A SANÇÃO PENAL: FUNDAMENTO, REALIDADE E NECESSIDADE
Roberto Lyra nos ensinou que o "fundamento da pena, que não resulta de um conceito jurídico, foi conduzido para abstração filosófica" e que, tendo se formado diversas teorias são, todavia, classificáveis apenas "para fins didáticos". Mas, ninguém pode negar que os estudiosos do direito penal sempre se preocuparam com o fundamento – a razão de ser – e a finalidade, o objetivo, da pena. Por quê punir alguém? Com qual objetivo? Para quê, com qual finalidade? Essas
são
questões
importantíssimas,
com
respostas
até
hoje
não
satisfatoriamente encontradas. Nenhum estudioso sério do direito penal poderia deixar de passar em brancas nuvens a necessidade de discutir as bases e os fundamentos da pena criminal. CLAUS ROXIN indaga "com base em que pressupostos se justifica que o grupo de homens associados no Estado prive liberdade algum dos seus membros ou intervenha de outro modo, conformando a sua vida?" É indispensável conhecer o fundamento da pena criminal, mas bem mais verdadeira é a necessidade de que ela seja justificada, possa ser considerada justa, enquanto realização do interesse maior dos interesses da coletividade. Por isso, precisamos verificar a razão de ser da pena, e a justeza de sua existência concreta. Será isso possível? eis a indagação. Partindo da verificação da natureza fragmentária, subsidiária, limitada, do direito penal, vale dizer, de sua missão de proteger apenas os bens jurídicos mais importantes, e, tão somente, das lesões mais graves, o Estado só pode construir tipos de crimes que constituam comportamentos dessa natureza, e, ao fazê-lo, estará, certamente, buscando a prevenção generalizada dessas lesões ou ameaças. Este, portanto, o primeiro fim da pena, o de prevenir as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes. De notar que esse fim está restringido desde a construção dos tipos, somente admissíveis quando for absolutamente necessário para a proteção dos bens jurídicos, quando os outros ramos do direito se mostrarem insuficientes ou incapazes de proporcionar a tutela. Não sendo alcançado o primeiro objetivo da pena, o que ocorre quando o indivíduo comete o crime, a pena destina-se a prevenir a continuidade do sujeito na atividade agressiva dos bens jurídicos importantes, com a observação da sua
responsabilidade individual, ou seja, da sua culpabilidade, que vai limitar a aplicação da resposta penal. Aqui se entremostra a prevenção especial. Finalmente, só é possível compreender e justificar a pena, se ela tiver como objetivo a recuperação do agente do crime, o seu aperfeiçoamento, a aprendizagem dos valores éticos-sociais cultivados pela sociedade a fim de, alcançando-os, poder voltar ao convívio social em liberdade. Esta finalidade ética é indispensável para justificar a pena, pois que sem ela a dignidade humana restaria inexoravelmente violada. "Com efeito, a realidade social exige que a comunidade seja protegida de agressões do indivíduo, mas também que o indivíduo o seja de uma excessiva pressão por parte da sociedade. E o próprio delinqüente constitui, por um lado, uma pessoa débil e urgentemente carenciada de um tratamento terapêutico-social e, por outro lado, há que encará-lo de acordo com a concepção de homem livre e responsável, na medida em que um ordenamento jurídico que possua uma noção demasiado pequena do homem, acaba por dar origem à tutela e à falta de liberdade. Esta dupla polaridade entre indivíduo e coletividade, e também entre o fenômeno empírico e a idéia de homem, constitui o ponto de tensão de qualquer problemática social, que em cada caso também se representa na sua totalidade por uma fragmentação como aquela que o direito penal contém. Uma teoria da pena que não pretenda manter-se na abstração ou em propostas isoladas, mas que tenha como objetivo corresponder à realidade, tem de reconhecer estas antíteses inerentes a toda a existência social para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na realidade, um direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido da prevenção geral se, ao mesmo tempo, preservar a individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo delinqüente também é, afinal, o mais proveitoso para ela; e que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade moral se, a par da consideração da sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta. A teoria da prevenção geral, que visa a prevenir a ocorrência de novos delitos, é chamada, modernamente, de teoria da prevenção negativa, exatamente para se destinguir da chamada teoria da prevenção geral positiva. Esta teoria abandona a função instrumental da pena, construindo, no lugar, a função simbólica. "Segundo esta teoria, a função da pena não se dirige nem aos infratores atuais nem aos potenciais. Ela se dirige
sobretudo aos cidadãos fiéis à lei, aos que supostamente manifestam tendência ‘espontânea’ a respeitá-la. Em relação a estes, a previsão ou aplicação das penas não têm a função de prevenir delitos (prevenção negativa), senão a de reforçar a validade das normas (prevenção positiva): isto significa também restabelecer a ‘confiança institucional’ no ordenamento, quebrada pela percepção do desvio. Um dos principais representantes desta teoria define o fim da pena como o ‘exercitar os cidadãos para a validade da norma’, fórmula esta que não se encontra muito longe daquela proposta por Andenaes, que falava da ‘educação’ dos cidadãos de acordo com as leis." Diante dos problemas derivados do aumento incontido da criminalidade grave, aos quais se acrescem os decorrentes da falência dos sistemas penitenciários, a teoria da prevenção positiva marcha para a construção de um direito penal simbólico, onde o legislador não apresentaria as soluções para modificar a realidade, mas apenas proposições destinadas a alterar a imagem da realidade, vale dizer, criar, junto às populações, a ilusão de que seus interesses, os seus bens, estão devidamente protegidos pelo ordenamento jurídico, pelo Estado. O poder político, uma vez mais, engana a opinião pública. Estamos, presentemente, assistindo, não só nos Estados Unidos da América e na Europa, mas, também no Brasil, à presença desta tentativa de construir um direito penal simbólico, onde o legislador declara uma intenção, quando, na realidade, deseja exatamente outra: apenas a de ludibriar a comunidade, inculcando nela a idéia de confiança no Estado. Essas proposições devem ser vigorosamente combatidas. "O cuidado que se deve ter hoje em dia em relação ao sistema de justiça criminal do Estado de direito é ser coerente com seus próprios princípios ‘garantistas’: princípios de limitação da intervenção penal, de igualdade, de respeito ao direito das vítimas, dos imputados e dos condenados. Trata-se, mais que tudo, de aplicar e transformar o direito substancial (fundamental), processual e penitenciário em conformidade com aqueles princípios, por todo o tempo em que deva durar a luta ppor uma política ‘alternativa’ com relação à atual política penal." No Brasil, em vez de propostas derivadas desse direito penal simbólico, precisamos um direito penal de intervenção mínima. Descriminalizar certos fatos, despenalizar, limitar as penas privativas de liberdade apenas aos crimes cometidos com violência, construir outras modalidades de penas – restritivas de direitos, de prestação de serviços, dentre outras que a criatividade deve indicar – evitar, enfim, o encarceramento de delinqüentes de menor ou ínfima perigosidade, enfim, construir um
direito penal essencialmente tutelar, fragmentário, voltado, exclusivamente, para a proteção dos bens jurídicos. O caminho a ser trilhado é o percorrido pelo legislador que constituiu a Lei nº 9.099, e que deve logo revogar a Lei dos Crimes Hediondos, e que está na obrigação de também revogar a chamada do Crime Organizado, elaborando novos diplomas legislativos em substituição, que atendam àqueles princípios. A sanção penal é indispensável, pois o crime vai continuar a existir – muito provavelmente jamais será extirpado da face da terra. Enquanto agressão grave ao bem jurídico muito importante, deverá ser, sempre, objeto de preocupação e da repressão do direito, e, infelizmente, a única saída é a resposta penal, vale dizer, uma sanção mais severa, mais drástica, que simples reparação civil. A pena privativa de liberdade, atualmente a base de todos os sistemas punitivos conhecidos, todavia, está inexoravelmente falida. A história da pena é a história da sua limitação, da sua modificação, sempre no sentido de minorar-lhe a gravidade, os efeitos, a crueldade e os modos de execução. A da pena de prisão, igualmente, é a história da sua modificação, também no sentido de sua humanização, de seu abrandamento. A dos sistemas penitenciários, do mesmo modo, é a história de sua humanização e, almejamos, será a de sua eliminação. Inegável é que estamos no ocaso da pena de prisão. Esta falência não se deve apenas ao descaso com que o poder público encara o problema, o que, felizmente, faz com que toda a sociedade tome consciência da realidade e possa avançar na construção de alternativas democráticas. Mas principalmente à sua própria essência, desumana e violenta, e à impossibilidade de, com ela, alcançar qualquer objetivo ético em relação aos condenados. Até porque, na prática de todos os países, as penas de prisão vêm sendo executadas com total desrespeito aos direitos mais comezinhos dos condenados. No Brasil a situação é gritantemente absurda. Os condenados são armazenados nos presídios e nas celas das cadeias públicas como nem se tratam os animais de estimação, nem os selvagens, em compartimentos fétidos, sem mínimas condições de higiene. Segundo o último censo penitenciário, havia mais de 20 mil condenados cumprindo penas em delegacias de polícias ou cadeias públicas, locais destinados a presos provisórios, e um déficite de quase 70 mil vagas em todo o país. Mais grave, seriam 275 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos, exatamente por absoluta falta de vagas nos presídios e cadeias do país.
Vivemos um momento crucial na história do direito penal em todo o mundo. É tempo de mudar, de romper com o passado, de criar um novo sistema punitivo, em que a sanção penal seja a um só tempo severa, justa, democrática e recuperadora do condenado, para conferir proteção ao bem jurídico. Se a humanidade conseguiu chegar à lua, viajar pelo espaço sideral, buscando contato com outros planetas, conhecendo-os, explorando o universo, por que não será capaz de encontrar a solução para um problema terreno tão importante, e que não exige tantos recursos materiais?
(Ney Moura Teles – artigo publicado na REVISTA PANORAMA DA JUSTIÇA – nº 1 – ago/set-96)