3 INFANTICÍDIO
_____________________________ 3.1
CONCEITO O infanticídio é o homicídio da mãe contra o próprio filho, durante o parto ou logo
após, sob influência do estado puerperal. Assim o definiu o Código Penal Brasileiro no art. 123, cominando pena de detenção de dois a seis anos. Em alguns países, o infanticídio é também o crime da mãe motivada por uma razão de honra quando ela, desejando esconder a gravidez indesejada, por fruto de adultério ou sendo solteira ou viúva, acaba por causar a morte do recém-nascido. Também no passado foi esse o critério que tornava a morte do recém-nascido um homicídio privilegiado.
3.2
OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME A norma confere proteção à vida extra-uterina que começa, como já dito, com o
início do parto. Essa proteção é unicamente à vida do nascente – aquele que ainda não se livrou completamente da dependência da vida da mãe, porque ainda não se concluiu o parto – e à vida do neonato – o que acabou de nascer. O parto tem início com o rompimento do saco amniótico, terminando com a expulsão da placenta e o corte do cordão umbilical. Assim, o bem jurídico protegido é a vida humana extra-uterina a partir de seu início e até logo após o parto. Esse elemento temporal será analisado no item seguinte. Antes do início do parto, qualquer conduta que atinge o ser terá se voltado contra a vida endo-uterina e poderá configurar um dos tipos de aborto, não o de infanticídio. Trata-se de crime que só pode ser praticado pela própria mãe da vítima, nascente
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles ou neonata. Assim o sujeito ativo é a própria mãe. E o sujeito passivo é o ser humano nascente ou que acabou de nascer. Pode ser inviável, que ainda assim haverá crime. O natimorto – o que veio à luz sem vida – não é ser humano, logo seria crime impossível, por absoluta impropriedade do objeto.
3.3
TIPICIDADE
3.3.1 Conduta e elemento temporal O tipo de infanticídio é um tipo especial em relação ao tipo de homicídio simples, ao qual o legislador acrescentou alguns elementos especializantes, que o tornam menos severamente punido. Sujeito passivo: a mãe; sujeito passivo: o próprio filho; elemento temporal: durante o parto ou logo após; elemento subjetivo: sob a influência do estado puerperal. A conduta da mãe poderá ser comissiva ou omissiva. Ela poderá matá-lo por ação, geralmente por asfixia, sufocação ou estrangulamento, ou por qualquer outro meio, mais ou menos violento. Todavia, também se omitindo do dever de impedir-lhe a desnutrição e a morte natural, porque a mãe tem o dever legal de impedir a morte do filho, mormente do recém-nascido. Exige o tipo que a morte do filho seja realizada durante o parto ou logo após. O parto inicia com o rompimento do saco amniótico e vai até a expulsão da placenta, com o corte do cordão umbilical. A morte nesse intervalo corresponde ao elemento temporal durante o parto. É a morte do nascente. Terminado o parto o neonato, ainda continua sob a proteção da norma, pois que o infanticídio também ocorrerá logo após. A lei não fixa prazo, em horas, dias ou semanas. Conquanto o tipo contenha não apenas elementos objetivos, mas também um de natureza subjetiva, que é o mais importante e indispensável para a sua conformação – sob a influência do estado puerperal– , a determinação do elemento temporal deve ser feita em conjunto com a duração desse estado de perturbação psíquica. Assim, a conclusão a que se deve chegar é a de que, enquanto a mãe estiver sob a influência do estado puerperal, pode-se considerar que há infanticídio.
3.3.2 Elementos subjetivos
Infanticídio - 3 É delito doloso, devendo a mãe estar consciente de que sua conduta causará a morte do filho e agir com vontade de matá-lo. Além do dolo, deve a mãe estar sob a influência do estado puerperal. São dois, portanto, os elementos subjetivos desse tipo de crime. O dolo de matar e a influência do estado puerperal. O dolo é o mesmo do homicídio. Consciência e vontade de realizar o tipo. Possível o dolo eventual, com previsão e aceitação do resultado, mesmo sem o desejar. O segundo elemento subjetivo é a influência do estado puerperal. Puerpério é o período de tempo, variável conforme as características de cada parturiente, compreendido entre o parto e até oito semanas, em que a mulher experimenta profundas modificações genitais, gerais e psíquicas, com o gradativo retorno ao período não gravídico. Inicia-se com a dequitação da placenta. Sofre a mulher diversas modificações nos aparelhos cardiocirculatório, digestivo e urinário, alterações sangüíneas, da pele e, o que mais interessa aqui, alterações psíquicas. A experiência traumática do parto, com dores, contrações, enorme esforço físico, toda a expectativa da maternidade, o início da lactação e a presença do recém-nascido, somada à alteração do ritmo do sono, pode trazer para a mãe alterações de natureza psíquica que vão de simples crises de choro até crises depressivas, seguidas de instabilidade emocional e até mesmo de um quadro de psicose puerperal. É o estado puerperal de que trata o Código Penal. O estado puerperal ou puerpério existe logo após todos os partos, mas, nem sempre, suas conseqüências são tão graves. Assim, não basta que a morte se dê durante ou logo após o parto, em que há o estado puerperal. É indispensável que esse estado afete, de modo grave, a mente da mãe. Para algumas mulheres, o estado puerperal é um verdadeiro martírio e somente quando sua influência afetar seu psiquismo é que se poderá falar em infanticídio. Mormente quando a gravidez é indesejada, seja por motivo de honra, cada vez menos freqüente, mas principalmente por motivos de ordem econômica e social, é mais comum sofrer a gestante a influência do puerpério, tendo seu equilíbrio psicológico afetado de modo importante e levando-a, muitas vezes, a comportamentos desatinados. Nesse estado, a mãe que matar o próprio filho comete infanticídio, apenado com reprimenda mais branda do que aquela cominada ao homicídio. O estado puerperal não é uma doença mental, havendo os que até negam sua existência. NELSON HUNGRIA, contudo, nos traz importantes lições de especialistas: “KRAFFT EBING assim se exprime: ‘Ainda que Jörg tenha exagerado..., é, entretanto, inegável que o processo do parto exerce, reflexivamente, uma tão
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles profunda ação física sobre a parturiente, que pode determinar facilmente uma transitória conturbação da consciência.’ Refere-se o mesmo autor aos temores e apreensões que, notadamente no caso de prenhez ilegítima, assaltam o ânimo da parturiente, e conclui: ‘Imaginem-se tais receios exercendo sua influência no instante em que o corpo está exausto e irritado pelas dores do parto! É fácil que surjam, então, emoções tumultuárias, que podem ir até a completa subversão dos sentidos.’ BERTHERAND chega a falar em ‘loucura emotiva’ das parturientes. FRITISCH (apud PELLEGRINI) afirma que as dores, a excitação, o temor, podem colocar a parturiente em tal estado, que lhe fiquem suprimidas a reflexão e a capacidade de avaliar as conseqüências dos próprios atos. ASCHAFFENBURG refere-se a um particular estado de falta de orientação ou desatino (Ratlosigkeit). KÖNIG, autor que se ocupa especialmente do assunto, chega à conclusão de que o parto pode ocasionar uma confusão mental passageira. GLEISPACH reconhece que influem no psiquismo da parturiente as dores, a perda de sangue, o excessivo esforço dos músculos e disserta: ‘É um estado de comoção e extenuação, segundo o grau do curso do parto e também dependente do estado de ânimo natural da parturiente’. Referindo-se particularmente ao infanticídio in ipso partu, declara GLEISPACH: ‘...parece-nos certo que, com o parto, novos motivos sobrevêm aos já antes existentes e surge uma força coercitiva para a decisão, e a parturiente, menos capaz de tranqüila reflexão, e extenuada, não pode resistir aos impulsos para a ocisão do filho e, em certos casos, deixa-se, por assim dizer, dominar por ele’.”1 Se, entretanto, o estado puerperal atuar de modo ainda mais grave, interagindo com alguma particular e preexistente condição psíquica da mãe, de tal modo que se possa concluir que ela atuou sem a capacidade de entendimento ou de determinação, poderá ser considerada inimputável ou com capacidade diminuída, havendo homicídio inculpável ou com pena reduzida na forma do que dispõem, respectivamente, o caput e o parágrafo único do art. 26 do Código Penal.
3.3.3 Resultado e nexo causal Como no homicídio, também no infanticídio deve existir, entre a conduta da mãe e a morte do filho, nexo de causalidade.
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Comentários... Op. cit. v. 5, p. 242-243.
Infanticídio - 5 No infanticídio, o tema assume importância ainda maior pela necessidade de se provar o momento da morte do filho, principalmente porque, quando se tratar de conduta realizada durante o parto, dúvidas podem surgir sobre a própria existência do ser humano vivo. Se tiver nascido sem vida, a causa da morte é preexistente à conduta e, ainda quando esta tenha sido realizada, crime não haverá, pela absoluta impropriedade do objeto. Para se falar em infanticídio é preciso provar que nasceu com vida, o que se faz através das chamadas docimasias ou docimásias, que são exames feitos mediante sinais obtidos do exame do cadáver. As docimasias são respiratórias – pulmonares ou extrapulmonares – ou não respiratórias. A prova unicamente testemunhal não deve ser considerada, senão com reservas, para afirmar o nascimento com vida, mormente nos tempos de hoje, em que o desenvolvimento tecnológico poderá fornecer elementos idôneos para a solução de tão importante questão.
3.3.4 Tentativa Tratando-se de um homicídio privilegiado, crime material, portanto, em que o tipo descreve conduta e resultado, exigindo a produção deste para sua consumação, a tentativa de infanticídio é perfeitamente possível. Iniciada a execução, pode o procedimento típico ser interrompido por circunstâncias alheias à vontade da mãe, bem assim, depois de concluído todo o processo executório, pode acontecer da morte, ainda assim, não acontecer. Do mesmo modo, plenamente possível também a ocorrência de desistência voluntária ou do arrependimento eficaz.
3.3.5 Concurso de pessoas Tema interessantíssimo é o do concurso de pessoas no infanticídio. O co-autor ou partícipe responderá por ele ou por homicídio, uma vez que o tipo de infanticídio contém, como elemento subjetivo personalíssimo, a influência do estado puerperal, que só pode afetar, é óbvio, a mãe? DAMÁSIO, mesmo considerando a solução injusta, entende que, em face do disposto no art. 30 do Código Penal, que considera incomunicáveis as circunstâncias de
6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles caráter pessoal, exceto as elementares do crime, o concorrente do infanticídio por ele responderá. Sugere que, de lege ferenda, seja criada norma que defina o infanticídio como uma espécie de homicídio privilegiado, quando, então, o problema não mais existiria. O grande HELENO FRAGOSO pensava diferente: “Entendemos que deve ser adotada a lição de Hungria, fundada no direito suíço, segundo a qual o concurso de agentes é inadmissível. O privilégio se funda numa diminuição da imputabilidade, que não é possível estender aos partícipes. Na hipótese de co-autoria (realização de atos de execução por parte do terceiro), parece-nos evidente que o crime deste será o de homicídio.” 2 Com razão. O tipo de infanticídio é especial em relação ao homicídio fundamentalmente por conter três elementos próprios, que o distinguem: ser o sujeito ativo a mãe do nascente ou neonato, o sujeito passivo, e estar ela sob a influência do estado puerperal. O elemento temporal – durante o parto ou logo após – é outro elemento especializante. Só pode, portanto, esse homicídio especial ser praticado pela mãe, em relação ao próprio filho. Por mais ninguém. O tipo foi construído para alcançar, exclusivamente, a conduta da mãe, em relação ao próprio filho, naquele tempo e sob aquela influência, que a ninguém mais pode afetar. Tivesse nossa lei adotado o critério puramente psicológico – a causa de honra – aí, sim, poder-se-ia admitir o concurso, mas apenas para os que também incorporassem o motivo de honra em seu íntimo para participar do crime. Brilhante, a respeito, a lição de CERNICCHIARO: “O infanticídio, portanto, é um tipo que pensa uma agente. Ela e só ela. O juízo de reprovabilidade é exclusivo à pessoa descrita no tipo. A mais ninguém. O estranho à narração do modelo quando, de qualquer modo concorre para matar alguém, amolda-se a outro tipo de culpabilidade, no caso, do homicídio.”3 Assim, aquele que de qualquer modo concorrer para o infanticídio, na condição de co-autor ou de partícipe, ainda que atuando com menor importância, responderá pelo
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 57.
CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Tipo penal e tipo de culpabilidade. In: Estudos jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 270-271.
Infanticídio - 7 crime de homicídio.
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ILICITUDE E CULPABILIDADE Penso que há incompatibilidade entre o infanticídio e uma causa de exclusão da
ilicitude. A legítima defesa é absolutamente incomportável. O estado de necessidade, igualmente, seria impensável, a não ser numa situação de perigo, como num incêndio na maternidade, em que a mãe venha a abandonar o recém-nascido, salvando sua própria vida. Essa excludente incidiria independentemente de estar ou não a mãe sob a influência do estado puerperal, aplicando-se, pois, tanto na hipótese de homicídio quanto na de infanticídio, ou de qualquer outro crime. A culpabilidade, entretanto, deve ser bem examinada pelo julgador. Considerando imputável a mãe, pode ocorrer que ela venha a atuar sem a consciência da ilicitude ou que não se possa, em determinadas circunstâncias, dela exigir outra conduta. Pode a mãe atuar em erro de proibição invencível, supondo situação de fato que, se existente, tornaria sua conduta lícita, como num estado de necessidade putativo. Poderá seu erro, também, incidir sobre a ilicitude do fato, diante, por exemplo, de um filho portador de anomalias físicas ou mentais gravíssimas que levaria a sua própria inviabilidade, crendo ser incidente, nesse caso, uma causa de justificação como a do aborto por indicação eugênica ou a da eutanásia. Em outras situações, pode-se considerar inexigível conduta diversa, no caso de a mãe ter em seus braços uma criança portadora de graves e incomuns deformidades físicas. Penso que o Direito não pode exigir dela ter e manter um ser dessa natureza, devendo ser desculpada. A mãe que, estuprada, não teve a coragem de buscar o aborto como forma de impedir o nascimento indesejado pode, após o nascimento, sob a influência do estado puerperal, matar o recém-nascido e, nesse caso, também deve ser desculpada, por não se lhe poder exigir outra conduta.