90 anos com Mortágua

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de: Esta revista faz parte integrante da edição de hoje do Diário de Coimbra e não pode ser vendida separadamente 90 ANOS COM MORTÁGUA
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90 anos com Mortágua

Terra de lagoas, de águas paradas que lhe deram o nome, Mortágua tem frescos ribeiros a serpentear a cada esquina e a seus pés estende-se, quase a perder de vista, a albufeira da Aguieira. O azul da água contrasta com o verde da floresta, igualmente imensa, que ocupa 85% do território. O eucalipto instalou-se, conquistou terreno às zonas escarpadas das serras do Caramulo, do Buçaco e da Chavelha e tornou-se rei e senhor. Alterou a paisagem e transformou-se um verdadeiro pilar da economia local. Um território onde a floresta, ontem como hoje, representa uma inquestionável riqueza e o sustento de muitas centenas de famílias.

Uma tradição centenária, alimentada pelo espírito empreendedor dos homens e mulheres de Mortágua. Gente de garra,

de valores, de fé. Um povo que sempre defendeu o seu chão sagrado e deu resposta pronta às ofensas. Com valentia, juntou os seus homens às tropas aliadas que levaram de vencida os exércitos de Napoleão. Razão tinha o supersticioso imperador, que diz a lenda, não gostava de nomes começados por “M”. Mas foi em Mortágua que estacionaram os seus exércitos e também foi por aqui que destroçaram, em debandada.

Uma terra de causas e de gente unida, que assumiu colectivamente a morte do juiz e criou uma verdadeira lenda de justiça popular. Terra de gente culta, ávida de saber, que em 1919 fundou a Escola Livre e, em 1933, inaugurou o primeiro cinematógrafo.

Berço de figuras ilustres, defensores dos ideais republicanos, da educação do povo

como a grande arma do progresso, Mortágua é, também, terra de empreendedores que, num passado mais distante ergueram serrações, cerâmicas, fiações e, nos tempos mais recentes, apostaram nas energias alternativas, na indústria farmacêutica ou na criação da única escola de cães-guias existente no país.

É dedicada a Mortágua a revista que o Diário de Coimbra apresenta hoje, no âmbito do projecto editorial que assinala as nove décadas de publicação do jornal. De forma simples e despretensiosa, destacamos alguns momentos ímpares da história e da vivência do concelho. Cientes de que muito fica por ouvir e por contar, convidamos o leitor a embarcar connosco nesta viagem e a descobrir ou recordar um pouco do muito que Mortágua tem para oferecer.

Coordenação editorial: Manuela Ventura

Coordenação

Mário Rasteiro

Textos:

Fotos: Figueiredo, Ferreira Santos, Câmara Municipal de Mortágua, Aguieira Florestal, Arquivo e D.R.

Vendas: Fernando Gomes Design gráfico: Pedro Seiça

Publicidade: Carla Borges e Rui Semedo

Impressão: FIG – Indústrias Gráficas, SA

Tiragem: 10 mil exemplares

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Introdução 3 Director: Adriano Callé Lucas Directores-adjuntos: Miguel Callé Lucas e João Luís Campos Directora-geral: Teresa Veríssimo
comercial:
Manuela Ventura
FICHA TÉCNICA Maio de 2022

Se a imprensa livre é uma conquista da democracia, a imprensa que se assume como parte ativa do desígnio de servir as populações é o resultado inevitável da opção por um serviço humanista, verdadeiramente promotor do ideal de igualdade de direitos entre todos os indivíduos.

Mortágua sabe bem o que isto significa, tanto pelo passado ligado à luta pela liberdade como pela cultura humanista que os seus sempre fizeram questão de manter e reforçar, de que são exemplos o elevado sentido de comunidade evidenciado ou a preponderância, nos tempos atuais, da ABAADV, uma instituição reconhecida e de referência ligada à inclusão, a primeira e única no seu âmbito de atuação, que corporiza na perfeição o nosso “ímpeto” permanente para o ser solidário.

Da imprensa quer-se que não pare de perseguir o seu propósito de mão dada com as comunidades que serve, como reconhecemos que é feito pelo Diário de Coimbra nos seus 90 anos de existência, da mesma forma que Mortágua faz o seu papel, não cessando também de defender e valorizar o presente e o futuro dos seus.

Mortágua tem um profundo património material e imaterial, desde o histórico

marcante com impacto nacional ao gastronómico rico e tradicional, da etnografia enraizada e preservada à floresta que é central na economia e desenvolvimento locais, da natureza misteriosa cheia de oportunidades à água que envolve e aconchega desde há muito as suas gentes e o seu desenvolvimento, da relação com o desporto de alto nível à conexão com elementos culturais diversificados que acrescentam vivências, cor e alegria ao nosso espirito.

Ainda recentemente, a nossa aldeia da Marmeleira foi oficialmente classificada como “Aldeia de Portugal” pela ATA–Associação do Turismo de Aldeia, tornando-se uma das (únicas) 83 aldeias com esta distinção, demonstrando todo o potencial já conhecido mas também o caminho que estamos a desbravar no sentido de partilharmos o que somos com o mundo, com quem queira ser parte de nós visitandonos ou vindo fazer parte da comunidade.

É apenas um exemplo recente, porque Mortágua tem muito mais “Marmeleiras”, mais recantos e mais experiências a partilhar.

O Diário de Coimbra está numa cidade média e Mortágua está entre duas cidades médias, Coimbra e Viseu.

O que para uns poderia ser sintoma de inferioridade em relação a polos maiores de atratividade é para ambos apenas uma característica a abraçar sem preocupações de comparação com terceiros.

O Diário de Coimbra continuará certamente a servir as populações que abrange de forma natural, assim como nós continuaremos a ser este recanto a que se che-

ga serenamente e sem pressas a partir destas duas cidades relativamente próximas. Da nossa parte, o agradecimento e felicitações pelo caminho percorrido, e que a missão prossiga.

Quanto a Mortágua, vai também continuar aqui, no presente momento envolvida num esforço especial e redobrado para dar um salto a todos os níveis, com as suas surpresas à espera de quem nos visita, sempre de coração aberto e sem filtros, sempre a preservar a nossa identidade e a pensar nas gerações futuras, a valorizarnos cá dentro mas sempre com os olhos postos no mundo que nos rodeia, de que fazemos parte e que nos ajuda a crescer.

Somos nós, somos para os outros, aqui os recebemos e saudamos.

4 Opinião 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
“Com os olhos postos nas pessoas, o desígnio de servir”
Mortágua vai continuar (...) com as suas surpresas à espera de quem nos visita, sempre de coração aberto e sem filtros, sempre a pensar na nossa identidade e a pensar nas gerações futuras

UMA GIGANTESCA ALBUFEIRA

1972 Construção da Barragem da Aguieira arrancou em 1972, com as obrasa prolongarem-se durante quase uma década. É um dos maiores equipamentos da região, que garante água para consumo humano, irrigação e produção de energia eléctrica

Éum verdadeiro gigante de betão, que nasce no vale e se estende pelas duas encostas. Localizada no Mondego, a cerca de 1,7 km a jusante da foz do rio Dão, no limite de Travanca do Mondego, concelho de Penacova, e de Almaça, concelho de Mortágua, a Barragem da Aguieira é a pedra angular de um projecto com diferentes vectores – Plano Geral de Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego - concebido para garantir o aproveitamento das águas do rio Mondego e, simultaneamente, controlar o seu ímpeto torrencial, salvaguardando pessoas e bens da violência das cheias.

Um projecto que arrancou nos anos 70 do século passado, incluído no III Plano de Fomento, aprovado pelo Conselho de Ministros para os Assuntos Económicos em

Maio de 1970. O projecto foi revisto e actualizado em 1971 e em meados do ano seguinte começaram os trabalhos de construção da Barragem da Aguieira, com a execução da galeria de derivação provisória e da ensecadeira, a montante. A empreitada principal, abrangendo a barragem, descarregadores de cheias, central e anexos, foi iniciada em 1973. Dois anos depois, segundo fonte da EDP, em 1975, foram concluídas as escavações e iniciadas as betonagens da barragem, central e circuito hidráulico. Nesse mesmo ano foram adjudicados os fornecimentos dos equipamentos hidromecânicos e electromecânicos. Concluída a obra, o enchimento da albufeira começou em Junho de 1980 e as obras foram dadas por concluídas em 1981, ano em que entrou em funcionamento. A empreitada, que se

prolongou durante quase uma década, envolveu milhares de pessoas. No “período de ponta” terá atingido os 1.400 trabalhadores, adianta a EDP Produção.

A barragem impõe-se com os seus 89 m de altura (acima da fundação) e 400 m de desenvolvimento no coroamento. É constituída por três abóbadas de dupla curvatura – a central com 90 m de vão – apoiadas nas margens e em dois contrafortes localizados no leito do rio. A espessura mínima da abóbada é de 4,5 m, no fecho, e a máxima é de 8 m, na base. Sobre eles estão instalados dois descarregadores de cheia, com capacidade de vazão de 1.000m3/s cada. A descarga faz-se por meio de “saltos de ski de jacto” para o centro do rio. Além destes dois descarregadores principais de superfície existe uma descarga de fundo,

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Barragem da Aguieira 5

da Aguieira 90 anos com Mortágua

cuja capacidade de vazão é de 180m3/s.

O complexo de aproveitamento hidráulico tem o centro nevrálgico na Aguieira, mas envolve outros empreendimentos, designadamente a Barragem da Raiva, cerca de 10 km a jusante, no lugar do Coiço, concelho de Penacova, que arrancou em 1975 e ficou concluída em 1982; e a Barragem das Fronhas, no rio Alva, em Pombeiro da Beira, concelho de Arganil, uma obra que começou em 1982 e entrou em funcionamento em 1985. Um quarto elemento do “complexo” é o Açude-Ponte de Coimbra, construído em 1981, a que está associado, a jusante, um sistema complexo de canais, que pretende controlar as cheias nos campos agrícolas, bem como garantir a rega e o enxugo desses mesmos campos e a alimentação da indústria, particularmente das celuloses, instaladas no concelho da Figueira da Foz. A Barragem das Fronhas permite “derivar água” para a albufeira da Aguieira, através de um túnel com a extensão de 8,2 km. A Raiva funciona como “contraembalse», permitindo «criar condições para bombagem para a Aguieira», e «modular o caudal turbinado» nesta central.

O “escalão” da Aguieira, além do armazenamento de água, destina-se à produção de energia eléctrica, com a central a apresentar uma potência bruta total de 336 MW (Megawatt), equipada com três grupos de geradores com turbinas. A produtividade média anual é de 209,9 GWh (Gigawatt/hora). A central da Raiva é constituída por dois grupos de geradores e tem a potência bruta total de 24 MW. A produtividade média anual é de 46 GWh.

A gigantesca albufeira criada pela Barragem da Aguieira estende-se ao longo de 31 km, em território dos concelhos de Mortágua, Penacova, Carregal do Sal, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela. São dois mil hectares de área inundada, numa albufeira com capacidade total de armazenamento de 423 hm3, esclarece a EDP.

Uma gigantesca massa de água que trouxe uma nova fisionomia ao território, que depressa se tornou num paraíso para a prática de desportos náuticos e para a pesca desportiva. A zona afectada pela albufeira obrigou à construção de uma nova rede viária, da responsabilidade da Junta Autónoma das Estradas, que incluiu 13 pontes. Infra-

estruturas onde se destaca a variante à EN2, entre Santa Comba Dão e Raiva, incluindo novas pontes em Vimieiro, Foz do Dão, Ribeira de Mortágua e Oliveira do Mondego; novo troço da EN 324 entre Mortágua e Santa Comba Dão, incluindo a variante a Mortágua e novas pontes sobre o rio Criz e na Breda; nova estrada entre Mortágua e Almaça e uma nova ponte sobre o rio Mondego, próximo de Tábua. À EDP coube a tarefa de restabelecer a ligação de estradas municipais e serventias agrícolas afectadas, o que incluiu, igualmente, a construção de novas pontes, nos municípios de Penacova, Mortágua, Santa Comba Dão, Carregal do Sal e Tondela.

6 Barragem
Diário de Coimbra Albufeira tem 31 km de extensão e o seu enchimento começou em meados de 1980
Além da produção de energia eléctrica, a Aguieira é essencial para o abastecimento de água à população, à indústria e à agricultura

BREDA “SUCUMBIU” À BARRAGEM

1980 O nível das águas começou a subir, criando uma albufeira com uma extensão de 31 quilómetros. A construção da barragem, destinada ao armazenamento de água para consumo humano, irrigação e aproveitamento hidroeléctrico, apagou do mapa a aldeia de Breda

Não tínhamos escola, não tínhamos electricidade, não tínhamos capela. Não se podia construir porque a aldeia ia ser destruída». Durante anos, os habitantes da povoação de Breda viveram com a “espada sobre a cabeça”. O Plano Geral de Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego tinha traçado o destino da aldeia: afundar-se nas águas da albufeira. «Aquilo já estava condenado», garantem antigos moradores, convictos que o desfecho só não aconteceu mais cedo porque «não era aqui que Salazar queria a Barragem». Por isso, adiantam, «só depois da sua morte (1970), começou a construção da Barragem da Aguieira».

A empreitada arrancou em 1972 e ficou concluída em 1981. Obras que transfiguraram

a paisagem, criando uma enorme massa de água, que se estende ao longo de dois mil hectares. Uma obra estruturante, balizada por múltiplos objectivos, a começar pela regularização do rio Mondego, procurando dominar o “Basófias” e evitar as recorrentes cheias, a jusante, em Coimbra e Montemor-o-Velho, durante o Inverno, mas também para garantir o armazenamento de água para consumo humano, para irrigação dos campos agrícolas do Baixo Mondego e para alimentação da indústria papeleira, instalada na Figueira da Foz. A produção de energia eléctrica constitui outro dos objectivos centrais deste projecto. Os “danos colaterais” passaram pelo “afundamento” de três aldeias, Foz do Dão e Senhora da Ribeira, ambas pertencentes ao concelho de Santa Comba Dão, e Breda, da freguesia de Sobral, Mortágua. «Foi o sacrifício imposto em nome do progresso», dizem os antigos moradores.

«Quando foi abandonada, a Breda tinha 19 casas e 66 habitantes», esclarece fonte da EDP Produção. Os habitantes, adianta, «receberam indemnizações e dispersaram-se por outras localidades, nomeadamente para a vizinha aldeia de Vale de Paredes e para as proximidades da vila de Mortágua,

nomeadamente para a aldeia de Cruz de Vila Nova, também conhecida por Nova Breda».

Localizada a cerca de 200 m a sudeste da ponte da Linha da Beira Alta, sobre a Ribeira de Breda – que desaguava no rio Criz, a menos de um quilómetro da aldeia - a povoação desenvolvia-se na margem esquerda do vale da ribeira, atravessada pela estrada nacional 234. A cerca de 500 metros da Breda esta estrada cruzava a Linha da Beira Alta, numa passagem de nível, actualmente desactivada.

«A aldeia foi submersa pela albufeira da Aguieira no ano de 1980», refere a EDP. O «desmantelamento» começou antes e foi «feito a conta-gotas». «Agora uma casa, depois outra», recordam os antigos moradores da Breda. Os últimos a deixar a aldeia foram aqueles que tiveram a percepção mais notória da ruína, que em alturas de grande seca, quando o nível das águas desce significativamente, deixa à vista as pedras soltas, que outrora deram forma a muros e vida às casas. Vivas mantêm-se as memórias dos antigos moradores que deixaram a aldeia há mais de quadro décadas e que todos os anos, desde 1987, em Agosto, se reúnem num convívio, junto ao local onde se erguia a povoação de Breda.

Também o município de Mortágua fez questão de recordar a aldeia «sacrificada a favor da construção da Barragem da Aguieira», com a realização, em 2015, da exposição “35 anos sobre o desaparecimento da Aldeia da Breda”. Uma iniciativa que, além de manter viva a memória, quis, também, ser uma forma de «homenagear as gentes daquela aldeia, que há 35 anos sacrificaram as suas vivências culturais e sociais, as suas raízes familiares, a sua identidade como povo, em nome do progresso e do interesse geral», como sublinhou o então presidente da autarquia. A exposição apresentava um conjunto de fotografias, documentos e testemunhos gravados de antigos moradores.

8 Barragem da Aguieira 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Localizada no vale da ribeira de Breda, aldeia tinha 19 casas e 66 habitantes
Em nome do progresso, Breda foi uma das aldeias que ficou submersa pelas águas da barragem, mas a sua memória mantém-se viva

FIZERAM-SE AS BARRAGENS,MAS REGADIO

2024 Projecto de aproveitamento hidroagrícola sofreu avanços e recuos. Reabilitação da Barragem do Lapão e obras no bloco da Macieira talvez só em 2024

Nos finais do século passado davam-se os passos essenciais para pôr de pé o projecto de Aproveitamento Hidroagrícola de Mortágua, mas nem tudo correu de feição. Um conjunto de imprevistos e sobressaltos ditou o adiamento do projecto. Depois de uma longa espera, estima-se que as obras avancem e possam ficar concluídas. 2024 é agora o horizonte que se perspectiva.

Em causa está uma área de meio milhar de hectares (495 ha), abrangendo as planícies aluviais e os terraços que ladeiam as ribeiras da Fraga e de Mortágua. São dois blocos, precisa a Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC), designados por “Vila Moinhos” e “Macieira”, com «315 ha e 180 ha, respectivamente». Uma área com «boa a mediana» aptidão agrícola para «um vasto conjuntos de culturas», com 92,8% dos solos «susceptíveis de utilização intensiva a moderada». O estudo de viabilidade datado de 1997, assumido pela Hidrotécnica Portuguesa, compreendia um conjunto de infraestruturas, adstritas a cada um dos blocos, que incluíam «as barragens e as respectivas redes de transporte e distribuição de água, de drenagem e viária». No dia 1 de Junho de 2000, o então primeiro-ministro, António Guterres, assinava a adjudicação das obras de construção das duas barragens de Lapão e de Macieira. Um momento histórico, de acordo com a Imprensa da época, que apontava o “desencravar” de um processo «com mais de 40 anos», lembrando que o projecto do aproveitamento hidroagrícola das Várzeas das Ribeiras de Fraga e Mortágua começou a ser desenhado no tempo da Junta de Colonização Interna, em 1961». A Barragem do Lapão «vai inundar 19 hectares e a de Macieira 11 hectares para servirem 495 ha com rega. Os custos ascendem a 1,5 milhões de contos», adiantavam os jornais.

As obras avançaram, efectivamente, com a primeira fase, que envolveu a construção das barragens do Lapão e da Macieira,

concluídas, respectivamente, em 2001 e 2002. Todavia, os problemas verificados no Lapão vieram pôr “travões a fundo” no projecto, que, mais de duas décadas depois, começa agora a ganhar novos contornos.

«A barragem da Macieira encontra-se em exploração, mas ainda sem utilização para rega», esclarece a DRAPC. Uma grande massa de água, local de grande atracção, onde foi criada uma área de lazer. Todavia, não se trata de uma praia fluvial e os moradores fazem questão de alertar para o “perigo” das águas, bastante profundas.

Em 2021, segundo a DRAPC, «foi alvo de intervenções de reforço de segurança ao nível da instrumentação da barragem» e instalado «um posto udométrico, que permite monitorizar a precipitação que ocorre na bacia hidrográfica, com a transmissão dos dados e emissão de alertas para um centro de controlo remoto, através das redes móveis». Desta forma, melhora-se «o acompanhamento das situações de cheia e a prevenção de acidentes ou mitigação dos seus efeitos», adianta. Foi, igualmente, «instalado um gerador para fonte alternativa de energia para operação da descarga de fundo, em caso de falha da rede eléctrica».

Os projectos referentes às redes de rega e drenagem, desenvolvidos pela Hidrotécnica Portuguesa, em simultâneo com os projectos das barragens foram, à época, remetidos para uma segunda fase, lembra a DRAPC.

Posteriormente, «quando submetidos à apreciação do então IHERA, este considerou não estarem reunidas todas as condições para a sua aprovação(...). Por esse facto e atendendo ao elevado número de anos decorridos e às alterações verificadas na ocupação do território, torna-se imprescindível proceder à revisão dos projectos», adianta.

Já no início deste ano foi aprovada uma candidatura ao Programa Nacional de Regadios, promovida pela DRAPC em parceria com o município de Mortágua, para a «infraestruturação do Bloco da Macieira, nas componentes rede de rega, drenagem e viária. A rede de rega projectada, de acordo com informação do chefe de Divisão de Infraestruturas e Ambiente da DRAPC, Alcindo Cardoso, «é composta por uma conduta adutora, com um comprimento de 286 m, que ligará o circuito hidráulico de tomada de água já construído a uma rede de distribuição em condutas enterradas, com uma extensão de 15,7 km, dominando uma área útil de rega de 170 ha. A rede é complementada por um conjunto de obras e equipamentos de segurança, nomeadamente ventosas, descargas de fundos, válvulas de seccionamento, hidrantes e obras de atravessamento das linhas de água», adianta. Em simultâneo com a rede de rega, a empreitada pretende melhorar as condições de drenagem e a rede viária para acesso às parcelas e escoamento dos pro-

10 Barragens do Lapão e Macieira 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Barragem da Macieira está a funcionar, se bem que ainda sem utilização para rega

anos com Mortágua Barragens do Lapão e

CONTINUA ADIADO

dutos. O investimento, que já tem o aval do Ministério da Agricultura, é de 4.537.656 euros. «Prevê-se que as obras decorram até final de 2024», sublinha.

O responsável faz notar que a concretização do projecto vai possibilitar um acesso regular e eficiente à água, o que «permitirá a reconversão de culturas de sequeiro em regadio e, consequentemente, um aumento significativo das produtividades e a diversificação de culturas». Por outro lado, «a prática de actividades agrícolas mais competitivas, ancoradas em culturas com maior procura de mercado, terá como consequência maior valorização económica, criando, assim, mais riqueza à região».

Recuperar Barragem do Lapão

Concluída em 2001 a Barragem do Lapão procura, no futuro, uma “história com final feliz”, depois dos percalços que sofreu. Alcindo Cardoso acompanhou o processo a par e passo e lembra que durante o primeiro enchimento da albufeira se detectaram «deslocamentos elevados em toda a barragem e outros indícios de comportamento deficiente», que ditaram de imediato a interrupção do enchimento e a realização de estudos complementares. «Posteriormente, devido a pluviosidade intensa, no Inverno de 2002/2003, a barragem encheu de forma rápida, tendo-se, então, agravado as deformações e surgido indícios de fenómenos de erosão interna, com risco de colapso».

Em Janeiro de 2003 viveram-se momentos de angústia. A demolição dos muros da zona de descarga de emergência foi uma das medidas de recurso para conseguir «baixar três metros de altura de água, correspondentes a cerca de 33% da capacidade da albufeira», referia o Diário de Coimbra.

Técnicos da DRAPC, designadamente Alcindo Cardoso, do Instituto Nacional da Água (INAG), do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e da Câmara de Mortágua acompanharam, 24 sobre 24 horas, a evolução dos acontecimentos. Inclusivamente, foi definido um plano de evacuação, uma vez que no caso de a barragem sucumbir «poderiam ser afectados cerca de 100 fogos das povoações de Vila Moinhos, Vila Meã, Barril e Mortágua», o que envolvia «entre 325 e 350 pessoas», explicava o então o autarca Afonso Abrantes, salientando que «nunca houve necessidade de fazer evacuação», mas havia necessidade de ter um plano de evacuação».

«Após o esvaziamento completo, foi reactivado o desvio provisório, por forma a impedir a subida do nível da albufeira» e efectuadas «pequenas reparações e obras de protecção do pé da barragem e elaborado um projecto de reabilitação da obra», esclarece o chefe da Divisão, que destaca o facto de a DRAPC sempre ter procurado «promover a reabilitação» da barragem. Um projecto de reabilitação que, sublinha, «foi concluído em 2005». Todavia, «apenas

se obteve financiamento para a reabilitação da obra após candidatura ao PDR 2020, em 2018», que se encontra «em fase de execução».

Os investimentos aprovados, no valor de 5 milhões de euros, incluem, «além da execução da empreitada de reabilitação da barragem, as prestações de serviços de revisão do projecto e sua adaptação às condições actuais, de revisão dos planos de observação e de primeiro enchimento, de fiscalização e as indemnizações», adianta.

O responsável chama a atenção para as «diversas alterações regulamentares, nomeadamente do Regulamento de Segurança de Barragens» que se verificaram, «o que determinou a necessidade de actualizar o projecto em múltiplos aspectos». Faz notar as «deficiências importantes» apontadas ao nível da concepção da solução de reabilitação, que levaram a tutela a determinar a «realização de um estudo de viabilidade de uma solução de reabilitação com parede moldada e subsequente desenvolvimento ao nível de projecto de execução». Actualmente está em preparação o concurso público para a adjudicação desses estudos e projecto, adianta. Situação que leva Alcindo Cardoso a prever que «a barragem não esteja reabilitada antes de 2024».

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Macieira 11
Barragem do Lapão fechou em 2003 depois de um enchimento dramático

PEQUENO PARAÍSO NO CENTRO DO PAÍS

2009 Encaixado entre o verde da floresta e o azul da albufeira, o Montebelo Aguieira Lake Resort & Spa inaugura, em Julho de 2009, um novo conceito de turismo na região

De braço dado com a natureza, respirando o ar puro da floresta verde e saboreando a frescura das águas da albufeira da Aguieira, o Montebelo Aguieira Lake Resort & Spa afirma-se como uma proposta diferenciadora, com características únicas. Um verdadeiro “condomínio fechado” de 5 estrelas, que constitui uma referência para os amantes da natureza e particularmente dos desportos náuticos. Um projecto com a chancela do Grupo Visabeira, inaugurado a 28 de Julho de 2009, que se prepara para abraçar novos desafios.

Numa vasta área, com mais de 30 hectares, com o cenário deslumbrante da barragem e da albufeira da Aguieira, o empreendimento oferece alojamento em apartamentos tipo T1 e T2, moradias T2 e T3 e ainda Villas T4, que não são mais do que moradias, num total de oito, com jardim e piscina privada. Um novo conceito de alojamento, pensado especialmente para as famílias, que se tem revelado um sucesso, sobretudo para o mercado nacional. Filipe Loureiro, director do empreendimento, assume que são os portugueses os principais clientes do aldeamento turístico. Em segundo lugar encontram-se os espanhóis.

Todavia, as características muito especiais do empreendimento “definiram” um outro «mercado muito específico», centrado nos atletas da canoagem. Filipe Loureiro refere a parceria com o maior fabricante de caiaques do mundo, a Nelo Caiaques, que leva ao Resort da Aguieira «federações de canoagem de todo o mundo», desde a China e Canadá aos países europeus. «Adaptámos a unidade a este cliente», adianta, destacando a presença significativa de atletas entre Outubro e Março/Abril, facto que transforma a época baixa, em termos turísticos, garantindo uma taxa de ocupação contínua e bastante significativa. Nos princípios de Março o aldeamento acolhia cerca de uma centena de atletas. «Não é o pico da afluência», explica Filipe Loureiro, que aponta alturas em que «chegamos aos 150 atletas». Antes da pandemia a barreira dos 200/220 era regularmente ultrapassada.

Cada selecção fica, em média, «duas ou

três semanas». Partem umas e chegam outras e, bastas vezes chegam a cruzar-se. Há mesmo federações que repetem a presença na mesma temporada.

Significa que há sempre canoístas no Montebelo Aguieira, o que representa um dado relevante, em termos de gestão e de negócio. A albufeira constitui, obviamente, o grande factor de atractibilidade para os atletas, que ali podem efectuar os respectivos treinos de preparação, na água e também em terra, uma vez que existem cinco ginásios, com o equipamento necessário para obter uma boa performance.

A albufeira é, de resto, «a razão de existência do hotel», que permite desde a situação «mais simples, uma vista deslumbrante sobre a barragem», até uma variada oferta de actividades lúdicas e de lazer, destaca o director. Nos dois ancoradouros da marina, cada um com capacidade para 50 embarcações (limite de 12 metros), os clientes podem deixar a sua embarcação. Alguns durante todo o ano, esclarece o director. Passeios de barco, de caiaque, vela, ski náutico são algumas das propostas da unidade hoteleira. «No Inverno, como a procura é mais reduzida, são serviços que carecem de marcação prévia», diz Filipe Loureiro, mas no Verão «estão completamente disponíveis».

Num dos ancoradouros existe uma piscina natural, com água da barragem, «que tem

muita procura» no Verão, com a água a atingir 26, 27º. «Só no Algarve é que se encontram estas temperaturas», afiança. Desta forma, a unidade potencia o aproveitamento da marina e da vasta oferta de actividades náuticas, seja para os atletas, seja para os restantes clientes. Além do enorme espaço verde, com lagos, jardins e parque infantil, o empreendimento tem três piscinas exteriores e uma interior (dentro em breve passam a ser duas), campos de vólei, de futebol, de ténis e mini-golfe. Os amantes das caminhadas têm o local ideal à sua disposição e a Ecovia do Mondego, que vai passar junto à barragem, vai criar mais uma oferta, com passeios de bicicleta. Dentro de casa, ou seja, no edifício multiusos, a piscina e o Spa são outro dos actractivos, com sauna, banho turno, massagens terapêuticas. Múltiplas respostas que, particularmente durante o Verão, atraem muitas clientes ao Montebelo Aguieira. No Verão temos muita procura», refere o director, que aponta os «450/500 pequenos-almoços» serviços, em média, por dia, durante a época alta.

Depois das restrições impostas pela pandemia, o Montebelo Aguieira Lake Resort começou a retoma ao nível do mercado de eventos e têm sido notórias as solicitações para casamentos, com várias marcações para este ano e para o próximo.

A «oferta de experiências» novas, diferentes,

12 Aguieira Lake Resort 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Empreendimento oferece uma vista deslumbrante sobre a albufeira da Aguieira

que permitam fruir a natureza, procurando, simultaneamente, «ser diferenciadores relativamente ao que existe na região», constitui um desafio que diariamente mobiliza a equipa, que na época baixa oscila entre os 40 e os 45 colaboradores e, no Verão, face ao “boom” de clientes, se vê reforçada, atingindo os 60/65 colaboradores.

«A aposta na qualidade do serviço» constitui uma marca da cadeia Montebelo, associada ao que de melhor existe em cada região. «Servimos comida com alma», diz Filipe Loureiro, que elogia o empenho do chefe João Paulo Varela e de toda a sua equipa, que «quase todos os dias apresenta novas sugestões». Com um «foco muito especial na qualidade e nos sabores», sem descurar a apresentação, simples e com requinte, o restaurante tem um conjunto de pratos de eleição. A começar pelo arroz de cabrito, um «prato muito típico» que os clientes habituais não dispensam, a que se junta o lombo de boi à Montebelo, o filete de dourada com arroz de marisco e uma atenção crescente aos pratos vegetarianos e vegan. Restaurante que garante serviço

de almoços e jantares e resposta a eventos em regime buffet/menu.

Filipe Loureiro está à frente do Montebelo Aguieira desde Outubro de 2019, mas tem uma vasta experiência ligada à cadeia hoteleira do Grupo Visabeira. Com efeito, antes esteve quatro anos no Montebelo Vista Alegre, em Ílhavo, depois de 10 anos no Montebelo de Viseu. Transversal, comum a todas estas unidades de 5 estrelas é a «aposta na qualidade», bem como a «proximidade com os produtos da região», afirma. Uma envolvência com a realidade local que confere a cada projecto «o seu cunho próprio» e a sua especificidade. «São todos diferentes», conclui.

Um novo hotel está a nascer

Ao lado do edifício multiusos, onde estão concentrados grande parte dos serviços - bar, restaurante, piscina interior - está a ser construído um novo bloco, que vai representar mais 58 unidades de alojamento. Será, explica o director, um espaço com a filosofia de hotel, que pretende responder a uma linha de mercado associado aos eventos, «sem desvirtuar a essência da nossa oferta, que consiste nos apartamentos».

O investimento, assumido pelo Grupo Visabeira, ronda os 6/7 milhões de euros e a empreitada fica concluída este ano.

O projecto implica um investimento no «aumento da capacidade das salas», designadamente com a criação de um novo espaço com 450 m2, que poderá ficar dotado com divisórias amovíveis, de forma a criar versatilidade e capacidade para receber iniciativas com 500/600 pessoas ou de menor dimensão .

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Aguieira Lake Resort 13

Trilho das Quedas de Água de Paredes constitui um dos percursos mais atractivos e de maior beleza

CAMINHOS DE DESCOBERTA

2007 O verde refrescante da floresta rivaliza com a água cristalina das muitas ribeiras. A pé ou de bicicleta, os trilhos mostram um mundo diferente

Apé ou de bicicleta, são vários os trilhos existentes no concelho que permitem descobrir a “outra face” de Mortágua. Em terra onde o eucalipto é rei, esta é a forma de descobrir uma floresta diferente, mais fresca e frondosa, mas também os muitos cursos de água e ribeiros, que surgem quase ao virar de cada

esquina. Percursos que potenciam o contacto com a natureza e que vale a pena conhecer.

Talvez a mais preciosa “jóia da coroa” seja o trilho das Quedas de Água de Paredes. Um percurso linear, com 7 km (ida e volta), criado em 2007, o primeiro do concelho validado pela Federação de Campismo e Montanhismo, que começa junto a um moinho e continua, ao longo da ribeira, contabilizando mais seis moinhos. «São todos particulares e nenhum está restaurado», refere Mónica Pereira, técnica da autarquia. Moinhos que, sublinha, lembram a sua importância no passado, como ele-

mentos fundamentais para a alimentação de homens e animais, nomeadamente através do ciclo do pão. Um percurso que termina com três cascadas de grande beleza, que constituem o “ex libris” deste trilho, que no Verão formam uma ampla lagoa, onde é habitual a população “ir a banhos”.

O percurso da Fraga, igualmente linear, com cerca de 6 km, em Vila Moinhos, inclui vários moinhos e caracteriza-se pela grande beleza ao longo de todo o trilho. Junto à vila de Mortágua está o chamado percurso urbano, com 2,5 km, que liga Barril ao Parque Urbano de Nogueiras e termina no Parque Verde de Mortágua, beneficiando

14 Trilhos 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra

90 anos com Mortágua

da influência das ribeiras de Mortágua e da Fraga, bem como dos espaços e equipamentos lúdicos e de lazer existentes nos dois parques, designadamente campo de futebol, parque infantil, mesas ou ainda ao apoio do bar do Centro de BTT, instalado no Parque Verde.

De resto, é daqui que partem os sete percursos de BTT do concelho, com perfis diferentes, desde o mais fácil ao de maior grau de dificuldade. Percursos que permitem aos amantes do ciclismo e do BTT percorrer todo o concelho, desde a zona mais próxima da albufeira até à zona da Serra do Buçaco, envolvendo, também, a chamada zona do Reguengo, tradicionalmente mais agrícola e com várias aldeias.

Mortágua está integrada em duas grandes rotas, projectos da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC). A primeira é a Grande Rota do Mondego, que vai de Tábua à Figueira da Foz, num total de 142 km, e tem o rio Mondego como denominador comum. Mortágua tem um pequeno “cantinho”, junto à Aguieira. A outra é a Grande Rota do Bussaco, que envolve os municípios de Mortágua, Mealhada e Penacova. São 56 km de um percurso com três “ramais”, que tem o epicentro do Obelisco ou na Mata do Bussaco e começa ou acaba em cada um dos concelhos. Um percurso que, além do contacto com a natureza, representa uma viagem pela história, lembrando a presença das tropas napoleónicas no território e a resistência do concelho.

O Caminho Natural da Espiritualidade, que liga Coimbra a Santa Comba Dão, numa extensão de 67 km, com passagem por Penacova e Mortágua, é outra das propostas da CIM-RC, que explora a motivação da viagem espiritual com o património natural onde se desenrola, tendo o Caminho Português do Interior, das Rotas de Santiago, como contexto de base e elo de ligação. Outra das atracções, amplamente fruída pela população, é a Barragem da Aguieira, uma enorme massa de água que se assume como um verdadeiro paraíso para os desportos náuticos. Marina, só existe mesmo a do Resort da Aguieira, mas há empresas que promovem passeios de barco, há zonas aproveitadas para banhos, espaços de eleição para os amantes da pesca, que têm um verdadeiro paraíso na barragem de Macieira. Propostas diversificadas para descobrir o concelho com um outro olhar.

Diário de Coimbra

Viajar na EN 234 e descobrir um mundo entre o mar e a serra

A pé, de bicicleta, mas também de carro, o objectivo é ligar a serra ao mar, partindo da zona de Nelas rumo a Mira. A Estrada Nacional 234 é a força motora deste trajecto, um percurso que o município de Mortágua pretende valorizar, numa aliança estreita com os concelhos atravessados por esta via. «É uma ideia embrionária», considera o presidente da autarquia, que vê com bons olhos esta aliança estratégica, que convida os visitantes a saírem da A25 e descobrirem um mundo novo, percorrendo e pernoitando neste território. Entre caminhadas, passeios de bicicleta, o objectivo é que «apreciem a nossa gastronomia, os nossos vinhos», mas também o património cultural, natural e religioso que caracteriza esta vasta franja do território. «Uma oferta

integrada e pensada em conjunto», sublinha Ricardo Pardal a quem agrada a ideia de «começar em Nelas e chegar a Mira no espaço de uma semana», com um programa diversificado, com degustações, visita a caves, descoberta do património histórico, natural e religioso. A caça e a pesca, tendo em conta os necessários requisitos em matéria de sustentabilidade, representam outras possibilidades.

Para o autarca, é essencial pensar e promover uma «oferta conjunta», «diversificada» e «articulada», que seja capaz de «“encher o olho”, sobretudo nos canais digitais», dando oportunidade ao visitante de poder escolher o que mais lhe interessa. «É importante estratificar a oferta», considera.

O Km 225 da Nacional 2

Já operacional e amplamente percorrida é a Rota da Estrada Nacional (EN) 2, que atravessa Mortágua e tem o seu ponto de referência junto ao Posto de Turismo, nas traseiras dos Paços do Concelho. Mortágua assume o km 225 daquela que é a mais extensa estrada de Portugal e a terceira do mundo. Com 738,5 km, liga Chaves, em Trás-os-Montes, a Faro, no Algarve, atravessando 11 distritos e 35 concelhos.

Mortágua integra a Associação de Municípios da Rota da Estrada Nacional 2 e aderiu ao Passaporte da EN2, que procura incentivar os turistas a percorrerem a rota e a coleccionar os carimbos de todos os concelhos. Em Mortágua, esse carimbo

pode ser obtido, de segunda a sexta-feira, no horário de expediente, no Posto de Turismo ou na Câmara Municipal. Aos sábados, domingos e feriados o carimbo no passaporte pode ser obtido no quartel dos Bombeiros Voluntários de Mortágua e na pastelaria “Pousadinha do Dão”, localizada junto aos Paços do Concelho.

Viajar pela EN2, de carro, de moto, de bicicleta ou a pé é uma forma de descobrir o país de Norte a Sul, de contactar com as aldeias e com as suas gentes, com as tradições e as histórias de um povo, de descobrir os rios e as serras e, claro, de saborear a riqueza da gastronomia de cada região.

16 Trilhos
Pórtico da EN 2 localiza-se junto ao Centro de Interpretação da Batalha do Bussaço

FLORESTA: A TRADIÇÃO DE UM NEGÓCIO

1980 Fileira florestal é um dos pilares da economia concelhia. A empresa Alves Marques & Irmão, fundada em 1980, é uma das muitas que trabalham no sector

Afloresta é o seu mundo. Habitualmente desde as 6h30 da manhã às oito da noite. Por um lado, há que promover o corte e “rechegar” a madeira, tirando-a da mata. Por outro, assegurar a venda desta rolaria e de outra, comprada a outros produtores florestais. É preciso, ainda, acautelar a plantação, o desbaste. Falamos de Carlos Alves, um empresário com 58 anos que há praticamente 40 trabalha na fileira florestal. «Madeireiro» é o nome mais indicado. «É isso que fazemos: trabalhar a madeira», afirma o empresário, que juntamente com o irmão, Fernando, e um terceiro sócio, Carlos Gomes, gere duas empresas, a Marques Alves & Irmão, Lda. criada em 1980, e a Aguieira Florestal, uma década depois. O pai, Manuel Alves, foi, juntamente com outros sócios, entre os quais Sarmento Marques Gomes (pai de Carlos Gomes), o fundador das empresas. Os filhos habituaram-se ao trabalho, herdaram o saber-fazer dos progenitores e continuaram o projecto.

Duas empresas de um vasto universo ligado ao sector da floresta. Uma fileira com pergaminhos na região. «Há 50/60 anos Mortágua tinha muitas serrações, embora de pequenas dimensões. Talvez uma dúzia», recorda. Hoje não existe nenhuma. «Praticamente já não há pinheiros», afirma Carlos Alves, associando a fileira do pinho às serrações. A produção florestal continua a ser uma âncora fundamental na economia local, mas ao pinheiro sucedeu o eucalipto e as serrações foram substituídas pelas empresas de biocombustíveis e de produção de energia eléctrica.

A Marques Alves & Irmão, Lda. «compra e processa a madeira», explica. Significa que o seu trabalho «vai desde o corte ao camião», o que representa homens e máquinas na floresta a «cortar e “rechegar” a madeira», transformando as árvores em rolos, carregados num camião. Um trabalho exigente, que requer maquinaria adequada, designadamente “Forwarders”, um veículo especialmente concebido para este trabalho. Equipamentos caros, confessa o empresário, mas que «são necessários» para um trabalho

profissional. Igualmente caros são os salários dos madeireiros. «São pessoas com muita formação e com muita prática, que sabem do seu trabalho». Um saber que se paga. «Ninguém recebe o salário mínimo. Pode não ser o que gostariam de receber, mas são salários bastante mais altos relativamente ao nível geral», adianta.

A empresa corta e processa madeira «em toda a zona Centro». A Aguieira Florestal trata exclusivamente da compra e venda. «Compramos a madeira terceiros, já em cima do camião, e vendemos à fábrica», explica. A madeira é adquirida em toda a zona Centro, com o eucalipto na linha da frente, seguindo-se o pinho e a acácia. «Quase 90%» da madeira transaccionada é de eucalipto». O destino são as empresas de celulose da Figueira da Foz, Setúbal, Constância e Vila Velha de Ródão.

O eucalipto começa a ter “porta aberta” nas empresas de aglomerados e de pellets.

«O pinho destina-se mais às serrações», mas também para o sector dos aglomerados e de pellets, enquanto a acácia se reduz ao mundo dos pellets e do carvão.

Outro cliente é a Central Termoeléctrica, para onde a empresa encaminha a biomassa. Um negócio residual, em termos de facturação, mas importante, tendo em

conta a necessidade de «deixar as matas limpas». Durante vários anos a Aguieira Florestal exportou madeira para Espanha, mas há cerca de 15 anos centrou-se exclusivamente no mercado nacional. «Foi uma opção», diz Carlos Alves.

As empresas têm 12 funcionários efectivos e «quando é necessário», tendo em conta o volume de trabalho, recorrem a subcontratação. Também possuem terrenos, onde procedem à plantação, essencialmente eucaliptos, processo que contratualizam a terceiros.

Aos críticos do eucalipto, que diabolizam esta espécie Carlos Alves responde de uma forma simples: «Mortágua tem vida, tem água, tem pessoas, tem animais... Tem tudo isto e tem eucaliptos! O eucalipto não estraga nada, pelo contrário», garante, «é uma fonte de rendimento» para muitas famílias. A grande questão está, faz notar, na gestão da floresta, e considera Mortágua um exemplo. «A floresta é muito bem tratada. As matas são limpas, há aceiros, estradas, estradões e pontos de água». Cuidado que torna os incêndios florestais residuais no concelho. A excepção foi Outubro de 2017, com o fogo a «chegar descontrolado» e a provocar um «golpe brutal» em toda a fileira florestal.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Floresta 17
Fileira florestal tem um peso significativo e faz de Mortágua a “capital do eucalipto”

A ENERGIA DA BIOMASSA

nomeadamente uma empresa de produção de “pellets”, combustível particularmente usado para alimentar fornos e lareiras, igualmente instalada na localidade do Freixo.

1999 A primeira central no país a produzir energia eléctrica a partir de biomassa começa a funcionar em Setembro de 1999, no Freixo. Diariamente consome 450 toneladas de resíduos florestais

Odesafio foi assumido pela EDP. Uma aposta nas energias renováveis, designadamente no aproveitamento da biomassa florestal. O lugar do Freixo foi o local escolhido para instalar a primeira central no país a produzir energia eléctrica a partir de resíduos florestais e a dar «um primeiro impulso ao sector das energias renováveis em Portugal». Um investimento de 4,9 milhões de contos, que entrou em exploração industrial em Setembro de 1999, com uma potência instalada de 10 Megawatts (MG). Duas décadas depois, a Central Termoeléctrica de Mortágua faz parte da Greenvolt, que possui cinco centrais de biomassa em território nacional e continua a produzir energia eléctrica. São, de acordo com a empresa, cerca de «63 gigawatts (GWh)/ano», o que equivale ao «consumo de 35 mil habitantes».

Para manter e cumprir esta performance de produção, há um “circuito de alimentação” que nunca pára. Por dia, em média, chegam 30 camiões à central do Freixo, em Mortágua, cada um com um carregamento de «cerca de 15 toneladas». Trata-se exclusivamente de resíduos e desperdícios «resultantes da gestão do sistema produtivo florestal», onde se incluem «os cepos, casca,

ramos, bicada e árvores não utilizadas no momentos da exploração florestal». Na maioria, os fornecedores «são empresas ligadas à exploração florestal, madeireiros e produtores florestais», preponderantemente oriundos dos distritos de Viseu, Coimbra e Aveiro.

Os camiões chegam com a matériaprima, que entra num silo de armazenamento. Um sistema de tapetes transportadores leva a biomassa rumo a uma caldeia, onde se procede à queima. Ao queimar a biomassa, a caldeira produz vapor, que é usado para accionar uma turbina, que, por sua vez, acciona um gerador que produz energia eléctrica. De uma forma simplificada, é assim que funciona a central, que trabalha 24 sobre 24 horas.«São necessárias duas toneladas de biomassa para produzir um MWh», esclarece a empresa. Toda a energia produzida «é injectada directamente na rede eléctrica nacional», adianta, apontando um valor médio de 63 GWh/ano.

A instalação da Central Termoeléctrica em Mortágua prende-se, claramente com a importância que a fileira florestal ganhou nos últimas décadas no concelho, com mais de 85% do território ocupado com floresta, grande parte da qual dedicada à produção de eucalipto. Naturalmente, essa intensa actividade florestal gerava, e gera, um conjunto de sub-produtos, desperdícios, designadamente decorrentes do abate, mas também do desbaste, aos quais se impunha dar um destino. A instalação da “Central de Biomassa”, como habitualmente é designada, foi uma resposta certa e pioneira, à época. Posteriormente, note-se, surgiram outras,

Os responsáveis da Central de Mortágua não têm dúvidas de que a sua entrada em funcionamento veio trazer valor aos resíduos florestais. «Esta biomassa é valorizada em termos económico», sublinham, apontando os 30 camiões que, em média, descarregam diariamente na Central. A valorização energética da biomassa florestal residual tem impacto a vários níveis. «É fundamental para o cumprimento dos objectivos climáticos e redução das emissões de CO2 e tem, ainda, impacto positivo na economia local e emprego», referem os responsáveis. «Não menos importante» é o facto de «contribuir significativamente para reduzir os riscos associados aos incêndios florestais, pois induz boas práticas de gestão florestal», adiantam. Contas feitas, «a Central de Mortágua contribui para a preservação do ambiente evitando a emissão de 29.000 toneladas de CO2 por ano e para a redução do risco de incêndio florestal, retirando das matas 120.000 toneladas de biomassa por ano», concretizam.

Ao longo de mais de duas décadas de funcionamento, a Central Termoeléctrica foi sendo alvo de algumas alterações e investimentos «para assegurar e melhorar determinados níveis de eficiência», com destaque para o investimento feito na caldeira e no precipitador electroestático. Em 2017, a unidade industrial também sofreu o impacto do violento incêndio de 15 de Outubro, que afectou particularmente o sistema de alimentação de biomassa à caldeira, que foi totalmente renovado.

A Central de Biomassa representa 28 postos de trabalho directos «e muitos mais indirectos», nomeadamente ao nível da recolha e transporte da biomassa florestal. Para o futuro estão «em estudo diversos cenários», refere a empresa, embora considere ser muito cedo avançar com «mais detalhes».

18 Central de Biomassa 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Central permite retirar 120 mil toneladas de biomassa por ano da floresta
Por dia, em média chegam à Central Termoeléctrica do Freixo cerca de 30 camiões carregados de resíduos florestais

MEDICAMENTOS PARA O MUNDO

1998 FHC Farmacêutica inicia a sua actividade. Hoje, o grupo ocupa um lugar cimeiro no sector farmacêutico nacional e está presente em todas as etapas do ciclo de vida do medicamento

Com «mais de 1.000 produtos de marca própria», o Grupo FHC Farmacêutica opera em 65 países, distribuídos pela Europa, África, América Latina e Ásia. É o mundo como horizonte de um projecto que tem a sua pedra angular assente em Mortágua. Um grupo que cresceu, criou e integrou outras empresas, «mantendo a identidade de cada marca», e hoje está «presente em todas as etapas do ciclo de vida do medicamento».

Na base está, em 1998, a criação da empresa FHC |Farmacêutica, que nasce com um foco no continente africano, «onde fomos pioneiros na criação de parcerias estáveis, no âmbito da exportação de medicamentos e meios médicos», explica fonte do grupo. Joaquim Chaves e Luís Pedro Simões foram os obreiros do projecto. O primeiro, com um vasto know how no sector farmacêutico, percebeu a janela de oportunidade. África, sobretudo Angola, revelou-se o mercado ideal para o fornecimento de produtos farmacêuticos.

Rapidamente o negócio cresceu e ganhou escala, com a necessidade de ampliar as instalações e a capacidade de armazenamento, que acontece em 2003, mas ainda longe da produção. Um passo, gigantesco, que se verifica em 2005, com a FHC | Farmacêutica a proceder à aquisição dos Laboratórios Basi e a transferir a produção de medicamentos de Coimbra para Mortágua. Assistia-se ao início de um novo ciclo, com o desenvolvimento do processo industrial. No Parque Industrial Manuel Ferreira Lourenço instalava-se a primeira unidade dos Laboratórios Basi, dedicada à produção de cremes, semi-sólidos e xaropes. Em 2019, fica pronta a segunda unidade, vocacionada para a produção de injectáveis, que representou um investimento de 45 milhões de euros e a criação de «mais de 220 postos de trabalho». Actualmente, as duas unidades industriais ocupam mais de 27 mil m2 e um total de 270 colaboradores.

«O portfolio Basi inclui medicamentos, dispositivos médicos, suplementos e dermocosméticos, abrangendo 17 áreas terapêuticas diferentes», que contemplam desde as doenças cardiovasculares, endócrinas, respiratórias, do sistema digestivo e do sistema nervoso central, afecções cutâneas, anti-alérgicos, suplementos alimentares, cosméticos, dispositivos médicos, entre outros. São «mais de 240 produtos farmacêuticos registados», entre injectáveis de pequeno volume, injectáveis de grande volume, gel, cremes, pomadas, xaropes, soluções orais e suspensões orais, soluções cutâneas e enemas. Portfolio em «rápido e constante crescimento para dar resposta às necessidades dos parceiros e clientes».

A capacidade produtiva instalada, ao nível de semissólidos e líquidos (xaropes, soluções e suspensões orais, soluções cutâneas, cremes, gel, enemas e pomadas) cifra-se em «cerca de 65 milhões de unidades/ano». Relativamente aos injectáveis de pequeno e grande volume a capacidade de produção anual ronda as «150 milhões de unidades».

Aposta na investigação

A investigação e desenvolvimento constitui «uma área estratégica do grupo», assumida pelos Laboratórios Basi, com a inovação a representar «um pilar da sua actividade», num registo de «colaboração estreita com outras empresas de investigação e desenvolvimento, com centros de I&D e universidades de renome internacional».

«Os Basi e o FHC Group têm assumido continuamente actividades de R&D como uma área estratégica do grupo, sendo a inovação um pilar importante da sua actividade, que permitiu criar um portfolio robusto de medicamentos para necessidades médicas essenciais», afirma Catarina Cardoso, directora de Investigação, Desenvolvimento e Inovação (R&DI) dos Basi. «Estamos em posição de participar e investir activamente em áreas terapêuticas com maior impacto na qualidade de vida das pessoas, como a oncologia e imunoterapia», adianta.

É nessa linha que se enquadram os mais recentes desafios lançados pelo grupo, que passam por «um acordo de investimento com a start-up TargTex», para «desenvolvimento de um novo tratamento para tumores cerebrais». Referência, ainda, ao projecto Basi Innov.Bio.Tech, que junta os Basi à consultora de inovação Beta-i, «num programa de inovação aberta, que desafia “start-ups” de todo o mundo na área da Pharma & Healthcare a unir forças com a farmacêutica portuguesa para o desenvolvimento de projectos-piloto nas áreas de oncologia e imunoterapia». «Acreditamos que várias oportunidades para a próxima geração de cuidados de saúde podem ser aceleradas e alcançadas através da relação estreita com outras empresas, grupos de investigação inovadores, com ideias disruptíveis, centros de I&D e universidades», considera Catarina Cardoso.

20 Farmacêuticas 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Grupo FHC Farmacêutica assegura desde a produção à distribuição de medicamentos

Da produção à entrega

Com pilares assentes a montante e a jusante, ou seja, ao nível da produção e da exportação, o grupo farmacêutico desenvolveu todo um outro conjunto de respostas “intermédias”, que lhe permitiram acompanhar todo o ciclo de valor do medicamento. Destaque especial merecem os circuitos de distribuição, assegurados pela Empifarma e pela OverPharma. A primeira opera exclusivamente no mercado farmacêutico nacional. Com sede em Montemor-o-Velho, dispõe de duas unidades logísticas «dotadas de elevada automação e tecnologia», a primeira instalada em Montemor e a segunda, mais recente, em Famões (Lisboa), criada com o objectivo de facilitar os circuitos de distribuição para toda a região Sul. «É o distribuidor “fullliner” do grupo Future Health Care, a operar exclusivamente no mercado farmacêutico nacional», refere. A Empifarma trabalha com 2.925 farmácias em todo o território nacional e com 400 parafarmácias e clínicas. Garante a entrega de fármacos, duas vezes por dia, a um universo de 326 clientes.

Vocacionada para «actuar no mercado hospitalar nacional e ser um parceiro integral do Serviço Nacional de Saúde (SNS)», está a Overpharma, uma empresa criada em 2002. «O seu portfolio de medicamentos é vasto, integrando a distribuição dos produtos de produção interna do grupo, bem como de outros parceiros. No segmento de dispositivos médicos é um parceiro de preferência no fornecimento a muitos hospitais públicos e privados de soluções clínicas nas áreas de cirurgia da coluna, oftalmologia, neurocirurgia, tecidos biológicos, endovascular e tratamento de feridas, proporcionando as melhores soluções aos profissionais de saúde», destaca o grupo.

A presença internacional directa é feita através de um conjunto de empresas, nomeadamente a Laphysan, em Espanha; a Mozpharma em Moçambique; a Saluspharma em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau; a Guinepharma na Guiné Equatorial e com a SVP Pharma no Reino Unido. «A FHC | Farmacêutica estabeleceu parcerias internacionais de distribuição, comercialização e licenciamento desde a sua fundação, em 1998», esclarece o grupo.

Referência, ainda, para outras empresas, com a Phagecon, que trata de componentes de carácter mais formal, e presta serviços ao grupo e a terceiros, designadamente contactos com o Infarmed, registo de medicamentos e auditorias. A Zeone Consulting assegura, por seu turno, a componente administrativa, de apoio jurídico e área dos recursos humanos.

Com mais de 600 colaboradores, o grupo FHC |Farmacêutica assume uma evolução «consistente e sustentada», alicerçada num conjunto de «valores», onde pontuam a «confiança, ética, inovação, coragem e agilidade». Em 2021 surge uma «imagem comum para todas as empresas do grupo, mantendo a identidade de cada marca, sob a assinatura FHC Group – The Future of Health Care».

«Presente em toda a cadeia de valor do medicamento, desde a investigação até à produção e distribuição», o grupo considera que está «apto a iniciar o processo de internacionalização».

A escassez de mão-de-obra qualificada é uma constatação real e «uma dificuldade para podermos evoluir mais rapidamente». Diagnosticado o problema, o grupo procurou, mais uma vez, encontrar uma resposta. A solução está na FHC Pharma Academy, um projecto que arrancou nos finais do ano passado e que, numa primeira instância, procura dar resposta às necessidades internas das diferentes empresas do grupo, valorizando os colaboradores, desenvolvendo as suas competências. Uma formação muito específica, com os percursos formativos identificados e ajustados ao sector da indústria farmacêutica, contemplando as mais diversas áreas, desde a produção, à logística e distribuição. Um processo que envolve parcerias com várias entidades, designadamente universidades e que, além das necessidades internas, poderá ser alargado ao exterior.

A Academia está fisicamente instalada em Mortágua, mas possui uma plataforma de formação que permite o acompanhamento à distância para os colaboradores que não se encontram na sede do grupo.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Farmacêuticas 21
FHC Pharma Academy responde à falta de mão-de-obra qualificada
Tecnologia de vanguarda garante uma resposta de excelência em termos de produção

APOSTA NA TECNOLOGIA DÁ MAIS COR À SAÚDE

O filho, Amílcar Ferraz, «redefiniu o paradigma da indústria farmacêutica ao priorizar a modernização dos equipamentos, os avanços tecnológicos e o desenvolvimento de conceitos científicos inovadores». Significa que, além dos suplementos alimentares, a «Labialfarma passa a produzir medicamentos, cosméticos e dispositivos médicos». À área nutracêutica, de origem, junta-se a área farmacêutica e a internacionalização. Um desafio que a terceira geração da família continua a assumir, com Daniela, Miguel e Pedro Ferraz a começarem, já no século XXI, a trabalhar ao lado do pai, dando continuidade ao «legado do avô» e com vontade de «desafiar os limites».

1981 Labialfarma começa, em 1981, a produzir suplementos alimentares. Hoje são quatro empresas na indústria farmacêutica e nutracêutica. Um projecto familiar que vai na terceira geração

José Ferraz palmilhou terreno e abriu caminho. A segunda geração da família seguiu o exemplo e consolidou o projecto. A terceira continua no mesmo trilho, mas alargou os horizontes e multiplicou os desafios. Falamos da Labialfarma, uma empresa familiar dedicada aos sectores farmacêutico e nutracêutico. Com mais de 40 anos de experiência, assume que a sua missão «sempre foi melhorar a qualidade de vida das pessoas», o que passa pelo desenvolvimento de «tecnologias únicas na indústria» que «permitem fabricar produtos excepcionais». “Giving color to Health / Dar cor à Saúde” é o lema escolhido para 2022. Um desafio assente numa «equipa de cientistas, criativos, especialistas e inventores que trabalham diariamente com muita energia e vontade de surpreender».

Um desafio que começou em 1981, com o nascimento da Labialfarma, na localidade de Felgueira, terra natal de José Ferraz,

pai do actual CEO do grupo, Amílcar Ferraz, e avô do director geral, Miguel Ferraz. O primeiro laboratório dedicado à produção de suplementos alimentares líquidos tinha uma longa história por detrás. «Autor de livros, estudioso das plantas, defensor de métodos naturistas e de um estilo de vida saudável», José Ferraz começou, nos anos 60, a construir uma vida em Angola, com a fundação da associação SANA – Sociedade Angolana de Naturologia, que «preconizava os princípios naturistas e uma alimentação ovo-lacto vegetariana». Entre outras propostas, disponibilizava «tratamentos de fisioterapia, cursos de alimentação saudável, suplementos alimentares, chás, etc. Tendo como base a norma hipocrática “que o teu alimento seja o teu medicamento”».

Regressado a Portugal, José Ferraz começa por ter uma clínica em Viseu. Mais tarde, na Felgueira, abre a SANA, que passou, posteriormente, a chamar-se Labialfarma.

Em 1981, ano da sua fundação, a Labialfarma dispunha de um laboratório onde se produziam suplementos alimentares líquidos e, pouco depois, desenvolveu capacidade para produzir outras formas farmacêuticas.

A âncora de um projecto que tem crescido em dimensão, capacidade inovadora e afirmação nacional e internacional.

«Ao incluir a componente farmacêutica, a Labialfarma ganhou notoriedade e colocou o seu foco no desenvolvimento de tecnologias de ponta e na obtenção de certificações, de modo a assegurar a qualidade máxima de todos os seus produtos». Significa que, apesar do cumprimento rigoroso de todas as normas e boas práticas de fabrico, «a área farmacêutica veio elevar o nível de percepção da qualidade e importância dos suplementos em Portugal», tendo em conta que «noutros países já existia uma cultura nutracêutica bastante enraizada», refere o grupo. Desta forma, «a expansão da Labialfarma e a sua internacionalização uniram as áreas nutracêutica e farmacêutica e fecharam o eixo dos três pilares fundamentais: alimentação, suplementação e medicação».

À Labialfarma, uma empresa CDMO (Contrat and Development Manufacturing Organization – fabricante para terceiros) de suplementos alimentares, medicamentos, dispositivos médicos e cosméticos, produtos que «têm a marca dos clientes», seguiu-se a criação de mais três empresas e a constituição do Ferraz Group. A LiqFillCaps, criada em 2003, é especializada na produção de cápsulas duras e moles com conteúdo líquido. Em 2012 surge a Ferraz Sciencis, que garante os serviços de suporte científico e regulamentar, farmacovigilância e vigilância pós-comcercialização de suplementos alimentares. A Ferraz Pharma nasce em Santa Comba Dão (2019), com uma nova unidade de desenvolvimento de produtos para saúde animal e produtos à base de cannabis e distribuição por grosso.

Para assumir a disponibilização de pro-

22 Farmacêuticas 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Inovação é uma das referências do grupo, que aposta na produção para terceiros

dutos “chave na mão”, a Labialfarma «garante o acompanhamento de todos os processos, desde o desenvolvimento de uma ideia original, passando pela produção, criação de packaging, apoio regulamentar e distribuição», sem esquecer os serviços de farmacovigilância (monitoriza segurança dos medicamentos) e o sistema “VIGIA” (monitoriza suplementos alimentares).

A produção, destinada a terceiros (contrat manufacturing) inclui «produtos para o bem-estar físico e mental, nomeadamente ao nível articular, muscular, cognitivo, produtos de emagrecimento, suporte da performance física e manutenção dos sistema imunitário, entre muitos outros. A nível das áreas terapêuticas, produz medicamentos que vão desde os analgésicos, antipiréticos, expectorantes, passando por anti-histamínicos e laxantes, até aos antiinflamatórios não esteróides e medicamentos para tratamento da artrose. A oferta inclui, ainda, dispositivos médicos, produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos de diagnóstico, biocidas, chás, infusões, novos alimentos e ingredientes

alimentares (novel foods) e alimentos compostos complementares para animais (ACCs).

O Departamento Galénico constitui o centro nevrálgico, o laboratório de investigação e desenvolvimento (I&D), que «reúne uma equipa extraordinária de profissionais qualificados, talentoso e criativos», que «criam e desenvolvem fórmulas e conceitos absolutamente inovadores e respondem a muitos desafios da indústria».

Um exemplo está nas cápsulas “SelfCapsTM” que «permitiu ultrapassar a dificuldade em garantir a biodisponibilidade dos produtos com base lipídica, isto é, de natureza oleosa». Outra tecnologia exclusiva é a QNP TM, que «consiste na substituição do ar presente no interior das cápsulas, saquetas, frascos, ampolas e blisters por uma atmosfera protectora de azoto», que garante a «preservação das características organoléticas, melhorando a estabilidade do produtos e permitindo o alargamento do seu prazo de validade».

Um dos principais projectos do grupo centra-se na saúde animal e desenvolvimento de produtos medicinais à base de cannabis (Ferraz Pharma). A «médio prazo», um dos grandes objectivos é a expansão da unidade de Felgueira, «numa perspectiva de crescimento e ampliação das instalações e equipamentos».

O Ferraz Group conta com 430 colaboradores. Portugal é o principal mercado, mas 23% do negócio é representado pelo mercado internacional, com a presença em 45 países.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Farmacêuticas 23

ARTE DO AZULEJO MANUAL

a solidez e a água que queremos», adianta o responsável pela produção. A viagem do barro continua, com o “charuto” a entrar numa “galga”, equipamento que obriga a “massa” a estender-se, formando uma placa macia e sedosa, a “lastra” do azulejo.

2014 New Terracota arranca em 2014. Mais do que uma fábrica, é um atelier onde o azulejo ganha forma e cor. Um trabalho artesanal que afirma Portugal nos quatro cantos do mundo

Jorge Gomes está a rebarbar uma peça. Usa uma espécie de esfregão de cozinha para retirar o barro remanescente. Acontece quando as peças são conformadas à mão. São peças delicadas. Umas em forma de “L”, outras de “V”. Fazem a dobragem e a esquina. Peças que, além de serem feitas à mão, são “coladas” de forma igualmente manual, com recurso a barro líquido. Um trabalho moroso, delicado e exigente que Jorge Gomes faz com gosto, com a minúcia e a paciência de quem trocou a farinha e o açúcar pelo barro. Sim! Jorge foi pasteleiro durante 34 anos. «Cansei-me dos doces, queria fazer uma coisa diferente», conta. Os ingredientes são diferentes e o resultado final está a anos luz dos bolos que preparou durante uma vida. Mas há semelhanças. Ambos, exigem paixão, perícia, paciência. «Aproveitámos as características do Jorge», explica Paulo Calado, director técnico da New Terracota. Uma empresa instalada no Pólo Industrial de Borregão, na Marmeleira, que elegeu a tradicional arte de fazer azulejos como o seu “core business”. Apostou no saber-fazer artesanal, conquistou arquitectos

de referência e exporta 80% da produção.

A Jorge Gomes juntam-se muitos outros artesãos. Regina está na secção de pintura e, usando a técnica de “mão levantada”, pinta um azulejo de um conjunto de peças denominado “Ponta de Diamante”. O desenho, picotado em papel vegetal, foi “passado”, com a ajuda de pó de carvão, para o azulejo. Regina usa uma tinta lilás que, depois de cozida fica azul. «São os milagres da cerâmica», brinca.

Estamos quase no final da linha, embora ainda haja um longo caminho a percorrer. Um percurso que começa muito antes, no pólo A 1 da empresa. Um mundo onde o pó, o barro, ganha forma. Conformado à mão, transforma-se em azulejo.

Raquel não trabalha com barro, mas com gesso. Na secção de moldes, prepara gesso e água. Mistura, primeiro de forma manual. Depois, com a gigante “varinha mágica”. Espera rigorosamente sete minutos e coloca a mistura líquida na estrutura, já preparada, onde o molde ganha forma.

Mais adiante estão os “big bag” contendo o barro atomizado. «É diluído em tanques, durante três horas e fitoprensado». O barro líquido entra nos filtros e as bombas pneumáticas exercem pressão, de forma a escorrer a água, explica Paulo Calado. Duas, duas horas e meia depois as “bolachas” ou “discos” estão prontos. São “rodelas” de barro, que seguem para uma amassadeira ou “fieira”, de onde sai um cilindro de barro, denominado “charuto” ou “tarugo”. «Já tem

Lúcia Jordão coloca a “lastra” num molde de 14X14. Antes, “polvilha” com barro em pó. Um gesto muito importante no processo de manufactura New Terracota. Permite evitar que o barro agarre em demasia, mas, sobretudo, «dá um efeito de “tardoz”», um toque especial a cada peça. Lúcia agarra num tijolo e “esmaga” a lastra, obrigando o barro a ocupar todos os alvéolos. Depois, com uma corda de piano tira o remanescente do barro e, com uma faca, tira as aparas. Com um pulverizador humedece o barro, o que permite, usando uma esponja, alisar completamente a superfície. Falta retirar os azulejos em cru do molde e colocá-los um a um numa tábua, onde iniciam o processo de secagem. «Ficam aqui uns dois dias, até adquirirem a consistência necessária para se poder pegar neles e sobrepô-los», esclarece Paulo Calado. Ao lado, Cristina faz um azulejo rectangular. Os passos são precisamente os mesmos, só que aqui, em vez de seis, é feito um azulejo de cada vez. «As peças longas são mais sensíveis».

Algumas peças são feitas de raiz com o formato final, mas boa parte passa pela secção de corte, depois da primeira secagem. Numa das linhas está um molde hexagonal. Noutra estão a ser feitos losangos. «Cada metro quadrado tem 320 peças», diz Rosa. «O corte geométrico só usa peças conformadas à mão», adianta Paulo Calado.

Nas prensas fazem-se peças volumétricas, 3 D, segundo o molde escolhido. Um processo mais maquinal, mas «a peça é sempre extraída à mão e rebarbada à mão».

«Nenhuma peça é igual. Isso é que é giro», afirma, com satisfação, Paulo Calado, engenheiro com uma larga experiência no sector cerâmico, que trocou o sector dos revestimentos para apostar na manufactura da empresa da Marmeleira.

Depois de secas, as peças são sujeitas a uma primeira escolha – detecta defeitos ou peças partidas - colocadas nas “vagonas” com capacidade para 80 m2 e aguardam entrada para o forno. São três fornos, onde as peças cozem a uma temperatura de 1.060º durante oito horas. Depois, ficam 30 horas a arrefecer, após o que «cada peça é “tenida”, ou seja, tocada por outra. «Se

24 Cerâmica 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
O traço artesanal, com uma forte intervenção humana, constitui a marca diferenciadora

cantar, está boa. Se cantar ao choco vai para a reciclagem», afirma.

Consoante o formato e o tamanho, as peças são separadas, uma por uma e colocadas em paletes. Está cumprida uma parte do ciclo de produção. Do pó chegou-se à chacota, o barro cozido. «Pode aplicar-se assim e cada pessoa coloca o que entender para maior impermeabilização», explica Paulo Calado.

Vidragem e decoração

No pólo 2 a produção começa com o stock de “chacota” em armazém. A vidragem é o próximo passo. São quatro linhas. Um “front office” que tem, por detrás, um laboratório onde se afinam os procedimentos, doseiam as quantidades, definem as densidades e se selecciona a paleta de cores.

Rodrigo limpa e escova cada uma das peças. Um soprador, no início da linha, tira o restante pó, mais fino. A peça passa por água. «A água é uma espécie de “prego”, que ajuda o “engobe” a aderir», diz o director da fábrica. A “engobagem” é a primeira operação, que «confere um aspecto branco à peça e vai dar opacidade ao vidro». A peça continua a “correr” na linha. O engobe seca e o azulejo leva um segundo banho, agora de vidro. Um líquido que apresenta uma cor cinzenta, mas que depois de passar por uma temperatura de 1.005º se transforma num verde deslumbrante. No final da linha, as peças são “engazetadas”, colocadas nas “gazetas”. «Não há contacto da gazeta com o vidro, só com a chacota», adverte. Daqui vão para o forno.

Mas há peças que, pela sua configuração, não são passíveis de entrar na linha de vidragem. A alternativa é a vidragem manual, “vidrar à malga”, que Joana cumpre. Com cuidado, Sónia limpa a parte de trás das peças e coloca-as nas gazetas. Estão prontas para ir ao forno. Oito horas e, depois, 30 para arrefecimento.

Prontas para entrar no forno estão, igualmente, as peças produzidas no atelier de serigrafia e pintura manual. Regina usa a técnica de pintura à mão levantada, mas são usadas outras, como a que confere relevo à peça, a estampagem ou a serigrafia, em campo cheio ou com a cor a preencher apenas uma parte da peça. Quando são retiradas do forno as peças são sujeitas a um processo de escolha. Depois, acondicionam-se, consoante o tipo, o tamanho, o formado, o vidrado e a cor e procede-se ao respectivo embalamento. Estão prontas para partir e cumprir a sua função.

Nascer com vocação exportadora

Gestora, habituada a trabalhar com multinacionais, Isabel Cymerman criou uma empresa (Cascais), que representava materiais exclusivos, feitos à mão, de diversos países. Faltava-lhe o azulejo português. Encontrou a resposta em Mortágua, no artesão Álvaro Afonso. Mas, «precisava de uma coisa mais elaborada». «Em 2012 peguei numa mala, tipo Linda de Suza, e fui para Paris». Levava um pacote de produtos que mostrou a arquitectos de renome. «Percebi que tinha um produto giríssimo. Nesse dia disse ao Carlos (marido), que queria fazer uma fábrica», conta.

A escolha recaiu em Mortágua. Estava ali o primeiro artesão, «os fornecedores num raio de 50 km» e «perto da mão-deobra». Não que existissem mais artesãos, apenas Álvaro Afonso, que foi o mestre. «Começámos com uma pessoa, hoje somos 88». Pessoas, a maioria jovens, homens e mulheres, que trabalhavam em lares, nas limpezas ou noutras unidades fabris. A formação foi e é a pedra de toque. O resto “bebe-se” no ambiente, na cultura da New Terracota. Uma empresa «pequena, mas aberta ao mundo», “com alma”, onde se fazem produtos de excelência, destinados a «clientes excepcionais».

«O objectivo sempre foi fazer azulejo e cerâmica com terracota, com uma estética pura…», refere a gestora, que defende peças «autênticas e com um sentido estético muito apurado». Um registo onde cabe o século XXII e o século XVII, se for o objectivo. Um e outro exigem «estudo, conhecimento, aplicação».

«Fazer uma coisa bem portuguesa» e levá-la ao mundo foi o desígnio que levou

Isabel Cymerman a avançar com a fábrica, que arrancou em 2014. «Começámos com 600m2». Hoje são 7.000m2. 80% da produção destina-se a exportação. «Sempre foi assim, nunca tivemos menos de 70%». A Europa é o grande destino, sobretudo Reino Unido, França e Holanda». Há projectos com o Médio Oriente, EUA e Austrália. Menos na América do Sul e África.

A New Terracota foi considerada a «empresa de cerâmica mais sustentável do mundo», que ditou o convite, em 2018, para a presença na World Expo Dubai 2020. A empresa de Mortágua imprimia a sua marca no primeiro Museu da Sustentabilidade do mundo, com «quase 800 m2 de azulejos». «É uma obra emblemática», diz a responsável.

No Vale do Borregão, o espaço foi crescendo e do primeiro pavilhão passou-se ao segundo. «As obras nunca acabam», afirma Isabel Cymerman. «Somos muito pragmáticos e cautelosos. Só fazemos à medida das nossas possibilidades».

Uma das preocupações é de «dar condições às pessoas» e «aproveitar o seu potencial». A zona social é exemplo desse cuidado. O horário de trabalho começa às 9h00 e não às 8h00, como é comum e não há turnos. «Isto não é fábrica!», diz Isabel Cymerman. «As pessoas têm noção que o seu papel é imprescindível no processo produtivo. Isso só se consegue com uma empresa manual. Numa fábrica industrial não seríamos tão bons», considera a gestora, sempre pronta para encarar novos desafios. «Se tivermos capacidade, fazemos tudo o que tem a ver com cerâmica», diz.

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PEDALAR VELOZ PARA CORTAR A META

«vencer etapas» em provas nacionais e internacionais e a «dar luta» na Volta da Portugal. «É uma equipa com mais consistência e com resultados de relevo», diz o vicepresidente do Velo Clube e também director desportivo, que considera essa boa performance o resultado de «muitos anos de trabalho», desenvolvido pelo pai e pela mãe, Leonor Silva, presidente do Velo Clube, que «sempre lutaram para termos as melhores condições».

O ano passado, 2021, «foi um ano agridoce. A nível desportivo foi o nosso melhor ano de sempre, mas perdemos o meu pai, o mentor do projecto», diz emocionado, lembrando a promessa que mãe e filho fizeram de levar o projecto para a frente. «É isso que estamos a fazer». Uma prova de fogo em que mãe e filho se empenharam. Um desafio que se estendeu à “família” TAVFER-Mortágua-Ovos Matinados, que «talvez contra as expectativas de muita gente, voltou a dar cartas», prova de que «a nossa forma de trabalhar dá frutos».

1999 Mortágua Clube Duas Rodas nasce em Mortágua. Pedro Silva, antigo corredor, cria uma escola que dá cartas e, depois de um vasto palmarés de vitórias, ascende, em 2018, ao escalão maior do ciclismo nacional

Terminada a carreira como ciclista, Pedro Silva (1967-2021) empenha-se na concretização de um sonho: criar uma escola de formação. Um projecto que nasce em 1999 na sua terra natal, Mortágua, com a designação de Mortágua Clube Duas Rodas, hoje Velo Clube do Centro. «Começámos com camadas jovens, até aos sub 23», explica o filho, Xavier Silva. «Os resultados começaram a aparecer», com a equipa a conquistar títulos no campeonato nacional, na Taça de Portugal, em competições e fundo e contra-relógio, em várias categorias.

«A equipa foi crescendo» e, na retaguarda, crescia, igualmente, a estrutura de apoio, com mais e melhores corredores e «uma boa organização» em termos técnicos e logísticos. Em 2010 a equipa passa a ser só de sub 23 e «afirma-se como uma das melhores equipas de formação existentes em

Portugal». Com orgulho, o também antigo ciclista, que herdou do pai esta paixão, recorda que Pedro Silva era reconhecido por «formar campeões».

Uma cavalgada de sucesso que permitiu que, em 2018, «o pai concretizasse um dos seus maiores sonhos: passar a equipa para o estatuto profissional». Significa um virar de página e entrar na «primeira liga do ciclismo nacional, com o estatuto de equipa continental». Novos voos se anunciavam para a equipa, que passava a ter acesso à Volta da Portugal, ao calendário nacional de provas e a provas internacionais. «Foi um marco histórico», sublinha. Pela primeira vez, uma equipa do interior do país participava na Volta a Portugal e levava o nome de Mortágua ao peito. Xavier Silva faz questão de lembrar que, «desde a primeira hora, o município de Mortágua sempre apoiou o projecto. Miranda-Mortágua foi a equipa (cuja designação varia de acordo com os principais patrocinadores) que, em 2018 entrou no circuito profissional do ciclismo nacional. E continua, agora com a designação TAFVER-Mortágua-Ovos Matinados.

Desde 2018 no escalão profissional, «os resultados têm aparecido ano após ano», diz Xavier Silva, que destaca o aumento qualitativo que se faz sentir, com a equipa a

Sinal disso foi o facto de a equipa «entrar a vencer» na primeira prova da temporada, disputada em Aveiro. Logo a seguir veio a Volta ao Algarve, onde vestiu a “camisola azul”, «mais um marco histórico». Na Volta ao Alentejo foi somada mais uma vitória numa etapa, resultados que se repetiram noutras provas internacionais, com uma presença na frente e a ganhar etapas.

Reforçar a equipa

O Velo Clube do Cento encarou de frente esta nova etapa, com a “família” a reforçar-se com um novo director desportivo. Com satisfação, Xavier fala de Gustavo Veloso, um «nome sonante no ciclismo», vencedor de duas Voltas a Portugal. «É a pessoa indicada para este cargo, porque defende os mesmos ideais que o meu pai», diz. O espanhol, há 10 anos em Portugal, deixou as corridas em Setembro do ano passado, depois de «uma excelente carreira». «Poucos dias depois, conversei com ele e começámos logo a trabalhar», afirma, lembrando que uma época não se prepara em duas ou três semanas, antes exige tempo e cuidado, pois é necessário organizar estágios, definir o perfil dos corredores para cada uma das provas e tratar de uma vasta componente logística, sem esquecer a preparação dos atletas. Um trabalho que começou em Setembro e que dá solidez e segurança à equipa. «Temos condições que outras equi-

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Equipa de Mortágua foi a primeira na região a obter o estatuto profissional

pas não têm, graças ao esforço feito pelo meu pai, e isso reflecte-se nos resultados», considera, satisfeito com a união, o espírito de família, o “bom balneário” que define a equipa TAVFER-Mortágua-Ovos Matinados. Confiante, admite a existência de «condições e excelência para elevar a equipa a um patamar cimeiro».

Por isso acredita que este poderá ser o ano de concretização de outro sonho de Pedro Silva e chegar à meta em primeiro numa das etapas da Volta a Portugal. «Já fizémos todos os lugares do “top 10”, mas falta-nos vencer uma etapa». Um sonho que a equipa quer concretizar.

Ainda este ano, no final da época, o objectivo é avançar para patamares internacionais. A Volta à Eslováquia, a Volta à Roménia, a Tour do Luxemburgo e a República Checa são possibilidades em análise.

Além da equipa profissional, o Velo Clube do Centro tem um equipa de lazer, com cerca de duas dezenas de atletas, que participam em eventos não competitivos. Unicamente pelo prazer de pedalar envergam as “cores” do clube.

“Uma grande família”

A equipa TAVFER-Mortágua-Ovos Matinados é constituída por 11 corredores, cada um com as suas particularidades. «10 atletas é o número mínimo em equipas profissionais». A equipa de Mortágua tem mais um, mas tem um atleta – João Matias (sprinter) – que integra o programa olímpico e a selecção nacional de pista, compromissos» que o “afastam” da equipa.

Por norma, em cada corrida podem participar um máximo de sete corredores. Tendo em conta que as provas nacionais envolvem 85 dias de competição, esta margem permite “rodar” a equipa e usar, em cada momento, os atletas com melhor performance e evitar um desgaste mais intenso de cada corredor, pois, «apesar de profissionais, são seres humanos».

Além de João Matias (sprinter), a equipa inclui António Barbio (completo), Bruno Silva (trepador), Francisco Morais (puncheur), Gonçalo Amado (completo), Gonçalo

Carvalho (trepador), Pedro Pinto (rolador), todos portugueses. Os estrangeiros são Angel Sanchez (rolador), de origem espanhola, o colombiano Nicolas Saenz (trepador) e Leangel Linarez, um sprinter venezuelano, que Pedro Silva descobriu em 2019. O corredor veio como refugiado para Espanha e em 2019 participou na Volta a Portugal e por cá ficou, a convite do então director. «É um dos melhores sprinters actualmente em Portugal», garante Xavier.

De origem espanhola, mas há 10 anos em Portugal, está o director desportivo, Gustavo Veloso, bem como o médico Xoán Bastida, em funções desde 2019. «Uma pessoa muito experiência e dedicada», sublinha. Gaspar Silva e José Leite são os massagistas de serviço e para tratar das máquinas estão João Carvalho e Hélder Silva. Este último conhece particularmente bem as exigências das bicicletas, uma vez que fez parte da equipa, como corredor, até 2003/2004. «É uma grande família, onde toda a gente é profissional e dá o seu melhor. Só assim é que as coisas podem andar para a frente», considera.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Ciclismo 27

Ciclismo 90 anos com Mortágua

Pedro Silva: o mentor do projecto

Pedro Silva, natural da Gândara, Mortágua, foi um dos melhores corredores na década de 90. Um dos grandes “sprinters”, que envergou a camisola das mais credenciadas equipas do ciclismo nacional, desde o Sangalhos-Recer, Lousa-Vigor, Louletano-Vale do Lobo, Recer-Boavista, Sicasal-Acral, LA Alumínios-Pecol. Somou 105 vitórias, 12 das quais em etapas da Volta a Portugal, onde conquistou quatro “camisolas verdes”. Participou em provas do calendário internacional e no Campeonato do Mundo.

Uma carreira fulgurante, que começou praticamente por acaso. Xavier Silva, o filho, conta que o pai usava a bicicleta como meio de transporte para as obras, onde trabalhava. Todavia, de quando em vez pegava na bicicleta e participava em circuitos, na zona de Sangalhos (Anadia), onde era frequente a organização de corridas, sempre na mais completa descontracção. Mas a prestação deu nas vistas. «Perceberam que ele tinha muito potencial». Mesmo

sem preparação, sem treino e sem uma bicicleta à altura, perfilava-se na linha da frente e disputava a vitória.

«Responsáveis da equipa do Sangalhos convidaram-no a fazer uma época pelos amadores», recorda. Isto acontece em 1985. Pedro Silva tinha 18 anos. «Fez uma época como amador e passou logo a profissional».

Diário de Coimbra

Em 1987, estreia-se na Volta a Portugal e consegue um segundo lugar numa etapa. No ano seguinte venceu uma etapa.

«Correu 12 anos como profissional. Entre 1991 e 1995 conseguiu os melhores resultados». Foram os “anos de ouro” de Pedro Silva, que começou o seu percurso na equipa do Sangalhos-Recer e terminou na LA Alumínios-Pecol, em 1998. No ano seguinte avança com a criação do Mortágua Clube Duas Rodas, hoje Velo Clube do Centro. Paixão e exigência juntaram-se no novo projecto, focado na formação. Pedro Silva criava a escola que não teve, a formação que lhe faltou. Entregou-se de corpo e alma ao projecto. Foi o timoneiro e presidente da equipa que, após prestações notáveis, ingressou, em 2018, na “primeira liga”do ciclismo nacional e obteve o estatuto profissional. «Era o grande sonho do meu pai. Falta cumprir outro, em sua memória: vencer uma etapa da Volta a Portugal.

Pedro Silva morreu no dia 1 de Agosto de 2021, com 54 anos. Leonor, a esposa, e o filho, Xavier, prometeram continuar o projecto. É isso que, juntos, estão a fazer.

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SERVIÇO PÚBLICO À COMUNIDADE

preços e lembra que o valor pago por km, de 51 cêntimos, remonta a 2007. A Liga está atenta. «É uma das questões sobre a mesa», diz fazendo notar que um serviço que era uma fonte de receitas está prestes a transformar-se num foco de prejuízo, que impõe, com urgência, a criação de «melhores condições por parte do Estado». Todavia, as pessoas são o mais importante e, quando precisam, os bombeiros dizem “presente”. «No ano passado transportámos cerca de 7 mil pessoas», refere.

Criada em 1923, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Mortágua prepara-se para assinalar o centenário. Um programa no qual direcção e comando estão empenhados. São 100 anos de história e de momentos marcantes.

Destaque especial merece, a 8 de Novembro de 1964, a inauguração do “novo” quartel. Um dia de festa na vila que, escrevia o Diário de Coimbra, contou com a presença, entre muitas figuras ilustras, do «sr. tenente Zeferino Barbosa Vaz e Castro, que há preciosamente 41 anos foi um dos fundadores dos nossos Bombeiros». De acordo com o jornal, Zeferino Barbosa Vaz e Castro foi agraciado com a medalha de ouro, galardão também atribuído a outras duas personalidades com um papel relevante na história da corporação: o casal Manuel Ferreira Lourenço e D. Idalina Ferreira Afonso, «doadores do novo quartel». Localizado no centro da vila, o quartel acabou por não ter espaço para crescer, ditando a necessidade de mudança. «A Câmara adquiriu os terrenos», recorda Nelson Filipe, presidente da direcção, e começou a construção do actual quartel, inaugurado em 1992. O antigo, recorda, foi adquirido pela autarquia e requalificado para a Biblioteca Municipal.

Com instalações que, não sendo novas, são operacionais, a Associação Humanitária tem um universo de 88 voluntários, aos quais se juntam 22 funcionários e cinco elementos da equipa de intervenção permanente (EIP), também eles profissionais.

Um número que, de 27 vai subir para 32, uma vez que vai avançar a segunda EIP. «Estamos a caminhar para o futuro, cada vez com mais profissionais», considera Nelson Filipe. Defensor do voluntariado, o presidente da direcção não tem dúvidas que os «profissionais são fundamentais». «Tem de haver uma “máquina”por detrás», adianta, salientando a «disponibilidade» e a «responsabilidade» como pilares essenciais dos operacionais, que funcionam 24 sobre 24 horas, prestando um inquestionável serviço público à comunidade.

«A vida dos bombeiros não é só apagar fogos», lembra o antigo bancário, que destaca os serviços de emergência e as crescentes solicitações em matéria de saúde, ditadas pela idade avançada da população. Exemplifica com o transporte para tratamentos de diálise, que só não é efectuado ao domingo, e representa «175 mil km/ano».

Mortágua, faz notar, fica a 50 km de Coimbra, de Viseu e de Aveiro, e «as viagens são sempre de ida e volta», o que representa um custo significativo, que o aumento galopante dos combustíveis torna preocupante. Apesar do apoio do município, o presidente assume que não é fácil garantir mensalmente os vencimentos e fazer face à escalada de

A corporação ainda não sente os efeitos da crise de voluntariado. «Temos mantido uma bitola razoável, diz o presidente, apontando a escola de formação, actualmente com 12 pessoas. A formação, tem sido, de resto, uma das aposta da associação. «É um investimento nas pessoas», que se reflecte na «qualidade do serviço». Todavia, também entende que o Estado tem uma palavra a dizer, no sentido de «incentivar o voluntariado», através de «algumas compensações» que ajudem a mobilizar as pessoas para esta causa. «Estamos ao serviço da comunidade, somos serviço público», sublinha.

Relativamente a equipamento, contabiliza 33 viaturas, 14 das quais são ambulâncias, com nove dedicadas ao transporte de doentes e cinco ao socorro, onde se inclui, desde há dois anos, a ambulância do INEM. Já este ano a Associação investiu na aquisição de duas ambulâncias de transporte de doentes, que representou cerca de 90 mil euros, que vão substituir outras duas, com quase 30 anos, em «fim de ciclo».

São 14 as viaturas de combate a incêndios, a mais recente adquirida há cinco anos, depois de o município ter dois ou três anos antes, oferecido outra viatura. Com uma capacidade «bastante razoável» de reserva de água, na casa dos 300 mil litros, o presidente da direcção lembra, todavia, as particularidades do território, com 88% do concelho ocupado por mancha florestal, e uma orografia complicada e que é motivo de alguma preocupação.

Nos projectos da direcção está a aquisição, para o ano, de um carro de combate multifacetado, cujo custo ronda os 250 mil euros e “inspira” uma campanha de apoio. «Este carro faz-nos falta, tendo em conta o nosso parque industrial e a área florestal», diz.

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1992 Associação Humanitária inaugura, em 1992, novo quartel. Para o ano celebra o centenário
Bombeiros Voluntários representam uma resposta pronta

CHAMAS MATAM QUATRO BOMBEIROS DE COIMBRA

dentro do autotanque, que tiveram morte imediata. Em estado grave, embora livre de perigo, ficou o bombeiro Rui Correia, de 27 anos, da Lousã.

2005 O vento forte surpreendeu os bombeiros, que combatiam um incêndio em Vale Paredes. Uma tragédia escrita com letras de morte em Fevereiro de 2005

Quatro bombeiros Sapadores de Coimbra, três residente em Almalaguês e o outro em Semide, Miranda do Covo, morreram ontem num incêndio em Mortágua. Adelino Oliveira (43 anos), José Ferreira Lapa (43 anos); Acácio Silva (28 anos) e Luís Teixeira (24 anos) foram traídos pelo vento forte quando auxiliavam bombeiros de outras corporações no combate às chamas». Na primeira página da edição de 1 de Março o Diário de Coimbra dá conta da tragédia.

As vítimas foram «apanhadas de surpresa quando as chamas irromperam, rápida e traiçoeiramente pela traseira da viatura que utilizavam para combater o incêndio. Um quinto elemento, que também estava

Diário de Coimbra acompanhou o drama que se viveu na tarde de 28 de Fevereiro de 2005 em Mortágua

na viatura, foi salvo por um jovem bombeiro voluntário da corporação de PenacovaPaulo Santos - que conseguiu arrastá-lo para fora do carro, mas não já conseguiu salvar os restantes companheiros porque as chamas depressa “engoliram” o veículo». «Isto é uma tragédia», dizia, consternado o comandante dos Bombeiros de Mortágua, Joaquim Gaspar», adianta a reportagem do jornal, assinada por José Carlos Silva, com fotos de Gonçalo Martins.

O incêndio, que deflagrou numa zona de eucaliptal, em Vale Paredes, Mortágua, por volta das 13h00, «embora de grandes proporções, estava a ser controlado pelos soldados da paz de 14 corporações», com um total de 104 operacionais no terreno e o apoio de um helicóptero. Sem habitações em risco, os bombeiros acreditavam que, mais cedo ou mais tarde, as labaredas seriam vencidas. Mas o vento, «fortíssimo», revelou-se «o pior inimigo dos bombeiros» e fatal para os quatro operacionais dos Sapadores de Coimbra, apanhados pelo fogo

«É triste perder vidas desta maneira, perder companheiros nestas circunstâncias. O pior, agora, são as famílias das vítimas, que estão desesperadas e precisam de quem as ajude», apelava, já depois do fogo extinto, por volta das 17h30, um bombeiro de Santa Comba Dão. «Não há nada que pague a vida destes homens», dizia, inconsolável, o presidente da Câmara de Mortágua, Afonso Abrantes.

O presidente do serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, Manuel Ribeiro, deslocou-se ao local da tragédia. O mesmo fez o secretário de Estado da Administração Interna, Paulo Pereira Coelho, que garantia accionar todos «os mecanismos» para apoio às famílias dos malogrados bombeiros.

O funeral das vítimas realizou-se dia 1 de Março, com os cortejos a seguirem para as respectivas localidades de residência. Antes, assistiu-se a uma cerimónia no quartel dos Sapadores. «Os bombeiros são os heróis do nosso tempo. São os que se sacrificam em nome dos outros», afirmou, emocionado, o então presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Carlos Encarnação.

Jaime Soares, presidente da Federação dos Bombeiros de Coimbra, destacou os «quatro exemplos de vida, que dignificaram o corpo de Sapadores com a sua entrega e disponibilidade». Os bombeiros do distrito de Coimbra choram. Em qualquer quartel, o coração dos bombeiros está a atravessar um dos momentos mais difíceis», afirmou.

«Estes homens morreram a servir, por causa de nós, para bem da sociedade. Deus saberá fazer as contas das vidas destes homens, saberá recompensá-los pelo muito bem que fizeram», afirmou o então bispo de Coimbra, D. Albino Cleto.

30 Tragédia 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra

TRÁGICA MORTE DE CINCO PEREGRINOS

2015 Grupo foi atingido violentamente por um carro desgovernado. Mortágua acordou no dia 2 de Maio em choque com a morte de cinco filhos da terra

Cinco peregrinos morreram ontem de madrugada na zona de Cernache, Coimbra, depois de um violento e trágico despiste automóvel.Tudo aconteceu por volta das 4h00, na zona do Orelhudo, quando um carro conduzido por um jovem se despistou logo após uma zona com separadores centrais e passou para a outra faixa, onde primeiro embateu violentamente na barreira e, depois, rodopiou, atingindo os peregrinos pelas costas. Nem se terão apercebido do que lhes aconteceu, dizia-nos um dos muitos operacionais envolvidos nas operações de socorro». Na edição de 3 de Maio de 2015 o Diário de Coimbra noticiava a tragédia que atingiu um grupo de peregrinos de Mortágua a caminho de Fátima. «Estavam a cerca de 80 km do Santuário. Quatro deles tiveram morte imediata no local, dada a violência do embate. Um outro jovem, de 17 anos, ainda foi transportado com vida para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, mas acabaria por falecer no bloco operatório», refere o jornal.

O grupo de peregrinos, composto por cerca de 80 pessoas, entr as quais se encontravam 21 escuteiros, «tinha estado a descansar durante a noite num centro de acolhimento. Dez minutos depois de terem iniciado uma nova etapa, foram albaroados por uma viatura», adianta a reportagem, assinada por João Luís Campos.

A tragédia ditou a morte de Diogo Castro Ferreira, de 17 anos, estudante, escuteiro e atleta de equipa de futebol júnior do Mortágua (que faleceu no hospital); Flávio Miguel Afonso Mira Mendes, de 18 anos, estudante e escuteiro; Heleno das Neves, de 67 anos, comerciante; Graça Paula Coelho Mendes, de 44 anos, funcionária da Câmara Municipal de Mortágua, e de Aida Maria da Silva Ferreira Nunes, de 52 anos. Peregrinos que, no mês de Maria, mantinham acesa a fé e, mais uma vez, saíram de Mortágua em peregrinação, rumo a Fátima. Um grupo muito bem organizado e expe-

riente, que usava coletes reflectores, lanternas de presença, caminhava em fila indiana, contando com o apoio dos escuteiros. Os cerca de 80 peregrinos contavam chegar domingo ao Santuário, a tempo de assistir à missa. Mas a morte surpreendeu-os, trágica, voraz, durante a madrugada de sábado, no IC2, às portas de Coimbra.

O acidente provocou, ainda, quatro feridos no grupo de peregrinos. Um jovem de 16 anos, que ficou internado nos Hospital Pediátrico de Coimbra e teve alta no dia seguinte. Internados no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) ficaram outros três sinistrados, «dois dos quais com prognóstico reservado». Também assistido no CHUC, com escoriações ligeiras, foi o jovem condutor, de 24 anos, georgiano com nacionalidade portuguesa, que foi indiciado por cinco crimes de homicídios negligente. Nas operações de socorro, refere o jornal, estiveram envolvidos os Bombeiros Sapadores de Coimbra, os Bombeiros Voluntários de Condeixa-a-Nova, o INEM e a GNR, num total de 51 elementos, apoiados por 22 viaturas.

«Foi o momento mais trágico» vivido por Mortágua, afirmava o então presidente da Câmara Municipal, José Júlio Norte, que decretou três dias de luto municipal. No dia seguinte à tragédia, Mortágua vestiu-se de luto, com o cruzeiro junto à Igreja Matriz e encher-se de velas. Na Escola Secundária Dr. João Lopes de Morais não houve aulas. Alunos, professores e funcionários juntaram-se no polivalente do Agru-

pamento de Escolas para recordarem os colegas. Colocaram velas junto ao portão da escola e plantaram duas árvores em homenagem aos dois jovens, Diogo Ferreira e Flávio Mendes.

O funeral das vítimas realizou-se no dia 5, juntando um mar de gente no último adeus aos malogrados peregrinos. «A vila parou depois do almoço e, com o comércio praticamente fechado e as escolas EB 2,3 e Secundária quase desertas, a população dirigiu-se ao quartel dos Bombeiros Voluntários, onde decorreram as cerimónias fúnebres de quatro das cinco vítimas. Um pouco antes decorrera o funeral de outra vítima, Aida Nunes, de 52 anos, que ficou sepultada no cemitério de Vale de Remígio», escreve o Diário de Coimbra na edição do dia 6 de Maio.

«O salão do quartel dos bombeiros e as ruas circundantes encheram, destacandose a presença de muitos escuteiros e estudantes a prestarem uma última homenagem aos seus colegas». Milhares de balões brancos foram largados à saída das urnas, com mensagens de dor e saudade. Um último adeus a Diogo e a Flávio.

Em silêncio, numa longa fila, Mortágua despedia-se, com comoção, dos seus filhos. Uma cerimónia à qual se juntaram peregrinos de outros municípios da região, que quiseram associar-se a este momento de dor. O vigário-geral da Diocese de Coimbra, Pedro Miranda, presidiu às cerimónias. No Santuário de Fátima rezou-se pelas vítimas mortais e pelos feridos.

32 Tragédia 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Funeral juntou um verdadeiro mar de gente no último adeus às vítimas

RESPOSTA EM DIFERENTES FRENTES

1948 A saúde, através do Hospital, inaugurado em 1948, foi a primeira valência da Misericórdia. Seguiu-se o apoio aos seniores, crianças e deficientes e nova aposta na saúde

Se as pessoas precisam, temos de ir lá». Palavras do provedor da Santa Casa da Misericórdia de Mortágua que, taxativas, dizem praticamente tudo sobre uma instituição que procura servir a população e garantir-lhe as respostas de que precisa. Nas diferentes valências sociais de apoio a crianças, seniores e deficientes e na Unidade de Cuidados Continuados, são 437 os utentes que diariamente beneficiam das respostas da instituição. Uma casa grande, que dá resposta praticamente a todo o território concelhio e continua com vontade de crescer, de forma sustentada. «O que fazemos, fazemos bem», garante Vítor Figueiredo.

Uma Misericórdia jovem, cujo surgimento está estritamente ligado à criação do hospital concelhio. Uma «necessidade» sentida na década de 40 do século passado, que «motivou um grande envolvimento da população», com a organização de cortejos de oferendas «para os quais as pessoas davam o que tinham e o que podiam», refere o provedor. A obra fez-se, com o hospital a entrar em funcionamento em 1948. Com o 25 de Abril de 1974, foi integrado na rede nacional (Março de 1975) e passou a funcionar como Centro de Saúde. O provedor, também médico, chegou a dar ali consultas e lembra que a unidade de saúde tinha internamento, «faziam-se ali pequenas cirurgias e também algumas autópsias». Todavia, a tutela entendeu construir um novo edifício para o Centro de Saúde, inaugurado em 2001. O espaço do antigo hospital fica devoluto e o edifício regressa à Misericórdia «praticamente em ruínas». «Em 2001 ficámos

com o “menino nas mãos”», diz o provedor.

Anunciavam-se novos tempos, depois de um período complicado, uma vez que a Misericórdia, desapossada do Hospital em 1975, ficou praticamente “esvaziada”. Uma situação que muda com a entrada em funcionamento, em 1992, do Lar de Idosos. Um edifício construído junto ao antigo Hospital, que começou a funcionar com 20 utentes, explica Teresa Gaudêncio, responsável pela Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI). Anos depois, assistiu-se às obras de ampliação, que permitiram alargar a capacidade para 55 utentes.

A ERPI representa o regresso à actividade, uma âncora para um projecto diferenciador que se seguiu, e que hoje merece atenção especial. «Queremos avançar com a remodelação do lar. É uma necessidade», assume o provedor. A directora técnica refere

a candidatura ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), no valor de 1,1 milhões de euros e o aumento da capacidade para 72 utentes.

Novos desafios surgem, ainda na década de 90, com o programa de desenvolvimento integrado “Ao Encontro De...”. «Abrem-se dois pólos, em Espinho e em Mortágua, para as crianças, o que dá origem à creche, ATL e centro de apoio às famílias», explica o provedor. Em 2012, com a construção do Centro Educativo, o município decide concentrar toda a oferta desde creche, pré-escolar e 1.º ciclo num único espaço. A creche tem actualmente 80 crianças, o ATL 60 e as actividades de apoio à família 60.

Unidade de Cuidados Continuados

Vítor Fernandes recorda que o serviço de internamento do Centro de Saúde acabou

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Misericórdia 33
Antigo hospital foi adaptado a unidade-piloto de Cuidados Continuados

90 anos com Mortágua

por “inspirar” outro serviço, vocacionado para o apoio a dependentes. A candidatura ao Programa de Apoio Integrado a Idosos, aprovada em 1999, contemplava um projecto com 10 camas. «Foi ampliada uma área do lar, onde foi instalado este centro», que obteve financiamento e contou com o apoio de beneméritos. Uma unidade que «veio colmatar uma falha diagnosticada há muito, ao nível do apoio temporário para situações de dependência», que foi a génese da Unidade de Cuidados Continuados, numa altura em que ainda não existia esta figura legal. Entretanto, numa parceria entre a Câmara Municipal, presidida por Afonso Abrantes, e o então provedor, Júlio Norte, foram criadas as condições para recuperar o edifício do antigo hospital, obras que ficaram concluídas em 2005. Nesse mesmo ano, em Setembro, começa a funcionar a Unidade de Cuidados Continuados, inaugurada a 6 de Novembro do ano seguinte. A Santa Casa integrava, assim, o projecto-piloto da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. Inicialmente com 10 camas de média duração e 15 de longa duração. Pouco depois, o número de camas de média duração cresceu para as 12. Também no espaço do antigo Hospital funcionam os serviços de fisioterapia e reabilitação, que além de resposta à Unidade, garantem assistência à comunidade em geral.

Vítor Fernandes assume o desejo de «aumentar a capacidade da UCC», para dar resposta às necessidades. Mais 12 camas seria um número razoável, mas «não tem havido programas de apoio», lamenta.

Outros serviços

O Centro de Dia é outra das respostas, que começou por funcionar no edifício da ERPI. Com a pandemia fechou e reabriu em Abril de 2021, agora na antiga escola, em Vila Moinhos, com 24 utentes. O serviço de apoio domiciliário garante alimentação, higiene e preparação da medicação a 80 utentes do concelho. Fornece diariamente refeições a 41 pessoas carenciadas, no âmbito da “Cantina Social” e ajuda mais de uma centena de famílias através do programa de apoio alimentar. É, também, a entidade gestora do CLDS 4G, que contemplou pela primeira vez o concelho. Um projecto destinado a promover o envelhecimento activo e garantir apoio à comunidade, no âmbito do programa que contemplou os municípios afectados pelos incêndios de 2017.

Diário de

Apoio na área da deficiência

refere o provedor. Trata-se de reconverter uma antiga escola e criar uma valência para 15 utentes. A candidatura foi apresentada ao PRR e representa um investimento de 225 mil euros.

Novas frentes de batalha se abrem para a Santa Casa. O diagnóstico elaborado no âmbito da rede social apontava a «necessidade urgente de responder às carências sentidas na área da deficiência». Mais uma vez, a Santa Casa disse presente. Elaborou o projecto, apresentou a candidatura e, em 2013, assiste-se à inauguração do Lar Residencial e Centro de Actividades Ocupacionais (CAO) José Júlio Norte, em Vila Meã, com capacidade para 28 utentes. O CAO dá apoio aos utentes internos e aos externos, que diariamente são transportados dos diversos pontos do concelho e de Tondela. Passam ali o dia e ao final da tarde regressam a casa.

«Estamos a pensar, em parceria com a Câmara, cariar um novo CACI – nova designação atribuída aos CAO – Centro de Apoio e Capacitação para a Inclusão»,

Ao nível do apoio a deficientes, a Santa Casa tem uma residência autónoma, onde vivem cinco pessoas, que durante o dia são autónomas, mas à noite têm assegurado apoio técnico. Trata-se de uma casa, entregue por um utente, localizada no Alto da Gandarada, que começou a funcionar em Janeiro de 2021. Uma resposta que a instituição quer desenvolver. Por isso, está na calha a criação de uma segunda residência autónoma, através de uma candidatura que envolve 130 mil euros.

«São três candidaturas ao PRR, três projectos a curto prazo, que estão no plano de actividades», esclarece Teresa Gaudêncio, apontando, além da residência autónoma, a requalificação e alargamento da ERPI e a criação do novo CACI. Referência, ainda, para um plano de eficiência energética que a Misericórdia está a equacionar, que prevê a instalação de painéis fotovoltaicos. Uma solução que ganha actualmente maior urgência, tendo em conta a cavalgada dos custos dos combustíveis, que aumentaram nos primeiros meses do ano em cerca de 300% a factura a pagar pela Santa Casa.

Médico, provedor desde 2013, Vítor Fernandes conhece bem a realidade da instituição e também dos cuidados diferenciados que são necessários. «Quando as pessoas saem da Unidade de Cuidados Continuados e vão para os lares, os problemas agravam-se», afirma. Sem “paliativos”, faz notar que as patologias não deixam de existir. O que deixa de existir, são os apoios para a prestação desses cuidados diferenciados.

«Enquanto nas UCC todos os tratamentos são comparticipados pelo Ministério da Saúde, nos lares não há qualquer apoio. Ou é a família ou a instituição que suportam esses cuidados com utentes dependentes», afirma, alertando para a necessidade da situação ser revista e do «Estado comparticipar os cuidados especializados».

Cáustico, diz ainda que «os lares não podem ser um poço de velhos. Para termos

um lar temos de ter quadros técnicos capazes», considera, exemplificando com terapeutas, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas. «Temos um bom lar e procuramos contrariar isso», conclui, alertando para outro problema. «Não há gente para trabalhar», afirma o provedor da Misericórdia, instituição que tem 157 funcionários e, tendo em conta os projectos a curtomédio prazo, certamente vai criar mais postos de trabalho.

Teresa Gaudêncio reconhece a dificuldade em recrutar pessoal, uma vez que se trata de serviços que funcionam por turnos e onde se trabalha todos os dias, incluindo o fim-de-semana. Vítor Fernandes lembra que, actualmente, «há muita oferta de emprego em Mortágua», diz, e lembra que a população decresceu e só a faixa superior aos 65 anos cresceu.

34 Misericórdia
Coimbra
“Pôr o dedo na ferida”

CRIAR UMA “FLORESTA DE LIVROS”

2004 Nas requalificadas instalações do antigo quartel dos Bombeiros nasce a Biblioteca Municipal, inaugurada a 28 de Fevereiro de 2004

Terra de gente culta, ávida de saber e de aprender, Mortágua foi, também, o berço de António José Branquinho da Fonseca (19051974). Filho do republicano Tomás da Fonseca (1877-1968), ideólogo da escola pública e defensor da educação, Branquinho da Fonseca foi, à semelhança do pai, um escritor de renome e um apaixonado pelos livros e pela leitura. A Branquinho da Fonseca se deve a criação, em 1958, do serviço de bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. As famosas carrinhas que percorriam o país, levando os livros às aldeias mais recônditas. Um serviço que o também fundador da revista “Presença” geriu até à morte e cuja rota contemplou Mortágua.

Uma resposta a uma sede de saber muito particular, “semeada”em terras de Mortágua por republicanos ilustres que, na Casa Lobo, fundaram a Escola Livre (1919) e promoviam sessões de leitura, palestras para informar o povo. Se Tomás da Fonseca foi um desses promotores de cultura, os “irmânicos”, da vizinha Marlemeira, não lhe ficaram atrás, com a criação da Escola Livre (1908) e, mais tarde, da Biblioteca Popular (1913). «Mortágua era a vila mais republicana da Beira Alta», lembra Teresa Branquinho, coordenadora da Biblioteca Municipal.

Com raízes no concelho, chegou a Mortágua dois anos antes da inauguração da nova Biblioteca, integrada na rede nacional.

Acompanhou de perto o finalizar da obra, já não tem memória da passagem das carrinhas da Gulbenkian, mas sublinha o trabalho exemplar de Branquinho da Fonseca, patrono da Biblioteca de Mortágua, o «grande promotor da leitura» no país. Aliás, esse é o tema de uma exposição itinerante “Uma vida a fazer ler”, que a biblioteca inaugurou. Um projecto que contou com a colaboração de Luís Branquinho, neto do homenageado, e da investigadora Maria Mota Almeida, da Universidade Nova de Lisboa.

Teresa Branquinho conheceu a biblioteca fixa da Gulbenkian, que funcionava no 1.º

Biblioteca tem mais de dois mil leitores inscritos, alguns com presença assídua

andar do Centro de Animação Cultural e recorda a transferência do espólio para a nova biblioteca. Um espaço novo e substancialmente maior, com salas dedicadas às crianças, no rés-do-chão e para adultos, no 1.º andar e a substituição das antigas fichas por sistemas informáticos, catálogos online, computadores e novas tecnologias. «Temos de acompanhar os tempos, caso contrário perdemos leitores», afiança. Significa que a biblioteca é «um espaço vivo», «dinâmico», que «tem de conquistar os leitores». «Se eles não vêm temos de os ir procurar!», afirma. E é isso que a Biblioteca Municipal tem procurado fazer. A coordenadora destaca um projecto que leva as crianças de todas as aldeias, uma vez por mês, à biblioteca, e, ao mesmo tempo, pretende «motivar os pais, as famílias para o livro e para a leitura». Lembra, ainda, o projecto “A Ler Espero”, que, desde 2006 “alimenta”, com revistas e livros infantis, quem aguarda a sua vez no Centro de Saúde. «É mais uma semente», diz.

«Há muita gente que nunca veio à biblioteca», assume, sublinhando que esta é uma fatia significativa de potencias leitores a cativar, através de outros projectos, apostados em levar a leitura e os livros às aldeias, designadamente através das associações locais, que podem assegurar a proximidade com a população e o empréstimo de obras. Ou outras ideias, como «colocar estruturas com livros que as pessoas possam levar».

Teresa Branquinho fala com orgulho do

projecto “take away” de livros, que arrancou em Mortágua no dia 26 de Março de 2020 e foi replicado em todo o país. «Íamos a casa das pessoas entregar as embalagens de livros», recorda. Uma ideia que deu frutos e veio para ficar. «Ainda hoje, um senhor de Vale Paredes liga a dizer-nos que já leu o livro e a pedir outro», conta.

A Biblioteca também tem os seus leitores fiéis, que «vêm todos os dias ler o jornal».. Há alturas, por exemplo nas férias do Natal, «em que a sala de adultos está cheia de estudantes», diz a coordenadora, que reconhece um decréscimo de utilizadores, à semelhança com o que acontece a nível nacional. «É uma situação transversal a todas as bibliotecas da rede nacional», diz. Mas promete não desistir. «Todos os governantes deviam fazer mais para promover a leitura», defende, recordando, mais uma vez, o exemplo de Branquinho da Fonseca e a necessidade de «ir ao encontro da população». «Se as pessoas deixarem de ler, deixam de ser capazes de interpretar», alerta, reiterando a importância da leitura para a formação de cidadãos informados, com espírito crítico e com capacidade de pensar.

A Biblioteca de Mortágua tem um espólio de 28.443 livros, além de um vasto conjunto de CD e DVD, estando a equacionar a solução “ebook”. São 2.014 os leitores inscritos. «Vamos continuar a trabalhar para termos uma grande floresta de livros», promete Teresa Branquinho.

36 Biblioteca 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra

CENTRO DE ANIMAÇÃO CULTURAL

1999 Edifício do antigo Teatro Club moderniza-se e renasce, em 1999, como Centro de Animação Cultural. Mantém-se a vocação e diversifica-se a oferta cultural

Inaugurado em 1999, o Centro de Animação Cultural de Mortágua é herdeiro e sucedâneo de outro equipamento, o Teatro Club, que, no início do século passado foi uma âncora na promoção da oferta cultural do concelho. Uma tradição que faz parte do ADN das gentes de Mortágua, que sempre deram atenção especial às “coisas” da cultura. «Mortágua sempre foi uma terra muito virada para o teatro», sublinha Margarida Lourenço, coordenadora do Centro de Animação Cultural, que refere o facto de, nos inícios do século passado se ter sentido a «necessidade de edificar o Teatro Club». Um projecto que envolveu um grupo de pessoas do concelho, muito ligado à cultura e às escolas livres. «O Teatro Club foi um símbolo na vida cultural de Mortágua», sublinha. Um palco onde reinava o teatro e, mais tarde, o cinema.

Augusto de Morais Lobo, proprietário da Casa Lobo, «foi o grande impulsionador do cinema», que se estreou em 1933, um ano depois da chegada da luz eléctrica. Significa que, se até então o Teatro Club já era a grande referência como espaço de cultura, o cinema trouxe-lhe ainda mais notoriedade.

Mortágua afirmava-se, pois, como uma terra ávida de consumir e produzir cultura. Anos mais tarde, o espaço começou a perder o seu fulgor, dadas as grandes exigências em termos de manutenção, conjugadas com o fim de uma geração de ouro que ergueu o Teatro Club. «Mas a actividade cultural não se perdeu», alerta Margarida Lourenço, começando a ser desenvolvida em várias casas particulares.

Em 1999, depois de profundas obras de

Centro de Animação Cultural é a verdadeira “sala de visitas” da sede do concelho

ampliação e requalificação, assiste-se à inauguração do Centro de Animação Cultural. Um espaço novo, que fez renascer essa marca inconfundível de culturalidade. O teatro continuou a ter ali um palco essencial, designadamente através do Teatro Experimental de Mortágua, criado no início dos anos 70. Juntou-se-lhe o cinema. «Desde 1999 até agora, sempre tivemos cinema, todos os fins-de-semana», exceptuando a altura da pandemia, garante a coordenadora. Espectáculos de música e de dança, exposições, apresentação de livros são outros dos eventos que marcam a programação. Também é ali, no auditório com 240 lugares, que outras colectividades, como o Orfeão Polifónico, o Coral Juvenil Sílvia Marques, a Filarmónica de Mortágua dão os seus espectáculos e a Escola de Música desenvolve parte da sua actividade. «Todas as mani-

festações culturais cabem neste espaço», que funciona como a “sala de visitas” da sede do concelho. Depois da pandemia, «estamos a tentar revitalizar o Centro Cultural, a abrir, de novo, as salas de exposição e promover uma programação cultural diversificada», diz Margarida Lourenço, reconhecendo que as pessoas estão com alguma “fome” de cultura.

Para a coordenadora, o Centro Cultural tem a responsabilidade de dar continuidade a um projecto centenário de promover cultura para a comunidade» e contribuir para a «formação de novos públicos». Mortágua, apesar de «ser uma comunidade rural, do interior, sempre teve uma programação cultural regular», diz. Uma sensibilidade, uma vocação que se sente. «O nosso público tem gosto por ver cultura e por fazer cultura», afirma Margarida Lourenço.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Centro Cultural 37

PRESERVAR A MEMÓRIA DA BATALHA DO BUSSACO

quer recolher e preservar.

Nas Laceiras, diz-se, na fuga dos aldeões, um boi tresmalhou-se. Pouco depois foi encontrado pelos franceses, que o mataram e assaram numa eira. Outra “estória”garante que o padre de Pala escondeu uma peça no soalho da igreja, que os franceses não conseguiram encontrar, salvando-se do saque. «Grande parte do património religioso foi saqueado ou destruído», afirma. Recorda, ainda, a capela da Aveleira, dedicada a Santo Amaro, um santo francês, que ficou incólume à passagem das tropas gaulesas, que, em contrapartida, destruíram a igreja matiz.

2017 Centro de Interpretação, inaugurado em Setembro de 2017, mantém viva a memória do papel de Mortágua na Batalha do Bussaco

Foi a grande batalha. O embate decisivo entre o exército comandado pelo general Massena e as tropas aliadas, que juntaram forças inglesas e portuguesas, sob o comando do duque de Wellington. O princípio do fim da terceira invasão francesa e das Guerras Peninsulares. O ponto final na ambição de Napoleão Bonaparte se apossar do país. 27 de Setembro, um dia histórico para a Nação. Acossado, o exército gaulês batia em retirada. As baixas apontam para 4.479 mortos no exército francês e 1.252 nas forças aliadas. O Bussaco acolheu a grande Batalha, mas os 15 quilómetros das encostas da serra foram decisivos para definir a estratégia, posicionar meios, criar linhas de avanço e de retirada. Mortágua ocupou um papel essencial, que o Centro de Interpretação quer preservar.

Inaugurado no dia 24 de Setembro de 2017, o Centro de Interpretação Mortágua na Batalha do Bussaco, projecto dinamizado pelo município, pretende destacar o papel que o concelho desempenhou no cenário da batalha. «Diz-se que o sangue derramado

na batalha escorreu para o território de Mortágua», refere Mónica Pereira, responsável pelo espaço e uma apaixonada pela temática. A localização estratégica colocou Mortágua no caminho das tropas francesas e do exército aliado. Antes e depois da batalha. «Mortágua acaba por acolher as tropas desde 23 de Setembro a 28», com a retirada a ser, igualmente, feita pelo território. Mais, os postos de comando dos dois exércitos estavam localizados em território de Mortágua.

O Moinho de Sula foi o quartel-general do general Wellesley. Um posto de observação privilegiado, rodeado de penedos, de onde, reza a lenda, o general Craufurd terá conseguido localizar a posição do inimigo e perceber as suas movimentações. Mais abaixo, a escassos dois quilómetros, encontra-se o Moinho de Moura, posto de comando das tropas francesas dirigidas por André Massena. Um terceiro moinho, menos conhecido, de Meligioso, servia de aquartelamento às tropas de Campbell, que reforçaram as linhas de Craufurd.

«Mortágua teve um papel importante na batalha, mas não se tem essa noção», sublinha a técnica do município, que nos conta algumas das muitas histórias que fazem parte da memória colectiva. Histórias que passaram de geração em geração e que o Centro de Interpretação também

Com «registos» efectivos, Mónica Pereira refere o combate do Meiral, onde o Regimento de Caçadores 4, comandado pelo major Luís Rego Barret, «fez muitas baixas» ao exército francês. Ou o acampamento militar do Barril, onde estiveram as tropas francesas, ou as aldeias de Vale de Ovelha e Alcordal, perto da Marmeleira, que teriam funcionado como hospitais de campanha. Também não há dúvidas relativamente às quatro aldeias destruídas: Freirigo, Algido, Póvoa da Catraia e Cadima. Algido tem a particularidade de ter sido destruída na retirada, no quadro da estratégia dos aliados.

«Há quem diga que a Batalha do Bussaco foi o início do fracasso de Massena na terceira invasão», diz Mónica Pereira, com um entusiasmo que acentua a sua peculiar pronúncia… com um toque gaulês. «Nasci em França», conta, e apesar de ter vindo para Portugal com 5 anos e aqui ter cumprido todo o percurso escolar, nunca perdeu o “toque” francês. Claramente alinhada com as tropas aliadas, destaca o desempenho do povo, que «resistiu e sofreu», e foi mais um exército em combate contra os franceses, designadamente fornecendo informações erradas e enganando os soldados indigitados para fazer o reconhecimento do terreno. Também lembra a capacidade de reacção dos franceses que, depois da destruição, a 22 de Setembro, da ponte sobre o rio Criz, que garantia a ligação entre Santa Comba Dão e Mortágua, «praticamente de um dia para o outro construíram uma passagem que lhes permitiu atravessar o rio». Independentemente disso, faz notar, «os franceses escolheram o pior caminho para chegar a Coimbra». A Serra do Bussaco parou a escalada sangrenta,que começou em Almeida, progrediu em direcção a Viseu e tinha caminho trilhado rumo a Coimbra, com Lisboa como meta.

38 Centro de Interpretação 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra
Centro de Interpretação destaca o papel de Mortágua na “grande batalha”

Destacar o papel de Mortágua

O Centro de Interpretação não tem, sublinha Mónica Pereira, a intenção de ser um museu, papel reservado ao Museu Militar do Bussaco. Pretende, sim, «dar a conhecer o que se passou no território», destacar o papel de Mortágua e mostrar «a resistência e o sofrimento do concelho».

Um “livro de assento”da Milícia de Tondela, uma das relíquias doadas ao Centro de Interpretação, uma herança de Fernando Simões, garante que foram 59 os mortaguenses que integraram esta milícia. Mónica Pereira explica que se trata de tropas de segunda linha ou da retaguarda (Caçadores são de primeira), constituídas por habitantes locais que «davam uma grande ajuda no reconhecimento do terreno». O registo inclui a identificação completa do miliciano e referência a todo o equipamento que lhe foi entregue, nomeadamente armas, e informação sobre todas as suas movimentações, idas ao hospital, por exemplo.

A informação está disponível, através de

um quadro interactivo, onde também é possível saber o número de mortes. Dados obtidos junto dos registos paroquiais. Todavia, sublinha a técnica do município, as vítimas são sobretudo militares, sendo poucas as baixas entre civis.

Num espaço pequeno, mas muito bem dimensionado, o visitante é entrosado na época, através do visionamento de um vídeo. Segue-se uma apresentação sintética das Guerras Peninsulares e da Batalha do Bussaco e suas sequelas.

Em duas vitrines encontram-se réplicas dos uniforme usados. O primeiro, de tons castanho-mostarda, é do uniforme do Regimento de Caçadores 4, que teve grande protagonismo no combate do Meiral. Ao lado do manequim está a “patrona” ou malote, onde os soldados guardavam os cartuchos que eles próprios faziam.

Depois de uma imagem fantástica de Craufurd, no Moinho de Sula, outra vitrine apresenta o fardamento da Milícia de Ton-

dela. Um traje mais pomposo, porque «já não é da linha da frente», esclarece. O azul escuro do casaco mantém-se, mas as calças são brancas no Verão. Os auscultadores permitem-nos conhecer os diferentes toques dos vários regimentos, indicadores das diferentes ordens para acatar.

Uma das grandes atracções é a vitrine das armas, réplicas e originais. Duas pistolas de origem belga e uma francesa, a que se juntam três sabres, usados pela cavalaria. Um inglês, mais discreto, outro francês, mais pomposo, e o terceiro de origem portuguesa, com a respectiva bainha.

O quatro interactivo permite conhecer melhor todas as batalhas, e apresenta dados sobre os diferentes regimentos e os soldados recrutados para as milícias. As armas também são explicadas ao pormenor. Um mapa permite perceber a destruição do concelho, localidade a localidade.

O Centro de Interpretação foi contemplado com o Prémio APOM 2018, pelo filme de divulgação. Entre os visitantes ilustres, figura um familiar de Napoleão, Charles Bonaparte, que ali se deslocou em Setembro de 2020.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Centro de Interpretação 39

O ORGULHO DAS TERRAS DE IRMÂNIA

2016 Inaugurado em 2016, espaço convida a uma viagem no tempo e permite conhecer as particularidades de uma terra cheia de história e de tradições

Sempre achei que era mais interessante recolher objectos e memórias e edificar um museu do que andar e a cantar por esses palcos fora». O desabafo é de Rosa Ferreira, vice-presidente da direcção do Núcleo Museológico da Irmânia, mas também filha de um dos fundadores do Rancho Folclórico e Etnográfico “Os Irmânicos”da Marmeleira, José Ferreira, mais conhecido por Zé do Pereiro, já falecido. Durante anos andou no rancho, o mesmo acontecendo com o marido. «Chegámos a ir ao Luxemburgo e a França», recorda, destacando a particularidade da tocata, «só com músicos de corda», grande parte dos quais «aprenderam a tocar sozinhos». Todavia, nunca deixou de recolher peças antigas, equipamentos, artefactos, recordações e memórias de outros tempos.

Sempre que uma casa era demolida, na Marmeleira ou nas proximidades, Rosa Ferreira lá ia fazer a sua recolha, o mesmo acontecendo com outros elementos do rancho. Hoje, décadas depois, está satisfeita

com esse trabalho. O rancho, depois de um período de glória, passou por crescentes dificuldades e acabou por deixar de existir como grupo de danças e cantares. Todavia, o espólio recolhido durante anos e anos ganhou vida no Núcleo Museológico da Irmânia, que continua a gerir. Um espaço único, que «não existe em mais lado nenhum», sublinha, satisfeita. Ranchos, adianta, «não faltam».

Rosa Ferreira recorda que as muitas peças reunidas, fruto deste trabalho de pesquisa etnográfica, a que se juntaram outras, oferecidas pela população, começaram por ser expostas no Centro Cultural, no âmbito de um protocolo entre as duas instituições. Mas depressa o espaço começou a «ser muito pequeno». Entretanto, com a transferência das crianças para Mortágua, a Escola Primária da Marmeleira ficou devoluta. «Pedimos a escola à Câmara de Mortágua», mas «percebemos logo que o espaço era pequeno», adianta a vice-presidente. A solução foi a apresentação de uma candidatura ao PRODER e, com o apoio do município e da Junta de Freguesia, avançar para uma construção de raiz. «Uma casa de pedra», erguida à imagem e semelhança do que era a tradição das casas de lavradores abastados da região.

Estava, assim, dado o mote para a criação do Raízes e Memórias - Núcleo Museológico

da Irmânia, na Marmeleira, o coração de uma região delimitada pela Serra do Buçaco, pela Linha da Beira Alta e pelo rio Mondego, que envolve territórios de Mortágua e de Penacova e que tem o seu centro da Marmeleira. «Chegavam cartas dirigidas à Vila da Irmânia», recorda. Apesar das movimentações, a troca de nome nunca aconteceu e a Marmeleira manteve-se. Uma terra muito peculiar , que «há 100 anos, era uma aldeia muito evoluída», diz Rosa Ferreira. Um centro republicano de referência, conhecido e reconhecido pelas iniciativas desenvolvidas nos inícios do século XX em prol da cultura e da instrução do povo e da região. Exemplo disso foi a criação, em 1908, da Escola Livre da Irmânia. Em 1912 foi fundado o jornal “O Sol Nascente” e um grupo de “irmânicos” avança, em 1913, com a instituição da Biblioteca Popular, denominada Centro Democrático de Educação Popular.

Dar vida à história

«Quisemos transpor essa vivência para o Museu», refere Rosa Ferreira e, efectivamente, nos diferentes espaços está espelhada essa memória do passado, marcada por uma forte vivência rural e com uma invejável dinâmica cultural, a herança de um povo que ousou sonhar com ideias de liberdade, educação e progresso. A Casa do Agricultor apresenta os diferentes espaços da habitação de uma família tradicional da região ligada ao trabalho agrícola. Ao lado foi “instalada” a “venda”, a Loja Progresso, que pertenceu a Júlio Batista dos Reis, um espaço comercial de referência, onde se podem encontrar alguns dos equipamentos originais. Ao lado, no mesmo espaço, está a Alfaiataria Lysiana. «Era uma alfaiataria muito conceituada, que ombreava com algumas grandes casas de Coimbra », afirma, orgulhosa, Rosa Ferreira. Junto a este estabelecimento - «porque a casa é pequena» - é apresentado o Ciclo do Linho, desde a sementeira à fiação. «Temos tecidos de linho fiados na aldeia», diz, fazendo notar que esta era uma cultura com algum relevo na Marmeleira, onde inclusivamente havia várias tecedeiras.

Na antiga Escola Primária da Marmeleira encontra-se uma exposição dedicada às profissões mais significativas que, no passado, representaram o sustento de muitas famílias. Com as respectivas ferramentas, encontram-se, na sala Zé do Pereiro, retratadas as actividades do resineiro - muito

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Núcleo é o guardião da identidade rural e da herança cultural das gentes da Irmânia

importante numa terra que sempre teve na floresta um modo de vida – a lavadeira do rio, o agricultor, o barbeiro, o pastor e o “curandeiro” da aldeia, uma espécie de médico e enfermeiro que dava resposta a todos os problemas.

Na sala Basílio Lopes Pereira - um dos fundadores da Escola Livre e do jornal “O Sol Nascente” - é possível conhecer um pouco mais sobre a história da Marmeleira, a Vila da Irmânia e seus filhos ilustres. Mais recentemente, em 2021, foi criado um novo espaço, com o apoio do município, a “Sala da República”, onde se encontram «um conjunto de documentos», reunidos por um amigo da casa e da terra, João Paulo de Almeida, bem como um alpendre onde se encontram expostas alfaias agrícolas. Se mais espaço disponível houver, certamente não vai faltar material para o embelezar. «Temos falta de espaço», diz a vice-presidente.

O Núcleo Museológico acolhe bastantes visitantes. «Sobretudo escolas», diz Rosa Ferreira, e também instituições da região. «Nunca ninguém nos disse que não gostou do que viu», assegura. Ao domingo as portas estão abertas. «Já pedimos ajuda ao município para termos uma pessoa em permanência», mas enquanto isso não acontece, os responsáveis da associação desdobram-se para dar resposta. «Fizemos uma escala» e o serviço “roda”, contemplando dois elementos em cada domingo. Uma vez por mês juntam-se todos para uma análise mais a fundo e dar resposta a eventuais situações, em termos de manutenção e organização.

Almoços para angariar receitas

Com o mesmo «espírito de carolice» que levou a bom porto o projecto de criação do Núcleo Museológico, os elementos do rancho começaram a fazer um duplo aproveitamento do espaço e, além da visitação, a promover jantares e almoços temáticos, de forma a angariar receitas. «Começámos com grupos de 20 pessoas», conta Rosa Ferreira, lembrando que a pandemia obrigou a cancelar estes eventos, confiante num lento regresso à normalidade.

«Servimos os pratos típicos da região», como a lampantana e feijoca com carne de porco. «As pessoas adoram», diz. As pataniscas são, por norma, uma opção para as entradas, juntamente com as sardinhas com capa. A sobremesa elege o arroz doce, o leite creme e o bolo de cornos. Uma refeição onde não falta o pão ou a broa acabados de cozer. «Temos um forno», faz notar, o que permite que os comensais se deliciem com o pão ou a broa quentinhos, a sair do forno.

Uma terra votada aos valores da liberdade

Exposição apresenta um conjunto de equipamentos ligados à actividade agrícola

Marmeleira, conhecida como a “Vila da Irmânia”, tem uma identidade muito própria, onde os valores da liberdade, da cultura e da solidariedade ganharam um eco muito particular e deram forma a iniciativas singulares em nome da educação e instrução do povo. Exemplo disso foi a criação, em 1908, da Escola Livre da Irmânia. Um projecto que surge em Portugal um ano antes, com base na Escola Moderna que Francisco Ferrer criada em Barcelona, na vizinha Espanha. Mas outros exemplo se seguiram, com os “irmânicos” Basílio Lopes Pereira, Alfredo Fernandes Martins, António Pereira de Sousa, João Pereira Sousa, Júlio Batista dos Reis, José de Matos e David Araújo a empenharem-se na criação da Biblioteca Popular, em 1913, a que deram o nome de Centro Democrático da Educação Popular. O grande objectivo desta infraestrutura, única à época, era promover a educação do povo, razão pela qual se realizavam várias conferências na Vila da Irmânia, sobre os mais diversos temas, mas onde as ideias republicanas estavam sempre presentes.

Dois anos depois da implantação da República, surge, na aldeia, o jornal “O Sol Nascente”, um projecto liderado pelos estudantes Basílio Lopes Pereira e Alfredo Fernandes Martins, cujas receitas revertiam a favor da Biblioteca Popular e do seu programa de actividades. Entre o vasto espólio da biblioteca, encontravam-se obras de Eça de Queirós, Tomás da Fonseca, Camilo Castelo Branco, entre outros. Em 1933, a biblioteca foi enri-

quecida com um conjunto de livros oferecidos pela livraria Atlântica, de Coimbra.

Toda esta “irmandade” cultural e cívica que caracteriza o espírito das gentes da Marmeleira ajuda a perceber a designação “Vila da Irmânia”. Todavia, bem antes, no século XVI, assistiu-se a um episódio que, segundo o investigador José Assis e Santos, terá tido o seu peso. Reza a história que o padre Sebastião do Monte Calvário se empenhou na fundação de um mosteiro, gastando toda a sua fortuna na edificação de várias construções. «Para a sustentação do mosteiro pretendeu aplicar as rendas da igreja matriz, ao que se opôs terminantemente o donatário da vila, D. Sancho de Noronha, que tinha o padroado da igreja». Desta forma, o padre Sebastião viu-se obrigado a procurar alternativas, instituindo uma irmandade, que em pouco tempo reuniu grande número de irmãos. «Poderá ter sido a partir da existência da irmandade, cujos objectivos eram da caridade, associação de socorro mútuo, serviços piedosos, que poderá explicar o outro nome da povoação da Marmeleira, Vila da Irmânia», lê-se na obra “Contributos para a Monografia do Concelho de Mortágua”, uma edição do município, da autoria de António Pedro Ferreira de Sá.

Hoje, a vila da Marmeleira faz parte da rede Aldeias de Portugal, um projecto que pretende dar a conhecer «o melhor do genuíno mundo rural». Um novo conceito de visitação, que promove a vivência de experiências de ruralidade.

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PRESERVAR O PATRIMÓNIO RURAL

2014 Parque Temático de Vale de Mouro, inaugurado em 2014, é um exemplo da recuperação das vivências e das tradições de outrora

Aunião faz a força e permite que as ruínas voltem a ter a forma de casas, que a vida volte a renascer e que a aldeia seja, hoje, guardiã de um património único, memória viva da ruralidade. Falamos do Parque Temático de Vale de Mouro, um projecto que demorou anos a ganhar forma, com o empenho, o trabalho e a colaboração da população local, sob a orientação da Associação Cultural e Recreativa. Inaugurado em 2014, é uma referência turística e etnográfica do concelho.

Filipe Martins recorda essa longa caminhada, que terá começado em 2007. «Foi uma ideia da direcção, refere. «Tínhamos umas casas antigas, em ruínas, com os palheiros, o curral dos bois e a eira do milho e pensámos em reconstruir tudo». Um processo que demorou anos, contando sempre com a «total colaboração da população», que se empenhou em fazer renascer as velhas casas, doadas pelas famílias Fonseca, Fernandes e Gouveia. Terminada parte da tarefa, com a recuperação da primeira casa e já com uma nova direcção à frente da Associação, pensou-se que um projecto de alojamento local seria a melhor forma de «atrair pessoas à aldeia» e dar a conhecer o que estava feito. E assim se fez.

Na “casa grande”, construída em xisto, foi instalado o Núcleo Museológico, um espaço onde se encontram equipamentos ligados à vida rural, com destaque para a produção de azeite, mel, cereais e recolha de resina. Memórias avivadas com a recriação de uma cozinha e de um quarto tal como eram no início do século passado no ambiente rural de Vale de Mouro, onde não falta o colchão de palha, «como se usava antigamente».

A parte restante da casa, de rés-do-chão e 1.º andar, foi transformada em zona habitacional, destinada a receber os visitantes. E não houve “mãos a medir”. «A procura foi excelente, sobretudo no Verão», refere Filipe Martins. A maioria portugueses, vindos da Grande Lisboa, mas também estrangeiros, com destaque para os espanhóis e franceses.

Conta mesmo que um casal francês «veio e voltou mais três vezes».

O sucesso do projecto deu alento à ideia de continuar, desta feita com a recuperação de uma segunda casa, mais pequena, que dá perfeitamente para acolher um casal com um filho e que, na maioria dos casos, serve de apoio à “casa grande”, que tem capacidade para receber uma família de cinco pessoas e tem lareira.

As características rústicas da habitação mantiveram-se, assim como a maioria dos objectos decorativos, designadamente louças antigas. «Foram todos oferecidos pela população», afirma, com orgulho, o dirigente. Ofertas e doações extensíveis aos artefactos do Núcleo Museológico. Um património colectivo, vindo do povo, com a marca da solidariedade e da partilha.

Recuperada foi, igualmente, a zona envolvente das casas, com as respectivas eiras e os tradicionais espigueiros. Ao lado está uma antiga máquina de malhar, doada por um morador de uma aldeia vizinha.

O único lagar de varas

Orgulhosa, a população de Vale de Mouro empenhou-se em bem receber os visitantes e, inclusivamente, em dar um novo alento à recuperação da aldeia, estendendo-a ao antigo lagar. Filipe Martins refere o livro de registos do espaço de alojamento local, onde alguns visitantes deixaram mensagens de apelo à recuperação do velho lagar de varas. O dirigente confessa que o lagar, lo-

calizado à beira do riacho, a pouco mais de 200 metros do Parque Temático, sempre foi local de visita obrigatória.

«Talvez com mais de 200 anos», o lagar terá recebido melhoramentos nas primeiras décadas do século passado e funcionou até há cerca de 40 anos. Depois, já parado, começou a definhar. Acabou por ser adquirido pela Junta de Freguesia que, com o apoio do município, avançou com a sua recuperação, de forma a manter a memória do ciclo tradicional de produção de azeite.

Filipe Martins destaca as duas “varas”, que qualificam o lagar, e que não são mais do que dois enorme troncos de carvalho, «arrancados pela raiz», que ajudavam a fazer pressão sobre as ceiras, onde se colocava a massa da azeitona. Com o recurso a água quente, proveniente da caldeira, de um lado saía o azeite e, do outro, as águas “ruças”. «A roda e as mós andam, a caldeira pode ser acesa, mas não há condições para fazer azeite», adianta, mas «também não se justifica». Condições, isso sim, há para fazer as tradicionais lagaradas, com bacalhau assado na brasa e batata a murro, como manda a tradição. «Basta avisarem a Associação, com alguma antecedência, e cá estaremos!», garante o responsável.

A intervenção no lagar foi complementada com o arranjo da zona evolvente, criando uma agradável zona de lazer. Um investimento de 150 mil euros, inaugurado em Novembro de 2020 pela então ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes.

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Parque Temático manteve a traça das habitações e toda a envolvência rural
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A ATRACÇÃO PELORONCAR DOS BÓLIDES

1970 Na década de 70 começaram as provas, que despertam uma nova paixão às gentes de Mortágua

Ao volante de um Fiat Abarth 131, Markku Alen fez história e despertou emoções únicas. «Era um ícone», diz Ricardo Pardal, presidente da Câmara de Mortágua. Aficionado dos desportos motorizados, recorda a geração de ouro de pilotos finlandeses que voavam nas estradas do Buçaco. Henri Toivonen, Juha Kankkunen, Tommi Mäkinen, Ari Vatanen, Kimi Raikkonen, mas também a francesa Michèle Mouton, «uma mulher a fazer a diferença», o italiano Miki Biasion, o alemão Walter Rohrl, entre tantos outros. Mas Markku Allen fazia a diferença. Ao volante do Fiat Abarth 131 ou, mais tarde, do Lancia 037, o piloto do “Maximum attack”, dava espectáculo e conquistava os portugueses, somando cinco vitórias no Rali de Portugal. «Torcia pelo Markku Allen», assume o autarca.

Passaram quase quatro décadas, mas o gosto de Ricardo Pardal pelos bólides mantém-se. Uma paixão transmitida pelo pai. «Deu-me as vacinas todas! Ia sempre com ele». Com chuva ou com sol… até mesmo doente! Cheio de febre, não faltou, apesar da discussão entre os pais. «Fui embrulhado num cobertor», recorda.

«O que mais impressiona dentro de um

carro de rali não é a aceleração, mas a velocidade em curva e o poder de travagem, a sensação de segurança», diz, assumindo que nunca foi além de umas «aventuras» no todo-o-terreno, «muito lúdicas e pouco radicais», mas que esta é, claramente, uma das suas grandes paixões. «Gosto de terra, não de pista», adianta. Por isso, apesar da velocidade, a Fórmula 1 não o cativa. «É como ir à caça ou atirar aos pratos», compara, destacando o factor “imprevisto” como uma das grandes atracções do rali, sobretudo quando se trata de troços em terra.

Todos os anos, o roncar dos motores desencadeava um turbilhão de emoções, que acabou com a saída do Rali de Portugal do Campeonato do Mundo, o regresso, anos depois, ao Algarve, primeiro, depois ao Norte e, finalmente, após 22 anos de jejum, de novo à região Centro. Ricardo Pardal acompanhou toda a evolução da prova. «Desde que o rali voltou ao mundial, nunca falhei nenhuma edição». No Algarve, no Norte, no Centro. Este ano, ao olhar vibrante do aficionado, junta-se a análise clínica do autarca, que não esconde o orgulho por Mortágua estar na rota do rali.

«Esta é também uma paixão de Mortágua e dos mortaguenses e um factor de desenvolvimento do território», faz notar, apontando o movimento que a prova imprime ao comércio local, as dormidas, o impacto na restauração e na promoção da gastronomia. «O rali põe Mortágua no mapa»,

diz. «É um nicho de mercado». «Os adeptos dos desportos motorizados vêm com a família e descobrem o concelho», adianta Ricardo Pardal, que faz notar as particularidades deste nicho de mercado, que «nos permite partilhar o que é nosso, a nossa identidade». «A vida das nossas aldeias, a essência das nossas gentes, descobre-se nas estradas e nos estradões» por onde passa o rali. É nesse clima singular que se descobre «o sabor de uma chouriça feita em casa, do pão acabado de cozer...», diz.

O rali traz os habitantes das aldeias para as curvas mais geniais do traçado e para a soleira das portas. Os mesmos espaços que os aficionados procuram. Residentes e visitantes, «que não se conhecem», falam, trocam ideias e, muitas vezes, os petiscos que começam na tasca, acabam na adega, numa partilha de sabores, possível pela «simplicidade e generosidade das nossas gentes». «Há gente com muito boas memórias das nossas aldeias», considera o edil que, ele próprio teve essa vivência, aqui e noutros pontos do país. Uma experiência alimentada pelo roncar dos motores, que «também combate o isolamento», diz.

Satisfeito com o regresso do Rali à região, Ricardo Pardal elogia o investimento que, desde há longa data, o município faz na prova e a vontade de querer ir mais longe. «Estamos com um pé dentro do rali, mas queremos estar com os dois pés», diz. O que significa que Mortágua quer mais e está empenhada em «criar condições para termos uma classificativa com duas passagens», à semelhança do que acontece em Arganil, Góis e Lousã.

Importante, também, é o Rali de Mortágua, organizado pelo Clube Automóvel do Centro, que este ano sofreu um revés, uma vez que a Federação de Automobilismo e Karting não o considerou prova pontuável para o campeonato nacional. «Mortágua tem, talvez, o melhor rali de terra do campeonato nacional e ficou sem os pilotos top», afirma, crítico. «Ficámos com a Copa Ibérica, para compensar», adianta. O autarca espera que a situação seja revista e que a prova regresse à linha da frente da competição nacional.

Diferente, com uma carga histórica, dir-se-ia mesmo lendária, está o Rally Legends, um projecto do Clube Luso Clássicos que este ano se estende do território da Mealhada a Penacova e Mortágua. Uma experiência nova, a realizar em Novembro, com o Rally Legends do Bussaco.

44 Rali de Portugal 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra Troços de terra batida são a grande atracção em terras de Mortágua

FILARMÓNICA CENTENÁRIA E REJUVENESCIDA

João Jorge. Duas mães lançaram o desafio e a direcção respondeu de pronto com a criação de uma turma para adultos. Um projecto que arrancou há cinco anos e conta com 12 empenhados alunos. Diferentes gerações, unidas pela música. Um exercício que a banda quer promover. João Jorge recorda o projecto que a filarmónica quis desenvolver, para assinalar os 125 anos, de juntar 90 a 100 músicos – actuais e antigos – num concerto. Foram efectuados dois ensaios e «tivemos mais de 70 músicos reunidos, com avós filhos e netos a tocaram juntos»,refere, com orgulho.

1987 Fundada em 1896, a mais antiga colectividade do concelho chegou a estar inactiva. Em 1987, ganhou novo fôlego

Dinamismo não lhe falta e menos ainda vontade de fazer coisas diferentes no domínio da música.

As procissões continuam, naturalmente, a fazer parte do programa de actividades, mas os projectos de vida da Filarmónica de Mortágua vão muito mais longe. Os concertos já são uma realidade e a formação uma aposta ganha. Mas quer ir mais longe e dar um contributo cultural mais significativo ao município e à população. «A cultura faz bem!», afirma João Jorge, presidente da direcção, para quem a banda tem um lugar e um papel a desempenhar na promoção da oferta cultural, com espectáculos seus ou com o convite a outros grupos.

Em causa está uma instituição centenária, «a colectividade mais antiga do concelho», diz, com orgulho. Todavia, pouco se sabe acerca da sua origem – fundada em 1896 –e dos primeiros anos de vida. «Tinha outra designação, Filarmónica Filhos de Orfeu», mas depressa passou a ser denominada Filarmónica de Mortágua. Uma instituição que teve os seus momentos altos e menos bons. Terão sido estes que ditaram a sua paralisação, numa época e em circunstâncias

pouco esclarecidas. Certa é a sua reactivação, em 1987, refere o responsável, que sublinha o empenho de «um grupo de pessoas» e particularmente o padre Moderno.

A consolidação do renascimento conta com o contributo do maestro Adriano Matias, que avançou com a criação da Escola de Música e «o desenvolvimento da filarmónica e das suas actividades». «Fomos três vezes ao Luxemburgo, a mais recente em 2018», destaca, lembrando as viagens aos Açores e a vontade de recuperar o intercâmbio com outras bandas.

Centenária de criação, a Filarmónica de Mortágua, dirigida pelo maestro Ricardo Vicente, tem actualmente 36 músicos e é particularmente jovem. O elemento mais novo tem 9 anos, uma flautista que «toca como gente grande». O mais velho, igualmente uma senhora, tem 39 anos e toca clarinete, conta João Jorge, também ele músico, com 35 anos, que entrou com 10 para a Escola de Música. «Toco tuba, já toquei trompete e fui percussionista», diz.

A Escola de Música é uma aposta ganha, com cerca de 40 alunos e cinco professores.

Uma parceria com o Agrupamento de Escolas ajuda a cimentar o projecto, através das Actividades Extra Curriculares (AEC) garantindo respostas prontas ao nível da formação musical para crianças e jovens.

Mas o ensino/aprendizagem não se ficou por aqui. «Temos filhos e pais, sobretudo mães, a aprenderem música», diz, satisfeito,

«É sempre possível fazer melhor», considera. «Queremos dinamizar culturalmente o nosso concelho, através da actividade da filarmónica e de outro tipo de espectáculos», refere o presidente, que aponta um conjunto de propostas, já apresentadas ao executivo camarário. «O município é o nosso grande colaborador, dependemos do seu apoio e entendemos que podemos retribuir, de alguma forma, e sermos uma mais-valia em termos culturais», dando um contributo maior, com concertos e espectáculos próprios ou «trazendo grupos de fora». Uma forma de promover culturalmente Mortágua e «combater a interioridade», considera.

A banda está, igualmente, empenhada em promover um maior contacto e criar mais proximidade com as associações locais, oferecendo os seus espectáculos e a sua música às diferentes localidades.

DVD e sede para breve

A conclusão do DVD que celebra os 125 anos faz parte dos projectos mais imediatos da Filarmónica e envolve a realização de um concerto com actuais e antigos filarmónicos. «Serão quase 100 músicos em palco», faz notar o presidente.

Com 126 anos de história, a Filarmónica de Mortágua nunca teve uma sede própria, construída de raiz. Ultimamente a sua “casa” estava instalada num pré-fabricado, que deixava muito a desejar. «Andámos sempre empurrados de um lado para o outro», refere o presidente, confiante que, depois de muitas promessas não cumpridas, a banda vai, finalmente, ter uma sede e um espaço para ensaiar. «Contamos mudar durante este ano», diz João Jorge, referindo-se ao novo espaço, cedido pela Câmara Municipal, junto ao Cine-Teatro. O protocolo com o município inclui a utilização, sempre que necessário, do Cine-Teatro.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Filarmónica 45
Banda tem 36 músicos, com idades entre os 9 e os 39 anos

UM PRATO DE FESTA

1957 Rosa Maria Mateus tem 64 anos e uma vida inteira dedicada à cozinha. Uma especialista na confecção da lampantana

Tenho feito muita lampantana, mas não sou especialista», diz Rosa Maria Mateus. Mas garante quem sabe que a sua confecção é perfeita. «Aprendi com a minha mãe», afirma. Natural de Santa Cristina, freguesia de Espinho, teve na progenitora a primeira professora. A segunda foi a D. Rosário, «a bisavó do dr. João Fonseca, que, com 92 anos, se punha ao meu lado a orientar os temperos». Aos 18 anos, Rosa Mateus mudou-se para Mortágua, para a casa da família Rodrigues Fonseca, que continua a servir há quase 50 anos. Incontáveis são os caçoilos de lampantana que preparou. Só para o capítulo da confraria «são mais de 80», refere.

Os segredos são poucos ou nenhuns, mas Rosa Mateus dá o seu “toque especial” à carne. Sempre que pode, prefere temperá-la na véspera, que é como quem diz, colocar o sal, o alho, a gordura – banha de porco e azeite - colorau e um «bocadinho de cominhos. «Foi assim que a minha mãe e a D. Rosário me ensinaram», sublinha. Na altura de levar a carne ao forno junta-lhe a salsa, a cebola e o vinho. «Não é uma carne de vinha d’alhos», faz notar, explicando o porquê de não incluir o vinho na véspera. Aliás, se tiver que acrescentar os caçoilos, o que raramente acontece, ferve primeiro o vinho com os temperos, explica, fazendo “má cara” a quem acrescenta vinho à carne sem mais delongas. Alerta para necessidade de o vinho ser de boa qualidade. «Não um vinho com muito grau», chegam 12,5, 13º, mas «tem de ter bons taninos», afirma.

Preparada a carne, «tapa-se com "papel de prata", cheio de “furinhos”, para o álcool

do vinho evaporar». E vai ao forno de lenha. Duas horas, duas horas e meia depois, retiram-se os caçoilos para «provar a carne», aferir os temperos e «ver se está rija». Se assim for, regressa ao forno. «A carne é que nos ensina», considera. Por isso, «convém ser carne de um animal (ovelha) adulto, nem muito novo, nem muito velho», alerta, para não ficar nem demasiado rija, nem excessivamente desfeita. Rosa Maria gosta da carne a soltar-se dos ossos.

Os caçoilos de barro são essenciais para o toque especial. «Em Mortágua, o nosso barro é vermelho», faz notar, mas sem fundamentalismos relativamente à cor. «Também tenho caçoilos de barro preto», afiança.

Antigamente, «era um prato de festa. Era o prato principal dos casamentos», servido igualmente pela Páscoa e nas festas da aldeia de Santa Cristina, a 24 de Julho.

Pela Páscoa, à mesa havia sempre o bolo da Páscoa. «Não é bolo de cornos, é bolo da Páscoa», afirma, sem perceber o porquê desta denominação. «Quando me criei era bolo da Páscoa», cozido por esta altura, se bem que as famílias com mais posses também o confeccionassem pela festa.

Rosa Mateus perdeu a conta aos bolos da Páscoa que fez, com a ajuda da D. Emília, de Vila Nova. A receita, sabe-a de cor: para 1 kg de farinha, uma dúzia de ovos e ¼ de kg de açúcar. Junta-se um pouco de manteiga de vaca e um copo de azeite, bastante raspa de limão e canela e o fermento. «Amassa-se tudo muito bem, até as mãos ficarem limpas (sem massa agarrada) e fica de um dia para o outro a levedar, praticamente 24 horas», explica. Depois de levedada, corta-se a massa para cada bolo, dobra-se e vai ao forno, previamente aquecido. «Calhavam-me sempre bem», afirma, satisfeita, esta cozinheira de mão-cheia, a quem os problemas de saúde nunca tiraram a vontade de preparar pratos de eleição.

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Caçoilos de barro são um elemento obrigatório na confecção da lampantana

CONFRARIA PROMOVE LAMPANTANA

2018 Colectividade, criada em Março de 2018, assume a promoção desta especialidade gastronómica e a divulgação do concelho de Mortágua como desígnios

Acarne tenra solta-se dos ossos e desfaz-se na boca. A batata “fardada”e o verde dos grelos ajudam a aprimorar os bons sabores. Sabores temperados com um saber ancestral, cozinhados em caçoilos de barro, em forno de lenha Falamos da lampantana, a especialidade gastronómica de Mortágua que a Confraria jurou defender e promover.

Um projecto associativo que surgiu em Março de 2018 e tem dado que falar, apostado em «promover este prato e o concelho de Mortágua». Um desafio liderado por Carlos Jorge, “caçoilo-mor” (presidente da direcção) da Confraria da Lampantana, que, apesar de preferir «ficar na sombra», se viu “empurrado” para a “linha da frente”. A primeira grande “batalha” tem a ver com o próprio nome do prato. «O nome lampantana caiu em desuso», com o prato a ser assumido como “chanfana”, embora seja confeccionado com carne de ovelha.

Carlos Jorge não consegue perceber a razão desta “confusão” e muito menos o “esquecimento” em que caiu o nome lampantana. «Há pessoas que dizem que inventámos o nome, o que não é verdade», garante, lembrando que em pequeno, em Angola, onde nasceu, sempre ouviu os pais, naturais de Mortágua, referirem-se a este prato como lampantana. Os restaurantes servem, mas «chamam-lhe chanfana». Só no Fim-de-Semana da Lampantana, uma iniciativa dinamizada pelo município - que

Confraria voltou, este mês, a reunir a família e a entronizar novos elementos

elogia abertamente - , é que a lampantana ganha foros de cidadania, lamenta, empenhado em mudar este estado de coisas e chamar os “bois”, neste caso a ovelha, pelo seu próprio nome.

Carne de ovelha, cebola, alho, louro, pimentão doce, sal, pimenta, azeite, um bocadinho de banha de porco e vinho bom«se for de Mortágua, melhor» - são os ingredientes. A carne é colocada em caçoilos de barro vermelho, vidrados, e coze em forno de lenha.

O “Caçoilo-mor” é um grande defensor dos caçoilos de barro vermelho, pois, sendo vidrados, impedem uma maior absorção de sabores e constituem um ganho acrescido em termos de higiene. Só lamenta que a tradição oleira tenha sucumbido em Mortágua. «Já não temos nenhuma olaria», diz. Além da lampantana, a confraria também defende e promove os negalhos. Um prato feito com o bucho da ovelha, recheado com várias carnes, cosido com linha e cozinhado igualmente em caçoilos, no forno,

com vinho e com os restantes temperos da lampantana. «O animal era aproveitado na integra», diz, referindo a lã, a pele, a carne, as tripas e até o estrume, usado na fertilização das terras.

Quanto à origem do prato, reza a lenda«mas não é mais do que uma lenda», adverte – que a lampantana teria “nascido” na altura das Invasões Francesas, quando, para afastarem os invasores, as populações envenenaram a água dos poços, sendo, por isso, obrigadas a cozinhar com o vinho guardado nas adegas. Uma lenda que vale o que vale, mas que não deixa de dar mais um condimento de mistério ao prato.

A Confraria realizou o seu primeiro capítulo em 2018 e devido à pandemia foi obrigada a cancelar este evento nos últimos dois anos. Este ano, no dia 15 de Maio, assistiu-se ao terceiro capítulo, onde foram entronizados mais 15 novos elementos, aproximando o número de confrades da centena.

Um grupo de “guerreiros” empenhado em defender o trono da lampantana.

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cães-guia

anos com

ÚNICA ESCOLA DE CÃES-GUIA

inibiu o contacto, restringido à “família” da escola. «Aqui começam a ser “manipulados”» ou seja, iniciados no contacto, na proximidade e vivência com as pessoas. Mas também a perceberem que «o chefe da matilha tem duas pernas», adianta o veterinário.

Com três meses e com o plano de vacinação completo, os simpáticos labradores rumam para as famílias de acolhimento. Gil Coronha faz parte deste universo de retaguarda, essencial ao funcionamento da escola. Natural de Viseu, a residir em Mortágua, tem a particularidade de acumular duas experiências, pois além de ser um dos técnicos da escola, onde exerce as funções de pré-educador, é também família de acolhimento.

1996 Projecto arrancou em 1996, sob a égide da escola profissional. Em Dezembro de 1999 nasce a Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual, a única escola de cães-guia do país

Opkine está com os seus oito rebentos na maternidade. Os pequenos cachorros, quatro pretos e quatro brancos, nasceram em Dezembro. É a segunda ninhada desta cadela, de origem francesa, que se encontra na Escola de Cães-Guia de Mortágua. «Destes oito, aproveitamos, garantidamente, quatro. Nunca aproveitamos os oito. Até podem ser muito bons, mas não nos interessa ter oito cães com a mesma idade». Palavras de João Fonseca, presidente da direcção e um dos fundadores da Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV). Um facto a que se juntam outros, com destaque para o reduzido número de educadores. «Se tivéssemos sete ou oito educadores era possível». Todavia, uma vez que são quatro, serão quatro, eventualmente cinco, os filhotes da Opkine que vão cumprir o moroso processo de formação tendente a “criar” um cão-guia.

Felizes, os oito cachorros brincam no espaço da maternidade, o local onde as três reprodutoras da escola têm as respectivas crias. Um processo que obedece a um aturado critério de selecção, tendo em conta

as características dos animais que mais se adaptam a esta causa.

«Basicamente só trabalhamos com labradores», diz João Fonseca, que apresenta as mais-valias associadas a esta raça. Na primeira linha está a «sociabilidade». «O trabalho de um cão-guia não é só técnico», faz notar. Significa que, além de guiar o cego, «com rapidez e segurança», «proporcionando-lhe autonomia», a função do cãoguia comporta, igualmente, «uma lógica de inclusão», o que significa um “convite” à aproximação. «Um labrador induz a conversa, aproxima as pessoas», contrariamente ao que acontece, exemplifica, com um pastor-alemão, raça que pode ser, em termos técnicos, igualmente eficiente, mas que «afasta» as pessoas. Significa que no domínio dos afectos «o labrador ganha aos pontos».

As três reprodutoras vivem em casa de famílias de acolhimento, mas é sempre na maternidade da Escola que têm os respectivos partos. Em média nascem três ninhadas por ano. A Opkine teve oito filhotes. É a média. Mas podem ser nove… ou mesmo 12. Grosso modo, metade de cada ninhada é “aproveitada”, o que representa 15 a 16 cães por ano. Os restantes seguem para França, país onde a Escola de Mortágua “bebeu” o seu saber-fazer e com o qual mantém uma relação de colaboração.

É aqui, na maternidade, que os cachorros começam o seu processo de socialização. O facto de, aquando da nossa visita, ainda não terem concluído o ciclo de vacinação,

Gil está no relvado a passear a Snow, uma cadela com oito meses. Actualmente com 27 anos, conta-nos que foi a mãe que o introduziu neste projecto de voluntariado que constitui a alma das famílias de acolhimento e que, mais tarde, como aluno de Ciência e Tecnologia Animal, na Escola Superior Agrária de Viseu, «ganhou mais sentido». Desde 2013 que é família de acolhimento e pela sua casa já passaram oito cães. De resto, Gil tem um papel essencial, dentro do organograma da escola, na ligação e relação com as famílias de acolhimento.

Sofia Gomes, de 24 anos, natural do Porto, licenciada em Ciência e Tecnologia Animal pela Escola Agrária de Viseu, também é pré-educadora e uma das suas funções é acompanhar passo a passo todos os momentos da ninhada e proceder ao respectivo registo. Um acompanhamento que implica «a avaliação do comportamento e da personalidade dos cachorros», tendo em vista seleccionar aqueles que vão avançar para a formação. A «facilidade de contacto e de aprendizagem», «a forma como mamam», bem como o facto de «não terem medo» são elementos essenciais para a selecção, explica Sofia, uma apaixonada por cães-guia, que também é família de acolhimento. As oito simpáticas bolinhas de pêlo são pesadas todos os dias, pois este é um indicador essencial do seu bom desenvolvimento. A referência é que ao 10.º dia tenham atingido o dobro do peso de nascença, que ronda as 400 gramas.

Todos estes dados são devidamente registados, no âmbito de um sistema de certificação de qualidade da escola. Esta “auditoria” comportamental continua posteriormente, com o “boletim” de cada animal

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Mortágua Diário de Coimbra
Gil Coronha e João Fonseca explicam o funcionamento do arnês

50 Escola de cães-guia 90 anos com Mortágua

a reunir todas as informações relevantes sobre cada uma das fases do desenvolvimento, que permitem traçar o seu perfil.

Famílias de acolhimento

Com três meses e as vacinas tomadas, os cachorros vão para as famílias de acolhimento – cerca de 40 – localizadas no eixo Coimbra-Viseu - para iniciar o animal num processo de socialização, que, além se «habituar às pessoas», à vivência social, contempla um conjunto de «regras de obediência a ordens básicas». «As famílias têm o cão durante um ano e vão com ele a tudo o que é espaço público», diz João Fonseca. Gil Coronha apresenta o “colete” cor-delaranja identificativo, que o animal usa nestas saídas.

A escola suporta a alimentação, vacinas, desparasitação, tudo o que for necessário para manter a boa saúde do animal e está sempre disponível para, além das visitas regulares, dar resposta a qualquer situação.

O “comer à ordem” faz parte do treino mais básico. Um cão pequeno come três vezes ao dia, mas a comida tem a sua lógica e ordem muito própria. João Fonseca destaca os «dois aspectos» que envolve. Por um lado a «refeição» e, por outro, a «educação do intestino». Significa que as refeições têm de ser em horário específico para que as necessidades também sejam feitas na hora própria. «É uma referência importante para o biorritmo do animal», afirma, fazendo notar que se o animal comer sem horários, faz as necessidades de forma idêntica. A alimentação também está estritamente ligada à componente educacional. «Uma das coisas de que estes cães mais gostam é de comer», diz, o que significa que a comida representa «um prémio».

Gil exemplifica, dando uma ordem a Snow, que obedientemente se senta e recebe a recompensa, «umas migalhas de ração». Nova ordem, imediatamente cumprida, com a labrador a deitar-se e a receber o prémio. «A comida é a recompensa». Mais tarde, para o cão-guia, a recompensa está no «elogio», nas palavras do cego.

Aos 12 meses, os cães «começam a vir para a escola com mais regularidade», explica Gil, que juntamente com Sofia Gomes dá início a um «treino mais específico», de forma a capacitar os animais para «situações mais exigentes». Trata-se, por exemplo, de suportar barulhos repentinos, situações de stress e corrigir situações que

as famílias de acolhimento não conseguiram. «Fazemos muito treino de obediência», refere Gil, sublinhando que, nessa altura, o animal «já tem alguma maturidade» e «uma boa percepção das coisas» e «quando o educador precisa temos de ter o cão pronto» para a nova fase de aprendizagem.

Um processo mais complexo, desenvolvido em «contexto real», explica João Fonseca. O que quer dizer que são “lições” dadas fora da escola, com os cães e os quatro educadores – Vítor, Sabina, Marta e Tiago - a viajarem para Coimbra ou para Viseu. É aqui, em plena rua, no movimento de peões e de viaturas, que os cães «aprendem a encontrar caminho», a localizar as passadeiras, a paragem do autocarro. «O cão garante resposta para ir de um ponto A a um ponto B». Todavia, podem surgir obstáculos, por exemplo, um carro no passeio. «O cão tem de ter capacidade de opção face ao imprevisto, ter maturidade para encontrar alternativas», sublinha.

Cego tem de reunir condições Todavia, adverte, «o cão não é um robot!». O que quer dizer que não está programado, antes «obedece a ordens». Significa, também, que «não podemos entregar um cão-guia a qualquer pessoa». «O cego tem de saber dar ordens», «ter capacidade para dar indi-

cações ao cão» e ter «capacidade de orientação espacial e de se movimentar». Se assim for, com a necessária formação, para aprender a dar as ordens certas, a bengala pode ser substituída por um cão-guia.

A escola procura o cão mais adequado ao perfil do cego e a dupla começa por se conhecer, criar empatia, cumplicidade. Nesse sentido, o programa de formação prevê, primeiro, que o cego passe uma semana na escola - há dois apartamentos disponíveis - onde aprende as regras e ordens a dar ao seu guia. Segue-se outra semana, no ambiente do cego, onde a dupla aprende a familiarizar-se com as suas rotinas, desde o apanhar o autocarro, o metro, ir a casa de familiares, à pastelaria, às compras…

O arnês é um elo fundamental na relação da dupla. Gil explica as suas funções. Primeiro é um elemento de identificação. «É a farda do cão-guia». «Quando está sem o arnês, é um cão como os outros, com o arnês está em trabalho, é um cão-guia». Significa que, mais ninguém, tirando o cego pode ou deve tocar neste equipamento. «O arnês é o volante do cão», sintetiza. «O cão transmite informação ao cego através do arnês», enquanto «o cego dá informação ao cão através da voz». O arnês é, igualmente, sinal de alerta: «ninguém deve intervir»!

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A ninhada mais recente nascida na escola. Dos oito labradores, seguramente metade receberá aqui a sua formação

Investimento de 20 mil euros

24 meses é o tempo médio para preparar um cão-guia. Um processo cumprido por etapas, onde só se passa para a seguinte quando se ultrapassaram os objectivos da anterior. A fase de formação propriamente dita envolve uma média de «113 horas de trabalho por cão», o que significa «vários meses». «É impossível trabalhar duas, três ou quatro horas com um cão», assegura João Fonseca, garantindo que cada sessão de trabalho específico não poderá ir muito além dos 20, 30, até 40 minutos, o tempo de “concentração” do animal. Quanto aos custos, o presidente da direcção aponta, «em números redondos», um valor de «20 mil euros por cada cão», tendo em conta o orçamento anual da escola e o número de cães que “produz”. Todavia, os cegos pagam zero pelo seu cão-guia, no quadro de um acordo entre a escola e a Segurança Social. Suportam, sim, a alimentação, a partir do momento em que têm o animal. Ração que podem adquirir em condições mais vantajosas através da escola e que, além da poupança, representa uma garantia relativamente à qualidade da alimentação.

Trabalhar com seniores e crianças

Além de inviabilizar a realização de eventos de angariação de fundos, a pandemia trouxe um problema grave à escola. «Perdemos cães por inactividade», sintetiza João Fonseca. «Estes cães precisam de andar com o cego, de trabalhar». Tudo o que não aconteceu. «Ficaram parados», «perderam muitas das suas capacidades», «começaram a desenvolver taras e fobias e tivemos de os reformar». Uma situação que fez nascer um novo projecto, que avançou em Dezembro de 2021, com apoio do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego. «É uma forma de evoluirmos» e de criar um novo foco, centrado na população sénior e em crianças com necessidades educativas especiais.

O parceiro essencial é, mais uma vez, a Câmara de Mortágua e o projecto tem três objectivos essenciais: desenvolvimento das competências motoras e de motricidade, das competências cognitivas e emocionais, e da afectividade. «O objectivo, um dia, é fazer cães de assistência para entregar às famílias, como fazemos para os cegos». «É um projecto para o futuro».

Lista de espera com três anos

O primeiro cão-guia formado em Portugal, a Camila, foi entregue em 1999 a Augusto Hortas, de Vila Franca de Xira e está enterrada, no relvado da escola. Actualmente a escola “produz” uma média de 16 cães/ano e «mais de metade são para substituir», com sete/oito entregues a novos utilizadores.

João Fonseca admite que há uma lista com algum peso de candidatos, cujo processo espera por avaliação. Uma fase morosa, que permite falar de uma lista de espera com três anos, com a ressalva de algumas candidaturas não serem validadas, por não reunirem os requisitos necessários. Quando as candidaturas são validadas, a espera ronda um ano.

A escola tem 245 cães formados, dos quais 140/150 estão em trabalho. Até Outubro espera atingir os 250 cães-guias e celebrar este objectivo na tradicional gala, «um momento simbólico», importante para dar a conhecer a escola e para agradecer à vasta família que permite formar cães-guia.

Escola Profissional na origem do projecto

Na origem da Escola de Cães-Guia de Mortágua está um projecto da Escola Profissional Beira Aguieira. João Fonseca é um dos fundadores. Na altura, era professor de Produção Animal. Veterinário de formação e apologista de uma educação mais prática e menos formal, professor e alunos envolveram-se na educação de ninhadas de cachorros, numa perspectiva de apoiar cegos. Uma circunstância a que, reconhece, não é alheio o facto de o sogro, o professor Júlio Paiva, ter dedicado toda a sua vida a instruir e promover a mobilidade dos cegos.

Na altura, «Portugal era o único país da União Europeia que não tinha uma escola de cães-guia», recorda, sublinhando a conjugação de circunstâncias, com a possibilidade de as escolas profissionais se candidatarem a projectos de apoio à temática da deficiência (programa Horizon). «Concorremos. Não tínhamos maturidade e não tínhamos parceiros», reconhece, explicando a não aprovação. Mas a escola não baixou os braços. «Andámos dois/três anos a correr para financiarmos visitas a Espanha, França e Inglaterra e quando, em 1996, fizemos a segunda candidatura, já tínhamos dois parceiros franceses e suecos». Orgulhoso, João Fonseca lembra que o parceiro francês era a Federação das Escolas de Cães-Guia.

Aprovado o projecto, a escola deitou mãos à obra. Câmara de Mortágua, Direcção Regional da Educação do Centro (DREC) e ACAPO (Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal) foram os parceiros. Coube à DREC seleccionar os dois técnicos que «foram três anos para França, fazer formação». «O projecto arrancou em 1996 e acabou em 1999. A 30 de Dezembro de 1999 foi assinada a escritura de constituição da Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual. «Começámos com quatro pessoas. Hoje somos 13. Começámos com três/quatro cães, hoje temos 16».

“Sagrado” foi, desde o início, o carácter gratuito dos cães-guia. «Fizemos um acordo com a Segurança Social, que tem vindo a ser renovado, para a formação de 16 duplas por ano». Acordo que representa «cerca de 60% do nosso orçamento». Os restantes 40% a ABAADV vai buscá-los a patrocinadores, empresas, sócios, amigos e à organização de eventos.

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O MISSIONÁRIO DO POVO

1877-1968 Escritor, poeta, jornalista, professor, pedagogo e político, Tomás da Fonseca é uma verdadeira lenda. Um republicano amigo do povo, um amante da liberdade, um opositor a todos os regimes ditatoriais

Irreverente e inconformado, Tomás da Fonseca foi um homem à frente do seu tempo. Um revolucionário. Um homem que usou a força da palavra para defender os seus ideais. Frequentou o Seminário, que deixou, e transformou-se num anticlerical militante, desencadeando uma luta titânica contra o obscurantismo da Igreja. Uma das grandes batalhas da sua vida, a que se junta uma oposição férrea a todos os regimes ditatoriais que conheceu na sua longa vida de quase 91 anos.

Tomás da Fonseca tem, garantidamente, um lugar na história. Sobretudo na História de Mortágua. Mais do que isso, tem um lugar cativo no coração dos mortaguenses. «É quase uma lenda em Mortágua», garante Luís Filipe Torgal, historiador e investigador, autor da mais completa obra biográfica sobre José Tomás da Fonseca. “Tomás da Fonseca – Missionário do Povo”, um trabalho de investigação efectuado no âmbito do doutoramento em Estudos Contemporâneos, na Universidade de Coimbra.

«Uma das suas características mais inte-

ressantes é ser um republicano que não é de origem burguesa», sublinha, lembrando que Tomás da Fonseca nasceu em Laceiras, no seio de uma família de camponeses. Uma família com a tradição de ter um padre na família. O desafio coube-lhe em sorte. Era o segundo filho varão, de uma vasta prole de sete irmãos, que aprendeu a ler na Escola Móvel, fazendo caminhadas diárias de 10 quilómetros.

O Seminário de Coimbra foi a sua segunda escola, marcante na sua formação e no caminho que trilhou. Em vez de um padre, o Seminário “produzia” um ateu convicto, férreo crítico da Igreja. «Dez anos da minha mocidade perdidos na sombra destes subterrâneos mefíticos, entre o incensar dos ídolos e a bajulação untosa dos hipócritas», escreve. Desilusões sobre desilusões, «todos os dias, a todas as horas», que o levam, com 26 anos a tomar a «decisão radical e definitiva» de deixar o Seminário.

«Como Eva da lenda do paraíso eu vi-me nu e abandonado por Deus», confessa Tomás da Fonseca. «O espírito livre-pensador e libertário de Tomás da Fonseca rejeitou submeter-se às rígidas imposições disciplinares, regimentais, pedagógicas, doutrinais, morais, teológicas, canónicas impostas dentro dos quatro muros do seminário», refere o historiador.

O anticlericalismo vai ser, indiscutivelmente, a marca dominante da vida e da obra de Tomás da Fonseca, considerado o

«escritor anticlerical mais tenaz e icónico do século XX português – pela quantidade de textos, quase sempre com propósitos panfletários e doutrinários, providos com este registo temático, que publicou em periódicos, opúsculos ou livros, ao longo da sua vida cívica», diz Luís Filipe Torgal.

O investigador recorda que José Lopes de Oliveira o classificou, em 1949, como «o escritor anticlerical português de maior renome». Raul Rego chamou-lhe «apóstolo laico», «o símbolo dos livres-pensadores portugueses», e David Mourão Ferreira apelidou-o de «apóstolo cívico» ao «serviço de uma libertação espiritual do povo». Guerra Junqueiro definiu-o como «missionário do povo», expressão que o historiador usou para titular a sua obra.

Uma expressão com uma forte conotação religiosa, «aquilo que Tomás da Fonseca mais repugnava», reconhece Luís Filipe Torgal, mas que se adapta na perfeição à vivência do professor, à influência do pedagogo, ao verbo esgrimido pelo político que faz da causa da educação um verdadeiro «sacerdócio». Educação que, no ideário de Tomás da Fonseca representa, simultaneamente, um «apelo à desalienação e consequente libertação do povo camponês». Uma luta entre a verdade e o obscurantismo, a razão e a fé que amplamente desenvolveu nos “Serões da Montanha”, a sua obra mais icónica, «em que a mensagem de cariz livre-pensadora, anticlerical, laicista, positivista, ateísta e anticapitalista emergiu associada a uma arrebatada convicção anti-monárquica de substracto socialista ou mesmo anarquista», refere o historiador.

«Precisamos de demonstrar que em Portugal quem manda não é o Papa, mas sim, unicamente, a Constituição(…) Urge que todos nós façamos compreender aos indecisos portugueses que não se pode servir dois senhores. Não se pode defender a República e defender ao mesmo tempo o inimigo dela», afirmava Tomás da Fonseca, denunciando que «o maior inimigo da democracia(….) é o clericalismo».

«Quando sai do Seminário mergulha quase imediatamente no mundo da política». Cria ligações muito próximas com Guerra Junqueiro, Bernardino Machado, Afonso Costa, entre outros e «entra para a maçonaria». Com a República, assume funções de chefe de gabinete do ministro do Fomento, foi deputado da Assembleia Constituinte e, mais tarde, senador.

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Tomás da
Fonseca 90 anos com Mortágua
Diário
de Coimbra Tomás da Fonseca com a esposa, Clotilde, e os filhos António e Tomás

A causa da educação

Os cargos políticos permitiram-lhe abraçar e defender a causa da educação, uma das suas missões de vida. Uma «vocação precoce» que o levou, ainda estudante do Seminário, «a criar um curso informal nocturno para alfabetizar os trabalhadores mais desvalidos desta instituição», recorda o historiador. A mesma vocação que o motivou a participar «nas missões cívico-pedagógicas das escolas móveis, que alfabetizaram crianças e adultos proletários, oriundos das freguesias mais inóspitas do país». Ou ainda, durante o Sidonismo, quando, nos calabouços da Penitenciária de Coimbra iniciou aulas de alfabetização para reclusos. É essa vontade de aprender e ensinar que o leva, nos anos 20, a visitar escolas, museus e bibliotecas de França, Inglaterra e Bélgica, para «tomar conhecimento das novas práticas pedagógico-didácticas». E, depois de ter colaborado com a Universidade Livre de Lisboa (1912), «inaugurou, em 1925, ao lado de Aurélio Quintanilha e Joaquim de

Carvalho, a Universidade Livre de Coimbra, destinada a «operários e trabalhadores desfavorecidos».

Como deputado e senador deu o «seu contributo» para «ajudar a corporizar as reformas possíveis», refere o historiador, apontando os sucessivos projectos de lei que redigiu no sentido da ampliação da «incipiente e vulnerável rede de escolas primárias nacionais, melhorar as suas instalações e recursos didácticos, bem como

dignificar o labor e o estatuto social dos docentes» e, inclusivamente a criação de cantinas escolares. Luís Filipe Torgal destaca, ainda, a sua participação em «iniciativas de educação popular e livre, impulsionadas no seu concelho», designadamente nos «projectos associativos das escolas livres da Irmânia e de Mortágua» e na dinamização do Círculo de Leitura de Mortágua.

«Tomás da Fonseca converteu-se, pois, numa espécie de missionário, de “sacerdote laico” que ambicionou colaborar, militantemente, no processo de alfabetização, culturalização, descatolização, laicização, republicanização, democratização e socialização do país. Ambicionou contribuir para a concretização destes desideratos nas funções de publicista e propagandista, de parlamentar e de professor, onde a sua voz de pedagogo, ou melhor dizendo, de “educador popular” de uma república socialista, laica e positivista não deixou de ecoar e de concorrer para uma verdadeira revolução das mentalidades, que estava em curso desde as últimas três décadas do século XIX», sintetiza Luís Filipe Torgal.

Diário de Coimbra 90 anos com Mortágua Tomás da Fonseca 53

Patriarca da oposição

«É um opositor de todos os regimes ditatoriais. Do Sidonismo, da ditadura militar, do Estado Novo», afirma Luís Filipe Torgal, que destaca o facto de Tomás da Fonseca ter sempre defendido «uma República com preocupações sociais, anticlerical e laicista, na linha de Afonso Costa». «Foi um homem de grande coragem», que «nunca vergou o seu espírito de socialista libertário, defensor dos oprimidos, de uma escola aberta e inclusiva, acessível a todos», sem esquecer a visceral «antipatia pela Igreja Católica e pela influência que tinha e que voltou a ter um peso enorme durante o Estado Novo».

«É uma espécie de patriarca das oposições», adianta o investigador, professor no Agrupamento de Escolas de Oliveira do Hospital. Um estatuto que ditou a sua prisão e a visita frequente da PIDE a sua casa e a censura, apreensão e proibição de muitos dos seus livros.

Defensor da Beira

“O que a Beira apresenta” foi o título do manifesto que, em nome dos «interesses dos republicanos da Beira», Tomás da Fonseca redigiu e apresentou no congresso do partido, em 1925, em Coimbra. Denunciando o «centralismo lisboeta» e «a má gestão da coisa pública», defendia a «descentralização administrativa», afirmando ser «chegado o momento de exigir a nossa emancipação do Terreiro do Paço» e apontava um pacote de medidas «justas, necessárias e urgentes», de «fomento económico, social, educativo e artístico-cultural». No campo do fomento industrial e agrícola propunha, designadamente, escreve o historiador, «a construção de barragens para aproveitamento de energia hidroeléctrica, a começar pela construção da barragem do Mondego, nas alturas de Gondelin». Defendia, ainda, a «arborização das serras e demais terrenos impróprios para exploração cerealífera», bem como o «repovoamento florestal das planícies» e a «abertura de canais e a exploração de nascentes e cursos de água para irrigação, a ligação do Mondego com o Liz e a Ria de Aveiro, por meio de um canal que sirva, ao mesmo tempo, a agricultura, o comércio e a indústria». O

Porto da Figueira da Foz «deveria converter-se no pólo natural e obrigatório de todo o intercâmbio do centro do país», advogava. O ensino gratuito e obrigatório, com assistência aos filhos de famílias necessitadas, era outra das propostas, assim como a criação de Casas do Povo, «providas com ginásios, curso nocturnos, salas de conferência e bibliotecas».

Definiu o funeral 20 anos antes

Mais de 20 anos antes de morrer, escreveu os ditames que queria fossem seguidos no seu funeral: «Repugnam-me os caixões de luxo e sobretudo os forrados a chumbo. Guardem esses para os tolos, insignificantes, argentários, comendadores e semelhantes. Para mim quatro tábuas de madeira de pinho e vou contente. Reconhecida a minha morte, não se afadiguem a torturar-me os membros para me envergarem a indumentária do costume – desde meia e sapato, à camisa engomada e casaco de bom pano. É absurdo e ridículo. Basta-me um simples lençol ou mortalha de pano, leve que a ninguém falta. Peço mais: que me livre de coroas, de tronos, de gritos e de lágrimas. Os que de mim tiverem pena que imitem os meus actos que se hajam considerado justos e humanos. Isso sim, me dará consolação. Mais ainda: não vistam de luto. Para quê?. Detesto luto, que tanta vez obriga os pobres a encargos que mais os empobrecem ainda, visto que o luto é caro». Um texto «escrito a vermelho», que o investigador encontrou numa das 30 pastas com documentos na Biblioteca Nacional». Pastas que contêm «muitos textos manuscritos» e «coisas inéditas», que «merecem investigação», considera.

Perfil

José Tomás da Fonseca nasceu a 10 de Março de 1877 em Laceiras, freguesia de Pala, Mortágua. Começou a sua vida trabalhar no campo e regressou ao campo e aos trabalhos agrícolas depois de anos de militância política, passados em Lisboa e em Coimbra. Escritor, poeta, jornalista, professor e político, Tomás da Fonseca foi um republicano convicto, ateu e anticlerical, que usou, sem temor, a palavra para defender os seus ideais. Lutou contra a monarquia, rejubilou com o advento da República e manteve a sua voz activa, opondo-se à ditadura militar e ao Estado Novo. Foi chefe do gabinete do ministro do Fomento e deputado, professor e pedagogo de renome e um acérrimo defensor da alfabetização do povo e da escola inclusiva. Esta é uma das temáticas mais abrangentes da sua vasta obra, publicada em livros, opúsculos, revistas e jornais. Obra que se tornou conhecida pelo seu arreigado espírito anticlerical e que motivou a sua prisão, perseguição e censura pela PIDE.

Tomás da Fonseca casou com Clotilde Madeira Branquinho a 14 de Fevereiro de 1904. Teve dois filhos, António José Branquinho da Fonseca (engenheiro) e Tomás Branquinho da Fonseca (escritor). Faleceu a 12 de Fevereiro de 1968, em Lisboa e o funeral realizou-se no dia seguinte, no cemitério de Mortágua. Em 1977, uma comissão de amigos e conterrâneos assinalou, em Mortágua, o centenário do seu nascimento. O executivo camarário associou-se às cerimónias que incluíram a inauguração e uma lápide na casa onde nasceu, sessão solene nos Paços do Concelho e o descerramento do seu busto, na Praça 25 de Abril, no centro de Mortágua.

Tomás da Fonseca foi agraciado, em 1984, a título póstumo, pela Presidência da República com o título de Comendador da Ordem da Liberdade.

54 Tomás da Fonseca 90 anos com Mortágua Diário de Coimbra

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