VOLUME 02 - 47

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47 APROPRIAÇÃO INDÉBITA

_____________________________ 47.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURÍDICA E SUJEITOS DO CRIME O tipo está contido no art. 168 do Código Penal: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção.” A pena cominada é reclusão, de um a quatro anos, e multa. O bem jurídico protegido é o patrimônio, a propriedade e a posse de bens móveis. Sujeito ativo do crime é quem tem a posse ou a detenção lícita da coisa móvel alheia privada. Sujeito passivo é o proprietário ou o possuidor, direto ou indireto, este da coisa que estiver na detenção de outrem.

47.2 TIPICIDADE 47.2.1 Conduta O núcleo do tipo é a forma verbal apropriar-se. Significa tornar-se dono da coisa, tratá-la, em todos os sentidos, como se sua fosse. O agente, que não é proprietário da coisa, com a conduta, passa a agir como se ela lhe pertencesse, passando a exercer, em relação a ela, direitos que só o proprietário pode. O agente, estando na posse da coisa ou apenas detendo-a, passa, em dado momento, a sentir-se o dono dela, agindo como tal. A conduta será comissiva, quando o agente doa, vende, empresta, consome ou esconde a coisa de seu proprietário. Será omissiva quando instado a devolvê-la, recusa-se a fazê-lo, atitude esta própria de quem é dono.


2 – Direito Penal II – Ney Moura Teles

47.2.2

Elementos objetivos

Entre a vítima e o agente deve existir uma relação contratual – onerosa ou gratuita, escrita ou verbal, um acerto, um ajuste, uma combinação – por meio da qual a coisa, de propriedade daquela, é entregue a este, que passa a ter sua posse ou sua detenção, devendo devolvê-la nos termos do ajuste feito ou quando o proprietário a reclamar. A posse ou a detenção da coisa autorizam sua utilização normal que, por isso, não constitui ato de apropriação. A vítima conserva seu direito de propriedade sobre a coisa, mas o agente a detém ou tem sua posse direta. É ele que está com a coisa. Cuida-se da posse exercida por alguém em nome do seu proprietário, como nos casos de contratos de locação, de mandato, de depósito, de penhor, usufruto, gestão de negócios ou de empréstimo de coisa. Através desses contratos, a posse direta da coisa é exercida por quem não é seu proprietário. O possuidor direto é quem poderá cometer o crime de apropriação indébita. A posse direta da coisa lhe é confiada e ele – devendo mantê-la para, ao fim do contrato, devolvê-la – rompe o contrato, vendendo-a, ocultando-a ou, simplesmente, não a devolvendo, enfim, dela se apropriando. O art. 1.198 do Código Civil define assim a detenção de coisa: “Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.” O empregado que vai ao Banco efetuar pagamentos é detentor do dinheiro destinado a liquidar as obrigações do empregador. Os atos de permissão ou mera tolerância também não induzem posse, tratando-se de mera detenção. Há detenção quando o comerciante entrega jóias ou roupas à freguesa para que ela as examine, escolha e, depois, adquira as que lhe agradar, devolvendo as demais. O crime ocorrerá quando houver detenção não vigiada, o que se dá quando o proprietário confia plenamente no detentor, acreditando que a coisa lhe será devolvida como combinado. Se o dono permite que outrem detenha a coisa, mantendo, entretanto, vigilância sobre ela, é porque não deposita confiança no detentor. Se este dela se apropria, estará, na verdade, cometendo furto.


Apropriação Indébita - 3

47.2.3

Elementos normativos

A posse e a detenção devem ser lícitas, fruto da vontade livre do proprietário que entregou a coisa ao agente. Se o sujeito obteve a posse ou a detenção da coisa por meio ilícito, não há apropriação indébita, mas outro crime. Tornar-se dono de coisa produto de crime pode constituir crime de receptação (art. 180, CP), assim como vendê-la ou ocultá-la. Cuida-se exclusivamente de coisa móvel, aquela substância material corpórea, que pode ser apreendida e transportada, portanto apropriada. Além disso, somente a coisa alheia pode ser apropriada indevidamente. Quando a posse tiver sido obtida pelo agente por força de contrato, será imprescindível o exame da lei civil para se verificar a tipicidade da apropriação indébita. Na locação de coisa não fungível – que não pode ser substituída por outra da mesma espécie, qualidade e quantidade –, uma vez escoado o prazo, não se terá por configurada necessariamente a apropriação pelo locatário, visto que, segundo determina o art. 574 do Código Civil, “Presumir-se-á prorrogada a locação pelo mesmo aluguel, mas sem prazo determinado”, a não ser que haja oposição do locador. No comodato – que é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis –, e que se perfaz com a tradição da coisa, não havendo prazo convencional, “presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido” (art. 581, CC). Não pode, ademais, o dono suspender o uso e gozo da coisa emprestada antes do final do prazo ajustado ou do que se determine pelo uso outorgado, “salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz” (art. 581, CC). Se o agente emprestou uma colheitadeira sem prazo convencionado, não pode, antes do término da safra, retomá-la, nem notificar o comodatário, constituindo-o em mora. A não ser que, promovendo ação judicial para rescindir o contrato, provando a urgência e a imprevisibilidade, obtenha decisão favorável. No mútuo, que é empréstimo de coisa fungível – aquela que pode ser substituída por outra da mesma espécie, qualidade e quantidade – não há apenas a transmissão da posse, mas seu domínio, conforme norma do art. 587 do Código Civil: “Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição.” Também no depósito de coisas fungíveis – contrato em que o depositário recebe a coisa para guardá-la até que o depositante a reclame – o domínio da coisa é transferido


4 – Direito Penal II – Ney Moura Teles para o depositário, conforme determina a norma do art. 645 do Código Civil. Ora, se nesses contratos o domínio da coisa é transferido para o mutuário ou o depositário, sua apropriação por estes não será fato típico, porque o tipo do art. 168 exige que a coisa seja alheia. Transferido o domínio, a coisa é própria do mutuário ou depositário. Pode, entretanto, haver apropriação indébita de coisa fungível quando o agente comprometeu-se com o dono a entregá-la à terceira pessoa ou em determinado local. No depósito de coisas infungíveis, o domínio não é transferido, possível, portanto, a apropriação. Sempre que a coisa esteja na posse de outrem, sem prazo fixado para sua devolução, é conveniente, embora não imprescindível, que seu proprietário o notifique judicialmente para restituí-la, a fim de caracterizar a mora, embora a recusa do possuidor indireto ou do detentor possa ser provada por outros meios lícitos. A prévia prestação de contas não é indispensável à caracterização do crime, se outros elementos de prova idôneos puderem demonstrar sua existência. Deve o intérprete, diante de situação concreta que aparenta apropriação indébita, examiná-lo à luz das normas civis incidentes sobre contratos, pois em muitos casos vai-se defrontar apenas com um ilícito de natureza civil.

47.2.4

Elementos subjetivos

É crime doloso. O agente deve ter consciência de que é apenas o possuidor direto ou o detentor da coisa alheia móvel e vontade livre e consciente de apropriar-se dela, realizando atos inerentes à propriedade ou negando-se a devolvê-la conforme combinado ou após instado a fazê-lo. O outro elemento subjetivo do tipo é a intenção de ter a coisa como sua, o animus rem sibi habendi, locupletando-se em desfavor do dono e causando-lhe um prejuízo patrimonial. Se a intenção do agente era a de satisfazer uma pretensão legítima, buscando, por exemplo, ressarcir-se por sua própria conta, retendo ou ficando com a coisa para a liquidação de dívida contraída anteriormente pela vítima, o crime será o de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP). Se no momento em que recebe a coisa, a título de posse ou de detenção, o agente já


Apropriação Indébita - 5 tinha a intenção de apropriar-se dela, o crime será o de estelionato, pois terá enganado o proprietário, iludindo sua boa-fé, para que este lha confiasse. É porque, nesse caso, seu dolo era já o de tornar-se dono da coisa, antes de receber sua posse ou detenção, ludibriando a vítima.

47.2.5

Consumação e tentativa

A consumação do crime ocorre no momento em que o agente inverte o título da posse ou da detenção da coisa, passando a dispor dela como se fosse seu proprietário. Quando realizado na forma comissiva a consumação se dá quando o agente vende, oculta, desvia, enfim, quando pratica um ato externo típico de domínio. Na forma omissiva, a consumação acontece quando o agente recusa-se, de modo induvidoso, a devolver a coisa a seu dono. A simples demora na restituição da coisa não caracteriza, por si só, a intenção de apropriar-se dela, o que deve ficar evidenciada por atos inequívocos que revelem a inversão do título da posse. A tentativa só é possível na forma comissiva quando o agente não consegue realizar o ato de disposição sobre a coisa, como vendê-la, entregá-la a outrem, ocultá-la etc. A devolução da coisa após a consumação do crime não exclui a tipicidade, que deverá ser reconhecida também em casos de composição, transação ou ressarcimento do prejuízo. Nesses casos, será reconhecida a causa de diminuição da pena de que trata o art. 16 do Código Penal, se realizada antes do recebimento da denúncia. Há, contudo, decisões jurisprudenciais no sentido de que, nesses casos, ficaria excluída a tipicidade do fato. Evidente que tal entendimento não pode prevalecer, se o crime já tiver se aperfeiçoado em sua integridade.

47.2.6

Aumento de pena

A pena será aumentada de um terço, em três situações, previstas no § 1º do art. 168. A primeira hipótese é quando o agente recebe a coisa em depósito necessário. Depósito é o contrato através do qual alguém recebe um objeto móvel para guardá-lo até que o depositante o reclame (art. 627, CC). Diz-se depósito necessário “I – o que se faz em desempenho de obrigação legal; II – o que se faz por ocasião de alguma calamidade,


6 – Direito Penal II – Ney Moura Teles como o incêndio, a inundação, o naufrágio ou o saque” (art. 647, CC). O primeiro é chamado depósito legal; o segundo, depósito miserável. Segundo a doutrina, “só haverá apropriação indébita qualificada, quando o depósito necessário for miserável, porque se se tratar de depósito legal, o crime será sempre peculato (art. 312, do CP)”1. Com efeito, se o depositário cumpre uma lei ao receber a coisa, é, portanto, para os efeitos penais, um funcionário público, assim sua conduta constituirá crime contra a administração pública, não contra o patrimônio particular. A segunda causa de aumento incidirá quando o agente for tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial, este quando, particular, no exercício da função judicial de depositário. A última diz respeito a agente que comete a apropriação indébita no exercício de ofício, emprego ou profissão. Assim o advogado que recebe dinheiro em nome do cliente, o relojoeiro, o ourives, o sapateiro, o empregado que leva o dinheiro para depositá-lo no banco, todos terão sua pena aumentada, quando se apropriarem indevidamente da coisa recebida.

47.2.7

Apropriação indébita privilegiada

Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa apropriada, o juiz poderá substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa. É a mesma norma aplicável ao crime de furto, incidível sobre a apropriação indébita por força do que dispõe o art. 170. Assim, remete-se o leitor para o item 33.2.2, onde o tema foi abordado com mais detalhes.

47.2.8

Concurso de crimes e conflito aparente de normas

A apropriação simultânea de vários bens, ainda que de vários donos, é crime único. Assim, se o agente vai ao banco levando valores de diversos funcionários da firma para depositá-los nas suas contas correntes e apropria-se da totalidade do dinheiro, cometerá um único crime, porque única foi a conduta. Se, porém, o empregado, seguidamente, em 1

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. 1989. v. 1, p. 434.


Apropriação Indébita - 7 dias diferentes, quando vai ao banco, apropria-se de uma parte do dinheiro a ser depositado, deve-se reconhecer o crime continuado. A venda da coisa apropriada não é um segundo crime, mas o post factum impunível da apropriação. A diferença entre a apropriação indébita e o estelionato está em que, naquela, o dolo de atacar o patrimônio alheio ocorre depois da obtenção da posse ou detenção da coisa, ao passo que no estelionato o agente, antes de ter a coisa, já tinha o dolo de obter a vantagem ilícita. Se o agente apropria-se de bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento de pessoa idosa, ou os desvia, dando-lhes aplicação diversa de de sua finalidade, aplica-se o art. 102 da Lei nº 10.741/2003.

47.3 ILICITUDE E CULPABILIDADE A ilicitude da apropriação deve ser verificada também à luz da lei civil. Havendo entre agente e vítima relação obrigacional na qual ambos são, ao mesmo tempo, credor e devedor um do outro, de dívida de coisa fungível, as duas obrigações extinguem-se até onde se compensarem (arts. 368 e 369, CC). Será lícita, portanto, a apropriação de coisa fungível para compensar crédito de valor equivalente do agente em relação ao dono dela. No contrato de locação de coisas, o locatário tem o direito de retenção sobre a coisa alugada, em duas hipóteses. Se, antes do prazo do contrato, o dono quiser reavê-la e não ressarcir o locatário das perdas e danos resultantes, poderá este retê-la até o ressarcimento (art. 571, parágrafo único, CC). Também poderá retê-la enquanto não for ressarcido das benfeitorias necessárias ou úteis que tiver realizado com o consentimento do locador, salvo se o contrato dispuser de modo contrário (art. 578, CC). Tratando-se de depósito voluntário, regido pelas disposições dos arts. 627 e seguintes do Código Civil, é de ver que o depositário tem o direito a reter a coisa “até que se lhe pague a retribuição devida, o líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo anterior, provando imediatamente esses prejuízos ou essas despesas” (art. 644, CC). Na hipótese de mandato – contrato através do qual alguém recebe poderes de outro


8 – Direito Penal II – Ney Moura Teles para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses – em que é entregue coisa ao mandatário, este poderá retê-la até ser reembolsado do valor que tiver despendido para desempenhar o encargo objeto do mandato (art. 681, CC). No contrato de comissão – cujo objeto é a aquisição ou venda de bens, pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente – poderá o comissário exercer o direito de retenção sobre a coisa, inclusive dinheiro, que estiver em seu poder em virtude do contrato, até que receba o valor das comissões que lhe forem devidas (art. 708, CC). Assim, o direito de retenção, consagrado nos vários dispositivos do estatuto civil, exclui a ilicitude do fato. São modalidades de exercício regular de direito. Nesses casos, é certo, a verificação do direito do agente estará sujeita à apreciação do poder judiciário. Possível, ainda, a exclusão da culpabilidade por erro de proibição, quando o agente não compreender o caráter ilícito do fato, imaginando, por exemplo, direito de retenção em casos não contemplados na lei civil.

47.4 AÇÃO PENAL A ação penal é de iniciativa pública incondicionada. Cuidando-se de apropriação indébita simples, é possível a suspensão condicional do processo penal, nos termos do art. 89 da Lei nº 9.099/95, o que não se fará quando incidente uma causa de aumento de pena. Será, todavia, condicionada à representação do ofendido, se este for o cônjuge judicialmente separado, irmão, tio ou sobrinho com quem o agente coabita (art. 182, I a III, CP).


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