VOLUME 02 - 2

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2 PARTICIPAÇÃO EM SUICÍDIO

_____________________________ Matar a si mesmo. Tirar a própria vida. Destruir-se. Eliminar-se. Suicídio. Extrema coragem do ser humano que é capaz de realizar uma agressão tão grave contra seu próprio corpo? Que razão tão grave pode levar alguém a agir tão radicalmente contra si mesmo? O suicídio é, inequivocamente, a mais autêntica negação concreta e radical da necessidade da existência humana, violadora do tão propalado instinto de sobrevivência que todos têm. Só pode decorrer de uma muito grave perturbação da mente humana, que impele alguém ao gesto mais brutal que se pode imaginar. Fruto puro do direito de liberdade de decidir sobre o próprio futuro, sobre a própria conservação da vida, o suicídio não é, todavia, permitido no ordenamento jurídico pátrio, apesar de não ser tipificado em norma penal. Não é crime nem poderia ser, porque inimaginável, nos tempos modernos, um crime para o qual não poderia corresponder uma pena, já que impossível punir um morto. Inaceitável, no atual estágio de civilização, a punição que recaia sobre o cadáver, nem tampouco sobre bens do suicida, o que atingiria tão-somente seus sucessores, violando o princípio constitucional da responsabilidade pessoal ou da personalidade da pena. Todavia, ainda que não haja tipo legal que incrimine o comportamento do suicida, seu gesto é, ainda assim, considerado ilícito, tanto que é justo atuar, até com violência, para impedi-lo (art. 146, § 3º, II, do Código Penal). Nem a tentativa é punível – não só pela impossibilidade de apenar a execução inacabada de um procedimento atípico, mas também porque não seria razoável e justo submeter o suicida frustrado ao constrangimento de ser processado, o que por si só apenas serviria para relembrá-lo de sua incapacidade de realizar tão ignominiosa ação. Longe de proteger sua vida, a punição importaria, induvidosamente, num excelente expediente para provocar-lhe a recidiva.


2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles Se o fim da pena – conseqüência do crime – é o de reprovar e prevenir, mas também o de educar, a simples possibilidade de apenar o suicida malsucedido, longe de educá-lo ou reprová-lo, simplesmente importaria na causação de um mal psíquico ainda mais grave que, fatalmente, o levaria a considerar-se ainda mais frágil e incapaz – a própria nulidade existencial –, incentivando a reiteração da busca pelo fim da própria existência. O suicídio não é, pois, tipificado em qualquer lei penal. Nem por isso, entretanto, dele se descuidou o Direito Penal. Se não é justo incriminá-lo, justo é proteger a vida humana, sancionando as condutas daqueles que para o suicídio contribuírem de modo idôneo e doloso. Por isso o crime de participação em suicídio.

2.1

CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME O tipo está no art. 122 do Código Penal, que contém três formas de participação em

suicídio: induzir ou instigar alguém a cometer suicídio ou prestar-lhe auxílio para que o faça. A vida humana extra-uterina é o bem jurídico protegido nessa norma. Diga-se, a respeito, tudo quanto foi dito quando do estudo do homicídio, para onde deve ir o leitor. Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo desse crime. O sujeito passivo, entretanto, diferentemente do homicídio, é apenas a pessoa dotada de capacidade de entendimento ou de determinação, ou seja, qualquer pessoa imputável. Se o induzimento, a instigação ou o auxílio é feito em face de suicida menor de 14 anos – sem capacidade para consentir –, ou inimputável, incapaz de entender ou de se autogovernar, o fato se ajustará ao tipo de homicídio. É que a participação em suicídio é sempre uma conduta que se harmoniza com outra: a que causará a autodestruição. Assim, a vítima deve ter a vontade de se matar e essa vontade deve ser exercida livremente. Se a vítima não pode ser incluída entre as pessoas livres, a conduta do agente não poderá ser considerada apenas a de partícipe de uma conduta voluntária alheia.


Participação em Suicídio - 3

2.2

TIPICIDADE O caput do art. 122 contém o tipo, e no parágrafo único estão descritas causas de

aumento de pena.

2.2.1 Conduta O tipo apresenta três núcleos: induzir, instigar e prestar auxílio. O induzimento ao suicídio é o comportamento do agente que faz nascer, na mente da vítima, o desejo de pôr fim à própria vida. É persuadir, convencendo o outro a resolver pela autodestruição. A instigação é conduta sutilmente diversa do induzimento, pois consiste em estimular a vítima, encorajando-a a executar a idéia suicida preexistente em sua mente. A diferença está em que no induzimento a vítima ainda não formara a intenção de se matar, ao passo que na instigação o intento já existia, sendo reforçado pela conduta do instigante. São, portanto, duas formas de participação moral, de influência psicológica, as quais exercem uma força sobre a consciência da vítima que, mediante esses comportamentos do agente, acaba por tentar contra a própria vida. A terceira forma de participação em suicídio é material: prestar auxílio para que alguém o faça. Nela, o agente realiza algum comportamento consistente em colaborar com a prática do suicídio, por exemplo, comprando ou entregando o veneno para a vítima ingerir, emprestando a arma de fogo que será utilizada ou a corda com que se enforcará, enfim, realizando algum ato material que contribua para o processo causal dominado pela vontade do suicida. O auxílio material deve ser, necessariamente, secundário ou acessório e não se integrar ao processo causal desencadeado pela própria vítima, pois se assim for haverá, na verdade, homicídio. Se a vítima deseja pular do alto de um edifício, mas não tem coragem para tanto e pede a alguém que a empurre, este não estará participando do suicídio, mas cometendo, inequivocamente, um homicídio. Não haverá auxílio ao suicídio, mas homicídio, se o agente engana a vítima, entregando-lhe uma arma municiada, convencendo-a, entretanto, de que ela está descarregada, e a induz a disparar contra o próprio corpo, pois nesse caso ela não desejava


4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles suicidar-se, tendo o agente atuado com inequívoca intenção homicida. Como bem lembrou DAMÁSIO, a participação em suicídio é crime de conduta múltipla, de modo que se o agente induz, depois instiga e, por fim, auxilia o suicida, responderá por um único crime1. O induzimento, a instigação e o auxílio material devem ser idôneos, isto é, aptos a contribuir significativamente para a consecução do suicídio. Somente condutas sérias podem ser consideradas típicas. Se o sujeito age jocosamente, brincando, não realiza esse tipo legal de crime. Divergem importantes doutrinadores sobre a possibilidade de se reconhecer a participação em suicídio por meio de conduta omissiva. DAMÁSIO entende que não é possível, mesmo quando o agente tenha o dever jurídico de impedir o resultado, podendo, quando muito, haver omissão de socorro2. É óbvio que na quase totalidade dos casos o induzimento, a instigação e o auxílio se fazem por meio de conduta positiva, conversas, cartas, palavras, enfim, e ações materiais de colaboração. Contudo, ainda assim, penso que é possível haver participação em suicídio mediante conduta omissiva, quando o agente for um garante, aquele que tem o dever de agir para impedir o resultado. O silêncio do garante pode ser uma forma de induzir ou de instigar a vítima ao suicídio. O pai, diante do desespero do filho causado por um acontecimento extremamente desagradável que lhe tenha acontecido, tem o dever de prestar toda a assistência moral, a fim de proporcionar o conforto e estimular, nele, idéias positivas. Acompanhando o sofrimento do filho, não pode simplesmente omitir-se, atitude que, por si só, é capaz de influenciar quaisquer pensamentos de autodestruição. O dever que o pai tem é o de agir – falar, conversar, distrair, incentivar – para impedir quaisquer resultados lesivos, ainda que não a morte. Calando-se, pode estar o pai transmitindo a idéia de que o jovem filho não é merecedor de qualquer consideração, e, em momentos graves, pode esse comportamento omissivo ter um significado, em sua mente, muito mais grave do que a própria situação causadora daquele desconforto por que passa. Logo, se ele nada faz, terá participado, por 1

Direito penal, v. 2, p. 98.

2

Ibidem.


Participação em Suicídio - 5 omissão, do suicídio que o filho venha a praticar. Claro que só responderá se agir dolosamente, como se verá adiante no exame do elemento subjetivo do tipo. A prestação de auxílio para o suicídio, que muitos compreendem apenas na forma comissiva, também pode ocorrer por inação. Se o carcereiro, sabendo da intenção do preso, deixa a seu alcance a corda com a qual ele pretende suicidar, estará, inequivocamente, prestando auxílio material. Tinha o dever de impedir qualquer resultado lesivo à pessoa do encarcerado, e se, apesar disso, realiza um comportamento omissivo que contribui para a ação suicida, não se pode dizer que, por nada ter feito, não responderá pela participação no suicídio. Responderá sim, por sua omissão, pelo ato daquele a quem devia proteger, evitando qualquer lesão. Tendo o dever de realizar uma conduta comissiva para impedir qualquer lesão, provocada por outrem, também o tem quando é o próprio protegido que atua contra a própria vida.

2.2.2

Elemento subjetivo O dolo é essencial. Sem ele, não há participação em suicídio. A lei não previu a

modalidade culposa. O agente, ao induzir, instigar ou prestar auxílio ao suicida, deve ter a consciência de que, com seu comportamento, poderá contribuir para a realização do suicídio. Além dessa representação, deve querer que a vítima realize o comportamento suicida. Quer a morte da vítima, e atua no sentido de colaborar para que ela mesma, com as próprias mãos, destrua a própria vida. O dolo pode ser apenas eventual, quando o agente, embora não desejando a morte, induz, estimula ou auxilia a vítima, sem se importar com a possibilidade de que ela venha, efetivamente, dar cabo à própria vida. A conduta do agente deve ter a idoneidade necessária para fazer surgir, na mente da vítima, o ideal de autodestruição, ou para estimulá-la ao gesto letal, ou, ainda, para contribuir materialmente para a execução da morte. Palavras despojadas de seriedade, despretensiosas, não são reveladoras da vontade de, efetivamente, incutir, na vítima, o ideal ou o reforço do pensamento suicida. Mesmo diante de uma pessoa desesperada, pode alguém, por leviandade, proferir palavras


6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles ou emitir idéias que possam sugerir-lhe o suicídio, mas, nesse caso, não haverá crime, pois inexistente o dolo. Aquele pai ou carcereiro omisso só responderá pelo crime se, ao ficar inerte, tiver atuado com consciência e vontade de que o filho ou o preso procurasse a própria morte. Se não se omitiram com consciência, mormente do resultado, não há crime. Se foram apenas negligentes, não há tipicidade.

2.2.3

Resultado A participação em suicídio é crime material que somente se consuma quando a

vítima morrer ou sofrer lesões corporais de natureza grave. Sobrevindo a morte, a pena será de reclusão de dois a seis anos. Sobrevindo lesão corporal de natureza grave, a pena será de um a três anos. Não chegando a vítima a tentar o suicídio, ou, tentando, não resultar qualquer lesão ou apenas sobrevindo lesões leves, não haverá crime. Impossível, portanto, a tentativa de participação em suicídio, uma vez que a lei condicionou a imposição da pena à ocorrência de morte ou lesão corporal grave.

2.2.4

Nexo causal Exige a norma incriminadora, como em todo crime material, que entre a conduta

do agente e o resultado exista nexo de causalidade. Em outras palavras, para se considerar criminoso o induzimento, a instigação ou o auxílio prestado ao suicida, é necessário que o comportamento do agente tenha contribuído para a realização do suicídio ou da tentativa que resultar em lesão corporal de natureza grave. Assim, se a vítima pretende apenas simular um suicídio, isto é, não tem sinceramente a intenção de se matar e, ainda assim, é instigada ou auxiliada por outrem, e na simulação que desencadeia acaba, por imperícia, dando cabo à própria vida, não há nexo causal entre a instigação e o resultado, que terá decorrido de uma causa superveniente que por si só produziu o resultado.

2.2.5 Causas de aumento de pena


Participação em Suicídio - 7 O parágrafo único do art. 122 do Código Penal contém três causas de aumento de pena, a saber: se o agente age por motivo egoístico, contra vítima menor ou com capacidade de resistência diminuída. A pena será duplicada. Egoístico é o motivo que diz respeito à obtenção de uma vantagem pessoal pelo agente, qualquer que seja sua natureza. Assim aquele que induz alguém ao suicídio com a finalidade de receber uma herança ou afastar a vítima de seu caminho, seja no mundo dos negócios, seja nas relações amorosas. É um elemento subjetivo que enseja maior reprovação, por sua torpeza. O menor a que se refere a norma é aquele entre 14 e 18 anos, porque se a vítima tem menos de 14 anos o fato será considerado homicídio, tendo em vista a incapacidade de consentir. Nesse caso, é de se considerar que a criança ou pré-adolescente, por seu desenvolvimento psicológico, não está apto a oferecer qualquer resistência à conduta do agente, que, assim, assume a totalidade da causação do resultado, ainda que a execução tenha sido feita pelo menor. A norma não pode ser interpretada com rigor absoluto, mormente nos dias de hoje em que há adolescentes, entre 14 e 18 anos, com plena capacidade de decidir, dirigindo sua própria vida, com maturidade e plena consciência dos fatos e de suas conseqüências. Nesses casos, a pena não deverá ser aumentada. A terceira causa de aumento diz respeito à participação em suicídio de pessoa que tenha diminuída sua capacidade de resistência, por qualquer causa. De notar que a norma fala em diminuição da capacidade de resistência e não em sua anulação. Se não houver qualquer capacidade de resistência, o fato será homicídio, da mesma forma quando se tratar de menor de 14 anos. Pessoas idosas ou portadoras de deficiência física ou mental e até mesmo embriagadas podem ter sua capacidade diminuída ou totalmente anulada, daí que, na primeira hipótese, haverá participação em suicídio com pena duplicada e, na segunda, homicídio.

2.3

ILICITUDE E CULPABILIDADE Impossível a participação em suicídio em legítima defesa, no estrito cumprimento

do dever legal, bem assim no exercício regular de um direito. Todavia, é possível sua realização em estado de necessidade. Basta lembrar a hipótese de duas pessoas, perdidas, isoladas do mundo, sem


8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles qualquer comunicação, encontrarem-se numa situação de perigo atual em que o único meio para a sobrevivência é a morte de um, para que o outro se alimente de seu corpo. Se cometesse um homicídio, realizando todos os pressupostos da excludente do art. 24 do Código Penal, sua conduta seria lícita, logo, se induzir ou instigar o companheiro a tirar a própria vida, igualmente será conduta lícita. Ou então estando duas pessoas penduradas num único galho de uma árvore, que esteja prestes a desprender-se do solo por atuação da força peso de ambos, uma delas poderá, licitamente, sugerir que a outra se jogue, para se salvar da queda. A culpabilidade do sujeito poderá ser afastada se ele agir sem poder conhecer a ilicitude, por erro de proibição inevitável, ou se dele não se puder exigir outra conduta. Penso que é possível alguém imaginar que, estando a vítima padecendo enorme sofrimento físico, em virtude de doença grave e incurável, poderá estimular no doente o gesto suicida, por acreditar sinceramente que a eutanásia seja lícita. Se o erro de proibição tiver sido evitável, terá sua culpabilidade diminuída, na forma do art. 21 do Código Penal, última parte. Também será possível desculpar o agente que presta auxílio ao pai enfermo, que, experimentando enorme sofrimento físico, causado por doença grave e incurável, prefere terminar a própria vida, por suas próprias mãos, pondo fim assim à vida indigna que vinha sofrendo. Nesse caso, não se poderia exigir do filho outra conduta, qual seja a de permitir a continuidade do sofrimento do ente querido.


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