19 CONSTRANGIMENTO ILEGAL
_____________________________ 19.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME Dispõe o art. 146 do Código Penal: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. A pena cominada é detenção, de três meses a um ano, ou multa. O princípio constitucional da legalidade só obriga a pessoa a fazer aquilo que a ordem jurídica lhe determinar, daí por que todo ser humano é livre para fazer aquilo que não estiver proibido por uma lei e para não fazer aquilo que não estiver ordenado por uma norma jurídica. O bem jurídico protegido é, pois, a liberdade de autodeterminação. A liberdade de querer e de fazer o que estiver na própria vontade. Liberdade de fazer e de não fazer. É a liberdade física e psíquica. A liberdade individual só encontra obstáculo na lei. Sujeito ativo é qualquer pessoa, exceto o funcionário público quando comete o crime de violência arbitrária (art. 320 do CP), de exercício arbitrário ou abuso de poder (art. 350, CP) ou abuso de autoridade definido na Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965. Sujeito passivo é a pessoa capaz de se determinar. Excluem-se os inimputáveis absolutamente incapazes de auto-determinação. Podem, entretanto, ser vítimas do constrangimento ilegal os menores de 18 anos, inclusive a criança, desde que se possa concluir por sua capacidade de querer. Mesmo uma criança de pouca idade já pode escolher sobre fazer ou não fazer algo e, quando constrangida àquilo que não se encontra na esfera da legalidade, será sujeito passivo do crime em comento. Quando o sujeito passivo for o Presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal e houver motivação política, com
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles lesão, real ou potencial, à pessoa dessas autoridades, o crime será o do art. 28 da Lei de Segurança Nacional, punido com reclusão de quatro a doze anos.
19.2 TIPICIDADE O caput contém o tipo fundamental. O § 1º descreve causas de aumento de pena. O § 2º impõe o reconhecimento de concurso material.
19.2.1
Conduta
O núcleo do tipo é o verbo constranger, empregado no sentido de compelir, obrigar, coagir ou forçar a vítima. O agente atua sobre a vontade da vítima utilizando violência, grave ameaça ou outro meio capaz de reduzir-lhe a capacidade de resistência. A conduta realiza-se, normalmente, na forma comissiva, isto é, mediante comportamento positivo, mas pode ocorrer também na forma omissiva, como, por exemplo, quando o agente encontra-se numa situação em que pode evitar um mal para a vítima, constrangendo-a, porém, com a ameaça de não agir para salvá-la.
19.2.2
Elementos objetivos
O constrangimento é obtido mediante violência, grave ameaça ou por qualquer outro meio análogo que seja capaz de reduzir a capacidade de resistência da vítima. Violência é o emprego de força física sobre o corpo da vítima através de lesões corporais ou da aplicação de mecanismos que tolhem sua liberdade de movimento. Grave ameaça é a violência moral. É a promessa da causação de um mal grave. O mal prometido não necessita ser injusto, porque no tipo não há essa exigência. Basta que seja grave. Também se perfaz o tipo quando o agente emprega um outro meio capaz de minar a capacidade de resistência da vítima, retirando-lhe a plena capacidade de determinação. É o que acontece quando a vítima é levada, por erro, a ingerir substância inebriante ou é hipnotizada, sedada, perdendo a plenitude de suas faculdades mentais. O resultado pretendido pelo agente é um comportamento da vítima, positivo ou negativo. Fazer aquilo que a lei não manda ou deixar de fazer o que a lei permite. A vítima
Constrangimento Ilegal - 3 não tem o dever de realizar uma ação, mas o agente a compele à sua prática. Ou, estando autorizada pela lei a agir, o agente obriga-a a não fazê-lo. O fato será típico ainda quando o agente compelir a vítima a deixar de realizar um comportamento simplesmente imoral, porque todas as pessoas somente estão obrigadas a realizar comportamentos legais, havendo, pois, agressão à liberdade. A pretensão do agente deve ser ilegítima, pois se o resultado por ele pretendido for lícito, o crime praticado será o do exercício arbitrário das próprias razões, definido no art. 345 do Código Penal. Indispensável a existência de nexo causal entre a conduta do agente e a redução da capacidade de resistência da vítima. Em outras palavras, a violência, a grave ameaça e os meios empregados devem ser idôneos, com potencialidade para viciar a vontade da vítima. Se esta não se sentir compelida a realizar o desejo do agente, poderá haver apenas o crime de ameaça, se o mal prometido tiver sido grave e injusto, ou de lesões corporais, conforme tenha sido a conduta do agente.
19.2.3
Elementos subjetivos
Crime doloso, o agente do constrangimento ilegal deve atuar com a consciência de que sua conduta é capaz de minar a resistência da vítima e com a vontade livre de realizá-la para obter a redução da sua capacidade volitiva. Inclui-se, no dolo, a consciência de que a pretensão é ilegítima, isto é, de que a vítima não esteja obrigada a fazer ou deixar de fazer o que o agente determinou. Ademais, o agente deve atuar com a finalidade de obter a ação ou a omissão da vítima. É o elemento subjetivo do tipo. Não existe a modalidade culposa de constrangimento ilegal.
19.2.4
Consumação e tentativa
O constrangimento ilegal é crime material, consumando-se no momento em que a vítima realiza o comportamento a que não estava obrigada ou deixa de realizar o comportamento que lhe é permitido. Possível, portanto, a tentativa, seja quando a vítima, violentada ou ameaçada, mesmo assim resiste ou também quando, preparando-se para satisfazer aos desejos do
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles agente, é impedida pela intervenção de terceira pessoa.
19.2.5
Aumento de pena
Prevê o § 1º do art. 146 duas causas de aumento de pena: o concurso de, pelo menos, quatro pessoas, ou a utilização de armas, na execução do crime. Nesses casos, aplicam-se a detenção e a multa, duplicadas. A norma utiliza a expressão armas em seu sentido amplo e seu emprego poderá ter ocorrido na formulação da ameaça ou na realização das lesões corporais.
19.2.6
Concurso de crimes
No constrangimento ilegal cometido mediante violência, em que a vítima sofre lesões corporais, leves, graves ou gravíssimas, há concurso material de crimes, devendo ser cumuladas as penas do tipo do art. 146 e a do art. 129 do Código Penal. É o que determina o § 2º do art. 146. Quando a conduta é realizada mediante grave ameaça não há concurso de crimes, porque o delito de ameaça é absorvido pelo constrangimento ilegal. Quando o agente realiza constrangimento ilegal com a finalidade de que a vítima cometa outro crime, coagindo-a, pois, à prática de um delito, diz a doutrina tradicional que há concurso material entre o constrangimento ilegal e o crime cometido pela vítima. No caso, o agente da coação seria o autor mediato do crime praticado pela vítima. MIRABETE, discordando de HELENO FRAGOSO, entende que melhor solução é considerar a existência de concurso formal, excluindo-se a agravante do art. 62, II, porque, como é óbvio, houve uma só conduta do agente, dela resultando dois crimes1. Penso, entretanto, que o agente do constrangimento ilegal somente deverá responder pelo crime praticado pela vítima, como seu autor mediato, uma vez que a coação deve ser absorvida pelo crime fim, uma vez que foi simplesmente o meio empregado para a obtenção do resultado final. Vale, a meu ver, o princípio da consunção.
19.2.7
1
Conflito aparente de normas
Op. cit. v. 2, p. 183.
Constrangimento Ilegal - 5 O tipo do art. 146 é o tipo genérico do tipo de estupro, no qual a vítima é constrangida a permitir a conjunção carnal a que não estava obrigada por lei. No tipo de estupro estão contidos os mesmos componentes do constrangimento ilegal, e mais os seguintes elementos especializantes: mulher como sujeito passivo e conjunção carnal como resultado. De conseqüência, pelo princípio da especialidade, o agente responderá apenas por estupro. O atentado violento ao pudor é, igualmente, tipo especial em relação ao constrangimento ilegal. O delito de extorsão, do art. 158 do Código Penal, é outro tipo especial em relação ao constrangimento ilegal, pois contém o elemento subjetivo especializante: “com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica”, o que o torna mais grave. O art. 107 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, contém o seguinte tipo: “coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração”. A pena é reclusão de 2 a 5 anos. É uma espécie de constrangimento ilegal mais grave, porém menos que a extorsão. O núcleo do tipo é o verbo coagir, realizando-se por qualquer meio, inclusive a ameaça não grave. Alcança apenas a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos e diz respeito apenas aos atos de doar, contratar, testar ou outorgar procuração. Não é exigido o elemento subjetivo especializante da extorsão, embora ele possa estar presente. Também o atentado contra a liberdade de trabalho, descrito no art. 197 do Código Penal, é uma espécie de constrangimento ilegal.
19.3 ILICITUDE Dispõe o § 3º do art. 146: “não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio”. Para DAMÁSIO, a expressão “não se compreendem na disposição deste artigo” significa que as duas circunstâncias descritas nos incisos constituem causas de exclusão da tipicidade e não da antijuridicidade (ilicitude)2.
2
Op. cit. v. 2, p. 250.
6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles A meu ver são excludentes de ilicitude. Os tipos são portadores da proibição. Trazem, em seu interior, a ilicitude. No tipo do art. 146, a norma é: é proibido, é ilícito constranger alguém a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda. Quando a norma do § 3º utiliza a expressão “não se compreendem na disposição deste artigo”, está dizendo que não é proibida a intervenção médica ou cirúrgica específica, nem a coação para impedir o suicídio. Não está, portanto, descaracterizando a tipicidade, que é objetiva e subjetiva, mas justificando a realização do comportamento típico. Tanto que, no inciso I condiciona, expressamente, a conduta do médico à presença de iminente perigo de vida como causa de justificação. É, na verdade, uma espécie de estado de necessidade. São, portanto, causas de justificação, excludentes de ilicitude e não de tipicidade. A primeira é um verdadeiro estado de necessidade. O médico, diante de uma situação de perigo de vida do paciente, está autorizado a obrigá-lo, com a utilização de meio capaz de reduzir sua capacidade de resistência – anestesia ou sedação –, a submeterse à intervenção médica ou cirúrgica. Não necessita do consentimento do paciente, nem de seu representante legal. Certo, entretanto, que a situação de perigo deve ser concreta, demonstrável e provada, do contrário não haverá conduta lícita. A segunda é a coação para impedir suicídio. É outra espécie de estado de necessidade. Como já se viu, o suicídio, apesar de não ser crime, é um comportamento ilícito, podendo ser empregada violência ou grave ameaça, ou qualquer meio análogo, para proteger a vida do que pretende matar-se. É lícita a coação porque é comportamento que realiza o fim do Direito, que é a proteção dos bens jurídicos mais importantes, no caso o mais valioso de todos. Possível, ainda, a exclusão da ilicitude do constrangimento ilegal em outras hipóteses de estado de necessidade, bem assim de legítima defesa, desde que presentes todos os pressupostos, objetivos e subjetivos, dessas causas de justificação.
19.4 CULPABILIDADE A culpabilidade do agente poderá ser excluída ou diminuída se ele atuar em erro de proibição. Imaginando, por exemplo, que pode compelir a vítima a fazer ou deixar de fazer
Constrangimento Ilegal - 7 um comportamento que, a seu ver, é exigido por lei, cabendo-lhe, ainda, o direito de satisfazer, por seus próprios meios, a essa pretensão, estará atuando sem a indispensável consciência da ilicitude, essencial para a formulação do juízo de reprovabilidade. Assim, por exemplo, quando o agente obriga, mediante violência ou grave ameaça, a vítima a não praticar relações sexuais consentidas com a própria irmã, maior e capaz, por imaginar que o incesto é tipificado. Se o erro for inevitável, ficará isento de pena, se evitável, será diminuída a culpabilidade, nos termos do que dispõe o art. 21 do Código Penal. O erro de proibição poderá, ainda, recair sobre as justificantes do § 3º do mesmo art. 146, quando, por exemplo, o médico imagina a existência de situação de perigo de vida, equivocando-se sobre a necessidade, inexistente, de realizar a intervenção cirúrgica ou ainda se o agente supõe que a vítima está na iminência de cometer suicídio.
19.5 AÇÃO PENAL A ação penal é pública incondicionada. A forma típica sem aumento de pena será processada perante o juizado especial criminal, permitida a suspensão condicional do processo penal também na forma com pena aumentada.