferenciador», afirma, apontando um trilho a cumprir à noite, com iluminação “responsiva” e que culmina com um espectáculo, no Parque das Mestrinhas. O projecto inclui uma aplicação para o telemóvel, através da qual o visitante vai respondendo a um conjunto de perguntas, culminando com a possibilidade de «definir qual o espectáculo a que vai assistir». O

percurso, com cerca de 1,5 km, começa na Casa do Guarda, na Louçainha e, para evitar impacto, sobretudo na fauna, prevê-se que seja realizado apenas uma vez por mês. O Departamento de Engenharia Electrotécnica e de Computadores da Universidade de Coimbra é parceiro do projecto, ao nível da iluminação e da aplicação para o telemóvel. «Não há nada assim em Portugal. Que eu conheça, só há um percurso assim, na Escócia, que só abre uma vez por ano», diz Dulce Pedro, entusiasmada com a «magia da luz». O percurso diurno começa na Mamoa, no Penedinho Branco, contempla parte do trajecto nocturno, passa junto à barragem da Louçainha, para terminar na Mamoa. Inclui locais «onde o visitante pode experiênciar o que sente um deficiente visual, ao entrar num túnel onde fica completamente entregue aos seus sentidos». O percurso fica “sinalizado” com um conjunto de ninhos para passarinhos, um trabalho da artesã Adriana Fernandes, de Vila Nova. Trata-se de peças de arte, «todos diferentes», feitos em cabaça. Ninhos que serão «o símbolo do percurso», adianta Dulce Pedro, e que vão inspirar os souvenirs, que irão estar à venda. O percurso vai incluir pórticos, para permitir «controlar quem está no percurso correcta ou incorrectamente», além de acautelar a possibilidade de alguém se perder. O investimento previsto é de 600 mil euros e os Baldios de Vila Nova contam com o apoio do município de Miranda do Corvo para a preparação de uma candidatura ao programa Valorizar.



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Baldios de Vila Nova 90 anos com Miranda do Corvo

Bosque de Memórias «Como podemos apelar à união num momento de distanciamento?» A pergunta, nascida no quadro dos condicionalismos impostos pela pandemia, deu origem a um projecto inovador, apresentado à Dueceira, no âmbito do programa Renovação de Aldeias. Trata-se, explica Dulce Pedro, de criar um bosque artificial de árvores feitas em ferro. São 12 e cada uma representa uma das serras de Portugal, a saber: Pico, Estrela, Gerês, Açor, Lousã, Marvão, Freita, Caramulo, Monchique, Aire, Sicó e Arrábida. A altura de cada árvore será proporcional à da serra que lhe dá o nome. Nome que vai ficar gravado no tronco. Nos galhos vão ser colocados uns pequenos suportes, onde os visitantes podem colocar as folhas, de diferentes cores, que vão estar à venda. «Algumas folhas já têm mensagens, mas essencialmente termos folhas sem nada, onde as pessoas podem escrever a sua mensagem, usando uma caneta a laser», explica, destacando o carácter «diferenciador» do projecto e o simbolismo da «união» que pretende criar. «Temos de apostar em coisas novas», reforça o presidente, que sublinha o enquadramento do projecto «no âmbito da visitação à serra». Este “Bosque de Memórias” vai ficar na encosta da serra, virado a poente. Dulce Pedro já imagina a esposa, feliz, a levar o marido ao bosque e, através de um mensagem, informá-lo da desejada gravidez. E, porque não, anos mais tarde, o casal regressar, com o filho, e localizar a folha colocada na árvore e recordar o momento. «As pessoas vão vestir as árvores», diz ainda. E quando as 12 árvores estiverem carregadas de folhas, será possível acrescentar mais árvores e mais serras a este bosque. «É um produto turístico, que pode alavancar alguma actividade económica para o concelho», considera António Ventura, destacando o «excelente miradouro» que existe no local. «Em dias de céu limpo consegue ver-se o mar da Figueira da Foz», garante. O projecto representa um investimento de 54.500 euros. Se a Dueceira aprovar a candidatura, o Bosque de Memórias poderá arrancar em Setembro.

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Casa do Tronco vai acolher sede e espaço museológico

Dulce Pedro e o tronco de ferrar os bois

Em fase de execução está o projecto da recuperação da Casa do Tronco, localizada no centro da vila, mesmo em frente ao edifício do município onde actualmente funciona a sede dos Baldios de Vila Nova. «Era o local onde se ferravam os bois», diz António Ventura, lembrando que Vila Nova era uma freguesia rural, onde havia muitos bovinos. A casa, em avançado estado de degradação, foi adquirida há três

anos, com o apoio do município, que comparticipou com cinco mil euros o investimento de 23 mil euros. No rés-do-chão, onde se encontra o tronco de ferrar os bois, vai funcionar um núcleo museológico centrado no tronco, depois de devidamente reparado, explica o presidente da direcção. «Este tronco é único, não há mais nenhum no concelho», acrescenta Dulce Pedro. Também ali vai funcionar um posto de venda de produtos endógenos e de artesanato. Para o piso superior está prevista a uma sala de formação e a sede de Os Baldios, que passam, assim, a ter casa própria. A recuperação da Casa do Tronco enquadra-se no âmbito de uma candidatura ao programa Renovação de Aldeias, da Dueceira. O investimento ultrapassa os 100 mil euros, contando com um financiamento de 77 mil euros. O município de Miranda do Corvo e a Junta de Freguesia de Vila Nova vão dar uma ajuda para completar o valor em falta.

Observatório Astronómico à espera de legalização

Observatório foi inaugurado em 2006

No cimo da serra, junto ao Parque Eólico de Vila Nova, encontra-se o Observatório Astronómico. «Foi a contrapartida que o anterior presidente de Junta, António Godinho (já falecido), pediu às empresas eólicas pela instalação do parque», explica António Ventura. O observatório foi inau-

gurado em Março de 2006, mas ultimamente «tem sido pouco utilizado. Não está parado de todo. Fazemos algumas sessões com crianças, mas está muito pouco aproveitado», adianta. De resto, a cúpula, que chegou a ser considerada uma das maiores em observatórios nacionais, não será a mais adequada, o que significa a necessidade de se proceder à sua substituição. Todavia, a prioridade é assegurar à legalização do espaço, o que tem concentrado a atenção de Os Baldios desde 2013, altura em que passou para a sua tutela. Cumprida esta etapa, «se houver apoio, porque não temos capacidade financeira, o objectivo é colocar o Observatório Astronómico e de Natureza em funcionamento», afiança o presidente, que não tem dúvidas sobre o «muito potencial» deste equipamento. 



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Gondramaz 90 anos com Miranda do Corvo

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A MAGIA DO GONDRAMAZ 2012 Conquistado pela aldeia, jovem casal resolveu continuar a recuperar casas em ruínas e dar oportunidade ao visitante de partilhar a experiência de viver numa Aldeia do Xisto

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s incursões de André, praticante de downhill, levaram-no a descobrir o Gondramaz. Mas também a apresentar a aldeia a Margarida, igualmente amante dos passeios. As bicicletas uniram o jovem casal e o Gondramaz acolheu-os. Uma história de vida que dá mais vida à aldeia serrana. André Beato é de Porto de Mós, Leiria. Margarida Amaral é do vizinho concelho da Lousã. Ambos frequentavam a Universidade de Coimbra. Ele em Engenharia Mecânica. Ela em Arquitectura. Praticante de downhill, André encontrou a aldeia e os trilhos que a rodeiam. Primeiro ficava na casa de colegas, conta Margarida. Em 2004, resolveu comprar uma casa. Em 2009, quando Margarida acabou o curso, instalaram-se na aldeia. A “Casa-Mãe”, como lhe chamam, foi o seu lar e também o ponto de partida para um projecto turístico diferenciador. É o Mountain Whisper. Um abrigo na serra, onde se ouvem e sentem os murmúrios da natureza. «Gostávamos muito da aldeia e decidimos comprar três ruínas», conta Margarida, referindo-se a três pequenas casas localizadas à entrada da aldeia. «Comprámos para reconstruir, mas não sabia bem como», confessa a arquitecta. Apaixonada pela pedra, particularmente pelo xisto característico da zona, e pela madeira, que domina toda a envolvência, Margarida assume que não sabia muito bem o que queria fazer. A conversa com uma amiga abriu-lhe caminho: «Vocês estão num local fantástico, porque não dar a conhecê-lo a outras pessoas?». Estava dado o mote para o projecto turístico, que arrancou em 2012. Madeira, Paisagem e Terra foram os nomes atribuídos às três primeiras casas do Mountain Whisper. Um projecto inspirado na natureza e nos quatro elementos primordiais. O ar inspirou o nome da Casa Paisagem, o fogo deu nome à Casa Madeira e a Terra, mais do que o terceiro dos quatro elementos – juntamente com a água – pretende ir mais longe. «É uma sinergia entre o elemento e a vivência, as raízes, a tradição, que leva as pessoas a dizerem “vou à terra”, quando se referem à sua aldeia de origem», explica.

“Casa-Mãe”, a primeira casa que o casal recuperou e onde viveu alguns anos

Força de vontade e determinação A arquitecta assume as dificuldades do projecto. «Foi necessária uma força de vontade e determinação muito grandes», refere, apontando a «enorme burocracia, muito desgastante». As primeiras casas contaram com o apoio do PRODER, mas foi necessário «arregaçar as mangas e bater à porta dos bancos». Margarida recorda um encontro num banco. Quando falou na recuperação das casas para criar quatro quartos, a resposta foi pronta: «esqueça, não vai resultar!». «Saí dali destroçada». Na Caixa Geral de Depósito encontrou a resposta que precisava. «Receberam-nos de braços abertos!». Quando os apoios às primeiras casas chegaram, foi para investir em novas reconstruções. «500/600 mil euros» será o montante investido na recuperação da aldeia. Sem incluir a compra das casas. Um processo que deu algumas dores de cabeça. 

«Sou uma apaixonada pela aldeia», assume Margarida, que abriu a porta destas três pequenas, mas requintadas e aconchegantes casas, aos visitantes. «Começamos a ter imensa procura. Algumas pessoas, que já tinham estado nas três casas, perguntavam-nos se não tínhamos mais». Ou seja, mais experiências diferentes para oferecer. A resposta acabou por transformar a CasaMãe, onde o casal vivia, num espaço para turismo. «Tivemos que sair da aldeia», conta. Um lamento, mas também uma necessidade, confessa. «É importante criar algum distanciamento entre casa e trabalho», o que Margarida consegue vivendo na Lousã, mas passando praticamente todo o tempo no Gondramaz. O marido está mais “solto”, uma vez que trabalha como técnico de aerogeradores. Mas havia mais casas em ruínas para recuperar. Mais trabalho para fazer. A Casa da Nogueira foi o projecto que se seguiu. «Tinha sofrido um incêndio e praticamente só restava um bocado de parede», explica, sublinhando que, para ser turismo em espaço rural, o pressuposto é de uma reconstrução. Um conceito que não se aplicava àquele espaço, formalmente classificado como alojamento local. «É o nosso T0, que tem a lareira no quarto», refere.


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«Ainda faltava mais qualquer coisa e decidimos comprar a casa do senhor Carlos – o escultor Carlos Rodrigues – e a casa do lado e fazer uma homenagem ao casal». Surgem, assim, as casas Carlos e Maria, cuja recuperação começou em 2020 e terminou recentemente, elevando para sete o número de casinhas de xisto do Mountain Whisper. Quando os dois jovens se instalaram no Gondramaz a aldeia era habitada por cerca de uma dezena de pessoas. Metade já falecerem. Mas também vieram novos moradores. Como um colega do André ou um casal de Lisboa. «Há pessoas mais velhas que regressam depois da reforma», explica, apontando os exemplos do senhor Vitorino e da D. Maria, do senhor José e da D. Laura, ou a pastora Carminda, que «nunca saiu da aldeia». Carinhosamente cumprimentada por todos, Margarida garante que foi «muito bem recebida» pelos habitantes do Gondramaz. E, por estranho que isso possa parecer, também «gostam de ter pessoas novas na aldeia. Talvez porque não se sentem sozinhos», aventa. «Perguntam muitas vezes: hoje temos cá vizinhos, Margarida? Gostam que tenhamos hóspedes», diz a arquitecta, que fala com ternura dos moradores da aldeia. Conquistada pelos residentes, Margarida também os conquistou. Não foi preciso muito. Bastou a sua natural simpatia e vontade de ajudar. Tão simples como perguntar se «precisavam de alguma coisa da vila».

90 anos com Miranda do Corvo Gondramaz

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Conforto no berço da natureza

Margarida Amaral é fã da aldeia

Margarida Amaral assume que não tinha experiência de gestão empresarial nem de turismo. «Só sabia o que gostava de receber, como cliente». E essa foi a linha-mestra que o projecto seguiu. Valeu a pena?, perguntamos. «Se fosse muito simples não sabia tão bem», considera, admitindo a necessidade de reunir «muita coragem e força de vontade» para seguir em frente. Foi isso que o casal fez. No Verão passado, apesar da pandemia, «tivemos o melhor Verão de sempre. As pessoas descobriram que estamos num sítio fantástico». 90% dos clientes são portugueses, a maioria vindos das grandes cidades. Há alguns estrangeiros, «mas não muitos». «É gratificante ouvir os comentários, não só às casas, mas também às pessoas», refere, elogiando a equipa, actualmente reduzida a três pessoas, que garante a limpeza das casas, serviço de lavandaria, recepção e acompanhamento dos hóspedes e pequeno-almoço. A«proximidade» define a diferença entre um alojamento turístico e um hotel, mas

a pandemia veio impor a distância e um sistema de acolhimento mais impessoal. O conforto e requinte das casas mantém-se exemplar. «Queremos oferecer algo diferente», diz Margarida Amaral. Cada casa, por mais pequena que seja, tem uma zona de estar/sala, quarto, quarto de banho e cozinha devidamente equipada. Há um bar comum e duas piscinas servem as sete casas do empreendimento turístico. Aaldeia cresce pela encosta. Pedra sobre pedra, erguem-se as casas de xisto, os caminhos igualmente empedrados, que se abrem num pequeno largo, onde se trocam dois dedos de conversa. Há um restaurante e vários espaços de alojamento local. Não faltam sanitários, a capela e o lavadouro. Nos campos em redor, começam a semear-se batatas, ao lado de couves e grelos que já viram melhores dias. «A aldeia tem um envolvimento fantástico, com os nossos castanheiros», refere Margarida. Em pleno Inverno, as árvores estão despidas, mas não tarda começam a cobrir-se de um manto verde. Em Agosto/Setembro até os veados descem do cimo da serra e visitam a aldeia à procura de alimento, designadamente maçãs, castanhas e bolotas. «Vêem-se muitas vezes», garante. Os caminhos pedestres são outro dos atractivos. «São lindíssimos», refere, destacando o percurso do Ribeiro do Conde, considerado «um dos melhores do mundo» por alguns amantes de caminhadas, devido às cascatas e às árvores centenárias que o rodeiam. Até o céu é «fantástico» neste paraíso, localizado a 10 minutos de Miranda do Corvo e da Lousã. Muitos dos visitantes são repetentes, também eles conquistados pela magia do Gondramaz.


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Gondramaz 90 anos com Miranda do Corvo

Casal Carlos Garcia e Helena Branco adquiriu e recuperou uma casa no Gondramaz

Viver no Portugal dos Pequenitos Carlos Garcia regressou ao Gondramaz depois de 30 anos em Lisboa. Sobrinho do escultor Carlos Rodrigues, assim que teve possibilidade, comprou uma casa na aldeia que o viu nascer e apostou na sua recuperação. Hoje, com 69 anos, desloca-se ao Gondramaz todas as semanas, «às vezes mais do que uma vez», mas radicou-se na vizinha aldeia de Souravas, na freguesia de Vila Nova, a terra da esposa. «Recuperámos a casa que era dos meus pais», conta Lurdes Branco. «Lá temos mais espaço» e condições para ter uns animais e cultivar uma horta, adianta o marido. Para Maria de Lurdes, a casa do Gondramaz é «uma casa de bonecas». «Isto parece o Portugal dos Pequenitos», diz, com simpatia e um largo sorriso.

À semelhança de muitos dos rapazes e raparigas da sua idade – inclusive os dois irmãos – Carlos Garcia “fugiu” para Lisboa na década de 60. Passou 10 anos na indústria hoteleira e sonhava estabelecer-se por conta própria. «Mas não havia “massa” para isso». Acabou por ficar a trabalhar na empresa de telefones até aos 55 anos, altura em que entrou na pré-reforma. Uma “fuga” a uma vida dura e difícil. «Os meus pais não sabiam ler em escrever», afirma. Frequentou a escola até à 4.ª classe. «Íamos a pé para a Pereira» e embora o rancho de garotos fosse pelos atalhos, «eram à volta de seis quilómetros». «Todos os dias, de Verão e de Inverno». «Levávamos uma bucha na sacola, um queijito de cabra, um bocadito de presunto, se havia, um

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bocado de broa. Era um tempo muito duro», recorda. «As pessoas tinham que trabalhar no campo para viver e para vender», de forma a poderem comprar «a massa, o café, alguma roupa». «Vendia-se mel, castanha, cereja, as galinhas, os ovos e as cabras. A criação raramente era para consumir em casa. Era tudo para vender», diz ainda. Toda a gente trabalhava na agricultura, recorda, fazendo notar que as pequenas leiras de terreno, em socalcos, a acompanhar a encosta, eram todas cultivadas à força de braços. «Só nos últimos anos houve uns boisitos», mas, alerta, poucas eram as terras que podiam lavrar, dada a sua escassa dimensão. Produzia-se batata, feijão, milho, mas também castanha. «Os matos, a lenha, era tudo carregado às costas», adianta. Carlos Garcia lembra que o pai ainda ganhou algum dinheiro a fazer carvão. «Usavam-se as cepas de bitoiro e ficava uma semana a arder», debaixo da terra. «Era uma vida dura, por isso, quando pudemos fomos embora. Uns para o Brasil. Outros para Lisboa», como foi o seu caso. Carlos Garcia adquiriu a casa nos inícios da década de 80 e, a pouco e pouco, foi recuperando. A primeira casa e a outra em frente, com ligação. Para o casal, a “casinha de bonecas” dava na perfeição. Mas a família cresceu e aos dois filhos já se juntaram quatro netos, residentes na Amadora, que «adoram vir para aqui». Por isso foi necessário alargar a casa. Mantém-se o espírito do Portugal dos Pequenitos na organização e distribuição das divisões, onde não falta uma churrasqueira, a aconchegante lareira e um forno dentro da cozinha, onde Lurdes Branco coze pão. Todas as semanas, às vezes mais do que uma vez, o casal viaja de Souravas rumo a Gondramaz. «Enquanto for vivo, venho cá sempre», garante Carlos Garcia. 


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90 anos com Miranda do Corvo Associação Abutrica

À CONQUISTA DO TÍTULO DE CAPITAL DO TRAIL 2009 Em Fevereiro de 2009 nascia oficialmente a Associação Abutrica, uma aposta no desporto de natureza que atingiu o cume do sucesso em 2019 com a organização do Campeonato do Mundo de Trail

Trilho dos Abutres representa um chamariz para atletas de todo o mundo

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oram 45 quilómetros de prova. Um «percurso verdadeiramente notável», nas palavras de Jonathan Albon, que cortou a meta, instalada na Praça José Falcão, em primeiro lugar. Uma vitória para o inglês e a concretização de um sonho para a Associação Abutrica. «Conseguimos ter aqui 54 selecções de todo o mundo, o respectivo staff e jornalistas. Mais de 500 pessoas», recorda TiagoAraújo, presidente da direcção. Além do muito público, que fez questão de acompanhar os melhores atletas do mundo, que, pela pri-

meira vez disputavam em Portugal, mais precisamente em terras de Miranda do Corvo, o Campeonato Mundial de Trail. Aconteceu no dia 8 de Junho de 2019. «Foi algo nunca visto», refere o presidente. «Dificilmente conseguiremos captar tanto público nos próximos anos», adianta, destacando o inexcedível apoio dos municípios de Miranda do Corvo e de Coimbra, mas também da Associação Internacional de Trail, da Federação Portuguesa deAtletismo, do Turismo de Portugal. Fundamental, faz notar, foi a organização e a complexa lo-

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gística que envolveu, assumida integralmente por voluntários. Foi sublinha, «um passo importante para a Associação Abutrica, para o Trail e para Miranda do Corvo». Confessa que a organização do Campeonato do Mundo foi «uma ambição da Associação», tendo em conta o crescimento, com a participação de «muito atletas de elite» no Trilhos dos Abutres. A ideia surgiu em 2016/17, mas com uma carga de “impossível”. Um dos primeiros passos foi o contacto com o vice-presidente daAssociação Internacional de Trail, o português José Carlos Santos, e surgia, também, o primeiro apoio. «Parecia a história da tartaruga e do coelho», recorda o responsável, com oito fortes candidaturas a disputarem a organização do mundial. «Fomos ganhando pontos». Decisivas terão sido as três visitas efectuadas pelos inspectores. «Tínhamos a estratégia bem definida e organizada e conseguimos convencê-los. Estava tudo pensado ao pormenor, sempre em regime de voluntariado». O Campeonato do Mundo de Trail, disputado a 8 de Junho de 2019, foi um sucesso. «Foi o evento mais competitivo e participado de todos os mundiais», dizia na altura TiagoAraújo, destacando a «afluência de público» e a representação de «54 países e 416 atletas de todo o mundo». «É um momento histórico para Miranda ado Corvo, graças ao trabalho, empenho e dedicação da Associação Abutrica. Foi a concretização de um sonho que a Associação abraçou», referia, por seu turno, Miguel Baptista, presidente da Câmara Municipal. Nas declarações, publicadas pelo Diário de Coimbra no dia 9 de Junho, o autarca destacava a realização de «uma grande prova, que demonstra as extraordinárias qualidades que o território tem para a prática desta modalidade».


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Associação Abutrica 90 anos com Miranda do Corvo

Actividades sempre em crescendo Era a subida ao primeiro lugar do podium de uma colectividade que nasceu oficialmente em Fevereiro de 2009. Tiago Araújo, também um dos fundadores, lembra as origens, em 2003, com um grupo de jovens que se encontrava todas as semanas para treinar futsal. Nessa altura, o município organizou um torneio de 24 horas de futsal e o grupo resolveu participar. Era preciso um nome, que não existia. «O nomeAbutres veio à baila e ficou Clube Abutres». O futsal continuou e os torneios também. Aos cerca de uma dezena, dezena e meia de fundadores foram-se juntando outros. Todos amantes do desporto. Desde o downhill, às motos e ao todo-o-terreno. Sempre com a Serra da Lousã como espaço de eleição. «Em 2008 elegemos os Abutres do Ano, uma homenagem a pessoas que se destacaram pela sua actividade», recorda. Um dos “Abutres” foi o vereador Rui Godinho, que já via nesta colectividade uma organização promissora e desfiou os Abutres a avançarem com a sua oficialização. O que viria a acontecer pouco depois, em Fevereiro de 2009. «Eu e o Rui Godinho fomos fazer

Jonathan Albom foi o vencedor da prova

o registo ao Notário», refere Tiago Araújo. Com a formalização daAssociaçãoAbutrica, ganharam dinâmica as diferentes valências. Logo em 2010 refere a revitalização do «mítico torneio de futsal» que nos anos 70 se realizava em Miranda e esteve décadas parado. «Fizemos 10 edições seguidas». Também se criou um passeio todo-oterreno, igualmente com 10 provas e 13 edições para os amantes do Rover. Ainda em 2009 nasceu uma campanha solidária, com uma caravana de jipes, carregados

Centro de Alto Rendimento de Trail é o próximo desafio «Consideramos que o trail se pode expandir muito mais», diz Tiago Araújo. Para o presidente da Associação Abutrica esta é uma «modalidade muito importante», que tem «condições de excelência em Miranda do Corvo» e «ainda carece de atenção». A resposta está na criação de um Centro de Alto Rendimento. O desafio, confessa, foi lançado numa videoconferência, em Fevereiro, que assinalou o aniversário da colectividade, e reuniu um conjunto de interlocutores de eleição. O presidente da Federação de Atletismo lançou a ideia e a Associação Abutrica está a acalentar um novo sonho. «Seria um centro com o foco na formação, na captação de jovens talentos e sua monitorização», refere Tiago Araújo. A sustentar a ideia está o facto de, em Portugal, só existirem «três/quatro atletas com estatuto de

alta competição em trail», o que atesta a «necessidade de desenvolver a competitividade». Por outro lado e em simultâneo, é real a «necessidade de criar um conjunto de actividades para captar e promover o turismo outdoor e de natureza», reconhece o responsável, alertando, mais uma vez, para o potencial de Miranda e da Serra da Lousã nesta área e para o grande número de pessoas que pode atrair. Este Centro de Alto Rendimento seria a «consagração do trail». «É muito mais do que qualquer Campeonato do Mundo, porque é uma passagem de testemunho para a próxima geração. Um testemunho de competitividade, sim, mas sobretudo dos valores do desporto, do ambiente, da solidariedade», afirma. O presidente já sonha com um edifício no centro da vila,

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com material escolar a viajar rumo a Marrocos. Arrancavam, igualmente, a provas de downhill, BTT e trail. «Em 2010 criámos os Abutres Running Team», refere, recordando um grupo de amigos que começaram a dedicar-se ao trail e a perceber que «Miranda, a Serra da Lousa, tinha grande potencial para provas de trail». Nessa altura «havia poucas provas em Portugal, agora são mais de 500».Aprova fez-se e o sucesso chegou. «O “boca-a-boca, entre atletas”foi-nos dando ânimo» e despertava Miranda do Corvo para a «promoção do turismo de natureza». «Crescemos em várias áreas, sobretudo o Trilhos dos Abutres», uma prova icónica, que, nos últimos anos, tem marcado o calendário desportivo e que esteve na base da organização do Campeonato do Mundo, que a Federação Internacional de Atletismo considerou «a melhor». «O trail acaba por ser o nosso grande foco», confessa Tiago Araújo. Isso levou, bem antes, à criação de uma escola de trail e, em colaboração com o município e com os Baldios de Vila Nova, de um Centro de Estágios, sediado em Vila Nova, onde confluem vários trilhos, com graus de dificuldade diferentes. 

«aberto à comunidade». «Um edifício para todos, que desenvolva condições para a inclusão», destaca, apontando parcerias com a Casa do Gaiato, com a ADFP, por exemplo. «O trail pode ser para qualquer pessoa e é importante ter esta visão futura, assente nos valores ecológicos, num edifício multifuncional e sustentável do ponto de vista ambiental». Tiago Araújo não tem a mais pequena dúvida de que o projecto será «muito importante para Miranda do Corvo» e que carece do «apoio e colaboração» de todos. Destaque especial para o município, mas também para o Turismo e para as Universidades. «Temos de envolver todas as entidades e todas as pessoas para mais este passo, marcante para a Associação, para o trail e para Miranda do Corvo». Confiante e optimista, Tiago Araújo recorda que também a organização do Campeonato do Mundo parecia impossível, mas fez-se. O Centro de Alto Rendimento é a próxima meta. Quando for uma realidade, então sim, Miranda do Corvo poderá afirmar-se como a “capital do trail”. 


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90 anos com Miranda do Corvo Alto do Calvário

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RENOVAÇÃO DO ALTO DO CALVÁRIO 2013 A Torre, último vestígio do antigo castelo, recuperou o simbolismo de outrora, como espaço de observação do território. Agora sob a forma de um miradouro

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ecuperar a dimensão simbólica» foi o desígnio que orientou o trabalho do arquitecto Carlos Antunes, do Atelier do Corvo, no projecto de requalificação da chamada Torre Sineira, o último vestígio do Castelo de Miranda do Corvo. Uma fortificação que faz parte da Rede de Castelos e Muralhas do Mondego e integrou, no início do processo da Reconquista Cristã, a linha defensiva da cidade de Coimbra. «Seria uma torre de menagem», esclarece, dando nota que uma torre «é um acto de exibição, de poder, mas também, do ponto de vista estratégico, um local de contemplação, de vigia e controlo do território». Os sinos sobrevieram depois no tempo. Possivelmente aquando da construção da igreja, no século XVIII (que substituiu a anterior, em ruínas). Quanto às ameias, datam dos anos 30/40 do século passado. Um «processo de romanização», lançado pela então Direcção-Geral dos Monumentos, que se replicou pelo país e deixou aqui a sua marca. «Ameias falsas, quase infantis», diz Carlos Antunes, para quem a torre seria, até então, «uma torre de quatro águas, vulgar, uma deriva da original». A proposta do Atelier do Corvo foi no sentido de recuperar o simbolismo da torre, «que foi lugar de vigia, e recuperar a dimensão de contemplação do território, transformando a torre militar num miradouro que permitisse ver e sentir o território», tornando o espaço acessível, como lugar de observação, de miradouro. ATorre Sineira «estava cheia de estruturas espúrias, intervenções de betão que desqualificavam o espaço», além de colocarem «em risco a própria estrutura», refere. A proposta foi esvaziar esse miolo e avançar com a «construção de uma grande escada de madeira». Uma estrutura que surpreende pela força que dela emana. Pela simplicidade que transmite. Toda a intervenção, na escadaria, gradeamento, piso e cobertura do miradouro foi efectuada em madeira. A subida é um tanto abrupta. De um lado a presença da madeira, do outro… um vão vazio e, depois, a parede. Mas, quando chegamos lá acima sente-se que vale a pena. A

Torre Sineira é também miradouro

Cristo-Rei foi oferta de um benemérito

paisagem é de “cortar a respiração”. Um miradouro que, doAlto do Calvário, permite estender o olhar a perder de vista. Um ângulo de 360.º… sem qualquer obstáculo a toldar esta ampla visão. Aantiga cisterna é outro dos testemunhos do antigo castelo. «Tinha três metros de lixo», refere o arquitecto. «Removemos o lixo e ganhou uma dimensão monumental». O objectivo seria criar uma galeria que ligasse a torre à cisterna e implementar um núcleo museológico onde se reunissem todos os vestígios. Todavia, «quando começámos a fazer os exercícios, descobriu-se a necrópole», recorda. Um achado que inviabilizou esta ligação. No entanto, a «relevância cultural» da necrópole exigia uma solução, que tornasse o espaço visitável, mas longe de «fazer da morte um espectáculo».Assim, foi projectada uma cobertura de betão ajardinada, junto à Torre Sineira, que protege as sepulturas, «possibilitando a sua visita apenas pela quota baixa», com o visitante a ficar a um nível inferior às sepulturas escavadas na rocha. As “esferas de luz” assinalam, no exterior, a «cabeceira de uma das sepulturas», ao mesmo tempo que «iluminam natural-

mente o interior». «Funciona muito bem», diz, satisfeito, destacando o efeito da solução cénica. «Não vemos directamente as sepulturas. A morte não deve ser um espectáculo», afirma. Por isso, o tecto espelhado, em aço polido, permite ver o seu reflexo, em «respeito pela dignidade da morte». O acesso à necrópole é feito a partir do interior da torre e somos surpreendidos pelo intimismo do espaço. Logo à entrada, vêem-se duas sepulturas escavadas na rocha. A sua pequenez indicia claramente tratar-se de crianças. A luminosidade difusa dá a necessária solenidade aos sepulcros. A obra ficou concluída em 2013 e alimentou muitas discussões e o “falatório” da vila. As opiniões dividem-se entre quem acha esta solução inteligente e que dá dignidade à torre e os que criticam a “capoeira de galinhas”. Miguel Baptista, presidente da Câmara, considera-o «um projecto bem sucedido». Lembra que remonta ao executivo que o precedeu, mas executado no seu primeiro mandato. A empreitada envolveu a reabilitação do Alto do Calvário, Torre e Cisterna, altares da Igreja Matriz e a Casa do Design. «Quatro acções concertadas», que resultaram em pleno. Por seu


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Alto do Calvário 90 anos com Miranda do Corvo

lado, Carlos Antunes e Désirée Pedro, fundadores, há 25 anos, do Atelier do Corvo, viram a sua obra consagrada com a conquista do segundo lugar do Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira 2019. Carlos Antunes ainda não dá a obra por terminada. Conquistado pela beleza rude da estrutura que sustenta o Cristo-Rei, anda a “magicar” uma solução para o local. Surpreendente, com toda a certeza.

Do Caramito ao Alto do Calvário A actual configuração do Alto do Calvário data dos anos 30/40 do século passado, no quadro de um projecto liderado pelo padre Coimbra e suportada economica-

mente por um benemérito, radicado no Brasil, Mário Antunes. O espaço estaria bastante degradado e foi concebido um arranjo urbanístico que envolveu o nivelamento do cume do monte e a limpeza da cisterna (que chegou a ser usada como ossário do cemitério).Atorre, último resquício do castelo, já anteriormente transformada em torre sineira, ganhou ameias e um relógio. Em redor do monte nasceu a ViaSacra. São 14 painéis, de uma grande beleza, que retratam a derradeira caminhada de Cristo, desde o Pretório ao Monte do Calvário. Uma obra com a assinatura do ilustre artista monsenhor Nunes Pereira. Terá sido na sequência da criação da Via-

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Sacra que o até então denominado Camarito passou a ser chamado Alto do Calvário, explica o historiador do município, António Rodrigues. Também data desta época a imagem do Cristo-Rei. Segundo o historiador, o benemérito terá reunido com o padre Coimbra e com monsenhor Nunes Pereira e, juntamente com outras pessoas da terra, terão visitado a Serra da Marofa, em Figueira de Castelo Rodrigo, onde existe uma imagem do Cristo-Rei.Aexistente noAlto do Calvário terá sido feita à margem e semelhança daquela. Hoje é um ícone. A Igreja Matriz, a Torre Sineira e o Cristo-Rei zelam e abraçam a vila lá de cima, do Alto do Calvário. 

Uma necrópole surpreendente

Necrópole é visitável e está acessível a partir da Torre Sineira

Em Maio de 2011 arrancava o projecto de prospecção arqueológica, visando encontrar vestígios do traçado original da muralha do antigo castelo, que precedeu a intervenção no Alto do Calvário e trouxe algumas surpresas. Mas poucas respostas relativamente à muralha. A equipa de arqueólogos, coordenada por Vera Santos e pelo antropólogo Flávio Simões, com a coordenação científica de Helena Catarino, da Universidade de Coimbra, começou a prospecção. De acordo com o relatório da equipa, junto à Torre Sineira foi descoberto o que seria o início do pano de muralha, que partia da Torre, no sentido Norte. «Seriam três a quatro metros», esclarece António Rodrigues, historiador da Câmara Municipal.

Todavia, o que chamou a atenção foi «a enorme quantidade de esqueletos» que a equipa começou a encontrar à medida que ia fazendo as escavações. Um dado que, a priori, não constitui grande surpresa, uma vez que «sempre se soube que, desde tempos imemoriais o monte foi usado como cemitério». A «surpresa» foi mesmo a descoberta de «sepulturas escavadas na rocha». Trata-se, esclarecem os arqueólogos, de uma prática que é comum no Norte, mas não na região Centro. Ou seja, foi encontrada uma raridade. De acordo com o relatório, as escavações revelaram 28 sepulturas, das quais foram escavadas 24. Destas, 14 de não adultos, quatro de adolescentes e quatro de adultos. Adatação coloca as ossadas entre os séculos

XI e XII, o que coincide com as primeiras referências documentais a Miranda do Corvo. Entre as curiosidades, destaca-se uma mulher grávida e um esqueleto de alguém com uma perna partida. Foram ainda feitas mais duas escavações, uma junto à antiga cisterna, onde foram encontrados mais esqueletos. Uma terceira, ao fundo da escada cénica, revelou duas sepulturas onde o enterramento foi efectuado «de acordo com a tradição islâmica», refere o relatório da arqueóloga Vera Santos, com os corpos em posição lateral. Estas ossadas poderão remontar aos séculos VIIX. Relativamente às restantes, serão dos séculos XV e XVI e reflectem um «enterramento mais arbitrário». Do castelo pouco se sabe, assumeAntónio Rodrigues. «Seria um pequeno castelo, mas não sabemos quantas torres tinha, qual era o espaço muralhado. Só sabemos que existiu, que foi importante e pertenceu à linha de defesa de Coimbra, funcionando como um tampão contra o avanço dos muçulmanos pelo lado Sul». Todavia, com o processo de Reconquista a ganhar terreno, à semelhança do que aconteceu com outros castelos, também o de Miranda do Corvo perdeu importância.Adegradação começou e muitas das suas pedras foram usadas pela população na construção de casas. Um facto que, sublinha, levou a Câmara a publicar uma lei que proibia essa utilização. Todavia, o próprio município terá prevaricado, recorrendo às pedras que restavam para erguer uma ponte... 



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Senhor da Serra 90 anos com Miranda do Corvo

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DEVOÇÃOI AO DIVINOI SENHORI DA SERRAI

Hospedarias do Santuário e casas da aldeia eram escassas para acolher a multidão de romeiros que se deslocavam ao Senhor da Serra

1980 Os anos 70/80 do século passado imprimiram um novo paradigma à vivência dos romeiros. O Santuário continua o mesmo, mas perdeu-se a grandiosidade da festa

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h! Se me lembro! Eram 15 dias de festa!». Os olhos de Alfredo Carvalho Ricardo, de 80 anos, brilham com a recordação. «Era uma grande festa». Apesar da povoação ser pequena, «tinha cinco bailes, com as melhores orquestras daquele tempo», esclarece o escriturário do Santuário do Senhor da Serra. Sim! os cinco bailes eram todos em simultâneo. Realizados nas “lojas” e pátios das casas e «a pagantes», faz notar. «As velhotas da rua aqui abaixo passavam a noite a fazer café e havia cinco ou seis tascas», montadas exclusivamente para servir os romeiros durante as duas semanas da romaria. De 15 a 23 de Agosto. Uma romaria de eleição, que atraía gente dos campos do Mondego, das Gândaras, de Aveiro. Devotos do Santo Cristo que ali iam pagar as promessas. «Eram milhares de pessoas». Uma festa que foi grande e que terá começado a decair «talvez há uns 40 anos», pelas contas de Alfredo Ricardo.

Além da fé, o escriturário do Santuário, que ocupa essa função há cinco anos, tem uma explicação sábia para a ascensão e queda da romaria. «Não havia estrada» e no lamacento caminho não se andava nada bem. Por isso, os peregrinos «vinham de comboio até ao apeadeiro da Trémoa. Depois, subiam serra acima, pela mata. Como não havia uma estrada em condições ficavam cá às semanas», explica. Para acolher os romeiros toda a aldeia se mobilizava. As casas tinham, recorda, dois a três quartos, mas todas possuíam uma sala bastante grande e era aí que as famílias ficavam. «Cada casa tinha umas 20, 30, 40 pessoas» e «ficavam aqui pelo menos oito dias». «As férias eram passadas no Senhor

Alfredo Carvalho Ricardo

da Serra». Além do alojamento particular, o Santuário também ergueu as suas próprias hospedarias. Com lotação esgotada, numas e noutras. «As coisas começaram a decair a partir do momento em que a estrada foi arranjada», refere Alfredo Ricardo. Uma obra patrocinada por um benemérito da terra, José Pereira Cardoso, emigrado no Brasil, cuja memória o Santuário preserva. Trata-se da ligação a poente ao Senhor da Serra, vinda de Ceira. A estrada revolucionou a vivência da romaria. Não significa que os romeiros tenham deixado de ir ao Santuário. Deixaram foi de ficar dias a fio. «Quem vinha, almoçava e depois ia embora», afirmaAlfredo Ricardo. Todavia, o escriturário do Santuário também está convicto que o crescimento do Santuário de Fátima contribuiu para «as coisas começarem a decair» no Senhor da Serra O romaria realiza-se todos os anos, entre 15 e 23 de Agosto. O padre João Paulo Fernandes gizou um figurino de celebrações que veio para ficar. Um programa que inclui todos os dias momentos de oração, que permitem aos romeiros uma participação activa. A data continua a ser de festa, e não falta um programa de animação. Muito longe, é certo, da grandiosidade de outrora. 


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90 anos com Miranda do Corvo Senhor da Serra

Santuário grato aos beneméritos No coração da Serra, lá bem no alto, avista-se um mundo. Em dia de céu limpo vê-se o mar da Figueira da Foz e, no lado oposto, a Serra da Estrela. Miranda, Lousã, Coimbra, Poiares, avistam-se na perfeição. O largo do Santuário, outrora em terra batida, foi requalificado em 2009, no tempo do padre Jorge da Silva Santos. Mas é ao padre Pedro dos Santos (falecido em 2008), que se repetem os agradecimentos pelo seu notável empenho na revitalização do culto ao Divino Senhor da Serra. Os romeiros da Carapinheira e de Tentúgal imortalizaram o seu agradecimento numa placa. Mas todo o Santuário agradece ao antigo pároco a sua entrega ao Divino Senhor da Serra, a defesa e a promoção do Santuário. Um busto, em bronze, inaugurado em Julho de 2010, é disso testemunha. Alfredo Ricardo não resiste e lembra que, no tempo do padre Pedro o Santuário “facturava”«milhares de contos». «Agora são meia dúzia de euros», resultantes da missa que «o Manel ou a Maria mandam rezar», desabafa. Ao busto do padre Pedro dos Santos junta-se outro. Igualmente de homenagem e agradecimento. Este dedicado a D. Manuel Correia Bastos Pina (1833-1913), bispo-conde de Coimbra, natural de Carregosa, Oliveira de Azeméis, e o grande benemérito, responsável pela construção do Santuário, no local onde antes se erguia a modesta capela, mandada erguer pelas monjas do Mosteiro de Semide, em 1653-1663. A construção do Santuário terá começado pelas hospedarias, em 1899, seguindo-se a Igreja e a respectiva torre, em 1901. A Igreja é um exemplar da arquitectura revivalista, muito em voga nos finais do século XIX, um estilo neo-romântico. O altar-mor é uma reprodução, à escala,

Altar da Igreja do Santuário

do altar da Sé Velha de Coimbra, executado sob orientação de João Machado. Uma boa parte das imagens dos alteres laterais são provenientes da Misericórdia de Coimbra. Os vitrais foram executados sob a direcção do prof. Lapierre e os azulejos, com cenas da vida de Jesus, feitos sob orientação de António Augusto Gonçalves. As pinturas do tecto são uma obra de Eliseu de Coimbra e o púlpito de pau preto é uma obra do século XVII, originária da Sé Velha. A icónica imagem do Senhor dos Passos, Cristo carregando a Cruz, da autoria de António Augusto Gonçalves, está numa pequena capela exterior, rodeada por centenas de fotografias. Imagens de fé, recentes, ancoradas nos muitos milagres do Senhor. Os painéis que embelezam os bancos do Santuário, testemunham muitos dos milagres do Senhor da Serra. Todavia, o desgaste do tempo não perdoa e muitos só por milagre se adivinham. Também à espera de um milagre está o fontanário, vítima da rotura de um depósito de 50 mil litros, que provoca inúmeras infiltrações.

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Fé e milagres A devoção ao Senhor da Serra remonta ao século XVII, quando Martim Avô e a sua mulher, Maria Guilhermina, naturais da freguesia de Ceira, colocaram uma imagem, talvez em cumprimento de um voto, num sítio próximo do local onde hoje está a povoação de Vendas da Serra. A fama milagrosa da imagem depressa se espalhou, atraindo peregrinos de toda a parte, dando origem a uma das maiores romarias da região Centro. Numa das suas viagens, os criados do Mosteiro de Semide levaram a imagem para as monjas – que não saíam do Mosteiro – a venerarem e estas mandaram fazer um nicho no Senhor da Serra, no sítio do Cruzeiro. Todavia, vendo que o nicho em questão não era condizente com a imagem nem com o fervor que esta inspirava, mandaram construir uma capela, para onde foi levada a imagem, em 1653. O actual Santuário, uma resposta ao crescimento exponencial da romaria, surge pela acção benemérita do bispo-conde de Coimbra, D. Manuel Correia Bastos Pina. 

Busto do padre Pedro dos Santos


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Mosteiro de Semide 90 anos com Miranda do Corvo

Diário de Coimbra

MOSTEIRO À ESPERA DE RECUPERAÇÃO 1990 As chamas deflagraram em Agosto de 1990 e deixaram marcas profundas de destruição. Recuperação continua à espera de conclusão. Projecto existe. Falta dotação orçamental

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icou tudo destruído». Jorge Manuel Brandão tem viva a memória do grande incêndio que, em 16 de Agosto de 1990 deflagrou no Mosteiro de Santa Maria de Semide. O alarme, escrevia o Diário de Coimbra foi dado «cerca das 14h30, na tipografia velha, onde a Cáritas tinha armazenada alguma lenha, propagando-se depois à sacristia, ameaçando a abóbada da igreja. Bombeiros e populares retiraram, do interior da igreja o que foi possível». Entre aqueles que, com heroísmo, tentaram salvar os tesouros do mosteiro estava Jorge Manuel Brandão, de 66 anos. É o sacristão da igreja. Funções que já ocupava em 1990. «Já cá estou há 43 anos», afirma. Com emoção recorda a imagem de Cristo Crucificado que conseguiu retirar da sacristia. Mas também um quadro, que, com a ajuda da filha, retirou a tempo. Pior sorte teve outro quadro, em chamas, que não foi possível recuperar. João Manuel Brandão lembra esse dia trágico. «Arderam os andores todos». Um dia de má memória. Na edição do dia 18, o Diário de Coimbra voltava a falar no incêndio. «Asacristia e praticamente todo o seu recheio, constituído por paramentos antigos, alfaias litúrgicas e outros objectos de prata do século XVII, de valor incalculável, foram destruídos pelo incêndio». «A tipografia do Convento, onde estava prevista a criação de um núcleo museológico, com as máquinas ali existentes e com outras já localizadas para o efeito, foi igualmente destruída pelo fogo», adiantava o jornal, que imputava a responsabilidade do fogo a «um jovem, com cerca de 20 anos, que aparenta sofrer de perturbações mentais». Um aluno da Escola Profissional de Semide, que, «confessou, no local do sinistro, perante a GNR, ter sido o autor do incêndio, embora tenha feito afirmações contraditórias», escrevia o jornal. «O fogo foi combatido pelos Bombeiros Sapadores e Voluntários de Coimbra e pelas corporações de Brasfemes, Miranda do Corvo, Penela e ainda pelos meios aéreos da pista da Lousã», adiantava. Luís Martins, presidente da Liga dos Amigos de Santa

Claustro Quinhentista, único na região, foi recuperado na segunda fase da obra

Maria de Semide, também recorda a data. «Lembro-me de uma viatura dos Bombeiros de Penela a impedir o acesso ao Mosteiro. Lá em cima estava tudo a arder!». Mas este não foi o único incêndio que deflagrou no Mosteiro, classificado como Imóvel de Interesse Público em 1993. Com efeito, o velho monumento, fundado em 1154, sofreu um devastador incêndio em 1664, que destruiu grande parte do edifício, que foi reconstituído e inaugurado, com a actual igreja, em 1697. Em 1964, o mosteiro sofreu novo incêndio, que destruiu a ala poente. Em 1990, «foi a gota de água» num espaço já bastante degradado e a carecer

Jorge Manuel Brandão, sacristão da igreja

de intervenção. O claustro quinhentista, «único na região», sublinha Luís Martins, que ainda tinha alguns painéis de azulejo originais, ficou completamente destruído. Em 1999, a recuperação integral do Mosteiro foi alvo de um protocolo entre o Instituto do Emprego e Formação Profissional e a Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais. A obra, distribuída por três fases, arrancou em 2003, com a consolidação e cobertura dos edifícios ardidos, concluída no primeiro trimestre de 2004. Entretanto, na sequência de um temporal, em Novembro de 2006, o degradado claustro quinhentista ruiu parcialmente. Depois de vários anos de luta, a reconstrução deste espaço arrancou em 2015 e terminou em Março de 2016. «Antes da recuperação isto estava transformado num monte de silvas», refere Luís Martins, que nos apresenta o sóbrio e elegante claustro, que conjuga em perfeita harmonia a pedra e a madeira. «Foram recuperados alguns painéis de azulejos», explica o arquitecto, que sublinha a impossibilidade de ir mais longe, uma vez que os painéis, do século XVII, «não obedecem a um padrão». No nicho, «fez-se a recuperação possível». «Falta um elemento,


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que estaria no centro, mas desapareceu», explica. Igualmente desaparecida está a “pedra de fecho” da porta manuelina, com dois arcos, que está ancorada numa estrutura de madeira. Mesmo sem “pedra de fecho”, fica a faltar a «estabilização da ligação com a ala nascente do dormitório, refere. Aliás, os arcos exteriores do claustro estão entaipados com estruturas de madeira, de forma a evitar uma queda de alguns metros. O incêndio destruiu os dormitórios que existiam no piso superior. Em baixo funcionava uma tipografia. Restam as paredes e um conjunto de arcadas do segundo claustro à espera de uma intervenção. «As fases 1 e 2 estão concluídas. Falta a terceira fase», faz notar o arquitecto, que aponta, “por baixo”«um orçamento superior a um 1.500 mil euros». Uma obra que está sinalizada no Pacto para o Desenvolvimento e Coesão Territorial da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC). «Mas a dotação orçamental está a zero», faz notar. A Liga dos Amigos de Santa Maria de Semide fez pressão para colocar a obra no Plano de Recuperação e Resiliência.

90 anos com Miranda do Corvo Mosteiro de Semide

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Mosteiro de Santa Maria de Semide é um ícone do património da região

A terceira fase da obra inclui a conclusão das alas adjacentes ao claustro quinhentista e os arranjos exteriores. O projecto contempla a criação de um auditório, na ala Sul, onde outrora eram os dormitórios das monjas. O incêndio apenas deixou as paredes, entretanto consolidadas, e foi colocado o telhado. «Faz todo o sentido instalar aqui um auditório», defende Luís Martins. «Seria um espaço ao serviço da população». Também para esta ala estão previstas salas de

exposição e de formação. Aterceira fase da obra inclui a reabilitação do Passal, actualmente com um pomar de laranjeiras semi-abandonado. O velho celeiro também faz parte do projecto. «Sempre conheci o celeiro em ruínas», confessa Luís Martins. Sem telhado, apenas se mantêm os periclitantes beirais e as paredes exteriores. Uma obra que está “fora”da estimativa dos 1,5 milhões de euros. Uma e outra sem horizonte de concretização. 


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Mosteiro de Semide 90 anos com Miranda do Corvo

O paraíso das monjas Erguido em 1154 pelos irmãos D. João e D. Martins de Anaia, o primeiro bispo de Coimbra e o segundo cavaleiro de D. Afonso Henriques, o Mosteiro começou por albergar os monges beneditinos, mas em 1183 foi convertido em mosteiro de freiras, com Sancha Martins, neta de Martim de Anaia, a assumir funções de primeira abadessa do mosteiro, pertencente à Ordem de São Bento. Em 1610, D. Afonso de Castelo Branco, bispo de Coimbra, fez deslocar as monjas para o Convento de Santa Ana, a pedido do Papa Paulo V, que mandou extinguir o Mosteiro de Semide. Uma mudança que não agradou às monjas, que depressa reclamaram o regresso ao “paraíso”, forma como designavam o Mosteiro de Semide, o que aconteceu. A extinção das ordens religiosas obrigou as monjas a desfazerem-se de parte dos seus bens para garantirem a sua sobrevivência, uma vez que ficaram desprovidas das rendas que recebiam. A última monja, Maria dos Prazeres Pereira Dias, morreu em 21 de Agosto de 1896. Morte que ditou a extinção da comunidade beneditina do Mosteiro de Semide. No início do século passado o Mosteiro foi cedido à Junta Distrital de Coimbra. Bissaya Barreto, instalou ali, em 1931 aquela que terá sido a primeira Escola Profissional de Agricultura do país e também um asilo para jovens. Hoje, o Mosteiro acolhe um pólo do CEARTE e uma valência da Cáritas Diocesana de Coimbra. Às monjas de Semide são atribuídas várias especialidades gastronómicas da região, directamente relacionadas com as rendas que recebiam, designadamente a chanfana, os negalhos e a sopa de casamento. Ao nível da doçaria, referência para as nabadas, uma compota feita à base de nabos e açúcar, que será um dos poucos doces conventuais sem ovos, e as súplicas, uma espécie de pão-de-ló. 

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Altar e órgão recuperados

Órgão da Igreja voltou a tocar em 2007

Em 2016, ficaram concluídas as obras de recuperação do altar-mor da Igreja, datado do século XVII, que estava em avançado estado de degradação, ameaçando ruína. Uma equipa de especialistas garantiu a empreitada, paga integralmente pelo município de Miranda do Corvo, que aprovou, por unanimidade, um subsídio de 43.755 euros para custear a empreitada. Com uma rica talha dourada, o altar apresenta dois nichos, com imagens de S. Bento e de sua irmã gémea, Santa Escolástica, que serão do século XVII/XVIII. Da responsabilidade da Fábrica da Igreja foi efectuada a restauração dos caixotões do tecto da capela-mor, que representou um investimento de 32.485 euros. Antes, em 2007, a Igreja do Mosteiro, pertencente à paróquia, viu recuperado o órgão, do século XVIII, atribuído a António Xavier Machado e Cerveira, que esteve durante largos anos calado. A recuperação, orçada em 140 mil euros, foi suportada em dois terços pelo Estado, sendo o restante repartido entre o município e a paróquia. A 15 de Agosto voltava a ouvir-se música no Mosteiro. Na Igreja, destaca-se o antecoro, com uma imagem de S. Bento, em pedra, da segunda metade do século XVI. Um espaço com azulejos de rosáceas dos finais do século XVIII, de Coimbra, coroados com vasos de

flores. Este era o espaço de passagem das monjas do mosteiro para o coro. No Coro encontram-se os cadeirais, o órgão de tubos, dois altares e dois nichos com imagens de santos. A grade de ferro separava as monjas dos restantes fiéis. No corpo da igreja, encontram-se quatro altares laterais barrocos, com imagens dos séculos XVII e XVIII e o espaço está decorado com azulejos do século XVIII. Destaque-se, num nicho discreto, a imagem da Senhora da Boa Morte que, esclarece o sacristão, é trazida para o corredor central e exposta, todos os anos, entre 15 e 23 de Agosto. Os romeiros, a caminho do Divino Senhor da Serra, vão ali em devoção.

Liga dos Amigos de Santa Maria de Semide Criada oficialmente no dia 14 de Outubro de 2013, a Liga dos Amigos de Santa Maria da Semide tem como razão de ser a «defesa e salvaguarda do património cultural, artístico e arquitectónico de Semide, nas suas vertentes material e imaterial». Pretende, igualmente, aproximar a população do Mosteiro e promover a divulgação do monumento, da sua história e dos seus valores. «Este monumento é um ícone do concelho, juntamente com o Santuário do Senhor da Serra», sublinha Luís Martins, presidente da direcção. Ambos os monumentos estão classificados como de Interesse Público. «Queremos subir a fasquia» para a classificação como Monumento Nacional. O processo, iniciado em 2017, está a decorrer, aguardando o respectivo despacho da tutela. A Liga dos Amigos organiza conferências, promove anualmente o Encontro de Coros, marca presença em eventos de carácter medieval e garante visitas guiadas ao Mosteiro de Santa Maria de Semide e também ao Santuário do Senhor da Serra. Basta um telefonema ou o envio de um e-mail e a visita é combinada.  Luís Martins, da Liga dos Amigos de Semide



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CEARTE 90 anos com Miranda do Corvo

Cursos de Cozinha/Pastelaria e Restaurante/Bar são uma referência no pólo de Semide

FORMAÇÃO DE EXCELÊNCIA 1986 CEARTE instalou-se no Mosteiro de Semide com um projecto de formação. Um longo caminho trilhado com sucesso

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oferta de formação era quase inexistente na região» e o CEARTE – Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património decidiu instalar-se. A escolha recaiu no Mosteiro de Semide, onde foi criado, em 1986, o primeiro pólo deste Centro, que hoje é uma “bandeira”do CEARTE e de Miranda do Corvo, com uma formação de excelência, que envolve anualmente mais de meio milhar de formandos. O programa inicial de formação centrou-se, recorda o director, Luís Rocha, nos jovens institucionalizados no Lar de Santa Maria de Semide, dirigido pela Cáritas, contemplando a área da agricultura, sapataria e carpintaria/marcenaria, com um total de 40 formandos. Estava dado o pontapé de saída para um projecto de referência. «Fomos pioneiros, com o Agrupamento de Escolas José Falcão, nos cursos de educação e formação para jovens, nas modalidades de dupla certificação, nas parcerias entre Escola e Centro de Formação», afirma Luís Rocha, que destaca os «excelentes resultados», com os jovens a obterem equivalência ao 9.º e ao 12.º ano, mas, sobretudo, «formando homens e mulheres para a

vida». «A partir de Semide tornámo-nos num Centro de Formação ao serviço da região, contribuindo para formar os profissionais, os desempregados e os jovens». Uma resposta que, destaca o director, procura responder «às necessidades do tecido empresarial e social da região», através da «formação, certificação escolar e profissional», mas também «pelo empreendedorismo e pela consultoria». «Atraímos muitas pessoas de todo o país, damos visibilidade ao concelho e à formação». Um trabalho «assente em parcerias», com o município, Juntas de Freguesia, Serviço de Emprego, empresas, IPSS, associações de desenvolvimento, escolas, hotéis e restaurantes. «Parceiros decisivos e estratégicos no trabalho feito pelo CEARTE para o aumento das qualificações e a melhoria da empregabilidade da população». Um caminho que tem dado «bons resultados», que se pretendem potenciar no futuro.

Formação diferenciada Actualmente, o CEARTE tem em funcionamento cursos na área da Cozinha/Pastelaria e Restaurante/Bar. Luís Rocha faz notar as «excepcionais condições, ao nível dos equipamentos», a realização de «estágios de formação nos melhores restaurantes e hotéis da região, bem como «um histórico de excelentes resultados», designadamente com a formação de «campeões nacionais nestas áreas». «A taxa de empregabilidade

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muita elevada» constituiu outro “cartão-de-visita” destes cursos. Disponibiliza também uma ampla gama de formação na área da agricultura, com parceiros da região, «potenciando o facto de o CEARTE ser entidade formadora reconhecida pelo Ministério da Agricultura», nas áreas da agricultura biológica, formação para jovens agricultores, poda, aplicação de produtos fitofarmacêuticos e licença de condução de veículos agrícolas. Cursos estes destinados sobretudo a adultos activos, que decorrem em horário pós-laboral. Ainda na área agrícola, o CEARTE pretende alargar a formação para sapador florestal, estando a adquirir equipamento “topo de gama”e está disponível para «celebrar protocolos com entidades locais» para que a formação possa decorrer nas respectivas instalações. Luís Rocha lembra que, durante a pandemia, o CEARTE «reforçou largamente a sua oferta de cursos online para diferentes públicos e em diferentes áreas de formação». Destaca, igualmente, o Centro Qualifica, que desenvolve processos de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC) para adultos, para obtenção de certificação escolar ao nível do 6.º, 9.º e 12.º ano e também competências profissionais nas áreas de geriatria, acção educativa, cozinheiro, entre outras. Quando o confinamento terminar, o CEARTE pretende avançar com um curso de Técnico Especialista em Turismo Cultural e do Património. Trata-se de um curso recentemente aprovado, com um ano de duração, para pessoas com o 12.º ano. «É uma formação de elevada importância para a valorização dos recursos patrimoniais e culturais diferenciadores e importante na estruturação da oferta de recursos turísticos ao nível do turismo cultural, tão significativo e importante em Miranda do Corvo, no Pinhal Interior e em toda a região Centro», considera. Na calha está, igualmente, um projecto para «reforçar a formação na área do património», o que significa que, além do restauro de arte sacra, vai avançar uma formação na «área do restauro de mobiliário». Também calendarizado está um curso na área da Geriatria, para pessoas desempregadas, que procura responder às necessidades de formação das muitas instituições que trabalham na região com respostas sociais para os mais idosos 


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90 anos com Miranda do Corvo CEARTE

Preservar património cultural

Curso de Conservação e Restauro é um dos “ex libris” da formação do CEARTE

A “coqueluche” do pólo de Semide do CEARTE será o curso de Especialização Tecnológica de Técnico Especialista de Conservação e Restauro de Madeira – Escultura e Talha. Um projecto criado há cerca de uma década, «em parceria com o Instituto Politécnico de Tomar e o Departamento de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra», explica Luís Rocha. «É um dos poucos em Portugal nesta área», adianta. «Afalta de profissionais qualificados nesta área era gritante», recorda, salientando as muitas intervenções efectuadas no património de forma «incorrecta, por causa dessa falha». À lacuna constatada, juntou-se o facto de o Mosteiro de Semide se afigurar como o «local ideal para essa formação». Não apenas pelo seu simbolismo em termos patrimoniais, mas também pelo suporte instalado, designadamente «parque de máquinas de madeira, oficinas montadas e um bom laboratório». Trata-se de um curso de cariz pós-secundário, com 1.500 horas de formação, assente numa «forte componente científica e tecnológica, com oito meses de formação nas oficinas e laboratórios do CEARTE e três meses de estágio em empresas, museus e centros de restauro», explica o director. São 17 formandos, jovens ou adultos desempregados, com o ensino secundário, mas também adultos, muitos dos quais licenciados, que «pretendem uma reconversão/requalificação profissional». A formação pretende «habilitar especialistas a

efectuar diagnósticos, peritagens e intervenções em arte sacra, escultura e talha de madeira, e a conservar e restaurar madeira, policromias, douramentos e outras formas de revestimentos decorativos, contribuindo, assim, para a preservação do património cultural do país». O director do CEARTE faz notar o conjunto de parcerias em torno do curso, que «contribuem para a formação e empregabilidade dos formandos», designadamente centros de restauro e museus - dos Coches, de Aveiro, de Arte Antiga - bem como o Laboratório Hércules, infraestrutura de investigação da Universidade de Évora dedicada ao património. Mas também europeus, como a Scuola Fantoni (Itália), o Centro Albazín de Sevilha (Espanha) ou a Fundatia Transilvania Trust, da Roménia. Refere, ainda empresas de conservação e restauro, que «permitem formação e garantem empregabilidade à maioria dos formandos». No âmbito do curso, em contexto de formação, tem sido «possível proceder à conservação e restauro de peças de arte sacra de várias instituições da região», afirma, exemplificando com as igrejas de Semide e de Miranda, peças do Museu da Misericórdia de Coimbra, do Mosteiro de Lorvão ou do Seminário Maior de Coimbra. Intervenção que atesta a confiança das entidades na «qualidade das intervenções».

Campeões no país e no mundo A presença de formandos do CEARTE em competições nacionais e internacionais

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tem sido recorrente e com performances de excelência. «É uma imagem de marca que dignifica e valoriza o CEARTE e o concelho de Miranda do Corvo», afirma Luís Rocha. Orgulhoso, o director recorda que, desde o ano 2000, 10 jovens formandos do CEARTE - Pólo de Semide «representaram o Centro nos campeonatos nacionais, europeus e mundiais de formação profissional (Skliis Portugal e Worldskills – os jogos olímpicos da formação profissional) tendo obtido lugares no pódio – campeões nacionais e medalhas a nível europeu, representando dignamente o país em campeonatos mundiais». Marcenaria, Jardinagem e Restaurante/Bar foram as áreas de eleição. «Graças a estes jovens e aos seus formadores, o CEARTE e Miranda do Corvo são conhecidos em Portugal e na Europa por formar campeões, tendo demonstrado que podemos hastear a Bandeira Portuguesa em qualquer lugar do mundo, com orgulho e com honra», diz. Luís Rocha lembra que os resultados obtidos por estes jovens, “ombro a ombro”com «os melhores de Portugal, da Europa e do Mundo», são «o melhor comprovativo da qualidade da formação profissional do CEARTE em Semide».

Dar vida ao Mosteiro O antigo Mosteiro, onde o CEARTE decidiu instalar o seu primeiro pólo, em 1986, «estava praticamente ao abandono», afirma Luís Rocha, que sublinha o «papel socialmente relevante» que o CEARTE e a Cáritas desempenharam, à época, ao «assumirem a gestão da ex-Escola Profissional de Semide, da Assembleia Distrital de Coimbra, dando um novo rumo a um equipamento que se encontrava com muitas dificuldades». «O Convento de Semide não seria, certamente, o mesmo sem o CEARTE e sem a Cáritas – damos-lhe vida, utilidade social e comunitária e, ao longo deste tempo, investimos centenas de milhares de euros na sua manutenção e preservação. Demos e continuamos a dar vida a um património que é um “ex libris”de Miranda do Corvo», destaca. O CEARTE tem uma equipa permanente de 10 colaboradores em Semide, que conta com o apoio de outros que se ali se deslocam pontualmente, a partir de Coimbra. Tem ainda cerca de 40 formadores em regime de prestação de serviço. O número de formandos, entre jovens e adultos, ultrapassa os 500 por ano.


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Cáritas 90 anos com Miranda do Corvo

MOSTEIRO É A CASAI DE MUITOS JOVENSI

Lar de Jovens é gerido pela Cáritas Diocesana de Coimbra

1987 Cáritas Diocesana de Coimbra instala-se no antigo Mosteiro e coloca em funcionamento o Lar de Jovens de Santa Maria de Semide

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esde os inícios da década de 30 do século passado que o antigo Mosteiro de Santa Maria de Semide – encerrado em 1896, com a morte da última freira – passou a acolher jovens. Primeiro, sob a batuta da Junta Geral do Distrito de Coimbra, presidida por Bissaya Barreto, como Escola Profissional de Agricultura. De resto, ali terão aprendido a sua arte muitos viveiristas que ainda hoje trabalham nesta área, em Semide e nas redondezas, dando fulgor a um sector de eleição. Mas também ali funcionou um asilo, igualmente destinado a acolher crianças e jovens. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. As crianças e jovens continuam a ser os residentes de eleição do antigo Mosteiro. Desde 1987 sob a chancela da Cáritas Diocesana de Coimbra. Hugo Seiça é o director do Lar de Jovens de Santa Maria de Semide, instituição que começou por acolher 65 crianças. Um número que foi substancialmente reduzido há cerca de uma década, no âmbito do Plano DOM – Desafios, Oportunidades e Mudança, um projecto de requalificação da rede de lares de infância e juventude, promovido pela Segurança Social, que mudou o paradigma de funcionamento. «Reduziu-se o número de utentes – de 65 para 42 – e aumentou-se o número de colaboradores, essencialmente da rede educativa»,

explica o responsável. Sempre com lotação praticamente esgotada, o Lar só recebe rapazes, entre os 6 e os 18 anos de idade. «Podem permanecer até aos 25 anos, desde que em contexto educativo», esclarece. Actualmente, o mais novo tem 8 anos e o mais velho 23, com a média de idades, de acordo com o assistente social, a rondar os 15 anos. Em causa estão crianças e jovens «retirados às famílias pelo Tribunal de Família e Menores ou pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ)», esclarece o director, que trabalha há 17 anos no Lar de Santa Maria de Semide. A «negligência familiar» representa uma das principais ordens de razão que leva as crianças e jovens a serem encaminhados para Semide. Mas também há «problemas comportamentais». Hugo Seiça “desdramatiza”. «Não se trata de casos de crime», esclarece, mas «problemas comportamentais a nível escolar», designadamente com o abandono precoce da escola. «Os jovens têm de perceber que é importante, mais, é obrigatório ir à escola», afirma.

Trabalho com os jovens e com as famílias O projecto do Lar de Semide cumpre-se em duas frentes. Uma, explica, promovendo a autonomia da criança ou do jovem, designadamente através de um sério acompanhamento escolar. Por isso, independentemente de frequentaram a rede escolar – escolas do Senhor da Serra, Agrupamento de Miranda do Corvo, ITAP de Coimbra, Escola de Hotelaria de Coimbra, Escola

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Avelar Brotero, o Centro de Formação do CEARTE ou a APPC, na Quinta da Conraria, em Coimbra – os residentes são diariamente acompanhados pela equipa educativa da instituição, desde que chegam da escola até ao final do dia e também ao fim-de-semana. Noutra vertente, a instituição trabalha com as famílias, no sentido de promover e preparar, sempre que possível, o regresso das crianças e dos jovens a casa. À semelhança de todas as crianças e jovens da sua idade, todos vão para a escola. A diferença é que, ao invés de regressarem a casa, vão para o lar. O antigo Mosteiro de Semide é a sua casa. Até que seja possível regressar à família ou terem a autonomia e as competências necessárias para seguirem o seu caminho. A maioria dos utentes desta casa de acolhimento, tutelada pela Segurança Social, é proveniente do distrito e o Lar de Crianças e Jovens de Semide é uma das três instituições vocacionadas para este tipo de acolhimento existentes no concelho, faz notar Hugo Seiça. As outras funcionam em Miranda do Corvo, uma é a Casa do Gaiato e a outra da responsabilidade da Fundação ADFP. «Trabalhamos 24 horas/dias, 365 dias por ano com estas crianças e jovens», refere o director, que destaca o facto de alguns terem condições para ir passar o fim-de-semana a casa. Todavia, outros há que «não têm essa retaguarda» e, por isso, ficam na instituição. Ao longo de 17 anos , Hugo Seiça acompanhou perto de 300 crianças e jovens, mas aponta monitores que estão na instituição há mais de 20 anos e já acompanharam muitos mais. «Não fazemos acompanhamento “pós” e, muitas vezes, perdemos-lhe o rasto. Há casos de sucesso e de insucesso», diz, assumindo que a equipa – com um total de 24 elementos, entre educadores, técnicos, professores e auxiliares vai criando as suas próprias defesas, pois «o desgaste emocional é grande». Mas também há momentos particularmente gratificantes, como o regresso de alguns, que passam para dizer um “olá”. Ou outros que fazem questão de convidar esta outra família para o seu casamento. O responsável elogia, ainda, a forma como a Cáritas gere esta valência: «trabalho numa instituição fantástica, que me dá toda a força e todos os meios, dentro do que é possível», salienta Hugo Seiça. 


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90 anos com Miranda do Corvo Casa do Gaiato

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A “CASA-MÃE”I DOS GAIATOS DOI PAI AMÉRICOI

Quinta de S. Brás tem sido, ao longo de oito décadas, a casa e a família de milhares de crianças e de jovens

1940 As primeiras crianças foram acolhidas na Casa do Gaiato no dia 7 de Janeiro de 1940. Era o início da Obra da Rua, a herança mais marcante do padre Américo, que perdura

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eina o silêncio, aqui e ali entrecortado pela passagem de um tractor ou pela “reclamação” de uma ovelha, algures no estábulo. Um ou outro trabalhador cumpre os seus afazeres. A bola vermelha ficou no campo de futebol. Um esquecimento providencial. «Vou tirar-lhe um bocado de ar, está demasiado cheia», explica o diligente funcionário. Daqui a pouco tudo será diferente. Acaba-se o sossego. É o tempo de os rapazes saírem das salas de aula, onde seguem as aulas síncronas, e começarem a descontrair. O campo de futebol enche-se de craques da bola e, nos matraquilhos, estrategicamente colocados, Benfica e Sporting defrontam-se num dérbi decisivo. Um final de tarde que se repete, sempre que o tempo permite, na Casa do Gaiato. «O desporto faz muito bem», salienta o padre Manuel Mendes, responsável da instituição. Daí o campo de futebol, mas também a piscina, apetecível nos dias quentes de Verão. A música e a catequese fazem igualmente parte deste programa educativo. Pensado para a saúde do corpo e da alma. Em 81 anos, muitas coisas mudaram. Mantém-se, firme, o sentido mais profundo

da Obra da Rua, uma marca imprimida pelo Padre Américo. Precisamente em Miranda do Corvo. No dia 7 de Janeiro de 1940, dia do Santíssimo Nome de Jesus, assistia-se à abertura da Casa do Gaiato. Mário Dinis Carvalho, da Sé Nova, José Araújo Pereira e Aristides Araújo Pereira, de Santa Cruz, todos de Coimbra, foram as primeiras de muitas crianças, residentes em Coimbra, filhos da pobreza e da miséria, que ali encontravam um lar. «Pela primeira vez comeram de garfo, viram uma cama lavada e a cara de um amigo». Foram os primeiros de muitos rapazes que o Padre Américo recolheu e encaminhou. Retirou das garras da miséria e ajudou a crescer e a fazerem-se homens. Sobretudo, a darem um rumo à sua vida. O padre Manuel Mendes recorda o objectivo essencial da Casa do Gaiato: «acolher os filhos das famílias pobres». E também o desígnio fundamental que norteou o Padre Américo: «Fazer de cada rapaz um homem». A Casa do Gaiato não surge do nada. Representa o corolário de um vasto trabalho de mais de uma década de dedicação aos pobres que o Padre Américo realizou em Coimbra, «a mando do seu bispo». «Assu-

mia-se como o recoveiro dos pobres, o “esmoler”, o braço direito do bispo para os pobres», recorda o responsável pela instituição, lembrando a criação da Sopa dos Pobres, em 1932, na Rua da Matemática, em Coimbra, e o apoio que deu às famílias pobres – mais de 100, só na Conchada, sem comida e sem roupa - , mas também aos doentes e aos presos. «Sim, sirvo os pobres nas cadeias, nos hospitais, nos tugúrios, nos caminho e no altar», escrevia o Padre Américo. Um trabalho desenvolvido entre 1929 e 1939. «Deu-se aos pobres, a exemplo do que fizera S. Vicente de Paula», destaca o padre Manuel Mendes. O responsável lembra os tempos difíceis, de fome e miséria que se viviam na altura, com a “Grande Depressão”provocada pelo “crash” da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, e que se prolongou no tempo, com o início, em 1939, da II Grande Guerra Mundial. Estes 10 anos de intenso trabalho no apoio aos pobres entranharam-se decisivamente na sensibilidade do Padre Américo. «Começou a condoer-se do rapaz da rua, a preocupar-se com o seu futuro». E empenhou-se em fazer obra. Uma “obra de rapazes, para rapazes e pelos rapazes”.


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Casa do Gaiato 90 anos com Miranda do Corvo

No Verão de 1935 avança com a realização da primeira Colónia de Campo do Garoto da Baixa, em São Pedro de Alva, Penacova. Um programa de férias para o qual o Padre Américo contava com a ajuda de jovens seminaristas e de estudantes da Universidade de Coimbra. Um projecto ao qual dá continuidade em Vila Nova do Ceira (Góis), entre 1937-39. Apesar de muito positivas, as colónias de férias eram uma resposta pontual. De férias, de Verão. Grande parte do ano ficava de fora, de novo entregue à fome e à miséria. À procura de uma resposta de continuidade, assiste-se, em Junho de 1939, à compra da Quinta de S. Brás, em Bujos, Miranda do Corvo, «por 40 contos». Começa a erguer-se a Casa do Gaiato, o lar para os rapazes da rua, a família que vai manter o sorriso aberto destes gaiatos. «Deu-se às crianças da rua como S. João Bosco», diz o padre. A quinta não surge por acaso no horizonte do Padre ou Pai Américo, como acabaria por ser chamados pelos seus gaiatos. O padre Manuel Mendes destaca a influência dos padres franciscanos, cuja obra conheceu de perto em Moçambique, onde trabalhou durante 16 anos como despachante alfandegário. A quinta, o contacto com a natureza, era a resposta. O padre Manuel Mendes destaca, também, a elevada craveira intelectual do Padre Américo, que além da manifesta influência dos Franciscanos, de S. João Bosco, de João de Deus, também se correspondia com o padre Edward Flanagan, de origem irlandesa e radicado nos Estados Unidos, que fundou a “Cidade dos Rapazes”, no estado do Nebraska. Contemporâneos, partilhavam ideias do lado de cá e de lá do Atlântico. Ao padre Flanagan é imputada a afirmação “Na realidade, não existe um único rapaz autenticamente mau”. Na essência, uma afirmação igual ao “Não há rapazes maus”, do Padre Américo. 

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Jornal O Gaiato é uma voz activa por esta causa nhece “virtudes heróicas”ao Padre Américo. Um processo iniciado em 1986. «Falta um milagre para a sua beatificação», adianta o padre Manuel Mendes.

Padre Manuel Mendes

«A assinatura do jornal O Gaiato é uma forma de nos ajudarem. É uma das nossas bandeiras». Há assinatura em papel e digital, explica o padre Manuel Mendes, que destaca o facto de toda a colecção do jornal, fundado a 5 de Março de 1944, estar disponível em formato digital. O Gaiato tem sido, de resto, uma das formas de “falar” para dentro e para fora da instituição, Sobretudo para “fora”, numa altura considerada particularmente relevante, face ao processo de beatificação do Padre Américo que está a decorrer. A 12 de Dezembro de 2019, recorda, o Papa Francisco assinou o decreto que reco-

Colaboração positiva com as instituições O responsável elogia a boa colaboração entre a Casa do Gaiato e as diferentes entidades, seja na área da saúde e da educação, seja com os serviços oficiais adstritos às crianças e jovens, e também com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Agradece, ainda, a todas a pessoas e instituições de boa vontade que «nos doam bens alimentares», bem como material de protecção – fundamental em tempo de pandemia – e também equipamento informático. De resto, a Casa do Gaiato teve de fazer um investimento vultuoso para conseguir garantir uma rede de internet capaz de suportar as aulas online. Também teve que proceder à aquisição de computadores e tem entregue portáteis aos residentes que regressam às respectivas famílias ou seguem o seu rumo de vida. Trata-se de uma ferramenta que neste momento é fundamental e que, de outra forma, não conseguiriam obter. O apoio às Casas do Gaiato existentes em África representa ou das apostas da instituição. «Não podemos deixar de o fazer», diz o sacerdote. O que é feito de duas formas: ou recebendo crianças e jovens, sobretudo aqueles que precisam de tratamentos de saúde que «lá não têm», ou através do envio de equipamento. 


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90 anos com Miranda do Corvo Casa do Gaiato

Uma grande família de rapazes

Sala de jantar da família Gaiato. Além de zona das refeições é um espaço de memórias

«Já por aqui passaram milhares de rapazes», afirma o padre Manuel Mendes, destacando o mérito desta obra notável, que começou em Miranda do Corvo, ergueu o seu “quartel-general” em Paço de Sousa (1943) e foi replicada em Loures (1948), Beire (Paredes, 1955), Setúbal (1956). Mas também em terras de Angola, designadamente em Benguela (1962) e Malange (1963) e ainda na capital de Moçambique (1965). Muitos mantêm uma ligação, mesmo depois de regressarem às suas famílias ou seguirem o seu rumo de vida. Na véspera da nossa visita, conta, um dos rapazes, que se deslocou a Coimbra para uma consulta no Pediátrico, foi a Miranda fazer uma visita. Todos os anos se realiza, habitualmente, em Junho ou em Julho, o Encontro dos Antigos Gaiatos. «É uma família», reforça. Os tempos mudaram. Hoje já não são os pobres do Beco do Moreno, da Sé Nova ou de Santa Cruz, em Coimbra, que demandam a Casa do Gaiato. «Mas continua a haver pobres, famílias desestruturadas, com pro-

blemas», alerta. Sobretudo nas franjas das grandes cidades. Uma grande parte oriundas dos países africanos de língua portuguesa (PALOP). «Têm medidas protectivas», explica o padre, referindo-se ao encaminhamento feito pelo Tribunal de Família e Menores e pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. «Muitos com problemas de saúde». Doenças que precisam de ser tratadas e que têm feito, sobretudo nos últimos 20 anos, dos Hospitais da Universidade de Coimbra e particularmente do Pediátrico, «um pilar» de apoio à Casa do Gaiato. Uma casa que procura ser um lar, uma família. «A educação não é só instrução», sublinha o sacerdote, que destaca o papel da «educação moral, para os valores, e da educação religiosa». «Temos uma matriz católica», assume, mas «temos rapazes de outras confissões religiosas». Uma formação onde o desporto sempre ocupou um papel fundamental. Daí, a construção de um campo de futebol. «Na década de 40», faz notar. Mas também da piscina, inicialmente

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um tanque que foi adaptado. E igualmente a aposta na música, como um elemento importante no equilíbrio do ser humano. Na quinta há uma horta, onde crescem legumes que servem para confeccionar as refeições. Mas também um pomar de laranjeiras e tangerineiras. «É a nossa vacina», refere. «Plantámos oliveiras novas», diz, apontando os exemplares que crescem nos limites do vasto terreno. Satisfeito, o padre sublinha a produção própria de azeite, que garante todas as necessidades de consumo. A parreira de quiwis já está podada, mas a produção ainda alimenta a sobremesa das refeições, servidas na sala de jantar. «Não é uma cantina», adverte. Os móveis, as tolhas, as plantas, as fotografias e em geral toda a decoração atestam isso mesmo. É a sala de jantar da família Gaiato. As galinhas, vermelhas, coabitam ao lado dos patos. «Tenho de ir à feira comprar mais galinhas», refere. Também a capoeira assume um papel importante na economia doméstica. Ao lado encontram-se as ovelhas, com os respectivos borregos. Um deles acabado de nascer. Os rapazes dão uma ajuda no tratamentos dos animais. «Eles gostam», afirma o padre Manuel Mendes. A carpintaria e a serralharia funcionam actualmente para “consumo interno”. Já não são a escola de artes e ofícios de outros tempos. Agora, os jovens «passam a vida na escola», refere. Muitos em cursos profissionais, onde procuram aprender uma profissão, ganhar ferramentas para a sua autonomia futura. Só na sede, em Paço de Sousa, continua a funcionar a gráfica. Actualmente são três dezenas de residentes, rapazes dos 10 aos 18 anos. O staff de apoio inclui, além do padre, uma senhora (mãe), vigilante, quatro professores e quatro colaboradores que dão apoio no serviço doméstico. Outros profissionais respondem em termos de apoio contabilístico e jurídico. 


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Misericórdia 90 anos com Miranda do Corvo

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MISERICÓRDIA APOIA OS MAIS NOVOS E OS MAIS VELHOS 2003 Reactivada 172 anos após a sua criação, a Santa Casa da Misericórdia avançou com respostas de creche, centro de dia e apoio domiciliário

Centro Social Polivalente é a “casa” que acolhe as valências da Misericórdia

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riada em 1831, com o objectivo de dar cumprimento às 14 Obras de Misericórdia, a acção da Irmandade de Santa Casa da Misericórdia de Semide perde-se na neblina do tempo. Regressa em 2003, claramente com uma função social e com as atenções centradas nos mais novos e nos mais velhos. Com efeito, é em Abril desse ano que começam a funcionar a creche, centro de dia e serviço de apoio domiciliário. O Centro Social Polivalente de Semide foi o local escolhido, não apenas para instalar estas valências, mas também para sede da instituição. Antes, porém, foi necessário proceder à re-

cuperação da antiga e degradada habitação. Uma obra comparticipada pelo Comissariado Regional do Norte da Luta Contra a Pobreza e pela Câmara Municipal de Miranda do Corvo. Valências que continuam, praticamente 18 anos depois, a ser muito solicitadas. O provedor, Armando Santos Ferreira, refere as obras efectuadas entretanto, na requalificação da estrutura da creche e construção de um parque infantil exterior, o que permitiu trazer maior qualidade aos serviços e aumentar o número de vagos. Actualmente tem capacidade para acolher 32 crianças, até aos 3 anos. Quanto ao Centro de Dia

(encerrado devido à pandemia) e ao serviço de apoio domiciliário (SAD), as solicitações têm vindo a crescer. O primeiro tem capacidade para 40 utentes, metade dos quais com apoio da Segurança Social e o segundo está limitado a 25 acordos e a igual número de beneficiários. O Banco de Ajudas Técnicas representa uma mais-valia que a Santa Casa disponibiliza a quem precisa, na União de Freguesias e em todo o concelho, desde que tenha o equipamento pretendido. As maiores solicitações, de acordo com o provedor, são de camas articuladas, camas hospitalares que garantem um outro conforto aos doentes acamados e facilitam a tarefa dos cuidadores. Um projecto que arrancou em 2009, contando com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.ASanta Casa cobra uma caução e um valor mensal, calculado com base no agregado familiar e nos rendimentos do utente. Apesar de não ser um valor significativo, sempre representa «uma ajuda» para os parcos recursos da instituição, faz notar o provedor A cantina social constitui outra das respostas, que começou a funcionar em Março de 2014. Em plena crise, «chegámos a fornecer 140 almoços», recorda o provedor. Hoje a situação está mais “controlada”, pois «as famílias têm outros apoios», refere Armando Santos Ferreira. São 30 agregados familiares em situação de vulnerabilidade sócio-económica que todos os dias recebem as refeições da Santa Casa. 20 no quadro



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Misericórdia 90 anos com Miranda do Corvo

Promover qualidade de vida dos mais velhos É um convite ao convívio, à descoberta, mas também à aprendizagem. Em causa está o Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS), programa do qual a Santa Casa de Semide é entidade executora. Destinado a pessoas com mais de 60 anos, o objectivo é «tirá-los de casa», diz o provedor. «Fazemos workshops, visitas a museus, a Fátima, idas à praia, piqueniques», exemplifica. O programa inclui teatro, jogos lúdicos, oficinas de culinária, de escrita criativa e de expressão plástica, mas também caminhadas. O projecto arrancou em 2019 e tem continuado. Armando Santos Ferreira refere o sucesso de uma horta, criada na instituição, onde alguns dos seniores se empenharam na plantação de couves, alfaces, entre outros legumes. O programa destina-se a pessoas com mais de 60 anos. Mas «temos pessoas com 80 e tal anos», afirma, satisfeito, o provedor, destacando a adesão de mais de meia centenas de pessoas ao desafio. Este programa tem uma outra função, pois, ao permitir uma proximidade grande com a instituição, os «técnicos conseguem fazer uma primeira abordagem» e, desta forma, perceber «a vulnerabilidade e as necessidades» da pessoa ou do casal e reportar isso mesmo, caso haja necessidade de acautelar um maior acompanhamento. 

de um acordo com a Segurança Social e 10 com o apoio financeiro do município, que já deu “luz verde”para o alargamento do número de refeições. A Santa Casa também é parceira de um outro projecto, liderado pela Misericórdia de Pampilhosa da Serra, igualmente de apoio a famílias carenciadas, plasmado na distribuição de géneros alimentares. São 18 os agregados familiares que beneficiam deste apoio. “Fora de portas”, a Santa Casa dá apoio a pessoas idosas que, tendo autonomia para viverem nas suas casas, precisam de algum apoio. O provedor exemplifica com uma deslocação ao Centro de Saúde, às Finanças, ao Hospital ou à farmácia. Um projecto que a Misericórdia candidatou ao Fundo La Caixa/BPI, em 2020, e que resultou na oferta de uma viatura, que permite aos funcionários da instituição darem resposta às solicitações, sem qualquer custo para os beneficiários. A Santa Casa tem um universo de 37 colaboradores, dos quais entre 10 a 15 através do Centro de Emprego. «Não temos outra solução», refere o provedor, lamentando a falta de recursos da instituição, que não tem qualquer outra fonte de receitas além dos serviços que presta.

Centro de dia acolhe 40 utentes

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Obras avançam até ao final do ano Entre as prioridades da instituição está a realização de um conjunto e obras. «Temos lacunas na entrada de bens e serviços», refere o provedor, apontando para a necessidade de uma intervenção para resolver este problema, depois do alerta da Autoridade para a Protecção Civil, na sequência de auditorias. Mas há necessidade, igualmente, de «alargar a cozinha, que é pequena», o mesmo acontecendo relativamente à lavandaria. A empreitada vai incluir o sistema de detecção de incêndios, que não existe, necessidade para a qual a Protecção Civil tem chamado a atenção. As obras vão implicar, ainda, a criação de uma zona de despensa e balneários. «Até ao final do ano esperamos ter a obra feita», refere o provedor, que aponta um investimento de 120 mil euros (mais IVA). Sem data, mas como um sonho a concretizar, está a criação de uma estrutura residencial para idosos. Trata-se de um projecto que tem passado de direcção em direcção, refere Armando Santos Ferreira, mas cuja concretização não se afigura fácil. «Não temos recursos» e em perspectiva estará um investimento nunca inferior a 1,5 milhões de euros. O projecto ainda não está concluído, mas vai ter de aguardar por melhores dias, designadamente a oportunidade de uma candidatura a fundos de apoio. Necessidade há, sem dúvida. «A Fundação tem uma resposta no Senhor da Serra e também há uma unidade privada, nas Chãs de Semide. Esta, apesar de ser particular e de não ter acordo com a Segurança Social, está sempre cheia», refere o provedor, ciente que se trata de uma resposta que «nunca é demais», tendo em conta o crescente envelhecimento da população.


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90 anos com Miranda do Corvo Jaime Ramos

JAIME RAMOS: O MENTOR DA FUNDAÇÃO ADFP 1987 Em Novembro de 1987 assistia-se ao nascimento da ADFP, uma instituição que é uma marca de Miranda do Corvo, um ícone num concelho que se define como “Terra Solidária”

Jaime Ramos, presidente do Conselho de Administração da Fundação ADFP

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édico, tem um curriculum grande de intervenção política. Foi deputado, presidente de Câmara, governador civil, presidente da Administração Regional de Saúde do Centro. Mas é igualmente um empreendedor. Um espírito inquieto, alimentado por uma vontade enorme de mudar o mundo. Tem conseguido fazê-lo. Talvez não tanto como gostaria… Falamos de Jaime Adalberto Simões Ramos. Também um filantropo. Desde Novembro de 1987 é o rosto da ADFP, hoje Fundação – Assistência, Desenvolvimento e Formação

Profissional. O grande mentor da instituição e o principal obreiro deste vasto empreendimento de cariz social. Uma aposta na diferença, na inclusão. Em descobrir talento onde outros só vêem menoridade ou problemas. «Nem todas as pessoas têm tempo para serem voluntários», adverte, fazendo notar que «somos aquilo que somos nas circunstâncias que temos». A sua «circunstância», sublinha, permitiu que isso acontecesse. «A minha profissão de médico permitiu-me ter emprego garantido e um salário adequado», o que significa, enfatiza,

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«que não tive que me preocupar muito com a minha sobrevivência e da minha família». E também, «me deu a possibilidade de dispor de tempo para esta actividade voluntária e filantrópica». Mas a «circunstância» de Jaime Ramos tem mais a dizer. Apesar de alguma surpresa, responde. Fala na primeira pessoa. Recorda o passado. «Nasci e vivi sempre no concelho que, quando chega o 25 de Abril, tem menos equipamento social e menos qualidade de vida em todo o distrito». Em Abril de 1974, recorda, «todos os concelhos tinham hospital, menos Miranda e a Mealhada. Muitos tinham Casas da Criança, nós não. Muitos concelhos tinham teatro ou cinema, nós não». Um retrato de carências que não se fica por aqui. «Em quase todos os concelhos as colectividades tinham sede. Em Miranda nenhuma colectividade tinha sede, a não ser alugada ou em instalações cedidas pela Câmara. Não havia um pavilhão desportivo», recorda. Mais: «Miranda era o único concelho ligado a Coimbra que não tinha um estrada para Coimbra. Tínhamos que ir por Condeixa ou pela Lousã». «Nasci num concelho com estas características e, por isso, desde muito miúdo senti que as coisas deviam mudar. E também senti uma grande vontade e intervir», confessa. Essa vontade de fazer, de mudar, levou-o, exemplifica, a «tentar criar um jornal local». Mas também, «sem tocar qualquer instrumento, a agregar um grupo de rapazes e criar um grupo musical». Primeiro denominado Surprise Mirande, depois Nómadas. A saga de «fazer» e de «mudar» continuou. «Quando aconteceu o 25 de Abril – um turbilhão – acabo por ser, com 21 anos, o primeiro presidente do Clube Atlético Mirandense pós 25 de Abril». «Aos 24 anos fui presidente dos Bombeiros e tive a feli-


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Jaime Ramos 90 anos com Miranda do Corvo

Uma “confissão”

«A filantropia ou a bondade podem ser manifestações de egoísmo», considera Jaime Ramos. O médico recorda uma passagem do seu livro “Deus Natureza”, onde procura explicar como as pessoas se podem sentir felizes, ter prazer, a trabalhar para ganhar mais dinheiro, ter uma casa maior, aumentar o seu património, jogar golfe, por exemplo. «Mas também pode haver alguém que tem tanto prazer em trabalhar que nem precisa de ser remunerado». Neste sentido, «a filantropia ou a bondade podem ser uma manifestação de egoísmo», afirma, reforçando a ideia de que «nem toda a gente tem condições para ser filantropo ou bondoso. Jaime Ramos foi e é. Confessa o seu «prazer pessoal» nesta dedicação sem limites à ADFP, que dá mais sentido e significado à vida. O «egoísmo, com requinte», como lhe chama e que assume, fica expresso no Templo Ecuménico. Uma obra “fora da caixa”, que não encaixa no projecto global de respostas e de sustentabilidade. Apenas um hino aos valores. Um templo dedicado à Humanidade. 

cidade de concluir um projecto, com alguns anos, e inaugurar a primeira sede de uma colectividade de Miranda, precisamente dos Bombeiros». Aos 25 anos foi a fundação do jornal O Mirante e com 26 anos, Jaime Ramos assumiu a presidência da Câmara Municipal de Miranda do Corvo. Ao tempo, Miranda «tinha um atraso grande», ao nível da intervenção social, comparativamente com outros concelhos. «Mas também tínhamos coisas muito boas, como a Casa do Gaiato, uma obra notável», considera. Havia, ainda, «um pequeno lar/asilo, em Pereira, mas mais nada». Contrariamente aos vizinhos concelhos de Penela e da Lousã, com a Cerci e a ARCIL, respectivamente, «não tínhamos nenhum apoio à doença mental». Estava feito o diagnóstico e encontrado o rumo. «No final da década e 80 decidi intervir na área social», afirma. Uma aposta que surge em simultâneo com dois outros projectos. Um centrado numa «sociedade de capitais de risco para o desenvolvimento de Miranda, a Mirandinvest». O segundo, envolvendo os concelhos de Miranda, Penela e Lousã, apostado na criação de uma empresa agroflorestal. A «circunstância», mais uma vez, se impôs. «Fui para o Governo Civil e, como governador civil não podia continuar com a sociedade agro-florestal». Da mesma forma, teve de desistir da Mirandinvest. Ficou apenas a ADFP. «Foi a única que, como governador civil, não tive que abandonar». O resultado foi este: «passei a dedicar-me em exclusivo à ADFP», diz.

“Não dar um peixe, ensinar a pescar” Criada em Novembro de 1987, a ADFP é, desde a origem uma instituição diferente

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e diferenciadora. «Não era só uma instituição de solidariedade social, como as misericórdias, a ARCIL, a Cercipenela. Nasceu, também, como instituição para o desenvolvimento e formação», faz notar. Tratava-se de aplicar o velho provérbio chinês. “Não dês um peixe a quem tem fome, ensina-o a pescar”. «Nasceu com uma lógica de solidariedade social, mas a passar muito pela criação de emprego e de oportunidades de trabalho». Jaime Ramos faz notar a diferença entre subsídio e salário, mesmo que este último não atinja ao valor legal. O facto de a pessoa ganhar um salário representa um «reconhecimento, um prémio» pelo cumprimento de um horário e de uma tarefa. Mais importante que tudo, «dá dignidade à pessoa», destaca.

O salário representa “um prémio” e o “reconhecimento” de uma tarefa cumprida. Mas, sobretudo, dá um contributo decisivo para a “dignidade da pessoa” Esta é a marca diferenciada da ADFP. Um projecto inclusivo, agregador. «Procuramos valorizar o talento das pessoas, mesmo quando têm muitas deficiências ou doenças», afirma o médico. «Nascemos para fazer solidariedade social com esta vertente: descobrir talentos». E com esse desígnio, arrancou o projecto, vocacionado para ajudar crianças, adultos e idosos. Pessoas com doença mental ou outras. Sem estigmas. Sem diferenças. «Nascemos com a ideia que todos os problemas sociais deveriam ser enfrentados, sem focar um público-alvo reduzido». Significa que todas as pessoas com problemas “cabem” dentro da ADFP. 


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90 anos com Miranda do Corvo Fundação ADFP

Fundação tem um vasto leque de respostas de apoio social aos mais vulneráveis

UM OLHAR ATENTO A QUEM É “DIFERENTE” 1987 Fundação ADFP garante apoio, nas diferentes valências, a um universo de mais de 7.500 pessoas. Tem cerca de 500 utentes residentes e mais de 830 colaboradores, entre os quais se encontram pessoas com deficiência

manter a família». A família é a palavra-chave deste espaço, criado nos finais da década de 90, que pode acolher entre 20 a 25 pessoas. Segue-se a Residência Fraternidade, o lar de rapazes e raparigas sem família ou com famílias problemáticas ou sem condições. Uma proposta diferente. Ao contrário do modelo em vigor, com rapazes e raparigas o longo de 33 anos, a ADFP separados, a Fraternidade quer manter a apoiou milhares de pessoas. família. Por isso «permite que os irmãos Crianças e mães, adultos e velhos. continuem juntos». A funcionar desde 1994, Doentes, com maleitas no corpo tem capacidade para 30 crianças e jovens, e na alma. Filhos da doença, da pobreza e desde os três meses os 18 anos. Todavia, há da miséria. Todos encontraram ali uma situações em que esse apoio se prolonga casa, um lar. Uma mão amiga e protectora no tempo. «Quando entram no ensino suque lhes deu um rumo, sentido à vida. perior, até concluírem a licenciatura e se Um apoio que começa no ventre materno tornarem independentes», explica Jaime Ramos. Com satisfação, refere uma jovem e se estende até ao fim da vida. São diferentes valências de apoio social enfermeira, que concluiu o curso no ano assegurado pela Fundação e que Jaime passado. «Temos mais cinco jovens no enRamos, presidente do Conselho de Admi- sino superior», sublinha. O complexo da ADFP inclui duas resinistração, nos apresenta. Começamos pelo princípio. Pelas mães que ali, na Residência dências para adultos com deficiência ou Cruz Branca, encontram as condições de doença mental. São as residências Coragem segurança para levarem a sua gravidez e Respeito, respectivamente com capaciaté ao fim. Um espaço que também acolhe dade para 30 e 40 pessoas. «Duas respostas mães com crianças, em situação de grande claramente inovadoras e disruptíveis refragilidade, que «precisam de apoio para lativamente à opinião da Segurança Social».

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«Afrontámos a Segurança Social», afirma. Crítico, o presidente destaca o facto de a Segurança Social assumir apenas que «tinha de se preocupar com a deficiência», considerando a doença mental «da responsabilidade da Saúde e da psiquiatria». Foi, de resto, com este sentir que foram criados os centros psiquiátricos, designadamente o Sobral Cid, o Hospital de Lorvão ou o Centro de Arnes. «Nestas residências tanto admitimos deficientes como doentes mentais», explica. Uma situação que, assume, se prende com a sua «visão do médico». «Uma pessoa com problemas mentais também é um doente. Por isso deve merecer a mesma consideração por parte do Estado e não ser marginalizado e ostracizado», considera. O pioneirismo manifestou-se, igualmente, na forma de gerir os Centros de Apoio Ocupacional. Uma resposta que, da mesma forma que a creche acolhe as crianças e o centro de dia os idosos, recebe, durante o dia, doentes mentais e pessoas com deficiência, que têm uma família de retaguarda mas passam os dias na instituição. No início da década de 90, a ADFP avançou com a criação de uma residência especificamente destinada a doentes mentais. Trata-se da Residência Tolerância, uma unidade de vida apoiada, com capacidade para 24 pessoas. Também destinada à doença mental está a Residência Esperança, esta com cerca de meia centenas de pessoas, todos antigos doentes do Hospital de Lorvão, do Sobral Cid e do Centro Psiquiátrico de Recuperação de Arnes. As valências destinadas aos mais velhos incluem a Residência Geriátrica Sabedoria, que representou mais uma “guerra” com a Segurança Social, na década de 90. Vigorava a ideia que os lares eram uma espécie de hotéis, «onde não se podiam admitir pessoas com demência ou acamados». Mais uma vez era o problema de competências entre a Segurança Social e a Saúde. «Pessoas que sofreram um AVC, acamados, ficavam em terra de ninguém», lembra o médico. Por isso a ADFP consagrou, preto no branco, no regulamento da Residência Geriátrica Sabedoria, com capacidade para 77 pessoas, a prioridade a pessoas demenciadas ou acamadas, «violando claramente as regras da Segurança Social», atesta. Hoje em dia, «toda a gente reconhece que os lares devam estar capacitados para estas situações», anota.


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Fundação ADFP 90 anos com Miranda do Corvo

Em meados da década de 90 nasce a Residência Gratidão. «Foi a primeira residência assistida do país e a primeira vocacionada para receber pessoas com doença de Alzheimer», com capacidade para 66 pessoas. «Com o envelhecimento dos utentes e como não havia respostas para acamados e demenciados, o Estado avança com a criação de Unidades e Cuidados Continuados, de convalescença, média e longa duração» e a Residência Gratidão acaba por se transformar, explica, em duas unidades, uma de média e outra de longa duração, com um total de 66 camas. «Quando arrancou era completamente privada. O acordo com o Estado sobrevém depois», adianta. Fora da sede do concelho, no Senhor da Serra, a ADFP tem uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI). É a Residência Cristo Redentor, «também com uma visão geriátrica», com capacidade para 72 utentes. «Defendemos que os lares devem ter enfermeiro 24 horas/dia e consulta médica uma a duas vezes por semana, bem como cuidados de reabilitação, fisioterapia e apoio psicológico. Os idosos com muitas comorbilidades não precisam só de estar num “hotel”, mas de muito apoio na área de cuidados de saúde», afirma o médico, explicando o carácter específico da residência geriátrica. Esclarece ainda que este nível de cuidados, a mais, é suportado pela Fundação. «Gastamos mais nas equipas e reduzimos na nossa poupança», adianta. Instalada no Cinema, em Miranda do Corvo, está outra resposta residencial, que tem sido usada em diferentes momentos e com objectivos distintos. São cinco apartamentos de tipologia T3, que já acolheram pessoas com doença mental. Neste momento têm migrantes da Guiné que se encontram em Portugal a fazer cursos de formação e refugiados vindos da Síria. A Residência Igualdade, em Rio de Vide, já acolheu doentes mentais e refugiados e está actualmente ao serviço de sem-abrigo de Coimbra, no quadro de um acordo que nasceu na primeira fase da pandemia. Jaime Ramos lembra que a Casa Dignidade, na sede do distrito, manteve sempre o apoio aos sem-abrigo e quando a autarquia precisou de uma resposta de urgência, que além da alimentação, incluía alojamento, foi celebrado este acordo. «Essas pessoas dormem na Residência Igualdade», o que significa que todos os dias a ADFP faz o seu transporte entre Coimbra e Rio de Vide.

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Residência Bondade é a primeira unidade de apoio máximo para doentes mentais

Helena Alves lidera a equipa RAMa

No Senhor da Serra, a Residência Bondade, que já acolheu pessoas sem-abrigo, formandos da Guiné e refugiados, esteve durante largo tempo “devoluta” , devido a um “impasse”com a tutela, que data de

Novembro de 2019. Finalmente, nos finais do mês passado, teve “luz verde” para abrir. Em causa está a primeira unidade RAMa - Residência de Apoio Máximo para Deficientes Mentais existente no território da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC) e também na região Centro. Trata-se de uma unidade experimental, integrada na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, que resulta de uma parceria com a Segurança Social e com o Ministério da Saúde, que tem subjacente a vasta experiência, mas, sobretudo, as «respostas inovadoras no âmbito da doença mental» que a Fundação ADFP tem vindo a desenvolver. A médica Helena Alves lidera a equipa da RAMa, unidade que tem capacidade física para acolher 24 pessoas com doença mental. Todavia, de acordo com informação da Fundação ADFP, para já o acordo com a tutela apenas envolve metade dessa capacidade, ou seja um total de 12 utentes .

Descobrir talentos e criar oportunidades «Não olhamos para os deficientes como deficientes, mas para detectar talentos e para os pôr a trabalhar de uma forma digna», afirma Jaime Ramos, destacando a elevada percentagem de deficientes que trabalham na ADFP, muitos dos quais ocupam lugares importantes na estrutura da organização. «Não somos uma instituição para dar resposta à deficiência. Somos uma instituição que dá resposta a deficientes, emprega deficientes para criar postos de trabalho e valências para toda a população», sublinha. «Em todas as valências temos deficientes», desde a área administrativa, limpeza, manutenção, o que é «muito importante para o sucesso da instituição e para a auto-estima de cada um, para a sua dig-

nidade». Diferentes, mas iguais. A Fundação ADFP tem também, faz notar, uma vertente não social, centrada nas componentes de educação, desporto, cultura e também actividades que «geram riqueza para a sua sustentabilidade, nomeadamente a agricultura e o turismo, que normalmente não estão muito associados a este tipo de instituições», reconhece. Em 2020, a Fundação ADFP definiu o seu Plano Estratégico até 2027, ou seja, até a instituição completar 40 anos. Um pano ambicioso, uma «narrativa do que gostaríamos de fazer, mas que não sabemos se conseguimos concretizar». Tudo vai depender das circunstâncias», sublinha o presidente.


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90 anos com Miranda do Corvo Hospital Compaixão

Hospital Compaixão continua à espera de “luz verde” para abrir

Hospital representa um investimento a rondar os 10 milhões de euros

O investimento ronda os 10 milhões de euros. O Hospital Compaixão está pronto há praticamente dois anos, mas continua fechado. Jaime Ramos aponta as diferentes versões que a tutela apresenta para não avançar com um acordo com a Fundação e garantir a abertura da unidade de saúde. «Quer a ministra da Saúde, quer a Administração Regional de Saúde do Centro referem razões diferentes». Nenhuma convence o médico. «O Hospital não é um negócio. É uma resposta que faz falta», sublinha. Exemplifica com a enfermaria de cuidados de convalescença. «Não há nenhuma cama desta tipologia em todo o Pinhal Interior, entre Castelo Branco e Coimbra». «AARSC tem dito, com alguma frequência que não assina contrato de convenção porque o hospital não está a funcionar». Todavia, «nunca abriu uma unidade de cuidados continuados no país sem que houvesse um acordo antes. Não percebo porque tem de ser diferente connosco», diz. E continua, apontando o bloco operatório, completamente equipado, onde se podem efectuar as mais diversas cirurgias. «Não há no país, que eu saiba, nenhum hospital construído por uma IPSS que não tenha contrato, acordo ou convenção com o Estado, excepto o nosso». E o que se aplica às cirurgias, aplica-se às consultas da especialidade, sobretudo numa altura em que «a lista

para as cirurgias e consultas já era grande e aumentou muito com a situação Covid19. Têm sido feitos acordos de cooperação para cirurgias e consultas em todo país». Miranda do Corvo continua a ser a excepção. «Que lepra temos nós?», questiona Jaime Ramos. A mesma situação de excepção aplica-se à possibilidade de serem efectuados exames auxiliares de diagnóstico no Hospital Compaixão, ao invés de o utente ir, com a respectiva requisição, fazer esses exames a uma qualquer clínica, normalmente privada, o que representa custos acrescidos. «A ARSC recusa pagar esses exames no Hospital», constata. Jaime Ramos entende que o Hospital Compaixão poderia prestar outro tipo de serviço, embora este não seja tão comum, que se prende com a garantia de uma Urgência em funcionamento, particularmente

“O Hospital não é um negócio”, sublinha Jaime Ramos. Trata-se, antes, de uma resposta em termos de saúde que não existe no Pinhal Interior Representa, ainda, a criação de 100 postos de trabalho

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útil após o encerramento dos centros de saúde. Uma resposta para tratar «feridas, situações banais, que não precisam de ir para um hospital altamente diferenciado». «Poderíamos e gostaríamos de ter um serviço deste género, a funcionar 24 horas, como acontece em Oliveira do Hospital ou em Avelar (Ansião)», diz ainda. Na sequência da pandemia, Jaime Ramos recorda que ofereceu o Hospital ao Estado, para o usar como entendesse, de forma gratuita, ou, em alternativa, fizesse um acordo com a instituição, que garantia o serviço a prestar, mediante um pagamento. «Nem o Ministério da Saúde nem a ARSC dialogam connosco. Nem nos respondem». O «cúmulo» desta “porta fechada”aconteceu, conta, quando foi feito um apelo, por parte pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), no pico da pandemia, relativamente à disponibilização de camas em lares ou outras unidades de retaguarda. «Mandámos um ofício ao CHUC e à ARSC a dizer que tínhamos oito camas vagas. Ninguém nos respondeu», regista. «É uma guerra absurda», considera Jaime Ramos, que dá nota de um pedido feito aos partidos, no sentido de requererem uma audiência no Parlamento, para “apurar” as «desculpas sempre diferentes», ora dadas pela ARSC, ora pela ministra.

Criação de 100 postos de trabalho Com três pisos e capacidade para 55 camas, o Hospital Compaixão inclui bloco operatório, com duas salas de operações independentes. Está dotado com uma área de urgência, consultas de ambulatório com especialidades médicas e de internamento, além de serviço de imagiologia (TAC. RX e ecografia) e de análises clínicas. Representa um investimento a rondar os 10 milhões de euros, praticamente suportados pela FundaçãoADFP, que contou com um apoio de 800 mil euros do município de Miranda do Corvo. «O Hospital não foi erguido com intenções de negócio. Antes em nome do desenvolvimento do interior e em resposta às necessidades da população do Pinhal Interior», sublinha Jaime Ramos. O presidente do Conselho de Administração da Fundação dá, ainda, nota dos «cerca de 100 postos de trabalho» que permite criar, num território onde o emprego e a saúde são bens fundamentais para fixar e atrair população. 


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Templo Ecuménico 90 anos com Miranda do Corvo

“TURISMO COM PROPÓSITO” 2016 A 11 de Setembro de 2016 assistiu-se à inauguração do Templo Ecuménico, um espaço único no mundo

Templo Ecuménico é um local de reflexão, que reúne as diferentes confissões religiosas

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lém da inovação e de avançar sempre com novos projectos na área social, a Fundação também investiu noutros sectores. «A instituição entende que não pode depender exclusivamente do Estado e, por isso, avançou com projectos em diferentes áreas, no sentido de criar postos de trabalho e contribuir para a sua sustentabilidade», afirma Fátima Ramos. «Os resultados são investidos nos projectos sociais», garante a antiga deputada, que aponta um pacote de projectos, designadamente nas áreas da educação, agricultura e turismo. É a vertente “não social” da ADFP, que tem no “Turismo com Propósito”uma verdadeira âncora. O Hotel Parque Serra da Lousã, o Conimbriga – Hotel do Paço, o Restaurante Museu da Chanfana e o Trivium – Parque Biológico

Serra da Lousã, Espaço da Mente e Templo Ecuménico Universalista fazem parte desta estratégia. Em todos eles trabalham pessoas com deficiência ou vítimas de exclusão. Os lucros são aplicados nos projectos sociais. O Parque Biológico, explica, é uma demonstração da vida, na sua generalidade. «Somos todos animais», atesta Fátima Ramos. O Espaço da Mente coloca-nos no caminho da diferença. «É um elogio à liberdade», um valor que é, sobretudo, um sinal de humanidade. Que permite perceber que, sendo nós animais, «podemos criar, inovar, fazer a diferença». “Liberdade de amar e liberdade de alma”. «O amor e a liberdade de amar é a fonte de vida, mas não constitui um dado adquirido. Em muitos países não é reconhecido», refere, alertando que, igualmente, no mundo da deficiência

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há um conjunto de «limites». A “liberdade de alma” leva-nos para um mundo de interrogações, uma porta aberta para o Templo Ecuménico, um «espaço de tolerância e respeito», destaca. Um templo, construído sob a forma de uma pirâmide, no cimo da colina, cujas dimensões evocam o Templo de Salomão, erguido no século XI A.C., em Jerusalém. Longe de tudo, pretende ser um local de encontro do homem consigo mesmo, num espaço carregado de simbolismo, que apela à reflexão sobre o Homem, sobre a Vida, sobre o Mundo e o destino da Humanidade. Mas também um convite à introspecção, a pensar nos caminhos de cada um, nas nossas escolhas, no que fazemos aos outros, no que queremos para nós. «São 14 religiões - mais uma, porque nalgumas ópticas o ateísmo também é uma religião. Procura demonstrar que todas as religiões têm bons valores, mas o homem deturpa e torce esses valores e daí resultam os muitos conflitos e fundamentalismos», faz notar. Desde a Inquisição, ao ataque às Torres Gémeas. «É um espaço simbólico, de reflexão filosófica, de tolerância e respeito, cheio de energia», refere. Mas também um miradouro de excelência. Fátima Ramos lembra que a obra foi lançada no dia 11 de Setembro de 2015 e inaugurada precisamente um ano depois. Uma evocação do dia trágico do ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque, de 11 de Setembro de 2001 e uma homenagem a todas as vítimas da «barbárie gerada por fundamentalismos intolerantes ao longo dos séculos». Mas também uma resposta ao desafio lançado ao mundo pelo Papa Bento XVI em nome do diálogo entre as religiões. Este é o primeiro templo «construído com um objectivo ecuménico, universalmente aberto a todos os crentes de todas as religiões, incluindo ateus». 



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Hotel Parque 90 anos com Miranda do Corvo

HOTEL PARQUE DÁ UM ABRAÇO À NATUREZA 2015 Unidade hoteleira de quatro estrelas foi inaugurada em 2015. Um dos pilares do projecto de “Turismo com Propósito” da Fundação ADFP

Unidade hoteleira regista boa adesão do público. No Verão fica com lotação esgotada

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turismo representa um pilar no projecto da FundaçãoADFP e o Hotel Parque Serra da Lousã é uma das suas âncoras. Inaugurado em Outubro de 2015, implicou um investimento na casa dos três milhões de euros. Uma unidade de quatro estrelas que tem o rio a seus pés e a encosta da serra quase a entrar pelas janelas. Nem é preciso ir à varanda para se ouvir o canto dos pássaros ou apreciar a pastagem dos lamas ou dos veados. Um abraço à natureza que o circunda, o envolve e o inspira. Um espaço que conjuga requinte e elegância, sobriedade e bom gosto. «É um projecto muito sóbrio, de linhas direitas, em simbiose com o meio ambiente», explica Fátima Ramos, que destaca o uso da madeira, do xisto, dos tons de terra na construção e na decoração. «É um espaço muito “clean”, muito sóbrio». Mas também «um hotel muito amigo das famílias», tendo em conta a proximidade do Parque Biológico. Para quem vive numa cidade, gosta da Natureza ou quer relaxar, Fátima Ramos entende que o Hotel Parque Serra da Lousã é a resposta ideal. «Sentem-se aqui os

aromas da Natureza», sublinha, fazendo notar que das varandas dos quartos se podem avistar alguns das animais do parque e ver e sentir as águas do rio. «É um encontro com a natureza», sublinha. «É um hotel pequeno», o que reforça o sentido familiar.Apensar nas crianças, além do imenso espaço exterior, há um conjunto de respostas internas, como o Kids Club, com casinhas, piscina com bolas e outros divertimentos, enquanto para os jovens há uma sala de jogos. Transversais a todas as idades são os espaços de leitura e de jogos, que se encontram nas várias zonas comuns. O hotel está equipado com ginásio, tem campo de jogos (futebol e ténis) e também disponibiliza bicicletas. «Somos classificados como bike friendly». Possui uma zona de SPA, com piscina aquecida, jacuzzi, sauna e banho turco. Há ainda duas salas de massagens, cujos tratamentos são ministrados pela equipa de fisioterapeutas da Fundação. E às “mãos de fada” juntam-se os produtos naturais – óleos, essenciais e sabonetes – igualmente produzidos no concelho. Trata-se do projecto DNatureza, uma pequena unidade, montada por uma jovem, em par-

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ceria coma Fundação, que apenas usa produtos naturais da região. Para quem gosta de caminhadas, Fátima Ramos aponta os percursos pedestres que ligam o Hotel ao Templo Ecuménico, no cimo da colina, ou à vila, praticamente sempre junto ao rio Dueça. «Também somos muito procurados por amantes do trail». A escassos quilómetros está o percurso Penedo dos Corvos–Gondramaz ou o percurso da Senhora da Piedade– Tábuas–Cadaval. A gastronomia é outro dos cartões de visita. «Procuramos aliar a gastronomia tradicional com uma apresentação mais moderna, sem nunca esquecer os bons sabores da tradição», destaca. Com 40 quartos, três suites e três conjuntos de quartos comunicantes, o Hotel Parque Serra da Lousã tem nove quartos preparados para pessoas com mobilidade reduzida e toda a sinalética em braille. Os deuses da mitologia grego-romana e ibérica dão o nome a cada um dos quartos e inspiram os tons da respectiva decoração. «É também um hotel dos deuses», afirma. Do ponto de vista energético é considerado um eco hotel, galardoado com o Green Kay, além de ter preocupações com o aproveitamento dos resíduos. Está preparado para acolher eventos empresariais (sala para 90 pessoas) e também ali se podem realizar casamentos com 100-150 pessoas.

Eleito pelos ciclistas ingleses Dotado com os equipamentos habitualmente utilizados para manter a boa forma, o ginásio tem, também, um grupo de clientes profissionais. Nada mais nada menos que a equipa inglesa de ciclismo, que desde 2018 se tornou fã do espaço, preparando-se ali para as olimpíadas. «Adquirimos mais equipamento, específico, para usarem», explica Fátima Ramos, que apresenta Miranda do Corvo como m ponto estratégico para os treinos de estrada ou de montanha, que a equipa cumpre em direcção à Figueira da Foz ou à Pampilhosa da Serra. No top da pontuação Com cerca de 25 colaboradores, tem uma taxa de ocupação média superior à da região, cifrando-se, em 58%, atingindo, no Verão, os 100%. A responsável faz notar a «excelente pontuação» atribuída através da cadeia “Booking”: « 9 ou superior, a classificação máxima» e centenas de «comentários positivos» ao hotel e à equipa. 


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90 anos com Miranda do Corvo Parque Biológico

UM HINO À NATUREZAI E AOS ANIMAISI

Berta e Sandro, o casal de ursos é uma das grandes atracções do Parque Biológico

2009 Parque Biológico da Serra da Lousã reúne quase quatro centenas de animais, muitos dos quais em vias de extinção. Um paraíso na encosta de serra, onde a natureza se mostra em todo o seu esplendor

É

um espaço mágico, onde se abraça a natureza e se sente a sua força. Ouve-se o chilrear dos pássaros, o murmurar do vento e o marujar das águas do Dueça. Mas depressa todos os sentidos ficam focados nos animais. São 375, representativos de 68 espécies diferentes. Desde os enormes ursos pardos, há muito desaparecidos no seu habitat natural em Portugal, à beleza das raposas e dos linces ibéricos ou à elegância dos veados. Isto sem falar nas aves de rapina, nas tímidas lontras, nos esquifos muflões… Mas vamos por partes. O parque divide-se em três grandes áreas, que contemplam a Quinta Pedagógica, o Parque Selvagem e a área museológica. Na primeira encontramos um conjunto de animais domésticos, que todos conhecemos, muito embora possamos desconhecer as suas diversas raças. E esse é, precisamente, um dos objectivos deste espaço, esclarece Margarida Soares, a bióloga responsável pelo Parque Biológico. São quatro as raças de galinhas autóctones que nos apresenta: pedrês portuguesa, preta lusitânica, branca e amarela. Relativamente aos bovinos autóctones, o parque reúne

sete raças – barrosã, cachena, arouquesa, minhota, marinhoa, mertolenga e jarmelista – e representantes de três raças de suínos, a saber: bísaro, alentejano e malhado de Alcobaça. Já no que concerne aos ovinos, destaque para as ovelhas Serra da Estrela e churra do Minho, às quais se juntam quatro raças de caprinos: anã, bravia, serpentina e serrana. Há um espaço dedicado aos sonoros gansos e aos delicados e coloridos faisões dourados, bem como aos porquinhos da Índia, às vacas, aos cavalos e aos burros. Há ainda pavões, que, não sendo uma espécie autóctone, fazem parte do nosso quotidiano, sendo largamente utilizadas devido à sua grande beleza, sobretudo dos machos. Margarida Soares sublinha o facto de algumas destas raças autóctones estarem praticamente extintas, um dado que torna mais valiosa a “colecção” de animais que o parque reúne e que se esforça por aumentar. Um passadiço faz a diferença e leva-nos para o Parque Selvagem. Margarida Soares, há sete anos a trabalhar no Parque, destaca a especificidade e a vantagem deste espaço, que, exemplifica, nos «permite ver um veado no seu ambiente natural». Uma ex-

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periência comum para quem vive nas aldeias da Serra da Lousã, onde a população de veados tem vindo a crescer exponencialmente. Mas uma realidade completamente “fora da caixa” para quem vive num meio citadino. As espécies vão-se sucedendo. «Acolecção é exclusivamente portuguesa», faz notar, embora com raras excepções. Dos pavões já falámos, mas também há as tartarugas, que o parque adoptou. «Só os cágados são portugueses», sublinha, apontando as listas amarelas e verdes que diferenciam as tartarugas, claramente de maiores dimensões. E o tamanho é, efectivamente, um dos problemas. Elas crescem e deixam de caber no pequeno aquário lá de casa. Pior, hibernam e pensamos que morreram. Abandonadas em parques, junto a lagos, muitas destas tartarugas acabam por encontrar o seu caminho nos lagos do Parque Biológico. Há ainda os lamas. Oriundos da América do Sul, são companheiros de primeira linha do parque. «Estão cá desde o início», refere a bióloga, lembrando a sua triste história, de animais que foram usados em experiências na área da indústria cosmética e que, já envelhecidos, tinham como destino o abate. Acabaram, como muito outros excluídos da sorte, por ser acolhidos no Parque Biológico. A Berta e o Sandro ocupam, sem dúvida, uma das “suites” do parque e até têm uma cascata para se divertirem. «Já tiveram um bebé», diz Margarida Soares. São dois exemplares de urso pardo, uma espécie que foi avistada, em ambiente natural, pela última vez no Gerês, em 1843. «Os ursos não têm fronteiras», afirma a bióloga, recordando o facto de, em Maio de 2019, um exemplar desta espécie ter sido visto no Parque Natural de Montesinho, perto da fronteira com Espanha. «Voltarem a instalar-se? Será difícil», considera. O Labirinto de Árvores de Fruto chama a atenção. Entre as folhas verdes das nespereiras despontam as flores de ameixoeiras e outras espécies. «Dentro em breve são as cerejeiras», explica, destacando os diferentes encantos deste «verdadeiro» labirinto nas quatro estações do ano. Tímidos por natureza, o Nico e a Bolota teimam em esconder-se atrás da casota. Mas sempre vão espreitando e dando um ar da sua graça. São as duas lontras residente no parque. Margarida chama a atenção para um es-


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Parque Biológico 90 anos com Miranda do Corvo

paço onde se encontram animais que sofreram algum problema. «Não é um santuário, mas é um sítio onde estes animais podem viver tranquilamente». São sobretudo aves irrecuperáveis, que se encontram numa zona que mereceu uma ampla intervenção, há cerca de três anos, com a colocação de um pavimento ecológico. De resto, todo o parque é acessível a pessoas com problemas de mobilidade. Cativeiro ilegal, atropelamento ou electrocussão são os principias problemas que as aves sofreram. Encontram-se exemplares de açor, corvos – um dos quais pregou um grande susto à bióloga com um “anda cá”, repetido várias vezes, quando normalmente a sua linguagem se fica pelo cumprimento – bufo real – a maior ave de rapina nocturna da Europa – águia de asa redonda, milhafres. Destaque, ainda, para uma águia cobreira. Majestosa e imponente, nem parece que levou 17 chumbadas numa asa. «Contactaram-nos e fui a Lisboa buscá-la. Nunca tínhamos tido uma águia cobreira, nem sei quanto tempo vamos ter», diz a bióloga. Chegou ao Parque no Verão de 2020. Os gerbas (ratinhos) pretos, acastanhados ou em tom de beje. Parte deles chegaram ao parque como “alimento”para os restantes animais. Mas lá continuam, vivos e a aumentar a família. Vamos subindo na encosta e encontramos os veados. Um macho, de grande porte, parece envergonhado pela falta das hastes. Margarida esclarece que as hastes caem todos o anos e voltam a nascer. «Em Setembro/Outubro estão na sua máxima pujança». É a altura da brama (acasalamento). A família muflão vive ao lado. São os carneiros selvagens, também praticamente desaparecidos no seu habita natural. Uma cria, acabada de nascer, corre atrás da mãe. No último patamar do parque encontram-se as raposas, os linces e os lobos. Não muito fáceis de avistar.Adormir, porque se trata de animais nocturnos – por isso o parque efectua visitas nocturnas - e carnívoros, estão as ginetas, também conhecidas por gato toirão. Pachorrento, o texugo nem se mexe, mas o saca-rabos lá sai de casa, com um ar tão inofensivo que ninguém acredita que seja um verdadeiro terror se avistar um galinheiro. Referência, ainda para as espécies autóctones da flora desde os carvalhos aos castanheiros, sobreiros, azereiros e pinheiros. «Todos os anos fazemos plantações», diz.

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Um dia diferente Uma hora e meia, duas horas é o tempo médio que uma família demora a visitar o parque.As propostas são muitas. Margarida Soares destaca a possibilidade de alimentar os veados, gamos e cabras, adquirindo um quilo de milho no parque. É também possível da um passeio de cavalo – o parque possui um picadeiro, onde se realizam provas e dão aulas de equitação. «Facilmente se passa um dia connosco», afirma a bióloga, destacando a possibilidade de realizar piqueniques ou almoçar no restaurante Museu da Chanfana, onde além da gastronomia portuguesa há sempre um prato vegetariano. Para os amantes das caminhadas, além dos passeios no parque, é possível subir pela encosta e chegar ao Templo Ecuménico ou rumar até ao centro da vila. O Parque Biológico funciona entre as 10h00 e as 20h00. Espaço museológico O parque inclui uma área museológica. O Museu Espaço da Mente, inaugurado em 2015, é um ecomuseu etnográfico,que potencia uma reflexão sobre o Homem, assente na “trindade”do corpo, mente e espírito. Percorre toda a narrativa da vida humana, do nascimento à morte e destaca o valor da liberdade, como facto diferenciador e de afirmação do homem. O Museu da Tanoaria acolhe um conjunto de peças relacionadas com este ofício tradicional, espólio que, na grande maioria, foi oferecido pelo médico Joaquim Leitão Couto. O Museu de Artes e Ofícios Tradicionais é um espaço museológico e de oficinas, que alia a preservação da artesanato da região e a ocupação terapêutica de pessoas com deficiência mental e desempregados de longa duração. Inclui oficinas de tecelagem, olaria e vidro, mobiliário e vime, cestaria, empalhamento de vasilhame e conserto de calçado.

Margarida Soares, bióloga do Parque

Exemplo de integração Muito ciosa do seu trabalho, Paula passeia a simpática cadela Serra da Estrela, a mascote do Parque. Mas também assegura a limpeza e ajuda a servir as refeições. «Trabalhamos com pessoas diferentes, especiais», faz notar Margarida Soares. Entre tratadores, técnicos e pessoal de manutenção são 10 colaboradores. A zona das oficinas tradicionais envolve um universo que ronda as duas dezenas de pessoas. 


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90 anos com Miranda do Corvo Adega

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VINHOS TEMPERADOS COM EMOÇÕES 2016 Instalações da Adega da ADFP foram inauguradas a 6 de Novembro de 2016. Um mundo onde reina o vinho, condimentado com sentimentos

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ou enólogo, mas aqui não faço só vinho!».As palavras são de Gonçalo Moura da Costa e dizem quase tudo. Sim, as enormes cubas de inox agigantam-se, enchem o primeiro piso. É o cheiro a vinho novo. No piso inferior, os vinhos premium amadurecem em pipas de carvalho francês ou americano, durante pelo menos seis meses. É o mundo do vinho. A Adega da Fundação ADFP. Mas aqui não se trata apenas de vinho. Falta o “quase” que, aqui é muito mais do que isso. É, quase diríamos, a alma do projecto. São os sentimentos, as emoções. “Engarrafamos emoções”foi o slogan escolhido para este pequeno-grande mundo. Porque, além do vinho, é de pessoas que se trata. Pessoas que trabalham na vinha, colhem as uvas, fazem o vinho. Pessoas diferentes que conferem o toque diferenciador ao projecto. Daí a afirmação de Gonçalo Moura da Costa: «aqui não faço só vinho». E se dúvidas houver, basta dizer que «numa adega normal nunca se pararia para cantar os parabéns». Mas isso acontece “aqui”. O dia em que visitámos a Adega da ADFP foi o dia de anos de um dos jovens que ali trabalha. Completou 19 anos e, pela primeira vez, teve uma festa de aniversário, com os colegas da equipa a comprarem-lhe um bolo e a cantarem-lhe os parabéns. “Aqui”, na verdade, não se faz só vinho. “Aqui”integram-se pessoas, descobrem-se talentos. “Aqui” o enólogo “descobre-se” como pessoa e as pessoas que ali trabalham despertam o seu talento para tratar das uvas, para cuidar do vinho. São sete ao todo. Mais de metade são “diferentes”. Pessoas que, sublinha, «têm aqui uma oportunidade», «desenvolvem o seu trabalho». Como utentes da ADFP ou ao abrigo de programa de emprego protegido.Até podem demorar mais tempo. Fazer numa semana o que outros fariam num dia. Mas fazem. Fazem bem. E dão alma a esta casa. A produção de vinho e também de azeite, constitui uma das apostas da Fundação ADFP para garantir a sua sustentabilidade e, igualmente, «para ajudar a desenvolver a região», afirma Jaime Ramos. O presidente da Fundação aponta as vinhas existentes

Gonçalo Moura da Costa é o enólogo responsável pela Adega da ADFP

em Miranda, Penela e Condeixa, mas também os cerca de 60 hectares do Fundão, com vinha e olival. Projectos que permitem «criar emprego», sobretudo para pessoas com deficiência mental. Mas o vinho também adquire «uma visão filantrópica». «Esta é uma zona que pode produzir excelentes vinhos». Todavia, a propriedade é muito pequena, «não tem escala para se valorizar». «Queremos dar uma ajuda, fazer escala e mostrar que se pode fazer um vinho de grande qualidade. Estamos a ser o motor, a “puxar pelos pequenos produtores e chamar a atenção para os vinhos das Terras de Sicó», diz. Gonçalo Moura da Costa recorda que a «maior exigência» relativamente à produção vitivinícola começou em 2005, o que significa que, antes da inauguração da Adega, em Novembro de 2016, se assistia a «uma produção artesanal», no Parque Biológico. Na Adega concentram-se duas regiões distintas. Por um lado os vinhos Terras da Beira e DOP Beira Interior (Fundão), e os vinhos da Sub-Região de Sicó, que integra a Indicação Geográfica (IG) Beira Atlântico. Estes são os vinhos da região, Terras de Sicó. O enólogo destaca as três grandes marcas: Terra Solidária, Paixão Natural (homenagem ao Parque Biológico, cada rótulo representa um animais do parque), e o Rabarrabos, a verdadeira “estrela da companhia”. Lançado

em 2017 e o vinho mais premiado da Fundação. Duas medalhas de ouro em 2017 e três em 2018, refere, destacando, os últimos prémios, conquistados em Berlim, Coreia do Sul e em Itália. São produzidas cerca de três mil garrafas/ano. «Temos o único espumante certificado Terras de Sicó, afirma o enólogo, orgulhoso do seu trabalho e da colheita das vinhas da ADFP. Em causa está o “Aldeias do Xisto”, que começou a ser produzido em 2017. Em média, são produzidas quatro mil garrafas/ano. Branco, até agora. «Estamos a preparar um rosé», afiança. Não diríamos “rosé”, mas com um atractivo tom rosáceo, apresenta-se a jeropiga, outra das “jóias da coroa”. «Imita o vinho romano», diz, explicando que se trata de «uma receita especial», que «inclui ervas e especiarias». «Um segredo» de Gonçalo Moura da Costa e da ADFP. A produção desta bebida “mágica” não ultrapassa os 600 litros/ano. «Quando se compram vinhos feitos pela ADFP, além de um produto de qualidade, está-se a promover a inclusão de pessoas», afirma Gonçalo Moura da Costa, um bairradino rendido ao “terroir” das Terras de Sicó. «Incluir é uma palavra muito bonita, mas nós não ficamos pelas palavras», garante. A prova está à vista de todos. Em “emoções engarrafadas”. 


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Cinema 90 anos com Miranda do Corvo

CINEMA CHEGA A MIRANDA 2004 Parceria entre a ADFP e a Câmara permite inaugurar, no dia 1 de Junho de 2004, a primeira Sala de Cinema

Cinema representa uma oferta diferenciadora para a população do concelho

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erca de duas centenas de pessoas assistiram ontem à inauguração da sala de cinema daADFP, construída em parceria com a Câmara Municipal». Escrevia o Diário de Coimbra na edição de 2 de Junho de 2004, dando conta de um dos momentos mais significativos das comemorações do Dia do Município. «O cinema está equipado com a mais moderna tecnologia digital e tem capacidade para 155 pessoas, com quatro lugares especialmente preparados para espectadores em cadeira de rodas», adiantava o jornalista, António Ventura. «Com esta infraestrutura, Miranda está à frente de outros concelhos, inclusivamente de Coimbra, «que não possui nenhuma sala com esta tecnologia», afir-

mava Jaime Ramos, presidente da ADFP. Fátima Ramos, presidente da Câmara Municipal na altura, salientava o facto de Miranda do Corvo passar a dispor de «um cinema moderno, como qualquer outra cidade europeia desenvolvida». O secretário de Estado, Luís Pais de Sousa, congratulou-se com o «significativo investimento e o excelente equipamento». «É importante criar condições para que os cidadãos tenham acesso à cultura», dizia ainda o governante. Na véspera, o Diário de Coimbra apresentava mais pormenores sobre a obra, adjudicada à firma Pereira e Lopes por 376.791,93 euros e lançada em Novembro de 2002, por ocasião do 15.º aniversário da ADFP. Destacando a cooperação entre a instituição e o município, que «dividiram

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entre si o investimento», o jornalista apontava o facto de o edifício comportar, além da sala de cinema, um espaço de habitação, com seis apartamentos tipo T3, destinados a acolher a comunidade de risco que a ADFP apoia. Agestão do cinema é da responsabilidade da ADFP, com a programação assegurada, na altura, pela Lusomundo Cinemas, SA, que operava em todo o país, contando com 42 salas.ANOSAudiovisuais substituiu a Lusomundo, mas o Cinema de Miranda do Corvo continua a garantir a projecção de filmes na noite de sexta-feira e à tarde e à noite aos sábados e domingos. Carlos Marta, que desde há dois anos é o responsável, dentro da ADFP, pelo Cinema (que acumula com a gestão da Biblioteca Itinerante), destaca o facto de, bastas vezes se realizarem sessões na sexta-feira à tarde, destinadas às crianças das escolas, com a projecção de filmes de animação. Sublinha, ainda o facto de, fruto da parceria com a NOS e anteriormente com a Lusomundo, os filmes chegarem a Miranda do Corvo praticamente em sintonia com as estreias em Lisboa, Porto ou Coimbra. Ao “pacote” de filmes proposto pela distribuidora, junta-se, por vezes, um pedido especial, designadamente de cinema de animação, particularmente em alturas de férias escolares. Carlos Marta destaca o privilégio de Miranda do Corvo ter esta plataforma de acesso à cultura e ao lazer, única nas redondezas. Confessa que, à semelhança do que acontece, de resto, com as salas de cinema de todo o país, se assiste a um decréscimo de público. Todavia, enfatiza o facto de em 2019 o Cinema ter registado um universo de 2.900 espectadores. Um número que está bastante longe dos 11.500 espectadores contabilizados nos primeiros 12 meses de funcionamento. 



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Biblioteca Itinerante 90 anos com Miranda do Corvo

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UMA BIBLIOTECA SOBRE QUATRO RODAS 2001 Fundação ADFP assumiu herança da Fundação Gulbenkian e mantém viva a aposta de levar o livro e despertar o interesse pela leitura. Provavelmente a única do género que se mantém no activo

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á 40 anos que Carlos Marta trabalha na Biblioteca Itinerante. Primeiro ao serviço da Fundação Calouste Gulbenkian. Depois, sob a tutela da Fundação ADFP. Mas sempre viveu rodeado de livros e fala deles como se de um filho se tratasse. Filho do motorista da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, criada em 1959, começou a trabalhar ali aos 20 anos. Na altura, recorda, andava no 2.º ano da Universidade, no curso de História. A equipa, constituída pelo motorista (o pai) e por um encarregado (que atendia os leitores), teve um acidente com alguma gravidade. «Ficaram os dois hospitalizados». Mas a “carrinha dos livros”não podia parar. Foi substituir o encarregado, que acabou depois por se reformar. Carlos Marta foi ficando… até hoje. Nos finais da década de 90 a Gulbenkian «começou a desmantelar os serviços de biblioteca e a entregar o respectivo espólio às autarquias. «A minha foi das últimas», recorda, lembrando que os critérios de encerramento tinham em conta a idade do funcionário. Mas acabou por chegar a sua hora. «A Câmara Municipal de Miranda não aceitou ficar com a Biblioteca». Aventou-se a possibilidade de ir para a Lousã ou para a Pampilhosa da Serra. Todavia, a «Gulbenkian preferia que ficasse aqui», faz notar, destacando a ligação com o Prof. Ferrer Correia, natural do concelho. O impasse resolveu-se em 2001, com Jaime Ramos, presidente da ADFP, a assumir, em nome da instituição, o futuro da Biblioteca Itinerante.

Biblioteca Itinerante faz um trabalho de grande proximidade com as escolas

«Estávamos em Novembro de 2001», recorda Carlos Marta, que trocava, assim, a Calouste Gulbenkian pela Fundação ADFP. O fundo bibliográfico rondava os 30 mil exemplares e a decisão foi manter o serviço, cumprindo o figurino desenhado pela Gulbenkian. «Propusemos protocolos às autarquias», recorda. No início, aderiam cinco concelhos: Coimbra, Penacova, Miranda do Corvo, Penela, Góis e a Junta de Freguesia de Serpins (concelho da Lousã). Mais tarde Coimbra criou um serviço similar e desistiu, o mesmo acontecendo com Penacova. Mantiveram-se os restantes três concelhos e a Freguesia de Serpins. «Estamos abertos a outros concelhos», faz notar Carlos Marta.

Ao encontro dos leitores O bibliotecário não tem dúvidas sobre o impacto positivo do seu trabalho. «Temos uma rede de bibliotecas municipais espectacular, mas quem é que lá vai?», questiona. «O difícil é colocar as pessoas a ler!», afirma. Esse é, considera, o seu «dever». Assumindo-se como «um verdadeiro homem dos livros», entende que se as pessoas não procuram o livro, vai o livro ao encontro das pessoas. «Este era o espírito da Gulbenkian», recorda. Os cerca de 4.500 inscritos testemunham o bom trabalho que tem sido feito. «Vamos a locais isolados», sublinha, destacando o empenho da Fundação ADFP em manter em funcionamento esta valência


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90 anos com Miranda do Corvo Biblioteca Itinerante

cultural e imprimir-lhe dinâmica. «Temos um fundo bibliográfico de perto de 40 mil exemplares», onde além das aquisições pontuam «muitas ofertas de leitores». Actualmente, as visitas efectuadas nos três concelhos e freguesia de Serpins contemplam «cerca de 50 localidades», o que representa «70 paragens». Há locais onde fazemos mais do que uma paragem. Exemplifica com Lamas, onde a carrinha vai de manhã ao centro de dia e à escola, mas tem de regressar durante a tarde para servir os restantes leitores. Uma vez por mês cada localidade recebe a Biblioteca Itinerante. Uma rota que inclui, explica Carlos Marta, berçários, jardins de infância, lares, centros de dia, mas também o centro da aldeia ou da vila. «Paramos em Agosto, para férias». Orgulhoso, Carlos Marta aponta os 9.953 leitores que em 2019 recorreram aos serviços da biblioteca, dos quais 4.136 do sexo masculino e 5.817 do sexo feminino. Quanto às idades, o bibliotecário destaca, satisfeito, as 8.258 requisições feitas pelos leitores até aos 11 anos, o que revela o “trabalho de casa” bem feito desde a creche, primeiro com o trabalho colectivo, depois com as crianças, a partir dos 6 anos, a levaram os seus livros para casa. Um fruto do «trabalho importante de colaboração com os professores e educadores», destaca. «Preocupante», no entender de Carlos Marta são as escassas 223 requisições de leitores entre os 12 e os 16 anos de idade. A “tabela” inclui, ainda, um universo de 1.462 leitores acima dos 17 anos. «Quando comecei era ao contrário», diz, referindo-se às faixas etárias dos actuais leitores da biblioteca itinerante. Em 2019 foram requisitados 15.083 livros. Os dados de 2020, embora incompletos, indiciavam uma boa performance, apesar da paragem desde meados de Março ao início de Junho, devido à pandemia, com um total de 7.114 leitores e 10.930 requisições. 

Concursos imprimem mais dinâmica

Carlos Marta e duas leitoras fiéis

Se bem que também inclua CD´s, a Biblioteca Itinerante é, sobretudo, um mundo de livros e um convite à leitura. Mas Carlos Marta, actualmente com 61 anos, tem procurado alimentar este interesse das mais diversas formas. Se a colaboração

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com educadores e professores é importante neste despertar para o livro, o bibliotecário também tem vindo a inovar. Exemplo disso é o concurso de espantalhos, que culmina com uma mega exposição; sobre o comboio, que «teve mais de 800 desenhos», ou dedicado às carrinhas da biblioteca, que culminou com mais de 30 miniaturas, desde o modelo mais antigo, a Citroën, até à actual Renault Master. Refere, ainda, em 2016, as comemorações dos 60 anos da Biblioteca, que reuniu 60 depoimentos de leitores, actuais e antigos. O mais velho, recorda, foi o de seu pai, actualmente com 96 anos. E o mais recente o seu. Recorda leitores de Arganil que não via há 30 anos e que fizeram questão de participar no momento. «Foi muito engraçado. Demonstrou a importância que a biblioteca teve nas suas vidas». 

A pensar nos mais velhos Carlos Marta empenhou-se, também, em desenvolver um projecto, mais de carácter visual e, sobretudo, de memórias, destinado especialmente aos mais velhos. “No meu tempo é que era” apresenta, através de imagens e com a ajuda de um trecho musical a condizer, as mais diversas profissões tradicionais. O bibliotecário junta-lhe um texto sobre a profissão e todas as semanas envia um documento diferente para uma dúzia de lares e centros de dia. Trata-se, explica, de um trabalho concertado com as animadores que, na véspera, abordam a temática, despertando a

atenção dos utentes, apelando às suas memórias e recordações. Depois, no dia seguinte, com o som e as imagens, partilha-se um bom momento. Há instituições onde, confessa, é ele próprio que faz a apresentação e dinamiza a actividade. Além das antigas profissões, o projecto inclui documentários sobre momentos especiais, designadamente o Natal ou a Páscoa, mas também sobre os lenços dos namorados, a apanha da azeitona , a safra do azeite, que são apresentados em consonância com a época do ano a que se reportam. 


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Biblioteca Municipal 90 anos com Miranda do Corvo

CATIVAR PARA A LEITURA 1997 Inaugurada a 19 de Outubro de 1997 por Manuel Maria Carrilho, a Biblioteca Municipal veio imprimir nova dinâmica

Biblioteca Municipal está instalada num espaço “com memória”

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rida no âmbito da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, iniciada nos finais da década de 80 pela Secretaria de Estado da Cultura, a Biblioteca Municipal Miguel Torga marcou a diferença. Margarida Mota, coordenadora da biblioteca desde a primeira hora destaca essa alteração de paradigma. Miranda, recorda, ao contrário de muitos outros concelhos, já beneficiava da Biblioteca Itinerante da Fundação Gulbenkian. Mas também tinha uma «pequena estrutura fixa». A nova biblioteca veio imprimir um novo dinamismo, procurando «captar outros públicos, que não o público leitor», sublinha. A ajudar nesse desígnio esteve o espaço onde foi instalada. «Era um edifício com memória», sublinha, onde tinha funcionado uma escola, o posto da GNR e a Rádio local. «Havia na comunidade uma memória do espaço», diz, recordando que no dia da inauguração, a 19 de Outubro de 1997, muitas pessoas entravam e recordavam o seu tempo de escola. Um «espaço com memória» que «foi importante», pois «as pessoas perceberam que tinha sido criada uma estrutura diferente, com espaços e funcionalidades novas e inovadoras». Um espaço diferenciador que foi, «durante muitos anos o único equipamento cultural do

município, onde era possível realizar uma exposição com dignidade, promover um encontro com escritores, apresentar uma pequena dramatização». Margarita Mota não tem dúvidas: a biblioteca constitui «um marco» na história recente do concelho. A população aderiu às novas propostas. A coordenadora da biblioteca exemplifica com a leitura de jornais e revistas, até então apenas disponíveis num ou noutro café, que passaram a estar diariamente ali, à mão. A este “aperitivo” somou-se todo um conjunto de iniciativas de promoção da leitura e do livro junto do público mais jovem, até então inexistentes. Margarida Mota destaca as actividades para bebés, as sessões para pais, as iniciativas com as crianças das escolas, onde, entretanto, começaram a ser criadas as bibliotecas escolares. Um vasto trabalho de articulação e promoção, «sempre em prol da promoção do livro e da leitura», que não esqueceu a população de idade mais avançada. Margarida Mota destaca três projectos, dinamizados para este público-alvo, designadamente o “Baú de Memórias”, uma iniciativa especialmente dirigida a lares e centros de dia. Mas também as actividades de formação informal na área das novas tecnologias. Sessões em que os seniores

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trazem o seu equipamento ou usam os computadores da biblioteca e são orientados no uso das plataformas que lhes permitem falar com os netos, mandar ou receber uma fotografia ou aceder ao facebook. «Foi um projecto muito gratificante», afirma. «Começámos com uma manhã, depois ocupámos a tarde e já estamos com dois dias afectos a este projecto», explica, satisfeita. A juntar o útil ao agradável está o facto de as sessões funcionarem como espaço de encontro e convívio dos elementos do grupo, importante para promover a sociabilidade e combater a solidão. A responsável pela biblioteca aponta um terceiro projecto para os seniores. Trata-se do Clube do Tricot, particularmente dirigido ao público feminino. «Uma vez por semana, à quinta-feira à tarde, os participantes juntam-se na biblioteca e trazem as suas rendas, o seu tricot». Periodicamente assiste-se a um “Tricot Solidário”, o que significa que as botinhas, gorros, casaquinhos, mantinhas ou camisolas confeccionados são, em articulação com os serviços de Acção Social do município, canalizados para famílias carenciadas que tenham crianças. Particularmente com os utentes mais velhos das sessões de informática e do Clube do Tricot, a biblioteca tem procurado manter contacto, através do telefone, uma vez que todas as acções estão suspensas, devido à pandemia. «Quando tudo isto acabar, queremos ter as pessoas outra vez connosco», afirma Margarida Mota, ciosa de ter os seus leitores de regresso à biblioteca. «Em Fevereiro de 2020 tínhamos uma média de 50 leitores diários», refere. Para fazer face à pandemia e manter o contacto com os leitores, a Biblioteca Miguel Torga – uma homenagem ao escritor e médico que durante vários anos teve uma ligação de grande proximidade com o concelho, particularmente com a freguesia de Vila Nova – disponibilizou o serviço “Ler em Casa”. O catálogo da biblioteca está disponível e pode ser consultado online, depois basta um telefonema para a biblioteca ou um e-mail a pedir as obras. Se possível, no mesmo dia a obra é entregue em casa do leitor. Um projecto que tem corrido muito bem, sublinha a coordenadora. Margarida Mota está convencida que numa «sociedade apressada, onde é preciso enraizar o sentido crítico e saber ler o mundo, as bibliotecas municipais vão ser, cada vez mais, equipamentos fundamentais». 



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Casa das Artes 90 anos com Miranda do Corvo

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UMA CASA ICÓNICAI PARA AS ARTESI

A Casa das Artes é um espaço de encontro, que acolhe os mais diversos tipos de espectáculos e que assume uma vocação regional

2013 Inaugurada a 23 de Agosto de 2013, a Casa das Artes é um equipamento de excelência em termos culturais. Ela própria é a uma obra de arte

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reto, branco, vermelho e verde. Por dentro e por fora são as cores que marcam a identidade da Casa das Artes. Um espaço diferente, uma construção que, em pleno coração da vila, choca pelo contraste, pelo ousado da cor e de toda a configuração. Miguel Correia, o obreiro do projecto, da responsabilidade do gabinete FUT - Future Architecture Thinking, assume que esse foi o propósito que o orientou. Por isso, mais do que uma sala de espectáculos, empenhou-se em criar uma «peça escultórica arquitectónica». «Mais do que um edifício, a Casa das Artes pretende ser um marco da paisagem, celebrando o lugar onde as pessoas se encontram, onde a cultura e a arte acontecem, um espaço capaz de promover e estimular a actividade criativa, aumentando a qualidade de vida da população». É desta forma que a equipa do gabinete FAT apresenta a Casa das Artes. Um edifício com «três volumes, que reflectem diferentes usos: o primeiro com a área de palco, o segundo com plateia e átrio e o terceiro, visualmente independente, com o café e museu». Destaca ainda a área exterior, rodeada por um espaço ajardinado e um

anfiteatro externo, «integrado no espaço público da vila». O resultado é um edifício único na região. Uma obra de arte da arquitectura. Um espaço icónico que inicialmente provocou “estranheza”, mas que já se “entranhou” na paisagem e faz parte do quotidiano dos mirandenses. O projecto do gabinete FAT - Future Architecture Thinking foi um dos finalistas do prémio de arquitectura Archdaily, em 2014 «Não é todos os dias que se inaugura uma estrutura cultural desta dimensão», afirmou o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que presidiu à cerimónia de inauguração, no dia 23 de Agosto de 2013. O governante sublinhava a necessidade de a Casa das Artes ser «vivida pela população». «Que o equipamento não envelheça por falta de uso», advertiu, deixando ainda um alerta: «é preciso sabedoria para saber usar o edifício. «Se queremos ter um povo com alma e que produza, ele tem que ter cultura», dizia, por seu turno, a então presidente da Câmara, Fátima Ramos, que destacava a «importância supramunicipal» da Casa das Artes, um projecto orçado em 2,5 milhões de euros.

O mesmo carácter regional é sublinhado pelo actual autarca, Miguel Baptista, que destaca «os espectáculos dos mais diversos géneros» e um «programa variado, por vezes arrojado, para diferentes públicos». «Já serviu de sala de cinema», recorda, lembrando a apresentação do filme “Fátima”, mas igualmente a passagem de nomes sonantes do mundo da música, como Tatanka, o vencedor do Festival da Canção, Carolina Deslandes, Bárbara Tinoco, mas também humoristas, o mágico Luís de Matos, teatro e dança. O edifício possui uma sala com capacidade para 266 pessoas, que pode acolher os mais diversos tipos de espectáculos, mas também seminários. A sala/foyer está preparada para acolher exposições e a sala multimédia destina-se a exposição e promoção de produtos locais, comportando também um espaço dedicado às novas tecnologias de informação e comunicação. Possui ainda uma cafetaria e esplanada e um jardim, com capacidade para acolher pequenos eventos, além da sua função como espaço verde e de lazer. Neste jardim foi plantada uma oliveira, em homenagem e António Arnaut e ao Serviço Nacional de Saúde. 


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90 anos com Miranda do Corvo Escola de Talentos

ESCOLA DE TALENTOSI NASCE NA CASA AMARELAI Emblemático edifício está a ser recuperado e vai dar uma atenção especial à música

2020 Empreitada foi consignada em Junho de 2020. Obra decorre a bom ritmo e o espaço vai ficar pronto antes do final do ano

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antiga casa de quinta, conhecida como Casa Amarela, está a ser requalificada e ali vai nascer um novo espaço cultural. Nada mais nada menos que a Escola de Talentos. Um projecto que merece um carinho especial do presidente da Câmara, mentor da ideia, mas também do arquitecto Carlos Antunes, do Atelier do Corvo, responsável pelo projecto. Um e outro falam com entusiasmo deste novo espaço que vai dar um destaque especial à música. Miguel Baptista, presidente do município, sublinha isso mesmo, dando nota das dificuldades da Filarmónica Mirandense e da sua Escola de Música em ter um espaço

adequado para dar seguimento à sua função formativa, que tem atraído um crescente número de jovens. «A escola cresceu de tal forma que não tem espaço», diz, apontando a “fuga” de crianças para Coimbra e para a Lousã. «Vamos estabelecer um protocolo com a Filarmónica Mirandense», refere. O edifício, adianta, está muito pensado para a música, mas os espaços «podem ser potenciados para outras formas de arte», designadamente ao nível da dança, do teatro. Para o autarca, a Escola de Talentos pretende ser o que o nome indica. Um espaço de formação para as artes. Os artistas podem, depois, «apresentar-se na Casa das Artes», refere, bem humorado, não sem lembrar que o investimento neste equipamento representa «menos de metade» do que foi gasto na Casa da Artes. São cerca de 1,5 milhões de euros, com financiamento comunitário no âmbito do Plano de Acção de Regeneração Urbana (PARU). A obra

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deverá estar pronta em Novembro/Dezembro. Carlos Antunes destaca o desafio lançado pela autarquia, no sentido de criar um novo espaço para acolher a Filarmónica, com a proposta de recuperação da Casa Amarela. Trata-se de uma casa antiga, numa quinta, localizada no limite do centro histórico da vila com as novas zonas de urbanização. Uma casa que estava abandonada, com os terrenos da quinta vendidos, mas que «detinha alguma importância simbólica» que o projecto quis enaltecer. «Como arquitectos, entendemos que a reabilitação deve repor a importância simbólica e urbana dos equipamentos», considera Carlos Antunes. E foi isso que o Atelier do Corvo – dos arquitectos Carlos Antunes e Désirée Pedro – entendeu fazer, procurando «atender à volumetria da casa e erguer um novo espaço para lhe dar mais centralidade». Nascem, assim, dois blocos novos, instalados no antigo pátio e anexos rurais da casa. O arquitecto fala com entusiasmo deste pátio, «com enorme potencial». «Era quase um claustro», considera. O projecto recuperou este espaço central, colocando à sua volta salas de música. «Este corpo vem recuperar a lógica deste apoio agrícola, com uma nova funcionalidade». O corpo central destina-se a uma sala de música mais abrangente, para uma espécie de «ensaio geral», enquanto as outras são mais pequenas e «intimistas», destinadas para formação. O espaço central poderá permitir, além de ensaios gerais, uma demonstração para os pais, exemplifica, sublinhando que não se trata de todo de uma sala de espectáculos, mas sim de «uma sala de transição». Destaca, de resto, a atenção que o presidente da Câmara pediu a este detalhe, uma vez que a sala de espectáculos enquanto tal está noutro espaço, complementar a este, a Casa das Artes. 


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Recreativo Mirandense 90 anos com Miranda do Corvo

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GRUPO RECREATIVO MIRANDENSE: UMA APOSTA FORTE NA CULTURA 1931 Pela mão e pelo querer de um grupo empenhado de mirandenses nascia, em Julho de 1931, uma “colectividade recreativa e cultural, democrática e progressista”. Desde sempre um ícone da cultura do concelho

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Filarmónica Mirandense, a Escola de Música, a Banda Os Vicentes e o Coro são, hoje, as faces mais visíveis de um projecto cultural arrojado, inovador e eclético que marcou sucessivas gerações de mirandeses. Vivia-se o mês de Julho de 1931 quando um «punhado de mirandenses valorosos» – José Camilo, Fernandes Bastos, Alexandre Ribeiro São Miguel, Jaime Cordeiro, Isaac de Almeida e Augusto dos Santos – constituíram a comissão instaladora do Grupo Recreativo Mirandense. O ensejo era promover uma «colectividade recreativa, cultural, democrática e progressista». Praticamente 90 anos depois, pode dizer-se que o objectivo foi perfeitamente conseguido, com o Grupo Recreativo Mirandense a assumir-se como uma das colectividades mais antigas, mas sobretudo mais dinâmicas do concelho. Uma grande família, que reúne diferentes gerações e tem na cultura a sua grande bandeira. A Filarmónica, as Escolas de Música, a Banda Os Vicentes e o Coro GRM são, hoje em dia, a expressão desta mundividência, que Ana Grade, directora da colectividade, nos apresenta. A Filarmónica Mirandense «funcionou sempre ininterruptamente» e «é a única no concelho de Miranda do Corvo», sublinha. Tem 42 elementos, com idades entre os 11 e os 50 e muitos anos e é dirigida pelo maestro Rui Lúcio.

Banda Filarmónica é a “jóia da coroa” do Grupo Recreativo Mirandense

Escola de Música registou um crescimento muito grande nos últimos anos, facto que criou limitações ao funcionamento e obrigou Grupo a “reinventar-se”

No final da década de 90 do século passado surge a Escola de Música, uma valência criada com o objectivo de garantir formação e, sobretudo, de assegurar o futuro da filarmónica, com músicos devidamente credenciados, formados dentro de “casa”. «As escolas surgem com o objectivo de serem um “pulmão” para a filarmónica, garantindo o ingresso de novos músicos», sublinha Ana Grade. E acabaram por se revelar uma excelente surpresa. «A


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90 anos com Miranda do Corvo Recreativo Mirandense

partir de 2015, começámos a crescer bastante», refere. Um crescimento que se poderá considerar um verdadeiro fenómeno, tendo em conta o que acontece na maioria dos concelhos vizinhos. «Chegámos a ter 130 alunos nas escolas», refere a directora, recordando que chegou a ser necessário realizar duas sessões na Casa das Artes, para apresentação destes novos talentos. Outra “surpresa” prende-se com o universo de públicos. «Desde os seis meses aos 80 anos». «Chegamos a ter pais, filhos, primos, praticamente a família completa», diz com agrado Ana Grade. Em 2015, e fruto desta dinâmica de formação, surge o Projecto Musical Bandas Os Vicentes, que não é mais do que um patamar intermédio, onde os alunos, ainda em formação, vão ganhando a experiência de tocar em conjunto com outras classes de instrumentos, ao mesmo tempo que começam a ganhar o necessário traquejo para as apresentações em público. O número de elementos varia consoante o ritmo da formação. A mais recente criação do Grupo Recreativo Mirandense é o Coro GRM, que data de 2017 e tem uma média de 15 elementos, das mais diversas faixas etárias. Ana Grade destaca, de resto, esta perspectiva intergeracional que caracteriza praticamente todas as actividades da colectividade, juntando pais e avós, numa aliança consolidada pela música. A responsável assume o desejo de «dar mais atenção ao coro», designadamente através da participação em eventos específicos para coros. A preparar uma candidatura para obter o estatuto de instituição de utilidade pública, o Grupo Recreativo Mirandense tem um histórico que o liga a outras áreas culturais. Ana Grade recorda que,

nos anos 40, foi criado um grupo de teatro, que se manteve activo até à década de 70 do século passado. Foi também por esta altura que claudicou o rancho folclórico, que começou nos anos 50. Do conjunto de actividades promovidas durante estas quase nove décadas de vida, a directora refere ainda os muitos bailes que o grupo organizou. Mais recentemente, desde 1999, a colectividade organiza um Encontro de Bandas, que assinala a data do seu aniversário. Além da filarmónica anfitriã, são convidadas sempre mais duas bandas. Nos últimos anos, ao invés de cada banda tocar isoladamente, tocam as três em conjunto, proporcionando uma «experiência diferente». Diferentes têm sido outros projectos, designadamente em colaboração com a Escola de Dança ou outras colectividades do concelho, mas também um espectáculo na Casa das Artes, com um programa de música de filmes, acompanhada pela projecção de imagens. 

Actuais instalações do GRM

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Escola de Talentos resolve problema As limitações da actual sede do Grupo Recreativo Mirandense, em termos de espaço, representam, efectivamente, um problema. «O edifício é muito antigo» e, apesar de uma intervenção feita por volta de 2008, a verdade é que a crescente solicitação em termos de formação musical criou sérias dificuldades de falta de espaço. Problemas que, de resto, a situação de pandemia que se vive e as medidas de higiene e segurança que lhe estão associadas vieram agravar. «Já não ensaiamos na nossa sede há mais de um ano», conta Ana Grade, que, confessa, «chegámos a ensaiar no campo de futebol». A utilização do palco está completamente inviabilizada , porque «é demasiado pequeno», tendo em conta as normas de distanciamento e tem sido cada vez mais difícil conseguir dar resposta para as aulas de formação musical ou de instrumento. Por todas estas razões, Ana Grade olha para a Escola de Talentos, em fase de construção, como uma resposta perfeita. «Para nós é magnífico». «Se os pais já confiavam em nós num local que não era tão luminoso, com as novas instalações os mirandenses vão ficar ainda mais próximos e mais amigos da colectividade», refere. Para a directora, este pode ser o caminho certo para canalizar mais pessoas para a escola de música, mais elementos para o coro e para a filarmónica, dando continuidade a um projecto sólido e consistente, que este ano celebra 90 anos de vida. 


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Loja do Sr. Falcão 90 anos com Miranda do Corvo

TRADIÇÃO RENOVADA NA LOJA DO SR. FALCÃO 2008 Filomena Falcão empenhou-se em dar continuidade à herança familiar, renovando a loja, aberta em 1878 pelo avô e criou um espaço emblemático na localidade de Pereira

Loja mantém viva a memória das mercearias e dos produtos tradicionais

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ourenço Falcão, bisavô de Filomena Falcão arrancou com a loja. Vivia-se o ano de 1878. Uma mercearia e uma taberna. «Estamos na quarta geração», sublinha, com o entusiasmo que a caracteriza, mas agora com uma “dor na alma”, motivada pelo prolongado encerramento a que a pandemia obrigou. Do bisavô, o estabelecimento comercial passou para as mãos do avô, Joaquim Fernandes Falcão. Nos anos 50 do século passado, a loja foi destruída por um incêndio. Mas renasceu, revigorada, em 1956, sob a batuta de Joaquim Falcão. Agora é a filha, Filomena Falcão, a timoneira deste singular projecto inovador, que conjuga tradição e modernidade, numa homenagem ao pai. Habituada desde sempre a viver e a conviver com a loja, Filomena Falcão empenhou-se, em 2008, em reabrir o estabelecimento, encerrado desde 2000, devido aos problemas de saúde do pai, entretanto falecido. Adepta incondicional das coisas antigas e tradicionais, decidiu fazer um

“refresh” à casa, determinada em «mostrar ao século XXI uma loja do século XIX». E conseguiu-o apresentado uma mercearia onde se encontram os mais diversos produtos tradicionais portugueses, de «marcas antigas», da gastronomia às loiças, da higiene pessoal ao material escolar. Mas também produtos «confeccionados

Bar do Xisto potencia tertúlias

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por artesãos» e produtos típicos da região. Na taberna, «manteve-se o conceito e a traça original», mas criando as condições de conforto que definem «um espaço intimista», que «convida à reunião de amigos, a pequenas tertúlias», entre um trago de vinho, servido a copo, e uma tábua de queijos, de enchidos ou outros petiscos. Mas também um espaço que convida a ler um livro ou distrair-se com um dos jogos didácticos que ali se encontram. Há cerca de cinco anos, Filomena Falcão decidiu dar mais um passo e criar um novo espaço. Foi a sala/bar do xisto, decorada com antigas alfaias agrícolas e criações de artesãos locais. «É onde, aos fins-de-semana, fazemos as nossas tertúlias», diz, recordando os muitos grupos musicais, artistas, escritores que por ali já passaram, promovendo um serão diferente, entre amigos, num ambiente único. O chef Flávio Silva participou activamente em muitos deles, presenteando os convidados com alguns das suas irrecusáveis tapas e saborosos petiscos. Outras vezes, Filomena Falcão recorre à ajuda dos alunos da Escola de Hotelaria, garantindo sempre um recorte gastronómico de distinção aos presentes. «Assim que for possível vamos reabrir, vamos voltar a fazer tudo isto», promete com entusiasmo. «Temos todas as condições de higiene e segurança para as pessoas se sentirem confortáveis», refere, lamentando o encerramento prolongado e, sobretudo, a falta de qualquer apoio que possa aliviar o peso das muitas despesas que tem de suportar. «Tenho de recorrer à minha reforma», diz, uma vez que, com a loja fechada não há quaisquer receitas, mas as despesas fixas continuam praticamente as mesmas. Em 2019, Filomena Falcão diversificou a oferta. Recuperou uma residência da família e abriu a Casa do Sr. Falcão, um espaço de alojamento local, ideal para acolher famílias. Repartida entre a mercearia e a taberna, o bar e este novo espaço de alojamento local, Filomena Falcão conta com a ajuda imprescindível do marido, Arménio Gadanha, e sobretudo do irmão, Jorge Falcão. Os sobrinhos também vão dando um apoio precioso, sobretudo ao nível do bar. Juntos estão prontos para voltar a receber os amigos da Loja do Sr. Falcão. 



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Confrarias 90 anos com Miranda do Corvo

Ritual da matança do porco constitui um dos valores que a Confraria defende

CONCELHO DE MIRANDA É REI DAS CONFRARIAS 2003 Entre 2003 e 2017 foram criadas cinco confrarias. Três gastronómicas e duas báquicas

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ão nada mais nada menos do que cinco as confrarias existentes no concelho, o que faz de Miranda do Corvo o líder incontestado do movimento confrádico nacional. Juntas e em sintonia defendem os valores da gastronomia tradicional, mas também dos elixires de excelência produzidos no concelho A mais antiga, a “mãe” do movimento, é a Real Confraria da Cabra Velha, criada em 2003, que desde 2004 integra a Federação Nacional das Confrarias Gastronómicas. Um desafio que reuniu um conjunto de amantes da chanfana, um dos pratos de excelência que, reza a lenda, terá as suas origens no Convento de Semide. As cabras e o vinho faziam parte do grande número de géneros que os rendeiros entregavam anualmente às monjas para saldar as respectivas rendas. A carne, temperada com o vinho, era assada em caçoilos

de barro, depois guardados em local fresco durante longas temporadas. O facto de no vizinho concelho de Vila Nova de Poiares ter sido criada, em 2001, a Confraria da Chanfana, impediu que esta fosse a designação atribuída. Todavia, a Cabra Velha também permitiu “ampliar” o leque de pratos e, além da chanfana, a Confraria apadrinha os negalhos, confeccionados com as “miudezas” da cabra, e igualmente a sopa de casamento, que mais não é do que um aproveitamento da chanfana, com a couve cozida no respectivo molho. Fatias de pão completam o prato. São estas receitas e as tradições que lhe estão associadas que a Real Confraria da Cabra Velha defende, reforçando a identidade deste património cultural associado aos produtos endógenos resultantes da cabra. Com sabores diferentes, sobretudo trocando o prato pelo copo, está a Confraria da Jeropiga. Fundada em 2005, a confraria báquica tem sede na localidade de Moinhos e foi criada com o objectivo essencial de promover, divulgar e defender a jeropiga produzida nos Moinhos e arredores. Em

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causa está um produto muito característico da região, feito com o sumo de uva, cuja fermentação é impedida através da introdução de aguardente. O resultado é um “vinho doce”, particularmente apreciado. Dedicada ao Vinho de Lamas, um “terroir” muito particular existente na região, está a Confraria do Vinho de Lamas, mais uma confraria báquica, que resultou da vontade de um grupo de três dezenas de produtores da freguesia que entenderam que esta seria uma forma de promover e defender o vinho da sua terra. Dois anos depois, em 2009, surge, com a chancela da Fundação ADFP, a Real Confraria da Matança do Porco. Uma agremiação que tem como objectivo preservar uma tradição, com grande peso na região, que desempenhava um papel fundamental na economia doméstica e na alimentação das famílias. De resto, em todos os capítulos, a Confraria faz questão de recuperar os rituais associados à matança, desmanche do porco e preparação da carne. Mais recente, com certidão de nascimento datada de Fevereiro de 2017, está a Confraria dos Angulados, Javali e Castanha. Um projecto que teve a Junta de Freguesia de Vila Nova como fundamental dinamizador, com o objectivo de promover os pratos gastronómicos mais associados à vivência serrana, designadamente os confeccionados com carne de veado e de javali e também com castanhas. Assume, igualmente, como seu desígnio, a promoção e defesa da biodiversidade da Serra da Lousã. Diferente na forma e no conteúdo está a Academia da Chanfana, Negalhos, Sopa de Casamento e Delícias Conventuais. Criada em 2019, a Academia pretende assumir-se como guardiã da chanfana e dos pratos que lhe estão associados, bem como dos doces conventuais com origem no Mosteiro de Semide. 

Da Cabra Velha, dos Angulados, Javali Veado e Castanha, da Matança do Porco, do Vinho de Lamas e da Jeropiga são as cinco confrarias existentes


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90 anos com Miranda do Corvo Bombeiros

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SEMPRE PRONTOSI A AJUDAR O PRÓXIMOI

Bombeiros são uma verdadeira família de gente empenhada, sempre pronta a servir o próximo

1946 Em Novembro de 1946, nascia a Associação Humanitários dos Bombeiros Voluntários de Miranda do Corvo. Cumprem-se, em 2021, 75 anos de bons serviços à população

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Associação Humanitária dos Bombeiros de Miranda do Corvo celebra este ano as bodas de diamante. São 75 anos ao serviço da população. Uma “história” que nasce do empenho de um grupo de pessoas, que considerou importante garantir uma resposta pronta em termos de socorro. As garagens, cedidas pela população, junto à Praça José Falcão, funcionaram como primeiro alojamento e várias foram as “moradas” até chegar ao actual quartel, inaugurado em 2001, por António Guterres, então primeiro-ministro. Um quartel com «muito boas condições», que acolhe uma verdadeira família, de homens e mulheres dedicados a esta causa. «É uma casa grande», afirma Eurico Fernandes, presidente da direcção, referindo os 102 voluntários e 27 funcionários. «Temos bons bombeiros, gente capaz, dedicados, que gostam do que fazem». «Para ser bombeiro é preciso ter “isso” no sangue», refere Eurico Fernandes, há 32 anos ligado aos órgãos sociais da corporação. «Fazem isto por amor», acrescenta, destacando também a cada vez melhor e maior formação académica dos bombeiros, facto

que, conjugado com a formação específica, cria um “batalhão” de operacionais “de ponta”. Uma casa que funciona 24 horas por dia, todos os dias do ano e onde a entrega se faz sentir em diversos quadrantes. «Nunca saem do quartel a andar, é sempre a correr», afirma o presidente. Mas além de estarem sempre prontos para socorrer quem precisa, também estão prontos para trabalhar no quartel. Eurico Fernandes

Secção de Semide Há cerca de 15 anos, numa altura em que se registaram muito incêndios na freguesia, foi criada a Secção de Semide. «É a segunda maior freguesia do concelho», refere o presidente da direcção. Um projecto que resultou de uma parceria com a Câmara Municipal, que procedeu à realização de obras numa antiga escola primária devoluta, de forma a permitir instalar a equipa. 

destaca isso mesmo e elogia as obras de manutenção que os bombeiros fazem, de “motu próprio”, garantindo as melhores condições no quartel. Canalizações, pintura, azulejos… até uma cozinha. «A cozinha foi toda remodelada pelos bombeiros», afirma, destacando que foi neste espaço que foram confeccionadas, em 2019, as refeições para mais de meio milhar de bombeiros, que estiveram envolvidos no combate ao grande incêndio que assolou o concelho. «Servimos 2.500 a 3 mil refeições em dois ou três dias», recorda, entre almoço, jantar, pequeno-almoço, lanche e ceia. E destaca o facto de toda essa logística – complicada para qualquer restaurante - ser assegurada por voluntários. «Basta tocar a sirene, aparece logo gente». A “cereja em cima do bolo” é mesmo a chamada Comissão do Bar. Eurico Fernandes - que presidiu pela primeira vez à direcção dos bombeiros nos anos 80, então com 20 anos – fala com notório orgulho desta estrutura única. «Não conheço mais nenhuma», afiança. Criada há 15/16 anos, a comissão empenha-se em angariar receitas das mais diversas formas, sempre, claro, com serviço de bar. A maior fonte é


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Bombeiros 90 anos com Miranda do Corvo

a Expomiranda, confessa o presidente, onde a Comissão do Bar instala um restaurante e não tem “mãos a medir” para fazer face às solicitações. Participa igualmente num conjunto de iniciativas, realizadas no concelho, levando o atreladobar. As bifanas são de “comer e chorar por mais” e a angariação de fundos uma realidade comprovada. «Esta comissão já comprou quatro ambulâncias de socorro novas», sublinha o responsável. E também uma viatura que actualmente está a ser intervencionada, de forma a transportar um tanque de 10 mil litros de água, foi adquirida pela comissão, por 25 mil euros.

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Colaboração exemplar da Câmara

Corporação apenas celebra a data do aniversário de cinco em cinco anos

Equipamento “ajustado às necessidades” «O equipamento nunca é o que desejamos, mas o possível», faz notar. «Vamos substituindo as viaturas mais antigas, por novas». A frota actual é constituída por 33 viaturas, onde se incluem cinco ambulâncias de socorro, nove ambulâncias de transporte de doentes, nove viaturas de combate a incêndio, cinco viaturas de apoio, uma auto-escada, uma viatura de desencarceramento e três de comando. Neste momentos está a ser “carroçado” um veículo, para levar um autotanque com 10 mil litros de capacidade. «O outro já deitava fumo por todo os lados», refere Eurico Fernandes. O plano de actividades consagra, explica, todos os anos, a aquisição de uma ambulância de transporte de doentes». Trata-se do equipamento com maior desgaste, tendo em conta as muitas solicitações, designadamente para consultas, tratamentos de hemodiálise e outros. «A Câmara ofereceu-nos duas ambulâncias, há 4/5 anos e já têm para cima de 400 mil km», exemplifica. Todavia, considera que a corporação tem «o equipamento ajustado às suas necessidades». 

Comissão do Bar é uma estrutura única, dentro dos Bombeiros, que se empenha em angariar receitas. Já adquiriu quatro ambulâncias para a corporação

Eurico Fernandes elogia a exemplar colaboração da Câmara Municipal. «Pode haver igual, mas melhor não há», assegura, referindo um recente protocolo, que «nos tirou um pesadelo financeiro de cima». Mas este é apenas um dos muitos exemplos. «O presidente é muito sensível à causa dos bombeiros, leva a protecção civil a sério», sublinha. E essa ajuda é plasmada em termos financeiros, mas também com a oferta de equipamento de protecção. Um facto que o responsável enaltece, sobretudo numa altura em que as receitas, provenientes sobretudo dos transportes, sofreram um forte revés, em resultado da pandemia. «No ano passado chegámos a facturar 10% dos transportes», recorda. «Há Câmaras que não dão um tostão aos bombeiros», lamenta Eurico Fernandes.

Mas a de Miranda do Corvo é «um exemplo», com as ofertas a incluírem também viaturas. Aliás, no último aniversário que a corporação comemorou – a efeméride só é celebrada, com pompa e circunstância, de cinco em cinco anos – a autarquia ofereceu um veículo todo-o-terreno de combate a incêndios. Este ano, em Novembro, volta a haver festa no quartel de Miranda e o presente de aniversário da Câmara Municipal já está definido: um novo todo-o-terreno para ataque florestal. «Custa cerca de 160 mil euros», sublinha, satisfeito, o presidente. Também a Comissão dos Baldios do Gondramaz tem dado «uma ajuda significativa» aos bombeiros, através dos fundos que recebe como contrapartida do parque eólico. 

2020: um ano de má memória O ano passado foi dramático para os Bombeiros Voluntários de Miranda do Corvo, que sofreram a primeira vítima mortal, no combate a um incêndio, em Julho, na Serra da Lousã. José Augusto Dias Fernandes, chefe de equipa, perdeu a vida. Outro bombeiro sofreu queimaduras com alguma gravidade e outros dois tiveram problemas decorrentes da inalação de grande quantidade de fumo. «Foi um acontecimento trágico. Marcou toda a família dos bombeiros. A alegria desapareceu do quartel», recorda Eurico Fernandes. O presidente da direcção confessa que chegou a temer algum abandono, sobretudo por parte dos elementos mais

novos, eventualmente pressionados pelas respectivas famílias, face a este acontecimento trágico. Todavia, sublinha, isso não aconteceu. «Juntos, unidos, procuramos ultrapassar a situação da melhor forma possível». José Augusto Dias Fernandes, de 55 anos, bombeiro com larga experiência, era também funcionário da Câmara Municipal de Miranda do Corvo e árbitro de futsal. «Era uma pessoa muito ligada ao desporto, à cultura, à protecção civil, sempre de uma forma voluntária», sublinha o presidente da Câmara Municipal. O município decretou três dias de luto municipal. 



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Paços do Concelho 90 anos com Miranda do Corvo

PAÇOS DO CONCELHO REQUALIFICADOS 1991 Intervenção de fundo modernizou o edifício e ajustou-o às novas necessidades. O ministro Fernando Nogueira presidiu à cerimónia de inauguração, em Agosto de 1991

Edifício dos Paços do Concelho sofreu obras de modernização no início da década de 90

O

edifício dos Paços do Concelho estava em construção em 1916, com o objectivo de substituir a anterior Casa da Câmara, que durante 90 anos serviu Miranda do Corvo. Uma construção que ficaria no local onde actualmente se ergue o Posto de Turismo, no centro da vila, que foi demolida em 1918, depois da conclusão da actual sede do município. O projecto é da autoria de Benjamim Ventura, que se apresenta como «construtor civil diplomado». A empreitada foi arrematada por Joaquim Ferreira de Araújo, do Arieiro, pelo valor de 9.500$00. «As madeiras, cal, tijolo, telha, areia, alvenaria e

cantarias grossas, são da região; as restantes cantarias são das pedreiras de Outil, concelho de Cantanhede», escreveA. Rodrigues em “Da Arte de Miranda”. Um jornal especializado da época, “AConstrução Moderna”, afirmava que «o edifício dos novos Paços do Concelho de Miranda do Corvo deve ficar, tanto externa como internamente, com todos os requisitos em construções modernas desta ordem». O novo edifício terá sido inaugurado em 1918 e nos finais da década de 80, início dos anos 90 do século passado foi sujeito a amplas obras de recuperação e modernização, que procuraram tornar os Paços dos Concelho mais funcionais e dar resposta

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às novas necessidades, mas com a preocupação de manter a traça original. As obras de requalificação dos Paços do Concelho foram inauguradas no dia 10 de Agosto de 1991, por Fernando Nogueira, na altura ministro da Presidência e da Defesa Nacional. O governante deslocou-se a Miranda do Corvo, no âmbito de um périplo efectuado na região, que contemplou os concelhos de Coimbra, Miranda do Corvo, Lousã e Penela e contou com um conjunto alargado de inaugurações. «Em Miranda ado Corvo, a inauguração do edifício dos Paços do Concelho, após obras de remodelação, foi um dos pontos altos da visita», escrevia o Diário de Coimbra no dia 11 de Agosto. «As melhorias de que foi alvo o edifício são consideradas substanciais, a que acresce o facto de terem sido transferidos outros serviços que ali funcionavam, deixando à autarquia mais espaço funcional», escrevia ainda o jornal, que dedicou uma página inteira ao programa de visitas e inaugurações efectuado por Fernando Nogueira. «O país está a mexer positivamente a um ritmo que não era previsível há alguns anos», afirmou o governante, que considerou o distrito de Coimbra como «um dos mais carenciados do país», situação que, sublinhou Fernando Nogueira, «está a modificar-se». Volvidos praticamente 30 anos, o edifício dos Paços do Concelho sofreu pequenos ajustes de funcionalidade, mas dá uma resposta perfeita às necessidades. «Só falta um elevador», observa o presidente do município. Uma resposta que actualmente é exigida, contrariamente ao que acontecia quando foram efectuadas as obras de remodelação geral. «E importante ter um elevador até ao sótão», considera Miguel Baptista, alertando para o facto de naquele espaço estarem habitualmente trabalhadores do município. 


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90 anos com Miranda do Corvo Metrobus

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METROBUS A CAMINHO 2021 Obras de adaptação do canal estão a decorrer. Concurso para o troço Alto de S. João - Portagem está a decorrer, o mesmo acontecendo com a bilhética

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m Janeiro de 2010 assistia-se ao encerramento do Ramal da Lousã. Uma via ferroviária que foi a verdadeira força motriz do desenvolvimento de Miranda do Corvo durante mais de um século (inaugurada em Dezembro de 1906). O objectivo era substituir o pesado sistema ferroviário pelo ligeiro Metro. Mas tudo parou. Avanços e recuos, incertezas e indefinições marcaram os anos que se seguiram, com o corredor ferroviário a ser substituído por um sistema de transporte rodoviário, com recurso a autocarros. Volvidos 10 anos, faz-se luz no fundo do túnel. O Metro evoluiu para Metrobus e a garantia de financiamento comunitário dá força e confiança à obra. A empreitada está em marcha. Com efeito, no dia 11 de Setembro de 2020 o Sistema de Mobilidade do Mondego assistia a um dia histórico, com a assinatura do auto de consignação do troço entre o Alto de S. João (Coimbra) e Serpins (Lousã). Um investimento de 23.765 mil euros, que envolve a adequação dos 30 km da via à nova solução Metrobus. O estaleiro está centrado em Sobral de Ceira e máquinas e homens movimentam-se, particularmente activos na adequação das 13 pontes e pontões do percurso. O projecto envolve a adequação do canal à nova solução, adaptação dos sete túneis existentes, designadamente em termos de iluminação e pavimentação, criação de 17 paragens de via dupla para cruzamento de veículos e adequação das plataformas de passageiros, construção de quatro zonas de cruzamento de veículos,

Estação da CP de Miranda do Corvo deixou de ter comboios em Janeiro de 2010

execução de cinco rotundas de inversão de marcha junto às estações terminais, criação de oito acessos de emergência ao canal para operações e socorro, construção de 24 intercepções rodoviárias e pedonais e seis intercepções desniveladas, ou seja, passagens superiores ou inferiores, cinco das quais já existem, faltando construir uma, na EN 342. A esta intervenção no “canal”, segue-se outra, de semaforização urbana, dentro das localidades. De acordo com a Metro Mondego, a obra está a decorrer dentro da normalidade e perspectiva-se que os 15 meses de prazo de execução sejam cumpridos.

O troço entre o Alto de S. João e a Portagem, em Coimbra, deverá ser «adjudicado em breve». Mais "atrasada" está, de acordo com a Metro Mondego, a ligação a Coimbra B e a nova Linha do Hospital, mas o objectivo é avançar desde logo com a circulação suburbana, entre Coimbra e Serpins. «Não se vai esperar», garante a Metro Mondego. Certo é que também falta lançar o concurso para aquisição de material circulante. Tudo indica que serão 40 veículos e os respectivos postos de carregamento. «Está dentro dos “timings”, garante a Metro Mondego, que ainda não tem elementos


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Metrobus 90 anos com Miranda do Corvo

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enquanto projecto, «um exemplo de transição climática» e faz notar que, no âmbito da discussão do Plano de Desenvolvimento e Resiliência, a Câmara de Miranda do Corvo, à semelhança da autarquia da Lousã, sugeriram a sua inclusão.

Praticamente em frente à antiga Estação da CP funciona a Metro Mondego

precisos que permitam apontar o montante exacto do investimento a realizar. Já lançado, com data de 5 de Março de 2021, está o concurso público para fornecimento, instalação, colocação em serviço e manutenção do sistema de bilhética. A Metro Mondego destaca a importância da bilhética intermodal, que irá representar «o eixo do sistema de transportes na região». Os exemplos de Lisboa e Porto mostram que o sistema de bilhética intermodal, bilhete único para diferentes meios de transporte é o mais eficaz e que «faz as pessoas optarem pelo transporte público». O concurso tem a particularidade de ser lançado pela Câmara Municipal de Coimbra, no quadro de um protocolo celebrado com a Metro Mondego, uma vez que esta é a forma possível para aceder a financiamento comunitário. Os 15% da componente nacional são assegurados

pela empresa. O concurso tem um preço base de 4.500.000 euros e as propostas podem ser apresentadas no prazo de 140 dias a contar da data de publicação do anúncio. O prazo de execução é de 1.176 dias. «Quase 30 anos depois, começamos a ver a luz ao fundo do túnel», afirma Miguel Baptista, presidente da Câmara de Miranda do Corvo, recordando que o projecto de reabilitação do Ramal da Lousã data de 1993. «Com os avanços e recuos que conhecemos, o Sistema de Mobilidade do Mondego virá potenciar o desenvolvimento do concelho, tal como aconteceu com o Ramal ao longo de mais de um século», diz. «O comboio enchia em Miranda», recorda, salientando que o concelho «foi muito prejudicado com a estagnação do projecto». O autarca destaca o facto de o Sistema de Mobilidade do Mondego representar,

“Fecho da A13 é fundamental” Ainda em matéria e acessibilidades, o autarca considera «fundamental o fecho da A13, ligada ao IP3». «As auto-estradas também contribuem para o desenvolvimento socioeconómico do nosso território», considera. A 13, adianta, «veio abrir uma janela de oportunidades ao concelho, mas é fundamental que seja concluída». A ligação a Sul está resolvida. «Já não vamos a Lisboa pela A1, vamos pela A13, e são menos 20 minutos de viagem», refere. Mas este «fecho da A13» permitirá «melhorar o acesso a Coimbra», mas igualmente «potenciar o Parque Empresarial de Lamas». Trata-se de um projecto do município, previsto no PDM, mas ainda numa fase embrionária. Antes disso, a autarquia pretende avançar com a remodelação e ampliação da Zona Industrial da Pereira, que tem uma candidatura aprovada de 1,5 milhões de euros. «Vamos lançar o concurso público, depois do aval do Tribunal e Contas. A obra vai arrancar este ano», garante Miguel Baptista. Em causa está a criação de mais 20 lotes. «Só depois de concluída se irá avançar com Lamas», salvaguarda. A Zona Industrial da Pereira passou a acolher, igualmente, o Parque Logístico, ou seja, o estaleiro do município que, acredita o autarca, «vai contribuir para a dinâmica da zona industrial». O investimento no Parque Logístico foi superior a um milhão de euros e envolveu a reabilitação de uma antiga fábrica. «Temos estaleiros municipais para 40/50 anos», considera o edil. 


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90 anos com Miranda do Corvo Clube de Empresários

Hugo Serra, presidente da direcção do Clube de Empresários de Miranda do Corvo

CRIAR TECIDO EMPRESARIAL SÓLIDO PARA ANCORAR O PROGRESSO 2015 Clube de Empresários nasce oficialmente em Janeiro de 2015. Ciente que a “união faz a força”, quer imprimir dinâmica ao território, usando como “arma” a localização estratégica

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de Janeiro de 2015. Nasce oficialmente o Clube de Empresários de Miranda do Corvo. Um projecto que começou meses antes, de forma informal. Hugo Serra, presidente da direcção, recorda esses encontros, que começaram à mesa. Uma iniciativa promovida por «um empreendedor de Miranda, o dr. Jaime Ra-

mos», explica, numa altura em que «havia algumas ideias, nomeadamente de estrangeiros, para investir no concelho». Investidores que «queriam conhecer os empresários de Miranda do Corvo». O almoço fez-se e criou o apetite para novos encontros. «Continuámos a reunir periodicamente», refere. Reuniões que culminaram com a criação do Clube de Empresários de Miranda

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do Corvo. Um passo «muito importante», considera o presidente, que faz notar o facto de não existir até então qualquer associação de empresários no concelho, ao contrário do que já acontecia nos municípios vizinhos. Muito embora, Miranda do Corvo tivesse «um parque empresarial diminuto». «Temos feito um esforço no sentido de fazer crescer a associação», refere. Mas também a esgrimir argumentos para o desenvolvimento da região. Hugo Serra destaca o trabalho activo e envolvente que o Conselho Empresarial da Região de Coimbra (CERC) tem vindo a fazer através desde “consórcio” que pretende uma «região de Coimbra mais forte», onde o Clube de Empresários de Miranda do Corvo é uma voz activa desde a primeira hora. De resto, uma experiência de falar a uma só voz que começou com os vizinhos da Associação Empresarial Serra da Lousã e dos núcleos empresariais de Penela e de Poiares e que "cresceu”para o CERC. «Somos 13 associações, que começam a ganhar uma voz diferente», com o objectivo de canalizar «projectos estruturantes para a região de Coimbra. Temos de criar valor. É um trabalho que ainda não se vê, mas que vai ter resultados», assegura, optimista. Sobre Miranda do Corvo, o empresário destaca a localização estratégica como um argumento para atracção de investidores, que esbarra com o «impasse» na «disponibilização de condições, por parte da autarquia, para fixar empresas». «Faltam-nos empresas âncora, do sector da transformação, do sector produtivo, que criem postos de trabalho», considera. Gerente de uma das maiores empresas do concelho, a Piclima, Hugo Serra entende essas empresa âncora como elementos fundamentais, não apenas para a economia local, mas para as outras empresas. «Fazemos trabalho em


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Clube de Empresários 90 anos com Miranda do Corvo

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Metrobus: uma solução “pela metade” O presidente da direcção do Clube de Empresários de Miranda do Corvo admite que o Metrobus pode ser uma ajuda ao desenvolvimento concelhio, mas não deixa de levantar uma questão pertinente relativamente ao transporte de mercadorias. Sobretudo tendo em conta a realidade do tempo em que o comboio circulava na Linha da Lousã. «Durante a noite o comboio fazia transporte de mercadorias», recorda, sublinhando a importância desta resposta para empresas do vizinho concelho da Lousã, como o Licor Beirão, a EFAPEL ou da área do papel. «Agora, essa mercadoria só circula através de camiões», afirma, sublinhando que o que se poderá recuperar, em termos de mobilidade e transporte de pessoas com o Metrobus, não tem qualquer solução para o tráfego de mercadorias. «Não percebo o investimento do Governo na descarbonização», aponta, considerando que o desinvestimento na ferrovia representa, sobre este ponto de vista, «um desinvestimento que nunca mais vai ser recuperado». «Em vez de criar valor, estamos a perder valor», adianta, com as empresas a terem de investir mais em matéria de comunicações. O que leva o empresário a reiterar a localização geográfica estratégica de Miranda do Corvo, como «uma grande ferramenta para se poder evoluir». 

Gala representa um momento marcante do Clube de Empresários

todo o país, também teríamos mais trabalho à porta de casa», considera, referindo-se, nomeadamente à sua empresa. Crítico, aponta a requalificação da Zona Industrial de Pereira, que tinha uma candidatura de cerca de dois milhões de euros», destinada a criar lotes, acessos e comunicações que «não avançou». Outra «luta» do Clube de Empresários é a criação de um Parque Empresarial Logístico em Lamas, «à beira da A13, a 5 minutos da A1» e igualmente com bons acessos ao interior, através da A23. O município devia «aproveitar esta localização de excelência, que pode ser um motor de desenvolvimento de Miranda do Corvo, atraindo investimento, criando postos de trabalho que potenciem a fixação de pessoas e o desenvolvimento e toda a economia local», além de beneficiar da «proximidade de Coimbra». «Tem tudo para ser um sucesso», considera o empresário, que lamenta a pouca iniciativa da autarquia. «Tem de se arregaçar as mangas e

fazer. Se estivermos sempre à espera da última moda, corremos o risco de andar sempre mal vestidos», afirma Hugo Serra, que critica a «falta de competitividade» do concelho, que não «consegue dar as condições dos concelhos vizinhos». O presidente da direcção refere outra situação «incómoda», que se prende com a criação de uma incubadora de empresas. «Propusemos à Câmara tomar conta do projecto», diz, apontando as «excelentes condições» do edifício do Mercado Municipal, onde funciona o Centro de Negócios. O Clube fez, conta, contactos com a Universidade de Coimbra e com o Instituto Pedro Nunes, no sentido de avançar com o projecto, que acabou por «cair por terra» depois de algumas reuniões. No edifício do Mercado, o Clube tem um gabinete, cedido pela autarquia. «Vamos apostar em ter lá uma pessoa a tempo inteiro para ver se se dá o “pontapé de saída” para dinamizar o espaço», afirma. A autarquia, adianta, está a efectuar obras na ala traseira, para salas de formação, «o que é bom», atesta. 


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90 anos com Miranda do Corvo Centro de Biomassa

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UM CENTRO ÚNICO DEDICADO À BIOMASSA PARA A ENERGIA 1990 No dia 17 de Abril de 1990 assistia-se à inauguração das instalações provisórias do Centro de Biomassa para a Energia, na Casa da Quinta do Viso. Um projecto que veio para ficar

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biomassa contribui actualmente com cerca de 10% no conjunto da energia primária consumida no país». Palavras do secretário de Estado da Energia, Nuno Ribeiro da Silva, proferidas no dia 17 de Abril de 1990, data em que se assistiu à inauguração das instalações provisórias do Centro de Biomassa para a Energia de Miranda do Corvo. O governante destacava a necessidade e interesse de os agentes económicos adaptarem as suas unidades industriais a esta fonte energética, de preços mais acessíveis e menor impacto ambiental. Hoje, volvidos quase 31 anos, poderá dizer-se que o objectivo foi conseguido. Luís Gil, vice-presidente do Conselho de Administração do Centro de Biomassa para a Energia sublinha isso mesmo, apontando para uma «potência instalada, em meados de 2020, de centros electroprodutores a biomassa de 753 MW», dos quais 511 em unidades de cogeração (produzem energia eléctrica e calor) e 242 em unidades dedicadas.Amaioria, sublinha, estão «localizadas na zona Centro do país», precisamente aquela onde há uma maior mancha florestal e, como tal, há mais resíduos provenientes directamente da exploração florestal, mas também da indústria transformadora e de sub-produtos. Luís Gil destaca, socorrendo-se de dados da Direcção- Geral de Energia e Geologia (DGEG), organismo do qual faz parte, refe-

Centro de Biomassa para a Energia está instalado na Zona Industrial de Miranda

rentes a 2020, que «mais de 62%» da produção de energia eléctrica a partir da biomassa se regista na região Centro, e tem-se assistido a um crescimento, particularmente a partir de 2018. Aponta ainda, reportando-se a dados de 2019, o contributo de 27% das energias renováveis no consumo de energia primária e, dentro destas, destaca a biomassa, com uma performance de 44%. «A biomassa tem um contributo muito importante nas fontes de energia renováveis e consumo de energia primária», sublinha. Ainda segundo dados de 2019, a produção de electricidade com biomassa, em coge-

ração, cifrou-se em 1666 GWh e em 1064 GWh sem cogeração. «De 2010 a 2019 o crescimento da potência instalada foi de cerca de 592 para 710 MW», atesta. O investigador da Direcção-Geral de Energia e Geologia e também coordenador do Centro de Biomassa para a Energia sublinha um conjunto de outras vantagens da biomassa na produção de energia, designadamente a sua «constância» a nível da produção eléctrica, ao longo de todo o ano, o que «não acontece com as outras componentes das energias renováveis», designadamente a hídrica, «mais importante


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Centro de Biomassa 90 anos com Miranda do Corvo

“Front office” instalado em Lisboa Com particular empenho, Luís Gil fala de um pólo criado há cerca de dois anos em Lisboa. É uma espécie de “front office” do CBE de Miranda do Corvo localizado na capital. Em tom de brincadeira, o vicepresidente do CBE refere que, ao contrário do que é mais comum, neste caso não é a sede, mas uma simples delegação que funciona em Lisboa. Uma pequena equipa trabalha nos projectos e desenvolve novos contactos. «Estamos mais próximos dos centros de decisão», sublinha, destacando o facto de isso também representar uma possibilidade acrescida de dar a conhecer o Centro de Biomassa para a Energia e conferir mais visibilidade ao trabalho que ali é feito. «Estamos em fase de crescimento e somos uma das entidades que tem a sua sede no interior do país. Fizemos uma aposta nesta zona», muito embora a actuação do CBE seja de carácter «nacional e internacional». Mas não tem dúvidas: «somos um parceiro muito importante na região». Lembra, a propósito, que as instalações do CBE têm «alguma dimensão», designadamente o anfiteatro, «com capacidade para mais de 100 pessoas», onde se tem procurado «promover eventos», de forma a «chamar pessoas a Miranda do Corvo» e “puxar” pelo território». 

no Inverno», o mesmo acontecendo com as «oscilações» da eólica e também da solar fotovoltaica, que decresce no Inverno. «Esta estabilidade é muito importante. Sabemos com o que contamos», sublinha. Destaca, ainda, os dois documentos estratégicos que vão orientar toda a política energética nos próximos anos, o Plano Nacional Energia e Clima 2030 e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Luís Gil traça-nos, desta forma, um quadro que atesta a importância do Centro de Biomassa para a Energia (CBE). Um projecto que, recorda, começou a ser pensado no final dos anos 80, no quadro de um desafio lançado pela Secretaria de Estado da Energia, e formalmente constituído em Setembro de 1989 e instalado em 1990 em Miranda do Corvo.

Actividade sempre em crescendo Trata-se de uma associação privada sem fins lucrativos, que envolve um conjunto de parceiros, designadamente a DirecçãoGeral da Energia e Geologia, entidades públicas e privadas, empresas ligadas ao sector florestal, industrial e energético e associações empresariais e que mantêm uma colaboração muito próxima com centros de investigação, universidade e politécnicos. «Apoiar a utilização da biomassa para fins energéticos» constitui a pedra angular desta entidade técnica e científica, que pretende caminhar para a valorização e optimização desde recurso. A montante e a jusante. Pois ao mesmo tempo que acrescenta valor à biomassa, nomeadamente a residual, contribui «para a prevenção dos fogos rurais» e dá, igualmente, um passo para a «transição energética baseada numa maior neutralidade carbónica». Um apoio garantido, sublinha, a todos os associados, mas também a empresas e entidades externas.

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Luís Gil destaca o Laboratório Especializado em Biocombustíveis Sólidos, um dos primeiros a «conseguir a transição para o novo referencial normativo para a realização de ensaios laboratoriais a biocombustíveis sólidos, acreditado desde 2015». O grande número de solicitações para a realização de ensaios físico-químicos obrigou, inclusivamente, à recente contratação de mais um técnico. «Estamos a tentar potenciar as capacidades laboratoriais, que também podem ser utilizadas para outros fins, ligados à biomassa, mas não para fins totalmente energéticos». Exemplifica com o estudo para o aproveitamento de alguns resíduos das centrais de biomassa. Destaca igualmente a Unidade de Biomassa, que «desenvolve programas de investigação, projectos de âmbito mais técnico e científico» e que «colabora com entidades do sistema científico e tecnológico nacional e também com o sector empresarial». A actividade, sublinha o vice-presidente do CBE, está em crescendo. Exemplifica com um recente protocolo assinado com a Direcção-Geral de Energia e Geologia, que se prende com a definição das políticas públicas para o sector energético. Mas também as solicitações e parcerias internacionais, designadamente com a vizinha Espanha e também com os países africanos de língua oficial portuguesa. A formação é uma área que Luís Gil considera particularmente relevante e que quer ver crescer no futuro. «Estamos à espera de aprovação de financiamento para avançar», afirma. No final do ano passado, o CBE empenhou-se na instalação de uma central fotovoltaica para autoconsumo, que, além de reduzir os custos de electricidade também dá um contributo para a descarbonização da sua actividade. 


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90 anos com Miranda do Corvo Grupo Isidoro

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UM “SELFI MADE MAN”I QUE ERGUEUI UM IMPÉRIOI

António Gama e Isidoro Correia da Silva. O empresário mostra o seu primeiro meio de transporte, a bicicleta que herdou do padrinho

1940 Isidoro Correia da Silva nasce em Setembro de 1940 em Vila Nova. Um empreendedor nato, que transformou o seu génio criativo numa máquina empresarial de sucesso. Aquém e além fronteiras e em diferentes frentes de negócio

S

ou um jovem com quase 81 anos». Isidoro Correia da Silva apresenta-se assim. De forma simples, sem rodeios, fala das suas origens humildes, dos pais, «extremamente pobres», que viviam do trabalho no campo, mas «ricos» em valores, sobretudo na rectidão do carácter. Vila Nova, a terra onde nasceu, cedo se relevou demasiado pequena. Queria sair dali. Ir para fora, mas os pais «não deixavam». A custo, com a intervenção de uns primos, lá conseguiu convencer os progenitores a ir para a vizinha localidade de Godinhela aprender a arte de sapateiro. Um primeiro obstáculo: «o homem queria que lhe pagasse mil escudos para me ensinar». Hoje em dia «pagamos a qualquer estagiário. O meu pai pagou para aprender», atalha o filho, António Gama, fazendo ver as diferenças. «Pedi o dinheiro a um padrinho, que mo emprestou, não mo deu», esclarece. Ao fim de um ano, com o valor das gorjetas religiosamente guardadas, Isidoro Correia da Silva saldava a dívida. Um princípio de honestidade que sempre balizou a actuação do empresário. Aos 16 anos, criava, na “loja” da casa dos

avós, o seu primeiro negócio, como sapateiro. «Trabalhei quatro anos». A bicicleta, que herdou, os 11 anos, do padrinho levava-o a Coimbra, a Condeixa, onde fosse preciso para comprar as solas e os cabedais. A noção clara da grande pobreza, numa terra onde toda a gente trabalhava na agricultura e os senhorios não desculpavam o pagamento das rendas, em alqueires de milho, fosse ano de boa produção ou não, levavam-no a querer mudar. «Fiz tudo e mais alguma coisa para ir para o Brasil ou para a Alemanha», confessa. Sem sucesso. Os pais opunham-se.Atropa afigurava-se uma saída. «Depois dou o salto», pensou. E preparou-se primorosamente. «Sabia marchar, fazer continência e conhecia todas as patentes», conta. Isto antes de ir à inspecção. Juntamente com os mancebos da sua idade Isidoro Correia da Silva viu-se no salão nobre dos Paços do Concelho, em Miranda do Corvo. «Gostas da tropa?», perguntaram-lhe. A resposta era óbvia: «Sim!». Mas não foi mais do que isso. «Fiquei inapto», recorda, sem saber qual a razão. Foi a desilusão. A mãe, feliz, chorava de alegria. Ao contrário, Isidoro chorava pela oportunidade

perdida. «Fiquei triste», confessa. Mas no dia seguinte voltou a erguer a cabeça. «Há que fazer outra coisa!» A enorme paixão pelas máquinas, que o acompanhou toda a vida, começava a despertar. «Não havia muitas máquinas na região», recorda. Todavia, Ramiro Rocha, do Alentejo, foi trabalhar para uma antiga cerâmica. Isidoro foi ver a máquina e ficou fascinado com «tantas alavancas». «Se os outros são capazes, eu também sou!», disse para consigo. Começava o desafio de aprender. Mas não foi ali, naquela obra. Mas sim numa estrada para rasgar, em Vale de Canas. Isidoro Correia da Silva não fez por menos. Acompanhado pela sua bicicleta, montado nela ou com ela às costas, saía às 3h00 da madrugada de Vila Nova para chegar às 6h00 a Vale de Canas. Tinha 20 anos e começava a entrosar-se no mundo das bulldozeres, das retroescavadoras, das máquinas de rastos. Depois dos primeiros ensaios - «não trabalhei mais de 10 horas» em Vale de Canas – seguiu-se uma experiência na Pampilhosa da Serra. Arsénio Henriques de Almeida, empreiteiro, ia comprar uma máquina. «Fui


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Grupo Isidoro 90 anos com Miranda do Corvo

- A esposa, D. Rosa, com o filho primogénito do casal, junto ao primeiro carro, em 1965. - Isidoro Correia da Silva com a primeira motorizada, em 1960, em Belmonte

duas vezes, de bicicleta, falar com ele à Pampilhosa da Serra. A máquina era uma pá carregadora de rastos», explica. Todavia, quem fazia o trabalho eram as mulheres. Seriam uma 30, conta, que, de picareta em punho abriam a estrada. «Os homens estavam a trabalhar nas Minas da Panasqueira» e o empreiteiro só usava a máquina para carregar a terra. Um desperdício! Devia ser usada para «rasgar a estrada». Não era esse o entendimento do empreiteiro e Isidoro virou costas. Desta vez rumo a Belmonte. Albano Antunes Teles da Fonseca tinha três máquinas e começou a trabalhar com ele. «Julgavam que eu era operador de máquinas», recorda, confessando a sua incredulidade quando o puseram a trabalhar com um “D7”, um “Caterpiller gigante”. O que sabia não era muito, mas a vontade de aprender era grande.Atento, Isidoro Correia da Silva viu como é que um outro funcionário punha a máquina a trabalhar e foi caminhando, devagar. Primeiro, «sabia que não ia bem, mas não conseguia fazer melhor. Ao fim de uma semana já sabia trabalhar», adianta. O mais difícil eram os “remates”, fosse com estas sofisticadas máquinas ou com o simples arado dos bois, como acon-

tecia na sua terra natal. Nada que o atrapalhasse. «Tive de arranjar forma de ser o meu parceiro a fazer esse trabalho». Mais uma vez, atento, «vi como ele fazia e aprendi». Foram dois anos em Belmonte. Depois, foi o regresso a Vila Nova, onde trabalhou com o empresário José Mendes da Silva, já com mais de duas décadas de experiência, na abertura de estradas e respectivo alcatroamento. Engenhoso, Isidoro Correia da Silva sugeriu um motor para indexar à caldeira e tornar mais eficiente a operação de espalhar o alcatrão, mas o empresário, “Zezinho”, como lhe chamava familiarmente, não viu com bons olhos. «Eu vou fazer. Se ficar mal, assumo toda a responsabilidade. Se correr bem, fica para ti», disse-lhe. O motor foi instalado e, «com 25 tostões de petróleo, poupavam-se quatro homens», tantos quantos eram necessários para fazer o trabalho. «Depois disso, quantos motores de caldeira se fizeram!».

A compra da primeira máquina Ao fim de cinco anos, Isidoro questiona o empresário relativamente à possibilidade de lhe «dar sociedade». Face à resposta

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negativa, deu novo rumo à sua vida, que passou pela compra de uma máquina. Um icónico “D6” um Caterpiller, usado, que adquiriu em Belmonte, em 1986, por 600 contos, a António Pina Vieira do Vale. Era a sua primeira máquina. Mas antes de lhe chamar sua ainda sofreu um contratempo. Isidoro entregou 100 contos de “sinal”. «Era o dinheiro que tinha». Para o restante, teve de recorrer a “letras”, avalizadas pelos pais e pelo padrinho. Este, pouco habituado a estas lides, acabou por recusar, à última hora, ser avalista, levando Isidoro a «rasgar» os documentos e a apresentar-se ao vendedor com a maior honestidade e com o «negócio perdido». «Mas já me deu 100 contos», argumentava o empresário que, vários anos depois relatou, ipsis verbis, a história a António Gama. «Este homem tem de ser honesto», concluiu, entregando-lhe a máquina, sem necessidade de avalistas. «O meu pai foi pagando todas as prestações», e um dia, às 7h00 da manhã estava em Belmonte. Faltava pagar três prestações. «Se me fizer um desconto, pago já tudo», propôs. O empresário aceitou. Curioso foi, igualmente, o cuidado que Isidoro Correia da Silva teve com o negócio. «Fez um seguro de 500 contos a favor da minha mãe. Caso morresse, o seguro pagava a máquina e a minha mãe podia, depois, vendê-la», explica António Gama, hoje CEO do Grupo Isidoro, que destaca o cuidado do pai em «não deixar a família encravada». Anos depois, «deu esses 500 contos à minha mãe», diz ainda. «Tinha a noção que, sozinho, em termos financeiros, não conseguia concorrer à obra», confidencia, referindo-se a um conjunto de empreitadas na Sertã. Surge, então, uma primeira aliança com dos primos, Manuel Simões e José Simões Pereira. Juntos criaram a Pecol – Pereira & Correia, Lda. «Construímos muitas estradas e comprámos muitas máquinas», recorda, lembrando uma deslocação a Inglaterra onde, sem saber uma palavra de inglês, «comprei uma máquina, muito mais barata». Uma brasileira, que falava inglês, ajudou-o a resolver o problema da língua. Trabalharam sete anos. Depois, cada um dos sócios seguiu o seu destino. Isidoro Correia da Silva, com 35 anos, cria, em 1975, em sociedade com a esposa, Maria Rosa Gama da Silva, a Isidoro Correia da Silva, Lda. a empresamãe do Grupo Isidoro. 


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90 anos com Miranda do Corvo Grupo Isidoro

Um império de negócios

Nos anos 60 o empresário adquiriu a sua primeira máquina. Até hoje nunca mais parou

António Gama começou a trabalhar com o pai aos 17 anos e, a partir da “casa-mãe”, a família ergueu um império, trabalhando em diferentes áreas de negócio, que foram surgindo na justa medida em que nasceram as oportunidades ou as necessidades. Em 1995 surge a Isidoconstruções – Construção e Comércio de Imóveis, Lda. E, em 2002, nasce a Asfalcentro – Comércio de Asfaltos, SA, no porto da Figueira da Foz. «É o único terminal privado existente no país», sublinha Isidoro Correia da Silva. O filho recorda o investimento de «quase 5 milhões de euros, muito significativo para um grupo privado». AAutogarsilva, Lda. surge em 2006. Aparentemente “fora da caixa”. «Sempre gostei muito de automóveis», assume António Gama, que viu nesta empresa uma “brinquedo” muito especial. «Mas também era

uma necessidade», faz notar, tendo em conta a vasta frota de viaturas que o universo empresarial utilizava. O objectivo passava por «montar um projecto Ford em Miranda do Corvo». Todavia, situações colaterais acabaram por ditar o envolvimento num negócio já existente e formatar o projecto noutros moldes, como representante oficial da Peugeot, Citroën e Hyundai. Além de carros novos e usados, tem oficinas especializadas nestas marcas. A «necessidade», mais uma vez, fez surgir a Miranvias, em 2004, que dá, dois anos depois, lugar à Isidovias. Não havia na região, recorda o empresário, uma empresa que assegurasse a sinalização horizontal (pintura) das estradas. «Havia um intermediário, na zona de Ansião, o senhor Alfredo, que, através de uma empresa de Lisboa, vinha cá pintar as estradas». Juntos

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criaram a empresa, mas diferendos ao nível da gestão levaram o empresário de Vila Nova a “saltar fora” e a avançar com a Isidovias, que da «pintura de estradas» depressa passou para o mundo da construção da sinalização vertical. Foi, mais uma vez, a resposta a uma necessidade. «Ganhamos um concurso lançado pela Câmara da Figueira da Foz», recorda António Gama, mas a empresa de Oiã que fornecia o equipamento criou um problema. «Perdemos 3.500 euros nesta encomenda», recorda. De uma “penada”, a empresa perdia um cliente e arranjava um concorrente «Começámos numa salinha com nove metros quadrados, em Miranda do Corvo», refere. Um projecto que envolveu, inclusivamente, a concepção e fabrico das máquinas necessárias à produção. Pai e filho punham, juntos, mais uma vez à prova a sua costela empreendedora. A Isidovias Investimentos manteve esta linha, ligada à sinalização rodoviária, horizontal e vertical, mas diversificou a sua actividade para a área da construção. A experiência começou com o concurso para o lar de Pereira. «Hoje, a construção representa 75% do negócio», afirma o CEO do Grupo Isidoro, que acabava de receber a notícia de mais uma obra ganha, no valor de 2,3 milhões de euros, para a Valorsul. Mais um grande cliente a juntar a tantos outros. «Continuamos a manter a área da sinalização», refere, lembrando que a Isidovias é responsável pela conservação da sinalética em 11 dos 18 distritos do continente. De resto, com a alienação, há cerca de dois anos, da primeira empresa, a Isidoro Correia da Silva, a Isidovias tem vindo, paulatinamente, a assumir o papel de “casa-mãe”.

Resposta pronta a novos desafios Desafios não faltam ao Grupo. Um novo


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Grupo Isidoro 90 anos com Miranda do Corvo

projecto arrancou no início de Abril, na área da serralharia civil, no Alto do Padrão, na Lousã. Mais uma vez, é uma resposta complementar. «Temos a maquinaria para os sinais, vamos avançar para a serralharia», explica António Gama. Diferente é a aposta nas energias alternativas, com dois projectos para colocar painéis fotovoltaicos na Windpark (antiga Isidoro Correia da Silva), em Penela, e também na Autogarsilva, na Lousã. Trata-se de, dentro da Isidovias, «criar um departamento de energias alternativas», explica, admitindo que poderá ser o embrião de uma nova empresa. Com o envolvimento crescente na área da construção civil e recuperação e reabilitação urbana, ganhou sentido a Ismyday Investimentos, criada em 2014, centrada na actividade imobiliária, reforçada, em 2018, com a aquisição de Soluções Douradas, Mediação Imobiliária, Lda, uma empresa que já operava há sete anos no mercado e que o Grupo adquiriu. Também a área das agências de viagens faz parte do negócio. «Chegávamos a comprar 600 mil euros de viagens/ano», refere António Gama. Eram «viagens profissionais», particularmente com destino a Cabo Verde, Chile, Uruguai, Venezuela e também para o Brasil. Uma necessidade que o grupo Isidoro teve, em plena crise, por alturas de 2012, de procurar lá fora as obras que não existiam em Portugal. «Foi a internacionalização a empresa», recordaAntónio Gama. Cabo Verde foi a primeira experiência e a empresa do Chile «a mais rentável do Grupo». Esta necessidade de viajar para África e para a América do Sul levou à aquisição de uma agência de viagens e depois outras. «Chegámos a ter cinco agências de viagens». Actualmente são duas. O mundo Isidoro tem ainda uma «pequena empresa», especialmente vocacionada para a recuperação urbana e de apartamentos. «O António toma conta da geringonça. Só cá venho quando é preciso», afirma Isidoro Correia da Silva. «O meu pai é o meu conselheiro especial», diz o filho. Com carinho, António Gama destaca o espírito empreendedor do pai, que «sempre foi um homem do terreno», desenvolveu um mundo de negócios e «nos deu oportunidade de continuar a criar». No total, de forma directa, o grupo envolve uma centena de pessoas. 

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“Sempre tive alguma coisa encravada”

Final dos anos 60. Isidoro e os sócios da Pecol, José e Manuel Simões Pereira

«Se o meu pai tivesse tido oportunidade de estudar, teria sido um engenheiro de alta craveira». Orgulhoso, António Gama, CEO do Grupo Isidoro, destaca o espírito empreendedor do pai, um homem que, sublinha, «apenas concluiu a quarta classe». Um génio criativo e criador que, desde a sugestão de acoplar um motor à caldeira de distribuição de alcatrão, nunca parou de magicar soluções para os mais diversos problemas. «Sempre tive qualquer coisa encravada»,

confessa o empresário. Uma forma singular de demonstrar o seu espírito inquieto e engenhoso, a vontade de fazer sempre mais e melhor. De ir mais longe. Mais além. Um verdadeiro espírito empreendedor que continua a dar que falar. Com o filho, António, Tonito, como carinhosamente lhe chama, está actualmente empenhado em arranjar uma solução, um robot, que possa substituir a mão-de obracada vez mais escassa, por exemplo na colocação de tijolos. 

Novo produto pode dar origem a nova empresa Em parceria com a Universidade do Minho, o Grupo Isidoro desenvolveu um novo produto em fibra, «que é 80% mais leve que o piso tradicional, em betão, e tem o dobro da resistência». O produto, já registado e patenteado, pode representar, «se tudo correr bem», a criação de uma nova unidade fabril. Trata-se de uma solução optimizada para usar na recuperação urbana, sublinha António Gama. O produto começou a ser desenvolvido há cerca de três anos e a opção pela Universidade do Minho, para quem tem a Universidade de Coimbra à “porta de casa”, prende-se com o facto de esta ser «muito teórica», distante do tecido empresarial, critica. No pólo de Guimarães da Universidade do Minho «sinto-me em casa», afirma o empresário. E tanto

são os professores e investigadores e deslocam à fábrica como o empresário viaja até Braga. A relação é excelente e o projecto caminha a passos largos. Além da construção, tudo indica que este novo produto poderá ser aplicado na indústria náutica. A propósito, o CEO do Grupo Isidoro sublinha a necessidade de «abrir as universidades às empresas» e tornar o ensino mais prático, à semelhança do que acontece noutros países. «A parceria entre as universidade e as empresas é vital para o desenvolvimento do país», refere. Um caminho que o Grupo tem procurado trilhar. Além desta colaboração estreita com a Universidade do Minho, tem uma parceria com o ISCAC – Coimbra Business School. 


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90 anos com Miranda do Corvo Ferrer Correia

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FERRER CORREIA: UM HOMEM TÃO SIMPLES QUANTO NOTÁVEL 1912-2003 Natural do Senhor da Serra, foi um eminente jurista, com uma carreira académica brilhante. Reitor da Universidade de Coimbra, também presidiu à Fundação Calouste Gulbenkian

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enho do povo daqui e se há laços que não se quebram, este é indubitavelmente um deles». Palavras de António Ferrer Correia, proferidas pouco mais de um ano antes de morrer, na sua terra natal, o Senhor da Serra. Foi mais uma das muitas homenagens rendidas ao professor. Esta especial, porque nascida na sua gente, no seu torrão natal. Vivia-se o dia 14 de Setembro de 2002 e assistia-se à inauguração de uma estátua em bronze, da autoria do escultor Alves André, de Cantanhede. A ideia da homenagem partiu da Associação de Amigos da Escola Prof. Ferrer Correia, e depressa contou com o apoio de outras entidades, que se juntaram à comissão organizadora e de honra, designadamente, a Universidade de Coimbra, as câmaras municipais de Miranda do Corvo e de Coimbra, o Governo Civil, a Escola Ferrer Correia e as fundações Calouste Gulbenkian e Bissaya Barreto. O homenageado bem protestou, defendendo «algo de mais discreto, de menos espectacular e pomposo». Um busto teria sido «suficiente», aventou. Mas teve que se render aos dois metros de bronze erguidos em sua honra. Era o agradecimento público da escola que ajudou a erguer e do seu povo que nunca esqueceu. Com a simplicidade que o caracterizava, António Ferrer Correia aproveitou a oportunidade para também homenagear e agradecer, evocando, entre outros, o antigo mi-

Estátua erguida na sua terra natal, no Senhor da Serra

nistro da Educação, Veiga Simão, «cujo despacho permitiu a criação da primeira escola básica integrada do país, em 1973, no Senhor da Serra», escrevia o Diário de Coimbra na edição de 15 de Setembro de 2002. A escola da qual se tornou patrono e que sempre ajudou. «Saber, civismo, democracia e compa-

nheirismo» foram as qualidades humanas do homenageado que, mais do que a sua vasta e brilhante carreira, o então Presidente da República, Jorge Sampaio, fez questão de destacar. Associando-se à homenagem prestada pela sua terra natal, o Chefe de Estado destacou o «homem coerente e modesto», que «foi sempre rigorosamente


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Ferrer Correia 90 anos com Miranda do Corvo

o mesmo, quaisquer que fossem os títulos, sabedoria, cargos ou distinções». «Afável, democrata, paciente, irónico mas não sarcástico, Ferrer Correia nunca precisou da sobranceria, muitas vezes a flor que cultivam os ignorantes ou os autoritários», sublinhou Jorge Sampaio. Figueiredo Dias, à data presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito, seu antigo aluno, responsável pelo elogio do homenageado, apontou, de acordo com a notícia do Diário de Coimbra, assinada por Iolanda Chaves, a «rectidão cívica e moral», a «generosidade e saguesa» de Ferrer Correia. Lembrou, ainda, o seu desempenho como reitor da Universidade de Coimbra, nos «conturbados anos que abalaram a Academia no pós-25 de Abril, aplicando uma engenharia de consensos perante um presente difícil e um futuro incerto». A Universidade de Coimbra foi, de resto, uma das grandes paixões de António Ferrer Correia. Nascido a 15 de Agosto de 1912, no Senhor da Serra, ingressou na Faculdade de Direito em 1929, onde foi «o estudante mais classificado do seu tempo». «Militante das causas da República e da Democracia, cedo se impôs como o primeiro entre os seus pares», sendo eleito presidente da Associação Académica de Coimbra em dois mandatos consecutivos. Depois da licenciatura, Ferrer Correia concluiu, aos 27 anos, o seu doutoramento, com uma tese pioneira sobre “Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico”. Professor catedrático da Faculdade de Direito, distinguiu-se particularmente nas área do Direito Comercial e Direito Internacional Privado, tornando-se uma referência nestas áreas dos saber, a nível nacional e internacional. Também leccionou na Universidade Católica Portuguesa e na Faculté Internacionale de Droit Comparé, presidiu

ao Centro Interdisciplinar de Estudos Jurídicos-Económicos, ao Institut de Droit Internacional e foi director da revista de Direito e Economia. Como vice-decano da Universidade de Coimbra, esteve à frente da Reitoria de Setembro de 1976 a 16 de Junho de 1978, data em que tomou posse como reitor, cargo que exerceu até Agosto de 1982, quando se jubilou. Mas a Universidade fez questão de manter esse elo de ligação e conseguiu-o atribuindo a Ferrer Correia, pela primeira vez na sua centenária história, o título de reitor honorário. AFundação Calouste Gulbenkian foi outra das grandes causas a que António Arruda Ferrer Correia se dedicou. Um percurso que começa como advogado e consultor, onde teve um desempenho decisivo na resolução de diferendos sobre o testamento do fundador. «Sem o seu parecer, como jurisconsulto, a Fundação Calouste Gulbenkian não teria ficado em Portugal», considera o catedrático Manuel Porto. Opinião que, de resto, é partilhada por várias personalidades. Em 1958 assumiu funções como administrador da Fundação, cargo que ocupou até à sua eleição como presidente (1993-1999),

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sucedendo a José Azeredo Perdigão. Um percurso de vida reconhecido a nível nacional e internacional. Em 1967, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, em 1982 com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’lago de Espada. Em 1990 recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública e em 1999 a Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, tendo ainda sido agraciado com a Ordem de Mérito da República Federal da Alemanha e com a mais alta condecoração italiana, a Grã-Cruz da Ordem de Mérito. Recebeu ainda o título de doutor honoris causa das Universidades de Santos e Federal do Rio de Janeiro (Brasil) e da Universidade de Aveiro e foi distinguido pelos municípios de Miranda do Corvo e de Coimbra com a atribuição das respectivas Medalhas de Ouro. António Arruda Ferreira despediu-se da vida, que viveu de uma forma intensa, aos 91 anos. Morreu no dia 16 de Outubro de 2003. No Senhor da Serra, a família mantém a casa onde nasceu Ferrer Correia. A Escola Básica Integrada transformou-se em Centro Escolar Professor Doutor Ferrer Correia e a estátua em bronze mantém viva a memória do insigne professor. 

Perfil Nome: António Arruda Ferrer Correia Naturalidade: Senhor da Serra Data de nascimento: 15 de Agosto de 1912 Profissão: professor catedrático da Universidade de Coimbra Óbito: 16 de Outubro de 2003

Ferrer Correia teve um papel decisivo na resolução de diferendos sobre o testamento de Calouste Gulbenkian, que permitiram manter a Fundação em Portugal



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Fausto Correia 90 anos com Miranda do Corvo

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Fausto Correia na secretária de trabalho, onde os jornais eram presença constante. Uma foto dos três filhos fazia-lhe companhia

FAUSTO CORREIA: PARTIU O HOMEM FICOU O EXEMPLO E O GRANDE CORAÇÃO 1951-2007 Maria de Lurdes e Miguel Correia recordam momentos únicos de uma vida intensa. Memórias que continuam vivas e que a família preserva e partilha, hoje, connosco

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inguém morre enquanto permanecer vivo na nossa memória”. É isso que acontece com Fausto de Sousa Correia. 13 anos depois da morte o ter levado, continua bem vivo no coração da família. E também dos muitos amigos. «São boas memórias», afirma a esposa. «Sobretudo alegres», adianta o filho mais velho. Maria de Lurdes e Miguel recordam o marido e o pai. A generosidade, o elevado sentido de solidariedade, de justiça e de honestidade, mas também o espírito de família que o trazia a casa todos os fins-de-semana, estivesse em Lisboa ou em Bruxelas. Ou o elevado sentido cívico e de amizade que o levava a receber toda a gente e a ter sempre tempo para ouvir quem precisava. «Era mais do que nosso pai. Era nosso amigo. Não tínhamos uma relação de pai para filhos. Era uma relação de amigos. Havia respeito, mas uma relação muito aberta, muito informal, com muita brinca-

deira», recorda Miguel. «Só se deitava depois de os filhos - Miguel, António e José - chegarem a casa», recorda Maria de Lurdes. À espera dos filhos, muitas vezes barafustava. «Não me deixava dormir, mas quando eles chegavam, não ralhava com eles. Agora não lhes dizes nada?», questionava-o a esposa. «Revejo-me neles. Eu fazia a mesma coisa», confessava. «Saíamos com autorização. Telefonávamos a pedir», lembra Miguel. Todavia, o limite imposto, 4h00 da manhã, «era muito cedo». Um dia, mais zangado, Fausto resolveu trancar a porta de casa. «Era tarde e eles não vinham. Fechou a porta, mas pôs as chaves ao contrário. Tivemos de chamar os bombeiros», conta Maria de Lurdes, com um enorme sorriso, ao recordar o cómico da cena. «Chegámos de manhã», adianta Miguel. «Nunca conseguimos enganar o meu pai, porque ele já tinha, na juventude, enganado o pai de todas as formas imagináveis», re-

corda Miguel. Todavia, os três irmãos contavam com a cumplicidade da mãe. «Muitas vezes, deixava-lhes uma janela da cave aberta para entrarem», confidencia. Uma relação de cumplicidade com os filhos que ajudou a criar uma vivência de excelência. «A minha mãe era mãe e pai ao mesmo tempo», diz Miguel, que como mais velho foi o que teve a possibilidade de ter o pai mais próximo e durante mais tempo. Maria de Lurdes Pedro Correia e Fausto de Sousa Correia conheceram-se no Texas Bar, na Rua Adelino Veiga, na Baixa, em Coimbra. Ele vivia em frente e Maria de Lurdes começou a frequentar o espaço levada por uma colega, Teresa. Iam para lá estudar. «Teria 18/19 anos e o 7.º ano incompleto». Muito boa aluna, Maria de Lurdes deu-se mal com a experiência da Matemática Moderna, iniciada nessa altura no Liceu D. Maria e acabou por anular a matrícula. A par das explicações e das rendas que ajudava uma vizinha a fazer,


90 anos com Miranda do Corvo Fausto Correia

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decidiu inscrever-se no curso de Enfermagem. Fausto ia ao Texas Bar «tomar café», recorda. Também ele tinha uma disciplina em atraso, igualmente do 7.º ano. Miguel recorda que foi o resultado de uma fractura do fémur, feita a jogar futebol. «Não disse nada ao meu avô, que só soube quando ele não se conseguia levantar». Esteve meses e meses de cama e o resultado foi o 7.º ano incompleto. Do conhecimento ao namoro foi um passo. Fausto e os amigos foram os grandes responsáveis por Maria de Lurdes concluir o 7.º ano. As explicações de Matemática e de Desenho ajudaram e a excelente aluna fez o resto, com os exames, feitos no D. Duarte, a correrem da melhor forma. No mesmo ano, Maria de Lurdes entrava para a Faculdade de Medicina e Fausto para Direito. Casaram em 1977.

Os jornais desde sempre fizeram parte do mundo de Fausto Correia. Cresceu dentro de O Despertar”, criado pelo avô, do qual foi director. Foi jornalista do “República”, co-fundador de “A Luta” e chefe da delegação regional do Centro da ANOP – Agência Noticiosa Portuguesa e deu aulas de Iniciação ao Jornalismo, no Liceu D. Duarte. «Gostava muito de escrever e escrevia muito bem», refere Maria de Lurdes. O filho mostra-nos a pequena máquina de escrever, amarela, que Fausto usava. Miguel recorda uma famosa “carta aberta”, escrita pelo pai que, face ao espírito “forreta” do avô, fazia “pressão” para a “compra” de um Porsche. A vida nos jornais começou em Coimbra, mas levou-o para a capital, onde durante nove anos integrou o conselho de administração da RDP – Ra-

Ligação familiar forte a Miranda do Corvo «O pai gostava muito de Miranda do Corvo», garante Miguel Correia e «tinha lá muitos amigos». Era a herança, o ADN familiar a dar sinal de si. «Acalentava a esperança de um dia lá construir uma casa. Já tinha escolhido o terreno, que era do meu avô. Seria uma casa de férias, para passar os fins-de-semana», refere o filho mais velho. «Gostava que vocês fizessem isso», diz Maria de Lurdes. «A ideia não está descartada», responde o filho. Miguel recorda a doação de um terreno, em Cadaixo, que o pai fez para a construção do recinto de festas. «Temos de tratar dos papéis, porque não foi assinado nada», lembra a mãe. Foi integrada numa comitiva de Miranda do Corvo que a família visitou o eurodeputado

em Bruxelas. «Não era preciso irmos lá, ele vinha sempre, recorda Miguel, que foi uma segunda vez a Bruxelas, depois da morte de Fausto Correia. «Buscar as coisas dele», esclarece. A mãe regressou, para assistir a uma homenagem feita pelo Parlamento Europeu. Fausto presidiu à Assembleia Municipal de Miranda do Corvo e integrou este órgão como deputado, foi fundador da Real Confraria da Cabra Velha e integrou o conselho de estratégia da Fundação ADFP. O município de Miranda do Corvo homenageou-o, atribuindo o nome de Fausto Correia a uma praça. Coimbra fez a mesma coisa. E a Câmara de Lagos atribuiu à rua da Praia da Luz, onde a família mantém a casa de férias, o nome do eurodeputado. 

De manhã, Fausto Correia telefonava todos os dias à mãe. À noite era o telefonema para casa, para falar com a esposa e com os três filhos Fausto Correia e Maria de Lurdes conheceram-se no Texas Bar, na Baixa. Entraram juntos para a Universidade

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diodifusão Portuguesa e entre 1992 e 1995 foi vice-presidente da Direcção-Geral da Agência Lusa. Era a partida para Lisboa. «Estava grávida do António», recorda a médica, que durante largos anos trabalhou em Vila Nova de Poiares. Fausto começava a “corrida” dos fins-de-semana para Coimbra. Ligava todos os dias, de manhã, para a mãe. Para a esposa e para os filhos o telefonema era feito à noite. O casal chegou a equacionar mudarse para Lisboa. Todavia, a morte da mãe de Fausto Correia e do “tio Armando”, que estava à frente do Despertar, veio entravar o processo. Fausto Correia assumia a direcção do jornal. Mais um trabalho para o fim-de-semana. Um alívio para Maria de Lurdes, que não gostava da ideia de se mudar para Lisboa. 


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Fausto Correia 90 anos com Miranda do Corvo

“Os exemplos são mais fortes quando vividos” Solidariedade, honestidade, verdade, boa educação, o valor da família constituem uma herança que Fausto Correia deixou aos filhos. Miguel destaca particularmente a solidariedade. «Não se falava só em solidariedade, praticava-se solidariedade, era vivida», sublinha. «Os exemplos são mais fortes quando são vividos», aduz a mãe. «O pai era uma pessoa muito solidária, mas não fazia alarde disso», adianta o filho. Solidário, mas igualmente «justo e oportuno». «Se for justo e oportuno», era, recorda, uma expressão que usava com muita frequência, sobretudo quando pedia alguma coisa a alguém. Os fins-de-semana eram passados sempre em Coimbra. Mas antes de chegar a casa, o Trianon era o seu primeiro “poiso”. «Chegava a casa às tantas». Já depois do café fechar ficava na rua, à conversa. O fim-de-semana era para a família. Mas também para os amigos, para a política e para a Académica. «A casa estava sempre cheia de gente», recordam. Maria de Lurdes assume que às vezes se zangava, porque «recebia as pessoas como estava, sem qualquer cerimónia». «Muitas vezes de robe ou de pijama», esclarece ao filho. 

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Uma relação de excelência «Vinha todos os fins-de-semana» a casa. «Não faltou um!», garante o filho. «Habituámos-nos a viver assim. Quando o conheci ele já era assim. Não estranhei. Não me senti enganada», diz Maria de Lurdes com um sorriso. «Nunca levou os filhos ao jardim-escola, às actividades ou participou nas festas da escola. Não era compatível». Miguel, o mais velho, foi o que teve mais momentos com o pai. «Ía ao futebol com o meu pai», conta. Aos três filhos passou a paixão pela Académica. Uma “causa”, como lhe chamava. Como presidente da Briosa, “atravessou-se” várias vezes, para garantir a sobrevivência do clube, dando os bens pessoais como garantia. A esposa tinha de assinar as letras. «Aproveitava eu estar meia a dormir», diz, em jeito de brincadeira, recordando o quanto isso era motivo de gozo entre os amigos do casal. «O pai era espectacular. Sempre tivemos uma excelente relação, de amigos. Mas também nunca demos muitos problemas», refere Miguel. A mãe concorda, reconhecendo, muito embora, que «não foi fácil» educar os três filhos praticamente sozinha. Mas nunca fez “queixinhas”. Com o marido, «podíamos zangar-nos», mas depressa fazíamos as pazes. Mal virava costas, lá estava o telefonema da reconciliação. «Era um coração grande!». «Nunca nos disse que não a nada, mas nós sabíamos o que podíamos pedir», esclarece Miguel Correia. Motos estavam completamente fora de questão. «Sempre teve muito medo de motos», por isso os filhos sabiam que não valia a pena pedir uma. Ao contrário do que acontecia com os carros. «Prometeu e cumpriu! Deu-nos a todos um carro...» O “Tota”, António, conta Miguel, uma vez

subiu para o telhado e dizia que «só saía quando lhe dessem um computador». Tinha 7 ou 8 anos. A negociação resultou. O filho ganhou um computador, mas o pai «obrigou-o a cortar o cabelo», que crescia até aos ombros. Abrincadeira era o prato do dia. Sobretudo em férias. Orquestrada com a mãe e com os amigos. Maria de Lurdes e Miguel, bem dispostos, entre sorrisos, contam a partida que lhe fizeram, quando era secretário de Estado da Administração Pública. Estavam de férias, como habitualmente, na Praia da Luz, em Lagos, e viram uma tarja do STAL Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local, que dizia: “Governo mentiu, prometeu e não cumpriu”. Os três filhos, juntamente com os filhos de Carlos Beja um amigo de longa data -, recolheram a faixa, pendurada em Lagos e colocaramna Praia Luz. No dia seguinte, Fausto Correia reagia incrédulo: «Como é que nos descobriram?», questionava, quando se deparou com a faixa de protesto à porta de casa. «Cortou a faixa e andou anos com ela enrolada no carro», recordam. Só muito tempo depois é que lhe contaram a partida. «O pai era espectacular», sublinha Miguel. «Mas a mãe... era mãe e pai!», diz com ternura. 


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90 anos com Miranda do Corvo Fausto Correia

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Amigo do seu amigo... e até dos inimigos 1951 – 2007Aprofissão motivou o primeiro encontro. A vida tratou de os juntar. Sobretudo, permitiu cimentar uma amizade sólida e duradoura. Rui Avelar, jornalista e colaborador directo de Fausto Correia, falanos dessa vivência de várias décadas. Fica a saudade e uma homenagem ao amigo que partiu demasiado cedo. O primeiro contacto entre os dois aconteceu no Verão de 1974, «escassos meses depois do 25 de Abril». A mobilização para levar água potável à aldeia de Torre Chão do Pereiro, a partir de uma nascente no Espinhal, concelho de Penela, levou Fausto Correia à terra natal de Rui Avelar. Era o encontro do jornalista, que preparava uma peça para o jornal República, com o futuro jornalista. «Tinha 16 anos e desde os 12/13 que achava que queria ser jornalista», recorda Rui Avelar. Foi isso que aconteceu. Primeiro no Diário de Coimbra, no início dos anos 80. Depois ao serviço da agência Lusa. Um novo encontro. Fausto como administrador. Avelar como director adjunto. Apesar de estarem juntos na mesma casa, a grande proximidade aconteceu depois, quando Fausto Correia assume funções como secretário de Estado e escolhe Rui Avelar como seu adjunto. Uma experiência «gratificante», assume. Todas as semanas faziam, juntos, as viagens entre Lisboa e Coimbra. À sexta-feira à noite e ao domingo. «Falava-se de muita coisa», assume. E criou-se proximidade. «Ele era tímido, realmente tímido», confessa, desfazendo o mito. «Talvez devido à sua compleição física, à sua presença, ao modo de estar, bonacheirão» e também por ser «uma figura pública», as pessoas dificilmente tinham esta percepção. Uma timidez aliada a «um sentido de humor muito

Fausto Correia foi o grande obreiro da criação das Lojas do Cidadão

Fausto Correia era “muito exigente, muito meticuloso, muito rigoroso, com muito brio e uma grande atenção ao detalhe”

próprio», «cirúrgico», «pertinente», que «ajudava a criar um espaço de diálogo, ambiente e criar cumplicidades». Era, sobretudo, «uma pessoa exigente», apesar do «seu ar bonacheirão». «Muito meticuloso, muito rigoroso, com muito brio e uma grande atenção ao detalhe». Um cuidado grande na «escolha de palavras», sobretudo quanto enviava algum telegrama, fosse de felicitações ou de pêsames. «Grato» e «reconhecido» são duas das expressões que Rui Avelar destaca entre os quatro ou cinco adjectivos com que rematava habitualmente as suas missivas. Filho único – experiência que partilhavam ambos - «ligava todos os dias à mãe (o pai, comerciante na Baixa, já tinha falecido). Era uma das primeiras coisas que fazia».


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Fausto Correia 90 anos com Miranda do Corvo

Perfil Fausto de Sousa Correia nasceu no dia 29 de Outubro de 1951, em Coimbra. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi jornalista, professor do ensino secundário, administrador da Radiodifusão Portuguesa e da Agência Lusa, presidente da Associação Académica de Coimbra – Organismo Autónomo de Futebol e da assembleia-geral dos Bombeiros Voluntários de Coimbra. Secretáriocoordenador da Federação Distrital de Coimbra do PS, foi vereador da Câmara Municipal de Coimbra, vice-governador civil de Coimbra, presidente da Assembleia Municipal de Miranda do Corvo e membro deste órgão. Integrou ainda o Conselho de Estratégia da ADFP, foi um dos fundadores da Real Confraria da Cabra Velha. Deputado, eleito pelo PS, Fausto Correia fez parte dos governos liderados por António Guterres, exercendo as funções de secretário de Estado da Administração Pública (1995-1999, dos Assuntos Parlamentares, Adjunto do Ministro de Estado e Adjunto do Primeiro-ministro (19992002). Em 2004 foi eleito para o Parlamento Europeu. Casado com a médica Maria de Lurdes Duarte Pedro Correia, teve três filhos, Miguel, António e José. Nascido na Baixa, manteve uma relação de proximidade com as instituições daquela zona da cidade. Em Fevereiro de 2006 foi condecorado pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, com a Ordem de Mérito. Estava em Bruxelas quando coração o traiu, deixando-se surpreender pela morte, na madrugada do dia 9 de Outubro de 2007. Tinha 55 anos. 

Assim como «lia todos os jornais, nomeadamente os de Coimbra. Lidos e relidos». E «fazia questão de responder a todos os telefonemas e contactos. Nunca isso era deixado para o dia seguinte». «De trato único, atendia toda a gente», do «partido dele ou de outros partidos», pessoas que «gostavam dele e que não gostavam» e mesmo muitos que «depois lhe “mordiam os calcanhares”». Rui Avelar lembra a grande paixão de Fausto Correia pela Académica, cube ao qual presidiu. «Era um sofredor». «Não sei se a frase é dele, mas foi a ele que ouvi esta frase pela primeira vez: “A Académica não é um clube, é uma causa!”. A criação das Lojas do Cidadão – que já avançaram no Governo de Durão Barroso – terá sido, no entender de Avelar, um dos grandes projectos em que Fausto Correia se empenhou particularmente e que mais prazer lhe terá dado. Lembra, ainda, o seu empenho em desbloquear o processo do chamado “Plano Funcional” do novo Hospital Pediátrico de Coimbra e claro, a guerra com José Sócrates, no processo de luta conta a co-incineração. «Era um combatente contra a co-incineração. Não só pelos aspectos da saúde e do ambiente», mas também porque entendia que «era uma afronta à auto-estima de Coimbra». Aliás, este “braço-de-ferro” com Sócrates terá deitado por terra, definitivamente, uma sempre desejada e aguardada candidatura à presidência da Câmara Municipal de Coimbra, considera. Rui Avelar assume que, em Março de 2001, num curto espaço em que Fausto esteve fora do Governo (depois da renúncia de Jorge Coelho, na sequência da queda da ponte de

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Entre-o-Rios), nove meses antes das eleições autárquicas, foi um dos que «o incentivou a candidatar-se». Mas não aconteceu. «Disse-me que não o fazia porque Manuel Machado tinha intenções de ser candidato. Se Manuel Machado é presidente da Câmara de Coimbra há 12 anos e se acha que se deve candidatar a um quarto mandato (na altura ainda não havia limitação de mandatos), quem sou eu para me intrometer?», respondeu Fausto. Depois disso, «era impossível», afirma Rui Avelar, fazendo notar que José Sócrates assumiu o lugar de secretário geral do PS. Em «honra às suas raízes» e no «grande respeito pelas instituições», realça, Fausto Correia foi presidente da Assembleia Municipal de Miranda do Corvo e membro deste órgão, mantendo «uma relação de proximidade muito grande com a terra natal do seu pai», nascido no lugar de Cadaixo. «Cordialidade», «probidade», «generosidade – no sentido de altruísmo, mas também com algum romantismo e utopia», «ousadia, rasgo de fazer diferente», «dedicação», «sentido do dever», «dever de serviço público, numa cultura de civismo e de cidadania», são alguns dos adjectivos que Rui Avelar usa para definir a personalidade grande de Fausto Correia. Uma das últimas figuras emblemáticas de Coimbra que integraram o Governo do país. Destaque especial merece o «amigo do seu amigo… e até dos seus inimigos...». Um homem que «sabia rir-se de si próprio» e dizia temer «as pessoas que se levam demasiado a sério, porque as pessoas que se levam demasiado a sério ficam sem espaço para levarem as outras a sério!». 




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