33 FURTO
_____________________________ 33.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME Furto é a subtração de coisa alheia móvel que o agente realiza para tê-la como sua ou para que outra pessoa dela se torne senhora. O bem jurídico protegido é, primordialmente, a posse da coisa e, secundariamente, a propriedade. Posse é a relação de fato entre uma pessoa e uma coisa, que faz com que aquele a detenha e dela faça uso. O possuidor usa, goza e frui da coisa. O proprietário é a pessoa que pode dispor da coisa, porque lhe pertence. Às vezes, o proprietário não tem a posse da coisa, que empresta ou aluga à terceira pessoa, que passa a usufruí-la, exercendo, portanto, sua posse. Mas ambos têm direitos sobre ela. O proprietário, mesmo sem a posse, continua sendo o único a poder dela dispor. O possuidor, mesmo dela não podendo dispor, porque não lhe pertence, é, entretanto, quem a tem consigo, usando como se sua fosse. A posse protegida é a legítima, a que decorre da propriedade ou de contrato que o proprietário sobre ela tenha feito, inclusive a título gratuito. Sujeito ativo do crime é qualquer pessoa, salvo seu possuidor ou seu proprietário, porque só há furto de coisa alheia. Quem está legitimamente com a coisa não pode subtraíla de si mesmo; pode, entretanto, dela se assenhorear, cometendo o crime de apropriação indébita, definido no art. 168 do Código Penal. O proprietário que não tem a posse igualmente não pode furtá-la, porque ela não é alheia, mas própria, porém, se tirá-la de quem a legitimamente possui poderá cometer o crime do art. 346 do Código Penal. Se a tira de quem a detém ilicitamente, poderá cometer o delito de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP).
2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles Sujeito passivo é o proprietário da coisa e também o seu possuidor legítimo. Ambos são lesionados em seu direito, aquele no de propriedade, este no de posse. O simples detentor da coisa, sem posse, não é sujeito passivo do crime. Também o que houve a coisa por meio ilícito – furto, receptação etc. – não é sujeito passivo. Nestes dois casos, o sujeito passivo continua sendo o proprietário.
33.2 TIPICIDADE No caput do art. 155 está o tipo de furto simples. No § 1º há uma causa de aumento de pena, denominada furto noturno. No § 2º o furto privilegiado, e nos §§ 4º e 5º os furtos qualificados.
33.2.1
Furto simples
O furto simples é a figura típica fundamental, contida no caput do art. 155: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. A pena é reclusão, de um a cinco anos, e multa.
33.2.1.1
Conduta
O núcleo do tipo é o verbo subtrair, empregado com o significado de tirar. Com a conduta o agente apodera-se da coisa, tirando-a de quem a tinha. Age sem violência ou grave ameaça. É conduta comissiva e pode ser realizada diretamente pelo agente, utilizando-se das próprias mãos ou de qualquer outro instrumento ou mecanismo ou por meio de um animal adestrado.
33.2.1.2
Elemento objetivo: coisa móvel
O objeto material é a coisa alheia móvel. Coisa é qualquer substância corpórea, material, que pode ser apreendida e transportada. A substância corpórea material que puder ser tirada de alguém e transportada para outro lugar é coisa, para os fins do art. 155. Deve ser, portanto, móvel, para que possa ser subtraída pelo agente, para si mesmo ou para outrem. Os bens imóveis são protegidos em outras normas penais (arts. 161, 163, 164, 165 e 166 do Código Penal).
Furto - 3 Partes de imóveis que deles sejam destacadas, como a vidraça ou a porta de uma casa, a árvore do pomar, os frutos da árvore, os tijolos e as telhas da construção, todas essas coisas, originalmente imobilizadas, uma vez separadas do corpo principal, o imóvel, tornam-se móveis e, por isso, podem ser subtraídas. As embarcações e aeronaves, equiparadas aos bens imóveis pelo Código Civil brasileiro no art. 1.473, VI e VII, são, para os efeitos penais, móveis, podendo ser objeto de furto. Os títulos representativos de direitos, de crédito, de seguro ou societário, como a nota promissória, a duplicata, as apólices da dívida pública ou de seguro, as cautelas representativas de ações de sociedade anônima, são, igualmente, coisas móveis. Sobre a folha ou talonário de cheques em branco há decisões jurisprudenciais que entendem ser insuscetível de furto por ter valor econômico insignificante, todavia, pela simples razão de que podem ser preenchidos e utilizados ilicitamente, mais coerente é o pensamento que os considera coisas que podem ser furtadas. Não só pela potencialidade econômica, mas também por seu valor intrínseco, uma vez que os estabelecimentos bancários normalmente cobram pela sua emissão e entrega ao correntista. Também os cartões magnéticos com os quais as pessoas efetuam saques ou realizam operações de compra em estabelecimentos comerciais constituem objeto material do furto. Os animais, considerados pela lei civil como semoventes, são também, para o Direito Penal, coisas móveis, objetos, portanto, do crime de furto. Bovinos, eqüinos, suínos, peixes, aves, todos são coisas subtraíveis. O ser humano, entretanto, não é coisa móvel e, por isso, não pode ser furtado, mas a agressão ao corpo humano constitui crime, podendo ser rapto, seqüestro, cárcere privado, subtração de incapaz etc. O corpo humano não é parte do patrimônio. Os órgãos, partes ou tecidos do corpo humano podem ser objeto dos crimes definidos no art. 14 da Lei nº 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante. Tirados do corpo do ser humano vivo com outra finalidade, haverá crime de lesões corporais, graves ou gravíssimas. É que os órgãos, tecidos e partes do corpo humano não constituem seu patrimônio, mas sim sua integridade corporal e sua saúde. Ainda quando se tira a parte do cabelo de uma pessoa ou seus dentes, a lesão não é patrimonial, mas à integridade corporal ou à sua saúde. O corpo morto do ser humano, apesar de constituir uma coisa móvel, é, todavia,
4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles protegido pela norma do art. 211 do Código Penal, não havendo, portanto, furto de cadáver. Se houver remoção de órgãos, partes ou tecidos de cadáver, para fins de transplante, incidirá a norma do art. 14 da mencionada Lei nº 9.434/97. Explica a norma do § 3º do art. 155 que “equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. Assim há furto de energia elétrica, térmica, radioativa, solar, atômica, mecânica. Ao impulso telefônico corresponde energia eletromagnética, daí que é possível ser objeto de furto. Fala a exposição de motivos do Código Penal na energia genética dos reprodutores, para que se possa considerar o sêmen do animal coisa objeto de furto. A coisa pode ser sólida, líquida ou gasosa. Há furto na subtração de gasolina e de gás de cozinha. Os minerais também podem ser furtados, uma vez que extraídos da terra tornam-se coisa móvel, havendo furto de terra obtida de terrenos marginais às rodovias e de areia captada da terra ou dos rios, por meio de dragagem.
33.2.1.3
Elemento normativo: coisa alheia
A coisa móvel deve ser alheia. Não pode pertencer ao agente, nem parcialmente. A res nullius, a coisa de ninguém, e a res derelicta, a coisa abandonada, não podem ser furtadas, porque não são alheias. A coisa perdida, res deperdita, embora não possa ser objeto de furto, pode configurar o crime do art. 169, II, do Código Penal. A água fornecida pelas companhias de abastecimento e tratamento pode ser objeto de furto? Em que pese a decisões jurisprudenciais entendendo que, como bem de uso comum do povo, res communes omnium, não pode ser considerada alheia, penso que interpretação mais correta é a que a compreende como coisa passível de furto. É que a água, uma vez captada nos mananciais, transportada às estações de tratamento, submetida ao tratamento químico que busca purificá-la a fim de ser fornecida para o consumo humano, não é mais, depois de tantas operações onerosas, um bem de uso comum do povo, porque não mais se encontra em seu estado natural. Apenas quando se encontra em rios, lagos e nos mares, a água é considerada um bem de todos, por isso insuscetível de ser furtada. Depois de captada e transformada industrialmente pertence a quem a captou e tratou, daí que aquele que desviá-la, para si ou para outrem, das tubulações por onde é
Furto - 5 entregue aos consumidores, estará praticando o crime de furto. As coisas móveis de propriedade do poder público, quando subtraídas por particulares, são objeto do delito de furto, mas quando o agente é funcionário público poderá configurar o delito do § 1º do art. 312 do Código Penal.
33.2.1.4
Princípio da insignificância
A coisa móvel alheia deve ter um valor econômico, afetivo ou de uso. Importa apenas que a coisa esteja incluída no acervo patrimonial de alguém, a vítima, para que seja considerada objeto do furto. Não significa que somente as coisas valiosas estejam protegidas, até porque seu valor é relativo. O que não tem valor para alguém pode ter para outro. Fotografias de ente querido já falecido ou que retratam eventos importantes na vida da pessoa, mesmo nada valendo para outros, é um bem patrimonial protegido pelo Direito. O que o Direito Penal não protege é a lesão insignificante, ínfima, inexpressiva, irrelevante, como a subtração de um pão, um palito, um alfinete, um pedaço de doce, uma flor do jardim ou um bombom. Importante, entretanto, considerar que a insignificância não se confunde com a coisa de pequeno valor. Esta é objeto material do furto, mormente quando pertencente à vítima de poucas posses, para quem seu valor passa a ser maior, no âmbito de seu patrimônio. A subtração que é atípica pela incidência do princípio da insignificância, ou da bagatela, é aquela desimportante, a de escassa lesividade, que deve ser assim entendida com base na consideração do desvalor da conduta e do resultado, bem assim na qualidade dos sujeitos do crime, e na relação do sujeito passivo com a coisa, nunca considerando apenas o valor da res.
33.2.1.5
Elementos subjetivos
Só é punível o furto doloso. O agente deve agir com consciência da conduta, consciência de que a coisa móvel é alheia, consciência do resultado que causará e vontade livre de tirar a coisa da vítima, privando-a da sua posse ou detenção. Se o agente, porém, não tem consciência de que a coisa é alheia, atua por erro de tipo, ficando excluído o dolo e, portanto, a tipicidade do fato. Será um indiferente penal,
6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles porque não há furto culposo. É irrelevante a motivação que impele o agente à subtração, pouco importando tenha sido por motivo de vingança, por ódio, pelo fim de lucro ou para desdenhar da vítima, ou até mesmo para se divertir. Mas há outro elemento subjetivo essencial: o animus furandi. Em outras palavras: a subtração deve ser feita “para si ou para outrem”. O agente tira a coisa para ficar com ela ou para que ela fique com outra pessoa. Age, portanto, com o fim de assenhoreamento definitivo. Esse ânimo é o de tornar sua a coisa de outra pessoa. É o fim de apoderamento da coisa, de tornar-se o senhor, seu dono. Não basta, pois, a simples subtração dolosa de coisa alheia, com a intenção de ter a coisa junto de si, o chamado animus rem sibi habendi. É preciso ficar evidenciado que o agente a tomou para si ou para outrem, o que ficará claro quando ele passa a exercer sobre ela os atos inerentes ao domínio, usando-a, dela fruindo, guardando-a, ocultando-a ou trazendo consigo, dela se desfazendo, enfim, com ela mantendo uma relação própria de possuidor ou proprietário. Indispensável, portanto, o animus domini.
33.2.1.6
Furto de uso
A subtração de coisa alheia móvel em que o agente não tem o fim de com ela permanecer, denominada furto de uso, não constitui o delito de furto. Para que seja reconhecido o furto de uso são necessários dois requisitos: o agente deve agir com o fim de usar a coisa momentaneamente e deve devolvê-la íntegra, voluntária e imediatamente após a utilização, a seu dono ou no local de onde foi tirada. Assim, o tempo de uso deve ser curto ou não prolongado no tempo e a coisa deve ser devolvida, e não abandonada, nas mesmas condições em que estava, quando subtraída. Impossível o reconhecimento do furto de uso quando a coisa vem a ser apreendida ou é abandonada em lugar distante do local de onde foi subtraída, ou devolvida com danos ou defeitos que não tinha. Não aproveita o agente a simples alegação da intenção pura e simples de usá-la, se as circunstâncias não evidenciam a momentaneidade do uso e a pronta devolução intacta da res furtiva.
Furto - 7
33.2.1.7
Consumação e tentativa
O furto é um crime material e instantâneo de efeitos permanentes. Para sua consumação, é necessária a produção do resultado, que é a modificação da posse da coisa pela vítima, a qual deve ser invertida, passando à do agente. É a denominada teoria da inversão da posse. A consumação vai ocorrer num só momento, esgotando-se aí, sem continuação do momento consumativo como ocorre nos crimes permanentes. Consumado o furto, seus efeitos podem durar tempo maior ou menor, pouco importa, porque já terá se realizado o crime em toda a sua integridade. Doutrina e jurisprudência falam em dois requisitos para a verificação da consumação. Para uma corrente é necessário que a coisa tenha saído da esfera de disponibilidade da vítima. Outros defendem que o crime somente se consuma quando o agente tem a posse tranqüila da coisa, ainda que por tempo diminuto. Ora, se o resultado no furto é a perda da posse, basta que ela ocorra, o que acontece no exato momento em que o sujeito passivo perde a possibilidade de exercer qualquer poder sobre a coisa. No tipo há um único verbo: subtrair. Tirada a coisa do dono, com o fim de assenhoreamento, realizou-se integralmente o tipo. A posse tranqüila da coisa só seria exigível se o tipo contivesse, além do verbo subtrair, outro verbo: ter. Aí, sim, a consumação somente ocorreria quando o agente tivesse a coisa com tranqüilidade. O momento consumativo ocorre quando a coisa sai da “esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que este não obtenha a posse tranqüila”.1 Haverá furto consumado no exato momento em que o ofendido não puder mais dela dispor, em que deixa de sobre ela exercer o poder que exercia quando em sua posse. É óbvio que se o agente consegue ter a posse tranqüila o furto é consumado, mas o foi antes disso, quando a coisa saiu da esfera de disponibilidade da vítima. De conseqüência, quando o agente é perseguido, até mesmo pela própria vítima, sendo a coisa recuperada, haverá crime consumado. Há tentativa de furto quando, iniciada a execução, a coisa não sai da esfera de disponibilidade da vítima ou, o que dá no mesmo, não entra na esfera de disponibilidade do agente, por circunstâncias alheias à sua vontade. 1
DAMÁSIO, Op. cit. v. 2, p.309.
8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles Haverá início de execução se ele der início à realização do núcleo do tipo, isto é, quando começa a subtração, o que se caracteriza quando, de forma inequívoca, dá início ao gesto de pegar a coisa, para retirá-la do lugar onde se encontra. O início do arrombamento da porta da casa, onde se encontra a coisa pretendida, é ato preparatório do furto, mas constitui tentativa de violação de domicílio. Se, entretanto, é preso o agente no interior da casa, no momento em que iniciava a retirada da coisa, haverá início de execução e, portanto, tentativa de furto. A essa conclusão se chega pela consideração do núcleo do tipo de furto, que é o verbo subtrair. Sem que o agente ponha as mãos sobre a coisa, ainda que por meio de um instrumento qualquer, não se pode falar em início de subtração, mesmo que esta seja sua intenção. Até porque, é sempre bom lembrar, o agente pode, espontaneamente, antes de tocar na coisa, desistir de fazê-lo, retirando-se do local. Nada obstante isso, há decisões jurisprudenciais considerando iniciada a execução quando o agente apenas ingressou na casa. Há tentativa quando, surpreendido pela chegada de alguém, abandona a coisa que tinha nas mãos no mesmo local, sendo preso ou vindo a fugir, porque, nesse caso, já tinha iniciado a subtração.
33.2.1.8
Desistência voluntária e arrependimento eficaz
Só é possível reconhecer a desistência voluntária no furto se o agente, com perfeitas condições para realizar a subtração, sem qualquer obstáculo ou perigo de ser encontrado, descoberto, dispondo, portanto, de todas as condições para executar o procedimento típico e após tê-lo iniciado, resolver, sem qualquer interferência externa, interrompê-lo deixando a coisa em seu lugar. Seria o caso do caseiro que, na ausência do patrão, depara-se com uma jóia guardada, toma-a nas mãos, coloca-a no bolso e depois, espontaneamente, decide não furtá-la, deixando-a como estava. Não houve tentativa, mas é claro que uma situação dessa dificilmente seria sequer conhecida da vítima. O arrependimento eficaz é impossível, porque a consumação do furto ocorre no momento da conclusão da execução do procedimento típico. Só é possível o arrependimento posterior, com a restituição da coisa ou com a reparação do dano, o que será apenas causa de diminuição da pena, conforme o art. 16 do Código Penal.
Furto - 9
33.2.1.9
Crime impossível
Há quem veja crime impossível ou tentativa inidônea na hipótese de que, estando a coisa protegida por mecanismos ou dispositivos de segurança, a subtração não possa consumar-se, por ineficácia absoluta do meio empregado. Também se fala em crime impossível se inexistente o objeto, como quando a vítima ingressa na casa para furtar, e nela não encontra nenhuma coisa. Neste último caso não há dúvida de que se trata de furto impossível, por absoluta impropriedade do objeto, mas o agente responderá pela violação do domicílio. Impossível, entretanto, reconhecer crime impossível nas hipóteses de existência de sistemas de alarme, porque a ineficácia do meio é tão-somente relativa. Basta imaginar a possibilidade de queda repentina da energia elétrica que ativa o sistema ou falha momentânea em seu funcionamento para se concluir que a ineficácia do meio não é absoluta, como se exige para o reconhecimento do crime impossível.
33.2.1.10
Aumento de pena: furto durante o repouso noturno
Determina o § 1º do art. 155: “a pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido durante o repouso noturno”. Não se deve confundir repouso noturno com noite. A norma fala em furto durante o repouso noturno e não em furto noturno, expressão consagrada, erroneamente, pela doutrina. A razão da incriminação está em que o crime é cometido durante o tempo da noite que a vítima destina ao repouso, dedicando, por isso, menor atenção à coisa. O sentido da norma não se volta para a vítima que dorme, mas à coisa que se encontra mais exposta ou desvigiada. Assim, não incide a qualificadora se a vítima tem o hábito de dormir durante a tarde, e o furto é realizado nesse período do dia. O repouso noturno diz com os hábitos e costumes da região onde é praticado o crime, logo, deve ser determinado com base na realidade fática. A jurisprudência se divide quanto à necessidade de que o lugar esteja habitado e que os moradores estejam dormindo. Se é verdade que durante o repouso noturno – mesmo estando a casa vazia, ainda que ocasionalmente – a coisa está, em si mesma, mais vulnerável pela circunstância de ser mais fácil para o agente obter sua disponibilidade,
10 – Direito Penal II – Ney Moura Teles inclusive por ter melhores condições de fugir com ela, pondo-se a salvo da perseguição da autoridade, não menos certo é que, se os moradores estão acordados, sua proteção é mais eficaz. Assim, não vejo como imprescindível ser o lugar habitado, mas não pode incidir o aumento de pena quando, praticado o crime durante o repouso noturno, os moradores estejam despertos e, portanto, exercendo maior vigilância sobre a coisa. Essa causa de aumento diz respeito exclusivamente à figura típica simples, não podendo ser aplicada aos casos de furtos qualificados, adiante comentados.
33.2.2
Furto privilegiado
“Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa” (art. 155, § 2º). Presentes essas duas circunstâncias, diz-se privilegiado o furto. Agente primário é aquele que não é reincidente. Reincidente é quem, depois de estar condenado por sentença penal transitada em julgado, vem a cometer novo fato típico. Ao ser condenado por este fato cometido após o trânsito em julgado daquela primeira sentença condenatória, não será considerado primário. Como bem lembrou DAMÁSIO, para o Direito brasileiro o agente é primário ou não é. Se não é primário é porque é reincidente. Se é reincidente, não é primário. Se não é reincidente, é primário e ponto final. Pouco importa, para o reconhecimento do furto privilegiado, se o agente tem um rosário de crimes ainda não julgados definitivamente, isto é, sem sentença transitada em julgado. Pode tê-los cometido aos montes, mas se, antes do furto em exame, não houve sentença transitada em julgado, poderá merecer o reconhecimento do privilégio. O agente que cometeu dezenas de crimes, não definitivamente condenado, poderá merecer o privilégio, ao passo que o agente que tiver apenas uma condenação transitada em julgado anterior não a merecerá, porque é reincidente. Não basta ser primário. É preciso que a coisa seja de pequeno valor. Problema intrincado e de difícil solução é a definição do que seja coisa de pequeno valor. São vários os critérios possíveis para sua aferição. Diz-se, muito, que se deve ter como referência o valor do salário mínimo vigente ao tempo do fato. Algumas decisões apontam no sentido de que deve-se tomar como
Furto - 11 referencial o efetivo prejuízo sofrido pela vítima, bem assim sua situação econômica. Por fim menciona-se também a análise das condições pessoais do agente. A interpretação sistemática obriga a comparação dessa circunstância do § 2º do art. 155 com aquela do § 1º do art. 171 do Código Penal, que menciona, como requisito para o reconhecimento do estelionato privilegiado, ser de pequeno valor o prejuízo sofrido pela vítima. Ao comparar as duas normas, a conclusão a que se pode chegar é que, no furto, a lei não quis referir-se ao valor do prejuízo, mas ao da coisa. Assim, deve-se afastar o valor do prejuízo como referência para a determinação da quantidade do valor da coisa. Não se deve buscar um critério único, como o valor do salário mínimo, mas utilizálo apenas como ponto de partida, valorando a coisa subtraída em sua qualidade e quantidade, tanto para o sujeito ativo quanto para o sujeito passivo. Coisa de valor de troca irrisório ou inferior ao do salário mínimo – a única fotografia da ex-namorada dos sujeitos do crime – tem um enorme valor estimativo para a vítima e pode ter também para o agente, tanto que este a subtraiu, logo não poderá ser considerada de pequeno valor. Isso não significa que o carro usado de um bilionário deva ser considerado coisa de pequeno valor, porque para se chegar a essa conclusão só se terá levado em conta seu valor para a vítima, e na estimação do valor da coisa o juiz deve considerar a coisa em si e em relação aos dois sujeitos do crime. Embora de menor valor para a vítima, tendo a coisa grande valor para o agente, não estará autorizada a incidência do privilégio. A expressão “pode”, contida no § 2º do art. 155, não significa que a concessão do benefício seja uma faculdade do juiz porque é empregada no sentido de permitir-lhe escolher entre as opções: substituição da pena de reclusão pela de detenção, diminuição de um a dois terços ou aplicação exclusiva da pena de multa. Fica, pois, na faculdade do juiz escolher qual dos benefícios conceder ao réu, o que será feito levando em conta as circunstâncias judiciais do art. 59. Estas só devem ser analisadas para orientar a opção do juiz, não para o reconhecimento do privilégio, que está sujeito apenas à verificação das duas condições – a primariedade e o pequeno valor da coisa. Há, entretanto, pensamento doutrinário e jurisprudencial no sentido contrário, de que, além dos requisitos objetivo e subjetivo do § 2º, deve o juiz verificar se o agente reúne outras condições, como as que a lei exige para a concessão do sursis ou algumas para o
12 – Direito Penal II – Ney Moura Teles livramento condicional. Negar o privilégio porque o agente tem maus antecedentes, não tem conduta social adequada ou tem contra si sentença condenatória recorrível, é negar vigência à norma do § 2º do art. 155, impondo o juiz – e, portanto, legislando, o que lhe é defeso – condições que a lei não criou. Ademais, o privilégio é causa de diminuição de pena, de sua substituição ou de facultar a aplicação de penas cominadas cumulativamente. A consideração sobre circunstâncias pessoais do agente é realizada pelo juiz no momento da aplicação da pena-base, anteriormente à consideração do privilégio e, não pode, sob pena de se incorrer em inaceitável bis in idem, ser considerada uma segunda vez.
33.2.3
Furto qualificado
Os §§ 4º e 5º do art. 155 descrevem circunstâncias especiais que qualificam o crime de furto, impondo penas mais severas. A pena será de reclusão de dois a oito anos e multa se o furto for cometido com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa; com abuso de confiança ou mediante fraude, escalada ou destreza; com emprego de chave falsa; ou mediante concurso de duas ou mais pessoas. Será de reclusão de três a oito anos se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
33.2.3.1
Destruição ou rompimento de obstáculo
O emprego de violência, com destruição ou rompimento de qualquer obstáculo, para realizar a subtração, qualifica o crime. Obstáculo é tudo que obsta algo. Obstáculo à subtração é aquilo que, como uma barreira, impede-a ou a dificulta. Incluem-se, para os efeitos da incidência da norma, não somente objetos estranhos à res furtiva, utilizados pela vítima para protegê-la, mas também partes da própria coisa predispostas para impedir sua subtração. Obstáculo inerente à coisa é, por exemplo, o sistema de travamento e trancamento das portas de um veículo automotor. Obstáculo estranho é, exemplificando, o cofre que guarda as jóias da família.
Furto - 13 Destruir é fazer desaparecer, eliminar. Romper é empregado no sentido de arrombar, abrir à força, abrir caminho, violar, vencer com violência. Se há arrombamento, ruptura, demolição, destruição total ou parcial, provocados em cadeados, fechaduras, portas, janelas, telhados, tetos, cofres, gaiolas, no sistema de alarme, armadilhas, enfim, em quaisquer coisas materiais que tenham a qualidade de impedir a subtração, presente estará a qualificadora. Qualifica o crime a destruição do mecanismo que tranca o veículo ou o de seu sistema de alarme, ou dos vidros ou do quebra-vento, para furtá-lo, a um seu acessório, como o rádio ou toca-discos, ou qualquer objeto que esteja dentro dele. Romper o obstáculo não é o mesmo que removê-lo, quando se poderá configurar outra qualificadora, a destreza, adiante analisada. Simples estragos na própria coisa, decorrentes da subtração, como os produzidos para tornar possível sua apreensão – o corte dos fios que ligam o toca-fitas ao sistema elétrico do veículo ou o amassamento de parte de sua carcaça –, porque não constituem destruição ou rompimento de obstáculo, não configuram a qualificadora. Também os danos causados na coisa, decorrentes de negligência, imperícia ou imprudência do agente, na realização do procedimento típico, não podem ser confundidos com a violência empregada contra o obstáculo à subtração. Indispensável, para a incidência da qualificadora, é comprovação da destruição ou do rompimento do obstáculo através de perícia, conforme determina o art. 158 do Código de Processo Penal. É que tanto a destruição quanto o rompimento de obstáculo são ações que deixam vestígios e, por isso, devem ser comprovadas pericialmente.
33.2.3.2
Abuso de confiança
Para incidir a qualificadora do inciso II, primeira figura, do § 4º do art. 155, é necessário que a vítima mantenha, com o agente, uma relação de confiança. Entre as pessoas, no dia-a-dia pode surgir e ser cultivado um vínculo de confiança, às vezes mútua. Essa confiança faz com que a pessoa se comporte, em relação àquela em que confia, de modo absolutamente tranqüilo, deixando de adotar quaisquer cautelas em relação a si mesma, bem assim em relação às suas coisas de valor. Tal se dá, muito comumente, entre amigos, amantes, namorados, colegas de trabalho ou de escola, empregadores e empregados, funcionários de uma mesma repartição pública, enfim, entre pessoas que
14 – Direito Penal II – Ney Moura Teles convivem de modo mais freqüente. Se, havendo essa relação de plena confiança, um deles aproveita-se do descuido que dela decorre e subtrai a coisa do que confiou, abusando da confiança que em si fora depositada, haverá furto qualificado. São dois, portanto, os requisitos para sua incidência. O primeiro, de natureza subjetiva, é a confiança depositada pela vítima na pessoa do agente. O segundo é objetivo: o afrouxamento dos cuidados normais que todos dedicam às suas coisas materiais de valor, que facilita a abusiva subtração. Não será reconhecida a qualificadora pela simples existência de relações entre agente e vítima, como as de emprego, de coleguismo, no trabalho ou na escola, amorosa ou de amizade, se não se verificar, nelas, o vínculo de confiança. Empregada doméstica que não tem acesso livre a determinadas dependências da casa, onde estão guardadas as jóias da mulher, e que se aproveita de um momento de descuido para furtá-las, não comete o crime com abuso de confiança. Não se pode presumir confiança e, por isso, o abuso. Deve ser cabalmente provada.
33.2.3.3
Fraude
Há furto mediante fraude quando o agente engana a vítima, antes ou durante a subtração, para cometê-la quando a vigilância sobre a coisa é escassa ou nenhuma. Não se confunde com o estelionato, posto que neste a conduta do agente leva a vítima a se colocar numa situação de erro, entregando-lhe a coisa, ao passo que no furto mediante fraude a vítima nem chega a perceber que ela lhe é tirada. A fraude é a artimanha, a malandragem. Há fraude quando o agente ingressa na casa com a permissão da vítima, que acredita ser ele funcionário da companhia telefônica, por lhe ver o uniforme ou o crachá de identificação falsa. Também quando, em frente ao caixa eletrônico, o agente ludibria a vítima, trocando, sem que ela perceba, um cartão falso pelo autêntico cartão magnético que lhe permitirá subtrair dinheiro da conta corrente.
33.2.3.4
Escalada
A escalada é o acesso por meio anormal ao lugar onde se acha a coisa que será subtraída. O uso de escadas ou cordas para ingressar na casa pelo telhado, ou por uma das
Furto - 15 janelas situada em pavimento superior da construção, a transposição de cercas altas, contornando grades, lanças, a própria escalada com as próprias mãos e pernas, enfim, ações que exigem enorme esforço físico, qualificam o furto pela atitude desassombrada do agente, que não se detém diante das dificuldades para realizar a subtração, merecendo, assim, maior reprovabilidade.
33.2.3.5
Destreza
Se a fraude é a habilidade, o engenho ou a artimanha psicológica, a destreza é seu correspondente físico, corporal. O agente, com especial habilidade manual, consegue tirar a coisa da vítima, sem que esta perceba sua ação material. Há dissimulação por meio de astúcia manual ou física. É o caso do clássico batedor de carteira que a surrupia da vítima de maneira hábil. Ainda quando o agente não consiga seu intento a qualificadora incidirá na forma tentada, mas se o agente age grosseiramente haverá furto simples, consumado ou tentado. Estando a vítima dormindo ou embriagada não se pode falar em destreza porque, nessas situações, a vítima não perceberia, mesmo, a subtração, que ocorreria de qualquer modo.
33.2.3.6
Chave falsa
Se para realizar a subtração o agente utiliza chave falsa, haverá furto qualificado. Por chave falsa deve-se entender não apenas a réplica da chave verdadeira, mas qualquer instrumento ou mecanismo que venha a fazer as vezes de chave, abrindo a fechadura ou o dispositivo de tranca. Não precisa ter o formato ou aparência de chave, bastando que seja idôneo para abrir o mecanismo ou fechadura. Assim, até mesmo um clipe de papel pode ser considerado chave, se for utilizado eficazmente para abrir a fechadura, permitindo a subtração. Se o agente encontra a chave verdadeira não é essa a qualificadora incidente, podendo reconhecer-se a qualificadora da fraude se houve engodo da vítima em sua obtenção. Se para abrir a porta da casa o agente, antes, conseguiu, pela janela, usando uma vara, linha e anzol, fisgar a chave verdadeira, haverá furto qualificado pela destreza e não
16 – Direito Penal II – Ney Moura Teles por emprego de chave falsa.
33.2.3.7
Concurso de pessoas
O concurso de pelo menos duas pessoas também qualifica o crime de furto. A norma não exige que o concurso se dê na realização do procedimento típico, mas do crime, daí que se inclui também o autor intelectual que, a distância, aguarda sua realização. Indiferente que, dentre os concorrentes, haja menores ou inimputáveis, bem assim que exista ajuste prévio ou que as participações sejam diferenciadas em sua qualidade, bastando que haja efetiva concorrência dolosa, material ou intelectual, para que todos respondam pela forma qualificada, na medida, é óbvio, da culpabilidade de cada um.
33.2.3.8
Veículo automotor transportado para outro Estado ou para
o
exterior A última qualificadora do furto, punida mais severamente que as anteriores – reclusão de três a oito anos –, foi introduzida no art. 155 pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996: “se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior”. A norma, diferentemente das outras qualificadoras do furto e da forma simples, não cominou pena de multa, nem alternativamente. Aplica-se apenas quando a coisa furtada é veículo automotor: “todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico)”. Essa é a definição contida no Anexo I da Lei nº 9.503/97, o Código de Trânsito, e não há razão para que não se a adote também para a interpretação da norma da qualificadora do furto, até porque se trata de interpretação autêntica, realizada pelo legislador após a vigência da norma ora comentada, quando, portanto, tinha conhecimento do emprego da mesma expressão em norma penal incriminadora já vigente. São veículos automotores o automóvel, a motocicleta, motoneta, ciclomotor, trator, ônibus, ônibus elétrico, caminhão, caminhão trator, caminhonete, microônibus, motor-casa (motorhome) e o utilitário.
Furto - 17 A bicicleta, o bonde, o carro de mão, a carroça e a charrete não se incluem na definição legal de veículo automotor. A expressão “que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior”, tecnicamente deficiente, exige que, para a incidência da qualificadora, o veículo automotor tenha sido efetivamente transportado do município onde foi subtraído para o território de outro Estado da federação ou para território estrangeiro. Se tiver permanecido no território do mesmo Estado federado onde foi subtraído, haverá furto simples, caso não seja qualificado por uma das circunstâncias do § 4º. Como redigida a norma, se o agente subtrai um veículo no estado de Goiás e o transporta para o Distrito Federal, que não é Estado federado, não se reconhecerá a qualificadora. Se o agente é preso quando se dirigia para o outro Estado ou para o exterior, não tendo ainda transposto a fronteira, não incidirá a qualificadora. Se o furto já tinha-se consumado, será furto simples. Se o veículo ainda não tinha saído da esfera de disponibilidade da vítima – realizado, por exemplo, nas proximidades da fronteira – haverá tentativa de furto simples. Se, entretanto, estiver prestes a se consumar já no outro Estado ou no exterior, porque subtraído no lado brasileiro na cidade de Santana do Livramento, tendo sido o agente preso com ele em Rivera, poucos metros depois, haverá tentativa de furto qualificado. O dolo do agente, bem assim o de todos os concorrentes, deve abranger o transporte para outro Estado ou para o exterior, para que a qualificadora lhes seja aplicada.
33.2.3.9
Concurso de circunstâncias qualificadoras
Tem-se entendido que se no mesmo fato típico de furto incidirem duas ou mais qualificadoras do § 4º, apenas uma será considerada, podendo as demais ser consideradas como agravantes da pena. Melhor é entender as demais como circunstâncias judiciais do art. 59, considerando-as, portanto, no momento da fixação da pena-base, porque nenhuma das qualificadoras do § 4º está incluída entre as agravantes da pena, definidas taxativamente nos arts. 61 e 62 do Código Penal. Incidindo a qualificadora do § 5º e uma ou mais das descritas no § 4º devem estas,
18 – Direito Penal II – Ney Moura Teles igualmente, ser consideradas como circunstâncias judiciais desfavoráveis, no momento da fixação da pena-base, a ser determinada entre o mínimo de três e o máximo de oito anos.
33.2.4
Furto qualificado-privilegiado
A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem repelido a possibilidade de um furto qualificado ser, ao mesmo tempo, privilegiado. Com extrema lucidez o Ministro FELIX FISCHER, do Superior Tribunal de Justiça, lançou luzes para pôr um fim à polêmica, mostrando que, diferentemente do homicídio, em que é possível a convivência harmoniosa entre qualificadoras objetivas com as privilegiadoras subjetivas, no caso do furto ela não é possível: “Durante algum tempo, parte da doutrina e da jurisprudência pretendeu solucionar o problema com recurso ao curioso argumento ‘topográfico’. Uns, por admitir – em certas hipóteses – o homicídio qualificado-privilegiado, admitiam, também, por força da posição dos parágrafos (o privilegiado anterior ao qualificado), o furto qualificado-privilegiado; outros, com supedâneo no mesmo argumento, negando tanto um quanto o outro. No entanto, essa forma de interpretação não é, propriamente, a de melhor técnica. Solução moderna foi entre nós introduzida pelo Ministro Assis Toledo, quando ainda integrante do Parquet, e que mereceu a pronta adoção pelo Pretório Excelso (RTJ 95/892). Ao contrário do que era e é proposto pelos que se utilizam do chamado argumento ‘topográfico’, ele apresentou uma linha de raciocínio pela qual, sem qualquer paradoxo, e com desdobramento, de imediato, perceptível, podemos, em certos casos, admitir o homicídio qualificado-privilegiado e, simultaneamente, negar a existência jurídica do furto qualificado-privilegiado. (...) O inovador – principalmente em sede de nossa doutrina – argumento tem, inclusive, raízes no próprio conceito material de crime. Por este, considerado por alguns como de caráter pré-legislativo, o crime pressupõe, sempre, uma ofensa a um bem jurídico, seja na forma de dano, seja na de perigo. Mas, o seu conteúdo não se esgota nesse requisito (desvalor de resultado). É imprescindível, na razão de ser da incriminação básica e das variações – tipo básico e derivado – a consideração da forma intolerável, indesejável, de conduta (desvalor de ação). Há, sem dúvida, acentuada polêmica sobre se o ilícito penal requer um desvalor de ação e um desvalor de resultado ou se ele se esgota, neste ponto, no desvalor de ação. De
Furto - 19 qualquer maneira, o desvalor de ação é, no campo criminal, um dado fundamental. Por exemplo, em se tratando do bem jurídico patrimônio, a lesão ou ofensa, por si, isoladamente, nada diz, nada revela em sede de ilicitude penal. Para tanto, basta ser lembrado que o não-cumprimento de um contrato pode acarretar uma ofensa patrimonial equivalente a de um grande número de furtos, sem, no entanto, configurar, de per si, uma conduta típica. A diferença reside, portanto, no desvalor de ação, sendo a conduta, no furto, intolerável para uma salutar, proveitosa, vida coletiva ou para um bom convívio social, constituindose, aí, no cerne do ilícito penal por opção do legislador. É natural, todavia, que, com relação a certos bens jurídicos de extrema relevância, o desvalor de resultado adquira uma importância fulcral. Neste particular, M. Conde e G. Arán exemplificam com a proteção contínua, quase não fragmentária, do bem jurídico vida. Mas, não só pela inaplicabilidade da responsabilidade objetiva, o desvalor de conduta, também, opera, aí, e muito, na graduação dos injustos. No furto – repetindo, onde o desvalor de ação é básico – as formas qualificadas (§ 4º) dizem só e sempre com a conduta. O desvalor se torna mais acentuado. Já a forma privilegiada (§ 2º) diz, apenas, com o resultado e com a primariedade do agente. As valorações – do § 4º e do § 2º
– incidem sobre objetos de valoração
inteiramente distintos. O acentuado desvalor de ação nas hipóteses de furto qualificado não pode ser abalado ou neutralizado pela configuração dos dados componentes do furto privilegiado (menor desvalor de resultado e primariedade). O furto privilegiado se identifica, em verdade, com o furto bisonho de um réu primário. Não guarda relação com as acentuadamente reprováveis e, em regra, revoltantes maneiras de agir descritas no § 4º do art. 155 do Código Penal. Se o desvalor de resultado não distingue, em termos do bem jurídico patrimônio, o ilícito penal do ilícito civil, carece de sentido jurídico aceitar que, no furto, um menor desvalor de resultado possa nulificar o acentuado desvalor de ação (fator decisivo, aqui, na graduação do injusto). Sob outro ângulo, é de difícil compreensão, via de regra, que uma forma privilegiada deva acarretar a mesma conseqüência jurídica, tanto para a forma básica do delito como para a qualificada. É como se a qualificadora fosse um capricho do legislador ou algo totalmente banal. O nivelamento, com o uso da expressão ‘tanto faz’, por óbvio, não encontra alicerces na dogmática jurídico-penal. Ao contrário do homicídio qualificado-privilegiado, em que a forma privilegiada atua como minorante sobre
20 – Direito Penal II – Ney Moura Teles a qualificadora, no furto, admitindo-se a coexistência, o efeito do privilegiado seria o mesmo, tanto para a forma básica como para a qualificada, o que, despiciendo destacar, gera perplexidade. Tem mais! É inconveniente, também, aí, o conseqüente tratamento tão acentuadamente diverso entre réu primário e réu reincidente. Enquanto este teria contra si uma pena de reclusão que, hoje, eventualmente, pode ser substituída (art. 44 § 3º do CP, com a redação da Lei nº 9.174/98), aquele, poderia sofrer uma condenação meramente simbólica. Isto é, para este último, um prêmio destituído até de conteúdo axiológico. No entanto, negada a figura do furto qualificado-privilegiado, o réu primário é efetivamente condenado, mas não sofre qualquer segregação. A primariedade não será, na comparação, um prêmio (por sinal, ela é até uma obrigação na convivência em sociedade) de conotação exagerada e a reincidência não será razão única de punir alguém por furto qualificado, em caso de pequeno valor. Portanto, com a linha de argumentação apresentada pelo Ministro Assis Toledo, é de negar o furto qualificado-privilegiado. No entanto, é, em parte, possível admitir o homicídio qualificado-privilegiado. E, isto porque tanto as formas privilegiadas (§ 1º do art. 121 do C.P.), como as qualificadas (§ 2º), se caracterizam, aí, pelo menor ou maior desvalor de ação. O único requisito adicional ou específico é o da compatibilidade entre a forma qualificada e a privilegiada. Em princípio, só as qualificadoras objetivas podem coexistir com as formas privilegiadas.”2 Penso, em perfeita harmonia com a lição transcrita, que não é possível reconhecer ao furto qualificado o privilégio do § 2º do art. 155.
33.2.5
Concurso de crimes e conflito aparente de normas
Possível a existência de furto em concurso material, em concurso formal e também a sua continuidade delitiva. Haverá concurso material entre furto e estupro ou atentado violento ao pudor se, após, ou antes, de subtrair a coisa, o agente realiza a violência sexual contra um dos moradores. Se, porém, subtraída a coisa, emprega violência ou grave ameaça contra pessoa, com o fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para outrem, haverá um único delito de roubo impróprio, consoante descrição típica do § 1º do 2
A questão do furto qualificado-privilegiado. Estudos em Homenagem ao Ministro Adhemar Ferreira Maciel.
Furto - 21 art. 157. Há decisões jurisprudenciais reconhecendo concurso formal homogêneo de crimes quando o agente ingressa na casa e subtrai, simultaneamente, coisas de propriedade de pessoas diversas, o que também ocorreria se, no mesmo imóvel rural, subtrai, com a mesma conduta, do único curral, várias reses de donos diferentes. Se pertencentes as várias coisas ao mesmo dono, haveria crime único. Há concurso formal heterogêneo entre furto e o crime denominado corrupção de menores, definido no art. 1º da Lei nº 2.252/54, quando o agente subtrai, em concurso com menor de 18 anos, coisa alheia móvel, para si ou para outrem. Nesse caso não se poderá fazer incidir a qualificadora do § 4º, IV, pois se assim for a mesma circunstância – o concurso – estaria incidindo duas vezes. Há continuidade delitiva entre vários furtos, inclusive simples e qualificados, e também se pode reconhecê-la entre furto e roubo, furto e receptação, furto e dano, porque, segundo penso, são todos crimes de mesma espécie, porque se voltam contra o mesmo bem jurídico: o patrimônio, desde que, é certo, se possa verificar o nexo de continuação. Se após o furto, o agente vende a coisa, haverá concurso entre furto e estelionato? Não há, a respeito, pensamento uniforme da jurisprudência, com decisões no sentido de que se deve reconhecer concurso material entre o crime antecedente e o crime subseqüente, e outras no sentido de que o estelionato é post factum impunível. Julgando o Recurso Especial nº 112509/SP, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela segunda orientação, afirmando que, “ocorrendo duas condutas tipificadas como crimes contra o patrimônio, em que uma é mera seqüência da outra, dirigida ao aproveitamento econômico, ocorre somente o crime principal, segundo o princípio da subsidiariedade”.3 O crime antecedente, no caso o furto, e o subseqüente devem situar próximos no tempo, de modo a que se possa entender o segundo como exaurimento do primeiro, integrando a mesma ação no plano jurídico e psicológico, porque alcançada pelo mesmo desígnio do agente. Se, todavia, entre o furto e a venda posterior da res furtiva decorrer tempo razoável, é de se reconhecer o concurso material de crimes. É que, nessa hipótese, a subtração não terá visado à obtenção da vantagem com a alienação da coisa, que só vem a ocorrer, autonomamente, com desígnio independente, desconectado com a ação primária. 3
DJ, de 15-6-1998, p. 172; RSTJ v. 110, p. 432; RT 755/587.
22 – Direito Penal II – Ney Moura Teles O furto absorve o crime de violação de domicílio, que é sua fase normal, na hipótese de subtração feita no interior de casa alheia. O furto com destruição de obstáculo absorve o dano causado. O furto é absorvido pelo roubo impróprio, quando o agente, após a subtração, emprega violência ou grave ameaça para assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou para outrem.
33.3 ILICITUDE E CULPABILIDADE A ilicitude do furto pode ser excluída se o agente age em estado de necessidade, numa única situação denominada pela doutrina de furto famélico. Haverá furto famélico se a subtração for, necessariamente, de alimentos básicos e desde que reste demonstrado o estado de penúria do agente ou de seus familiares. Necessário ainda que se possa reconhecer a inevitabilidade da subtração, isto é, compreendê-la como única saída que o agente tinha para aplacar a fome, sua ou de seus filhos. Dir-se-á que sempre haveria uma saída para ele, dentre elas a de obter emprego ou mendigar. Na realidade da vida dos grandes centros urbanos, entretanto, nem sempre é possível para os menos favorecidos, para os enfermos, os desempregados, os miseráveis, encontrar a mão amiga, solidária, estendida com o prato de comida ou com o dinheiro para sua aquisição. Na hipótese de que a conduta não se amolde perfeitamente à descrição da excludente do estado de necessidade, não será desarrazoado reconhecer no furto famélico um caso de inexigibilidade de conduta diversa, excluindo, assim, a culpabilidade do agente.
33.4 AÇÃO PENAL A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. Se o furto é cometido em prejuízo do cônjuge separado judicialmente ou divorciado, de irmão, de tio ou sobrinho com quem o agente coabite, a ação penal dependerá de representação do ofendido (art. 182, CP). O agente que comete furto contra o cônjuge, na constância da sociedade conjugal, de ascendente ou descendente, não será punido, diante da escusa absolutória do art. 181,
Furto - 23 objeto de comentários adiante. Impossível, por isso, sequer a instauração de inquérito policial, que, entretanto, poderá ser promovido em relação a co-autores ou partícipes do crime não alcançados pelo preceito do art. 181.