CORRUPÇÃO PASSIVA E ATO DE OFÍCIO

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CORRUPÇÃO PASSIVA E ATO DE OFÍCIO

O legislador do Código Penal construiu, no art. 317, três figuras delitivas de corrupção passiva. No caput, está o tipo fundamental. No § 1º a figura típica qualificada, também chamada de corrupção própria, e no § 2º a forma privilegiada. A corrupção passiva qualificada contém, além dos elementos do tipo fundamental, a exigência de que o funcionário retarde ou deixe de praticar um ato de ofício, ou que o pratique com infração de dever funcional.

A corrupção passiva

privilegiada exige que a prática do ato de ofício, sua omissão ou o seu retardamento seja em razão de pedido ou influência de outrem. Tipos derivados – qualificados e privilegiados – de tipos fundamentais contêm todos os elementos da norma básica e mais os que os especializam, daí que é induvidoso que, também no tipo fundamental, do caput do art. 317, está implícita a presença, como elementar, do ato de ofício do funcionário público. Em outras palavras, para a configuração do delito de corrupção passiva, é indispensável que a vantagem solicitada, recebida ou objeto de promessa aceita, esteja relacionada a um ato de ofício do funcionário. Não basta que a solicitação, recebimento ou aceitação da promessa de vantagem se faça pelo funcionário em razão do exercício de função pública, mesmo que fora dela, ou antes de iniciá-lo, pois o tipo exige a presença de um nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência. É verdade que a consumação do delito – na forma típica fundamental, descrita no caput do art. 317 - prescinde da efetiva realização do ato funcional, pois que basta que ele solicite, receba ou aceite a promessa, todavia é indispensável que o ato funcional seja a causa da solicitação, do recebimento ou da aceitação da promessa de vantagem indevida. Isto é, a vantagem é solicitada, recebida ou aceita, para a prática ou omissão, ou o retardamento de ato de ofício do funcionário. A doutrina nacional é uníssona. Para HELENO FRAGOSO, o crime de corrupção passiva “está na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do processo, sendo indispensável que o agente tenha consciência de que recebe ou aceita retribuição por um ato funcional que já praticou ou que deve praticar” .


Segundo o grande jurista, “constitui corrupção passiva, essencialmente, um tráfico de autoridade, no qual o funcionário vende ou procura vender um ato de ofício. (...) A ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. O agente aqui mercadeja com sua função.” MIRABETE não discrepa desse entendimento quando diz ser “indispensável para a caracterização do ilícito em estudo que a prática do ato tenha relação com a função do sujeito ativo (ratione oficii). O ato ou abstenção a que se refere a corrupção deve ser da competência do funcionário, isto é, deve estar compreendido nas suas especificadas atribuições funcionais, porque somente nesse caso se pode deparar com o dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração. Além disso, o pagamento feito ou prometido deve ser a contraprestação de ato de atribuição do sujeito ativo (RF 201/297; JTJ 160/306; RT 374/164, 390/100). Não se tipifica a infração se a vantagem desejada pelo corruptor não é da atribuição e competência do funcionário (RT 505/296, 526/356, 538/324).” NELSON HUNGRIA, o grande mestre, já ensinava que o “ato ou abstenção a que a corrupção se refere deve ser da competência do intraneus, isto é, deve estar compreendido nas suas específicas atribuições funcionais, pois só neste caso pode deparar-se com um dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração.” BENTO DE FARIA, igualmente, afirmava que a “sua competência (do funcionário) deve ser apreciada, quer sob o aspecto territorial (circunscrição administrativa onde possa exercer a função), quer genérica ou especificamente”. E MAGALHÃES NORONHA, de sua feita, mostrou ser indispensável que o ato deve “ser da competência do funcionário, pois a contraprestação ao pagamento é veiculada pela função. (...) Não há corrupção passiva se o ato não é da atribuição do funcionário.” DAMÁSIO DE JESUS mostra que deve “haver nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização do ato funcional. Caso contrário inexistirá o delito questionado, podendo surgir outro.” Já PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR ensina ser “Indispensável, porém, que a vantagem venha a ser solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato funcional. Nesse sentido, o agente mercadeja com a função de que dispõe.”


CELSO DELMANTO afirma que “o que se pune é o tráfico da função pública. Assim, a solicitação, recebimento ou aceitação deve ser para a prática ou omissão de ato inerente à sua função.” A Jurisprudência dos nossos Tribunais é no mesmo sentido: “A corrupção passiva exige para a sua configuração a prática de atos de ofício, dando ensejo ao recebimento da vantagem indevida. E por ato de ofício, consoante uniforme jurisprudência, se entende somente aquele pertinente à função específica do funcionário” (TJSP – AC – rel. Cantidiano de Almeida – RT 390/100) “Se o funcionário público executa outros atos, não inerentes à sua função ou ao próprio ofício, mesmo quando a sua qualidade facilite tal cumprimento ou execução, falha definitivamente um dos extremos legais constitutivos do crime de corrupção passiva.” (TJSP – AC – rel. Gonçalves Santana – RT 381/52) O tema foi objeto de profunda e minuciosa apreciação pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no famoso julgamento da Ação Penal nº 307/DF, em que era réu, dentre outros, o ex-Presidente da República Fernando Collor de Mello. Do Acórdão extraem-se as seguintes lições, nos votos proferidos. Do Ministro CELSO DE MELLO: “Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal, é de rigor, ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal referida, a existência de uma relação da conduta do agente – que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida – com a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício. Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva, tipificado no art. 317, caput, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e um determinado ato de ofício pertencente à esfera de atribuições do intraneus.(...) Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo de suas atribuições funcionais (RT 390/100 – RT 526/356 – RT 538/324) – revela-se inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caracterização típica do crime de corrupção passiva definido no caput do art. 317 do Código Penal.(...) Revela-se essencial, portanto, no caso em exame, sob pena de absoluta descaracterização típica da conduta imputado aos réus, a precisa identificação de um ato de ofício incluível na esfera de atribuições do Presidente da República e por este, direta ou indiretamente, prometido ou oferecido como resposta à


indevida vantagem solicitada, recebida ou esperada.” (Voto do MINISTRO CELSO DE MELLO ) Do Ministro SYDNEY SANCHES: “Ora, não se concebe que, tanto na ‘corrupção passiva qualificada’, quanto na ‘privilegiada’, se exija ato omissivo ou comissivo do funcionário, no exercício de seu ofício, em retribuição à vantagem indevida, e no caput, que define a ‘corrupção passiva pura e simples’, se dispense tal elemento do tipo. (...) Se se adotasse o entendimento que dispensa a prática de ato de ofício (comissivo ou omissivo), em contraprestação às vantagens indevidamente recebidas pelos funcionários, então até nós, Ministros do Supremo Tribunal Federal (para não dizer todas as autoridades ou simples agentes da República, no âmbito dos três Poderes da União, dos Estados e dos Municípios) talvez estivéssemos sujeitos à imputação, ao menos em tese, da prática de crime de corrupção passiva, se dessa forma interpretado o art. 317 do Código Penal. É que, com muita freqüência, todos nós recebemos – e acredito que, também, o Procurador-Geral da República – livros jurídicos enviados, gratuitamente, pelas Editoras, ou pelos próprios autores.” (Voto do Ministro SYDNEY SANCHES) Do Ministro OCTAVIO GALLOTI: “Não concebo como, da expressão ‘em razão dela” (função), seja possível dissociar-se a prática do ato funcional, seguramente implícito na compreensão do texto, segundo penso. Mormente quando, tanto na forma qualificada como na privilegiada, previstas nos dois parágrafos do art. 317, citado, está categoricamente mencionado o ato de ofício, que é o núcleo do tipo penal em causa. Que sentido teria exigi-lo para a configuração da infração mais grave e dispensa-lo para a modalidade básica do delito? Note-se, também, que a forma ativa da corrupção (art. 333), explicitamente exige a prática do ato de ofício. Julgo, então, que a letra, o sistema e a lógico do Código estão a clamar contra a tipificação do crime, sem a existência e a comprovação do ato de ofício, ou pelo menos da promessa de sua prática ou omissão.” (Voto do Ministro OCTAVIO GALLOTTI) A Corte Suprema julgou improcedente a acusação, por não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo ocupado pelo funcionário acusado de corrupção passiva, alinhando-se, assim, com as uníssonas construções doutrinárias e jurisprudenciais aqui mencionadas. A propósito, recente decisão do E. Tribunal Regional Federal da 1a. Região foi no sentido de determinar o trancamento da ação penal, exatamente porque a denúncia


sequer apontara o ato de ofício objeto da alegada corrupção passiva, valendo transcrever a ementa do Acórdão: “PROCESSUAL

PENAL.

HABEAS

CORPUS.

CORRUPÇÃO

PASSIVA.

DENÚNCIA. RECEBIMENTO. FALTA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE. INTERESSE DE AGIR DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. É certo que não cabe trancamento de ação penal quando a denúncia descreve fatos que, em tese, configuram a prática de crime e há indícios de autoria, e, bem assim, que a justa causa que autoriza o trancamento da ação penal é aquela que se apresenta clara e incontroversa ao simples compulsar dos autos; é aquela que se revela cristalina, evidente, sem necessidade do aprofundamento do exame de prova. É indispensável, para a configuração do crime de corrupção passiva (art. 317, CP), que a prática do ato incriminado tenha relação com a função do sujeito ativo (ratione oficii). O que se pune é o tráfico da função pública. Na espécie, não indica a denúncia a existência de qualquer relação entre a referida "vantagem" recebida pelo Paciente e a prática de omissão de qualquer ato de ofício, ou seja, não estabelece qualquer correlação entre a vantagem de viajar em avião pago e à execução ou não de algum ato de seu cargo. 4. Habeas corpus concedido. Ordem concedida, de ofício, ao denunciado RAMON ARNUS FILHO. (HC 2000.01.00.007855-0/DF, Rel. Juiz Mário César Ribeiro, Quarta Turma, DJ de 04/08/2000, p.527) Também o Supremo Tribunal Federal tem reiterado decisões no sentido de rejeitar ação penal quando não demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de um ato de sua competência: “CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA. ART. 317 DO CÓDIGO PENAL. A denúncia é uma exposição narrativa do crime, na medida em que deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias. Orientação assentada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que o crime sob enfoque não está integralmente descrito se não há na denúncia a indicação de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência. Caso em que a aludida peça se ressente de omissão quanto a essa elementar do tipo penal excogitado.


Acusação rejeitada.” (INQ. 785-4/DF, Tribunal pleno., rel. min. Ilmar Galvão, j. 08.11.1995, DJ 07.12.2000) Em síntese, para a existência do crime de corrupção passiva é indispensável que a conduta do funcionário tenha nexo de causalidade com ato de seu ofício. Ou seja, deve ele solicitar, receber ou aceitar a promessa de vantagem, para praticar um ato de seu ofício, deixar de praticá-lo ou retardar a sua prática, independentemente de que venha efetivamente a atuar.

Lições de Direito Penal, vol. II, Forense, 1980, pág. 438

idem, ibidem, pág. 436 e 438

Manual de Direito Penal, vol. III, Atlas, 2005, pág. 327/8

Comentários ao Código Penal, vol. IX, Forense, Rio, 1958, pág. 369

Código Penal Brasileiro, 1943, vol. V, pág. 515)

Direito Penal, 4º vol., 6a. ed., Saraiva, págs. 265/268.

Direito Penal, 4º vol., Parte Especial, pág. 135, Saraiva, 1988

Comentários ao Código Penal, Parte Especial, vol. III, pág. 474, Saraiva, 1989

Código Penal Comentado, 2a. ed., pág. 533, Renovar, Rio, 1988

RTJ 162, pág. 264

RTJ 162, pág. 293

RTJ 162, pág. 310/11


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