TRANSFERÊNCIA DE DOMICÍLIO ELEITORAL NÃO É ESPÉCIE DE INSCRIÇÃO ELEITORAL
Dispõe o art. 290 do Código Eleitoral: “Induzir alguém a se inscrever eleitor com infração de qualquer dispositivo deste Código: Pena – reclusão até 2 anos e pagamento de 15 a 30 dias-multa. O núcleo do tipo é a forma verbal “induzir”. Induzir é fazer nascer na mente de alguém uma idéia. É persuadir alguém a fazer alguma coisa. É elemento objetivo do tipo. A ação. A conduta. O ato de induzir, de persuadir. Há outros elementos no tipo. Estão contidos na descrição típica, que exige que o agente induza, persuada, outrem a fazer sua inscrição eleitoral, com infração a qualquer das normas do Código Eleitoral. Trata-se, portanto, de norma penal incriminadora em branco, que deve ser completada por outras normas do mesmo Código Eleitoral. São os elementos normativos. O primeiro deles diz respeito à inscrição eleitoral. Os outros elementos normativos são as normas do Código Eleitoral que regulam a inscrição do eleitor, devendo ser infringida pelo menos uma delas. O que é inscrição eleitoral, referida no tipo na locução verbal “se inscrever eleitor”? Inscrição eleitoral é o conjunto de atos através dos quais o indivíduo se torna detentor do título eleitoral, e, portanto, da condição de eleitor. Está regulada no Código Eleitoral nos arts. 42 e seguintes, que tratam do alistamento, com as alterações produzidas pelas leis posteriores que trataram do alistamento pelo sistema eletrônico. Busque-se o socorro da doutrina: “O alistamento antecede o voto, como um processo eleitoral afim ou secundário. O alistamento se realiza com a qualificação e a inscrição do eleitor. A. de Sampaio Dória, em seu Direito constitucional (São Paulo, 1960, 5 v. v. 3, p. 496), assim se pronuncia: “O alistamento eleitoral compreende dois atos inconfundíveis: qualificação e a prova de que o cidadão satisfaz às exigências legais para exercer o direito de voto. Inscrição é a inclusão do nome do eleitor qualificado no rol dos eleitores”. É um processo eleitoral que consiste principalmente na composição da identidade, da idade, da filiação, da nacionalidade, do estado civil, da
profissão e da residência do eleitor, habilitando-se a inclusão do seu nome na lista (fichário dos eleitores), para os fins de voto, elegibilidade e filiação partidária, após a expedição do respectivo título eleitoral” JOAO CABRAL dizia que “a inscrição é o ato, em virtude do qual se trata de ingressar no Registro Cívico, e documentar-se para, em qualquer momento, demonstrar a aptidão indispensável para exercer o sufrágio”. Inscrição, portanto, não se confunde com transferência, regulada pelas normas dos arts. 55 e seguintes do Código Eleitoral. Vejamos. A inscrição é o segundo passo para o alistamento da pessoa que completa 18 anos, obrigatoriamente, ou 16 anos, facultativamente. O primeiro passo é a sua qualificação, após a qual é feita a inscrição. A transferência diz respeito à modificação do domicílio eleitoral daquele que já é inscrito numa determinada zona eleitoral e que, tendo mudado o seu domicílio, deseja igualmente transferir seu domicílio eleitoral. O tipo penal refere-se exclusivamente ao ato de alguém inscrever-se eleitor, não ao daquele que busca transferir seu domicílio eleitoral de uma para outra zona. A norma penal incriminadora não admite interpretação extensiva, daí que não se pode ampliar o seu alcance para alcançar também o induzimento à transferência com violação das normas legais. Ou seja, só há crime quando o agente induz alguém a inscrever-se com inobservância dos dispositivos previstos para tanto no Código Eleitoral. A dúvida decorre de uma interpretação, contida inclusive em alguns julgados do T.S.E. (RJTSE, vol. 5, n. 3, pág. 91 e RJTSE, vol. 7, n. 1, pág. 99), segundo a qual o tipo penal alcançaria também o ato de transferência, pois transferência seria espécie do gênero inscrição, daí que haveria crime mesmo quando o induzimento se desse para a transferência, e não para a inscrição. É claro que essa interpretação, ainda que feita pela Corte Superior, é absolutamente equivocada, seja porque contém erros de mera interpretação gramatical, não contém a necessária lógica jurídica, e, mais grave, ignora o teleologismo de toda norma jurídica, violando, ademais, o princípio da legalidade, inscrito na CF, no art. 5º, inciso XXXIX. Aliás, bom lembrar que ao Supremo Tribunal Federal, e não ao T.S.E., cabe decidir, em última instância, sobre a interpretação dos preceitos insertos na Constituição Federal, e sobre o tema não há notícia de que a Corte Suprema tenha se pronunciado.
Dizer que transferência de domicílio eleitoral é espécie do gênero inscrição eleitoral não resiste a qualquer interpretação. Comparando-se os dois institutos jurídicos chega-se à conclusão de que não há, entre eles, relação de gênero para espécie. Uma coisa é espécie de outra, que é o seu gênero, quando reunir, na sua composição, todos os elementos da outra, o gênero, e mais um ou outros, que lhes dão especificidade. Nem inscrição é gênero de transferência, nem transferência é espécie de inscrição. Não se confundem. Inscrição é o ato praticado pela Justiça Eleitoral de inclusão do cidadão qualificado que adquiriu o direito de ser eleitor. É obrigatória para todos os maiores de 18 anos e facultativa para os maiores de 16 anos. Transferência é o ato de modificação do domicílio eleitoral do eleitor inscrito. Inscrição é o ato que confere à pessoa a qualidade de ser eleitor, a partir da qual se torna titular de direitos políticos, de votar e de ser votado. A transferência é tãosomente o ato que transfere o inscrito de uma para outra zona eleitoral. A transferência não cria direito novo. Apenas modifica o local onde o voto será exercido, alterando o domicílio eleitoral do eleitor, o que só muda sua condição de elegibilidade para as eleições municipais, nada influenciando na elegibilidade para as eleições estaduais, se a mudança tiver sido no mesmo estado da federação, e não a modificando quanto à elegibilidade para as eleições presidenciais, mesmo quando feita de um estado para outro. Inscrição é ato que só pode ser feito para quem não é eleitor. Transferência é ato que só pode ser feito por quem já é eleitor. Inscrição e transferência poderiam ser denominadas espécies de atos complexos praticados perante a justiça eleitoral e por esta, mas uma nunca poderia ser chamada espécie ou gênero da outra, porque uma não contém todos os elementos da outra e mais alguns especializantes. A propósito, poder-se-ia perguntar: inscrição é gênero de alguma espécie? Há espécies de inscrições eleitorais? Quais? Inscrição é gênero de algumas espécies de inscrição, como a inscrição do analfabeto, a do alfabetizado, a do cego, a do brasileiro nato e a do brasileiro naturalizado, a do maior de 18 anos, a do menor de 18 anos. São todas inscrições, mas há diferenças em relação a cada uma dessas categorias de inscritos, as quais decorrem
ou da sua idade, ou do país do seu nascimento, ou do grau de instrução. Mas, todos, são igualmente inscritos. Todos, igualmente, eleitores, porém, seus direitos não são idênticos. Todos os inscritos têm direito ao voto, mas o não alfabetizado não tem o direito à elegibilidade, ao passo que o inscrito naturalizado não pode ser eleito, por exemplo, Presidente da República. Os inscritos menores de 35 anos não tem a condição de elegibilidade para o Sendo Federal. Os menores de 18 anos não são obrigados a votar, assim como os maiores de setenta anos. Já todos os inscritos, todos, sem exceção, alfabetizados, não alfabetizados, naturalizados, natos, de qualquer idade, têm o direito à transferência, que diz respeito tão-somente à mudança do domicilio eleitoral. Transferência e inscrição não são animais, nem vegetais, nem minerais. Nem seres vivos. O que têm de comum é a sua natureza de atos jurídicos. Atos jurídicos eleitorais. Atos jurídicos relativos aos direitos eleitorais. Mistos. Complexos. Que exigem a participação de servidores da justiça eleitoral e da pessoa. Seriam eles, atos jurídicos que guardam relação de gênero para espécie? Um ato jurídico é espécie de um outro ato jurídico, que é o seu gênero quando contiver todos os elementos do ato genérico e um ou mais elementos especializantes. Não pode restar qualquer dúvida. Transferência não é espécie de inscrição. Não são atos jurídicos que contém os mesmos elementos, diferenciando-se apenas em relação a alguns. Inscrição e transferência são espécies de algum gênero? Sim, são espécies de atos jurídicos eleitorais complexos, mas não guardam, entre si, nenhuma relação de gênero para espécie, porquanto têm elementos distintos, que os antagonizam, tais como a circunstância de que a inscrição é ato que só pode ser praticado em relação ao indivíduo não eleitor, ou seja, não inscrito, ao passo que, transferência é ato que só pode ser praticado por indivíduo que já é eleitor, isto é, já inscrito. Só essa característica antagônica impõe à conclusão de que uma não pode ser espécie da outra. Feita esta interpretação gramatical, lógica e jurídica, que afasta a idéia de que transferência é espécie de inscrição, é necessária a interpretação teleológica do tipo penal do art. 290 do Código Eleitoral. A interpretação teleológica ou finalística parte da consideração do bem jurídico protegido. É que os tipos penais, todos, têm como finalidade proteger determinado bem jurídico de determinadas lesões. Quanto mais importante o bem jurídico e mais grave a
lesão, maior a resposta penal. Bens muito importantes, lesionados severamente, merecerão pena maior. Bens de menor importância, menor sanção penal. O Direito Penal, ademais, é um sistema, do qual o direito penal eleitoral é um sub-sistema. Em ambos, vige o princípio da proporcionalidade, de modo que bens de valores diferentes não podem ser protegidos de lesões idênticas, com a mesma resposta penal. Assim, indispensável a valoração dos bens jurídicos, a sua consideração, para se descobrir a vontade da norma penal incriminadora. Inscrição eleitoral e transferência de domicílio eleitoral são bens jurídicos distintos. Tem valoração diferenciada. A inscrição confere ao brasileiro nato ou naturalizado direitos eleitorais. É ato jurídico indispensável para fazer nascer direitos. É ato original, sem o qual a pessoa apta não pode exercer os direitos políticos.
A
transferência de domicílio eleitoral, por sua vez, não confere qualquer direito, não legitima qualquer direito novo, mas tão-somente modifica o município onde o direito pré-existente e pré-constituído pode ser exercido. Não cria, mas modifica. E não modifica tudo. Não podem, por isso, inscrição e transferência ser colocados no mesmo patamar, porque não têm o mesmo grau de importância, daí que não poderiam, jamais, ser incluídos no mesmo tipo legal de crime. Por isso que a lei não os igualou. Mesmo que a transferência fosse, e não é, espécie de inscrição, a proteção penal não poderia ser idêntica, dados os valores distintos que merecem do direito. O fim do direito penal é proteger bens jurídicos. Valora os bens e lhes dá proteção, conforme sua importância e a gravidade da lesão. O direito penal não dá igual proteção em relação a lesões idênticas quando os bens tiverem valores diversos. Obedece à proporcionalidade. Bens de valor igual, atacados por lesões igualmente graves, terão mesma proteção penal. Mas lesões de mesma gravidade, dirigidas contra bens de valores distintos, não. Ora, como a inscrição é bem mais importante que a transferência, jamais poderiam ter igual proteção penal. Conquanto tenha o legislador penal eleitoral criado os tipos dos arts. 289, 290, 291, 292, 293 e 294, todos se referindo exclusivamente à inscrição eleitoral, e não criou nenhum tipo protegendo a transferência, a única conclusão a que se pode chegar é a de que não quis o legislador conferir proteção penal à transferência, nem, é óbvio, igual proteção a bens jurídicos de valores distintos. Há proteção penal à transferência, por exemplo, nos tipos dos arts. 348, 349 e 350 do Código Eleitoral, mas não proteção específica para os procedimentos da transferência.
Agiu o legislador penal eleitoral sabiamente, porque a transferência é um bem jurídico de menor relevância, porque não cria direito algum, daí que não poderia restar protegido pela mesma norma penal que protege a inscrição eleitoral. A transferência não cria nada, só muda o lugar onde o direito anteriormente constituído pela inscrição poderá ser exercido. Quando a lei penal eleitoral, por exemplo no art. 292, criou o tipo de crime de mão própria, tendo como agente o juiz eleitoral, realizando a conduta de negar ou retardar a inscrição requerida, teve em conta que tal comportamento importaria no impedimento do exercício dos direitos políticos do indivíduo apto que a requereu. Protegeu, assim, o direito à inscrição eleitoral, porque dela decorre o direito de votar. Viu aí uma grave lesão a um direito muito valioso. Teria a mesma norma penal pretendido estender essa mesma proteção à transferência? É óbvio que não, pois, no caso de a autoridade negar ou retardar a transferência, não restaria atingindo o direito do eleitor ao voto, pois que este poderá exercer o sufrágio na zona eleitoral onde foi inscrito. É evidente que a vontade da norma não é conferir igual proteção também à transferência, pois a conduta do juiz que atinge a inscrição é muito mais grave do que a conduta do juiz que atingisse a transferência. Ali, o direito ao voto é coarcatado, impedido de nascer, de ganhar efetividade. No segundo caso, o direito do voto continua vivo, alcançando a conduta tão-somente o direito à transferência do domicílio eleitoral. Ainda que a transferência seja um bem jurídico, não se pode ignorar que para ter proteção penal, seria necessária norma penal precisa, clara, que a incluísse. Mas é de todo certo que não mereceria igual proteção à conferida ao ataque à inscrição, que é bem de muito maior valor. Tivesse intenção de proteger também a transferência de ataques como os perpetrados contra a inscrição, a lei teria criado tipos novos, em normas penais que sancionassem os ataques com pena mais branda do que a prevista para as lesões à inscrição, atentando, assim, à proporcionalidade. Dizer que o tipo penal também protege a transferência é fazer tabula rasa do princípio da proporcionalidade. Seria o mesmo que desejar que ao aborto fosse aplicada sanção idêntica à do homicídio.
O direito penal é um sistema harmônico e
proporcional. Bens jurídicos distintos, de valores diferentes, não podem ser protegidos pena norma penal, com sanções idênticas, ainda quando atingidos por lesões de mesma natureza.
Assim, absolutamente equivocada a interpretação segundo a qual transferência é espécie de inscrição, e a norma do art. 290 também a alcança. Não bastasse, e por último, é de ver a incidência do princípio da legalidade, impedindo que se faça interpretação extensiva da norma penal incriminadora. Assim é a jurisprudência a respeito: “O princípio da legalidade, viga mestra do Direito Penal, impõe precisos balizamentos em matéria de aplicação de pena, não admitindo interpretações analógicas ou ampliativas” (STJ – RHC – Rel. Vicente Leal – RT 728/507). “Em Direito Penal, o princípio da reserva legal exige que os textos legais sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogias, salvo quando in bonam partem. Ainda vige o aforismo poenalia sunt restringenda, ou seja, interpretamse estritamente as disposições cominadoras de pena” (TACRIM-SP – AC – Rel. Adauto Suannes – RT594/355). “O tipo, que é sempre de garantia, a partir do princípio da reserva legal, não pode ser distendido, ao gosto do intérprete, para cobrir hipóteses nele não contidas” (TACRIM-SP – Rec. – Rel. Régio Barbosa – RT669/330). Por tudo, quando o tipo do art. 290 do Código Eleitoral diz “se inscrever”, não pode o julgador ler “transferir-se”.
PINTO FERREIRA, Código Eleitoral Comentado, Saraiva, 4ª. ed., 1997, pág. 42.
Apud PINTO FERREIRA, In Sistemas Eleitorais, Rio de Janeiro, 1929., op. cit. pág. 42.